Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2978/09.0TBLRA-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
PAGAMENTO LIBERATÓRIO
Data do Acordão: 02/18/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA – 5º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 769º E 770º DO C. CIVIL.
Sumário: Obrigando-se o executado a pagar a prestação de alimentos à filha menor, por transferência bancária para uma conta em nome da mãe da menor, mas tendo o tribunal, a solicitação desta (porque que todos os depósitos feitos na primeira conta eram pelo Banco afectos ao pagamento do empréstimo, em virtude do incumprimento), determinado ao executado para proceder à ao pagamento da pensão através de transferência bancária para a conta aberta noutra instituição bancária, não é liberatório o pagamento feito pelo executado que, ignorando a determinação judicial e os motivos alegados, continuou a proceder ao depósito da pensão na primeira conta.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
I - RELATÓRIO
            1.1.- A exequente – M… – instaurou na Comarca de Coimbra acção executiva para pagamento de quantia certa, contra o executado – R...
            Alegando, em resumo, que o executado desde Outubro de 2010 não pagou a pensão de alimentos à filha menor F…, fixada por sentença homologatória de 14/6/2009, reclamou o pagamento da quantia € 5.136,60.
            1.2. - O executado deduziu oposição à execução, alegando, em resumo:
            Pagou todas as pensões, que depositou na conta indicada no acordo de regulação das responsabilidades parentais, de forma a assegurar que a filha pudesse continuar a ter uma casa para habitar, pois tomou conhecimento que a exequente se encontraria em incumprimento relativamente ao empréstimo para a habitação.
            A exequente está a agir com manifesto abuso de direito.
            Pediu a extinção da execução e a condenação da exequente como litigante de má fé.
            Contestou a exequente, defendendo-se, em síntese:
            A partir de Outubro de 2010 o executado deveria passar a depositar a pensão na conta bancária do Montepio Geral, conforme foi notificado, o que não fez, continuando a depositá-la na conta da Caixa Geral de Depósitos.
            O executado sabia que as quantias depositadas nesta instituição não seriam recebidas pela exequente, já que devido ao incumprimento do crédito à habitação a CGD apoderava-se de todos os montantes depositados na referida conta.
            1.3. - No saneador decidiu-se julgar procedente a oposição e declarar extinta a execução.
            1.4. - Inconformada, a exequente recorreu de apelação, com as seguintes conclusões

            Não houve contra-alegações.
II – FUNDAMENTAÇÃO
            2.1. – Objecto do recurso
            A questão submetida a recurso, delimitado pelas respectivas conclusões, consiste, no essencial, em saber se o depósito feito pelo executado a partir de Outubro de 2010 na conta bancária da CGD é ou não liberatório.
            2.2. – Os factos provados
1) F… nasceu no dia 29.10.1998 e é filha de R… e de M…;
2) Por sentença datada de 14.07.2009, proferida no Processo de Regulação das Responsabilidades Parentais, foi homologado o acordo referente às responsabilidades parentais da F…, nos termos do qual o pai se comprometeu a entregar à mãe, a título de alimentos devidos à filha de ambos, a quantia mensal de € 200,00, até ao dia 8 de cada mês a que disser respeito, mediante transferência bancária para a conta da Caixa Geral de Depósitos com o NIB …;
3) Tal importância seria actualizável anualmente com início em Janeiro de 2010 de acordo com o índice de preços apurado pelo INE (cláusula 5º do citado acordo);
4) Por requerimento datado de 08.09.2010, a ora exequente requereu que o executado passasse a depositar a quantia respeitante à prestação de alimentos na conta bancária sedeada no Montepio Geral, com o NIB …, em virtude de se encontrar em incumprimento de financiamento perante a CGD, pelo que todos os valores que são depositados na conta anteriormente indicada são encaminhados pelo banco para pagamento do empréstimo, e porque tem absoluta necessidade da prestação de alimentos para a subsistência da menor;
5) Sobre o requerimento mencionado em 4) recaiu, em 17.09.2010, o seguinte despacho: “Notifique-se o requerente, nos precisos termos requeridos” (refª 5539439), do qual o ora executado foi notificado por ofício datado de 21.09.2010 (refª 5559948);
6) A partir de Outubro de 2010 o ora executado continuou a proceder ao depósito das prestações de alimentos para a sua filha na conta sedeada na CGD, tendo pago todos os montantes devidos desde então (com as respectivas actualizações) – talões de depósito juntos aos autos;
7) A CGD pelo menos a partir de Outubro de 2010 canalizou os montantes depositados na mencionada conta para pagamento do empréstimo à habitação que concedeu à ora exequente, em virtude do incumprimento relativo a tal financiamento, deixando esta de dispor de tal quantia, entregue pelo pai, a título de alimentos devidos à menor.
            2.3. – O mérito do recurso
            A sentença recorrida considerou, em síntese, que o executado pagou as prestações devidas à menor desde Outubro de 2010, incluindo as respectivas actualizações, pelo que julgou procedente a oposição e extinta a execução.
            Em contrapartida, objecta a Apelante dizendo que o executado não efectuou o pagamento devido porque apesar de haver feito o depósito das prestações, não o fez na conta bancária que lhe foi comunicada pelo tribunal.
            Uma vez que ambas as contas bancárias são tituladas pela exequente, coloca-se a questão de saber se o depósito feito pelo executado a partir de Outubro de 2010 na conta bancária da CGD é ou não liberatório.
            O problema deve ser enquadrado no âmbito do cumprimento da obrigação, tratando-se, neste caso, de uma obrigação de alimentos devidos a menor, pelo que credora é a filha F...
            Em função da sentença judicial homologatória da regulação das responsabilidades parentais emerge para a credora F… o direito ao cumprimento ou à realização da prestação, e para o executado, seu pai, o dever primário de realizar a prestação.
            A prestação deve ser feita ao credor ou ao seu representante (voluntário ou legal) - art. 769 CC.
O art. 770 do CC prevê a possibilidade de terceiros, com legitimidade prévia ou posterior, receberem a prestação no interesse do credor e com efeito liberatório. Na alínea a) estão indicados os sujeitos devidamente autorizados pelo credor em resultado de estipulação com o devedor (por ex., pagamento por transferência bancária).
No caso em apreço a prestação de alimentos devia ser feita à representante legal da menor, a M…, segundo o convencionado, mediante transferência bancária para a conta da Caixa Geral de Depósitos.
            A transferência bancária tem sido concebida como inserida num contrato quadro, reconduzindo-se a uma prestação de serviços, rectius mandato sem representação, um mandato especial, tanto na vertente activa (do ordenante), como na da passiva (do beneficiário) - cf. CATARINA ANASTÁCIO, A Transferência Bancária, 2004, pág. 141 e segs..
            Sucede que M…, em Setembro de 2010, requereu ao tribunal que a prestação alimentícia da filha passasse a ser transferida para outra conta bancária agora do Montepio Geral, em virtude de se encontrar em incumprimento de financiamento perante a Caixa Geral de Depósitos, alegando que todos os depósitos são pelo Banco afectos ao pagamento do empréstimo.
            O tribunal deferiu o requerido e o executado foi notificado nos precisos termos em 21 de Setembro de 2010, ou seja para proceder ao pagamento da pensão de alimentos por transferência na nova conta bancária.
            No entanto, o executado, a partir de Outubro de 2010, continuou a proceder ao depósito das prestações na anterior conta (CGD), apesar de saber (porque fora notificado para o efeito) de que os montantes seriam destinados pelo Banco para o pagamento do empréstimo, de que era devedora a exequente.
            Daqui resulta, desde logo, que em face da determinação judicial, a partir da notificação de 21 de Setembro de 2010 ao executado, a Caixa Geral de Depósitos deixou de estar legitimada para receber as prestações de alimentos, o que era do seu inteiro conhecimento. Note-se que uma vez notificado, o executado não reagiu, nem deu qualquer esclarecimento ao tribunal sobre a razão de tal atitude.
            Sendo assim, o cumprimento feito a uma pessoa sem legitimidade para o receber não é eficaz perante o credor (cf., por ex., BRANDÃO PROENÇA, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento Das Obrigações, pág. 68).
            Noutra perspectiva, a Caixa Geral de Depósitos deixou de estar autorizada a receber, na qualidade de terceiro, a pensão de alimentos devidos à menor, significando que a prestação feita pelo executado destinou-se (não ao pagamento dos alimentos da filha) mas ao pagamento da dívida da exequente para com o Banco.
            Ora, o devedor está obrigado a fazer a prestação ao seu credor e não pode, em princípio, liberar-se pelo pagamento a um credor do credor, pelo que “se o pagamento feito a terceiro não for eficaz em relação ao credor, o devedor por aplicação do velho brocardo quem paga mal paga duas vezes, continua obrigado” (VAZ SERRA, BMJ 34, pág. 59 e segs).
            Também GALVÃO TELES refere que “sendo o pagamento feito a quem não possui legitimidade para o receber é nulo e não desonera o devedor. Este continua vinculado perante o credor a quem não pode opor o pagamento. O devedor terá de pagar ao credor como se não pagasse ao terceiro. Por isso se costuma dizer que quem paga mal paga duas vezes” (Obrigações, 4ª ed., pág. 171).
            O art. 770 al. d) CC considera liberatória a prestação feita a terceiro “se o credor vier a aproveitar-se do cumprimento e não tiver interesse fundado em não a considerar como feita a si própria”.
            Só que esta norma não tem aqui aplicação. Em primeiro lugar, porque quem dela tirou proveito do cumprimento foi, não propriamente a credora, mas a sua representante, na medida em que se destinou a solver a dívida dela para com a Caixa Geral de Depósitos (o que era do conhecimento do executado). Depois, porque, mesmo agindo na qualidade de representante legal da menor, ela ao requerer a mudança da conta bancária explicitou as razões, que o tribunal valorizou e acolheu, significando que não teve interesse fundado em não considerar como feita à menor (credora), tanto assim que no requerimento a pedir a mudança da conta, para além do mais invocou a absoluta necessidade dos alimentos para a subsistência da menor.
            2.4. - Síntese conclusiva
Obrigando-se o executado a pagar a prestação de alimentos à filha menor, por transferência bancária para uma conta em nome da mãe da menor, mas tendo o tribunal, a solicitação desta (porque que todos os depósitos feitos na primeira conta eram pelo Banco afectos ao pagamento do empréstimo, em virtude do incumprimento), determinado ao executado para proceder à ao pagamento da pensão através de transferência bancária para a conta aberta noutra instituição bancária, não é liberatório o pagamento feito pelo executado que, ignorando a determinação judicial e os motivos alegados, continuou a proceder ao depósito da pensão na primeira conta.
III – DECISÃO
            Pelo exposto, decidem:
1)
            Julgar procedente a apelação e revogar a sentença recorrida, determinando-se o prosseguimento da execução.
2)
            Custas pelo Apelado.
            Coimbra, 18 de Fevereiro de 2014.
( Jorge Arcanjo - Relator)
( Teles Pereira )
( Manuel Capelo )