Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
531/08.4TAMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: FURTO
FALTA DO VALOR DOS BENS
Data do Acordão: 02/03/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA MARINHA GRANDE – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 204º, 4 CP, 358º, 3
Sumário: 1-Não se sabendo qual o valor dos bens furtados, não é aplicável o n. 4 do artº 204º do C.P.
2-Neste caso a sentença recorrida deve ser anulada e o processo enviado ao tribunal recorrido para cumprimento do n. 3 do artº 358° do CPP .
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO
Por sentença proferida em 30 de Abril de 2009, no processo comum singular n° 531/08.4TAMGR do 3o Juízo do Tribunal da Comarca da Marinha Grande, foi decidido condenar o arguido, M..., pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de furto, previsto e punido, pelos arts. 203° n° 1 do Código Penal, na pena de 180 dias de multa à razão diária de 5 € o que perfaz o montante de 900 € e subsidiariamente, caso não pague a multa, em 120 dias de prisão. Condenar o arguido, D..., pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de furto, previsto e punido, pelos arts. 203° n° 1 do Código Penal, na pena de 180 dias de multa à razão diária de 5 €. o que perfaz o montante de 900 € e subsidiariamente, caso não pague a multa, em 120 dias de prisão.
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Inconformado o MP interpôs o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:
“(…)
1- Os arguidos M...e D...foram acusados pela prática de um crime de furto qualificado pelos arts. 203° e 204° n° 2 a 1.  e) do C.Penal, em 17-7-2008.
2- O Tribunal deu como provado que os arguidos entraram nas instalações fabris por um dos portões e que dali retiraram 1 compressor de ar, 1 máquina de impressão de tinta e 1 acessório de bomba.
3- Deu como não provado que para entrarem nas referidas instalações tivessem arrombado o portão.
4- O Tribunal não se pronunciou sobre a questão do valor dos bens subtraídos, não obstante a mesma ter sido objecto de prova. A testemunha C..., cujo depoimento foi considerado positivamente para a fundamentação da decisão de facto, declarou que só a impressora tinha um valor superior a 5.000,00 euros, que todos os bens estavam em bom estado de conservação e utilizáveis a qualquer momento.

5-O Tribunal procedeu à desqualificação do crime e condenou os arguidos pela prática de um crime de furto simples p. e p. pelo art. 203° do C.Penal na pena de 180 dias de multa.
6- O Tribunal apenas poderia ter desqualificado a incriminação se tivesse dado como provado que o valor dos bens subtraídos tinha valor igual ou inferior a uma unidade de conta, à data fixada em 96,00 euros - arts 204° n°4 e 202° al c) do C.Penal.
7- Face à prova produzida, a nosso ver, o Tribunal deveria ter apenas alterado a qualificação do crime, convolando-o para a qualificação prevista no n°1 al. a) e f) do art. 204° do C.Penal (furto de coisa móvel alheia de valor superior a 4.800,00 euros e com introdução ilegítima em estabelecimento industrial), a que corresponde pena de prisão até 5 anos ou multa até 600 dias.
8- Trata-se apenas de uma alteração não substancial dos factos - art. 358° do C.P.Penal.
9- A sentença contém uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.
10 - O Tribunal violou o disposto no art. 204° n° 1 al. a) e f) do C.Penal.
Nestes termos e nos mais que Vossas Excelências suprirão, deve dar-se provimento ao recurso e, revogar-se a sentença recorrida.”
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Admitido o recurso, respondeu o arguido M... concluindo em síntese que:
“- Não existe qualquer contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, ou sequer violação de qualquer preceito legal, mormente do disposto no art.º 204° n°1, alíenas a) e f) do Código Penal.
- Existe uma total coerência entre a fundamentação e a decisão, a qual foi tomada em absoluta consideração pela prova carreada para os autos e produzida em sede de Audiência de Discussão e Julgamento.
- não há lugar à qualificação do crime (subsunção no tipo de furto simples).
- O princípio constitucional do "in dúbio pro reo", princípio relevante do processo penal, impõe que a insusceptibilidade de determinação do valor do objecto subtraído, tenha de ser valorada a favor do recorrido. Neste sentido não poderá em sede de qualificação jurídico-penal, ser considerado um valor que não seja o mínimo, aquele que, neste plano, seja mais favorável, contido na definição legal de valor diminuto.
- Os factos apurados são susceptíveis, tão só, de integrar a previsão do tipo legal de crime de furto simples, (no caso desqualificado) p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 203° n°1 e 204° n°2 alínea e) e n°4 do Código Penal.
- deve manter-se na íntegra a decisão recorrida, negando-se provimento ao  Recurso, assim se fazendo Justiça.”
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Também o arguido D... respondeu pugnando pela improcedência do recurso na parte em que se sustenta que os arguidos deverão ser punidos pela prática de um crime de furto qualificado em virtude do valor elevado dos objectos, sintetizando a sua posição com as seguintes conclusões:
“1 - O Tribunal considerou como não provado que para entrarem nas instalações da fábrica em questão, os arguidos tivessem arrombado o portão.
2-OTribunal não deu como provado a atribuição de qualquer valor aos supra referidos objectos, pelo que não poderiam os arguidos ter sido condenados pela prática de um crime de furto qualificado previsto e punível pelos arts. 203.° n.° 1 e 204.° n. 1 alínea a) e n.° 2 alínea e).
3 - Assim sendo, decidiu bem e na ausência de um valor atribuído aos objectos em causa, o Tribunal a quo ao condenar os arguidos pela prática de um crime de furto simples previsto e punido pelo art.º 203.° n.° 1 do Código Penal pois, que não se tendo feito prova do valor dos objectos, estava impedido de qualificar o crime de furto nos termos do art.º 204.° n.° 1 alínea a), não sendo correcto sustentar-se que o Tribunal apenas poderia ter desqualificado a incriminação se tivesse dado como provado que os objectos em causa eram de diminuto valor nos termos do art.° 204.° n.°4 do Código Penal.
4 - Na ausência de um valor atribuído aos objectos, decidiu bem, nessa parte, o Tribunal pela condenação dos arguidos pela prática de um crime de furto simples previsto e punido pelo art.º 203.° n.° 1 do Código Penal.”
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Nesta instância, o Ex.mº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer concluindo que “Não se sabendo qual o valor dos bens furtados, não é aplicável o n. 4 do artº 204º do C.P., pelo que a sentença recorrida deve ser anulada e o processo enviado ao tribunal recorrido para cumprimento do n. 3 do artº 358° do CPP e prolação de nova decisão condenatória com base na al. f) do n. 1 do artº 204º do C. P. (ou, se se tiver por irrelevante a alteração da qualificação jurídica, a sentença revogada e substituída por outra que aplique este normativo).
- Se, porém, se entender que, naquela circunstância, é aplicável o referido n. 4, então deve considerar-se que há insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e ser ordenado o reenvio do processo para novo julgamento, limitado à averiguação do valor dos bens furtados e prolação de nova sentença.”
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Foram observadas as formalidades legais, nada obstando à apreciação do mérito do recurso (arts. 417º nº 9, 418º e 419º, nºs. 1, 2 e 3, al. c) do Código de Processo Penal na versão introduzida pela Lei 48/07 de 29.8).
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II – FUNDAMENTAÇÃO
As relações reconhecem de facto e de direito, (art. 428º do Código de Processo Penal), e no caso foi interposto recurso sobre a matéria de facto.
É jurisprudência constante e pacífica (acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação[1] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Ac do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série-A, de 28.12.95).
Sintetizando, são as seguintes as questões a decidir:
-  contradição insanável entre a fundamentação e a decisão;
- insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
- enquadramento jurídico-penal dos factos.
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Na decisão sob recurso é a seguinte a matéria fáctica provada e não provada e subsequente motivação:
- Factos provados
No dia 17.07.2008, cerca das 5h30m, os arguidos dirigiram-se às instalações da fábrica "F...", sitas na Rua …em Marinha Grande.
Os arguidos fizeram-se transportar no veículo automóvel de marca Rover, cor azul, de matrícula ….
Ali chegados os arguidos entraram por um dos portões e acederam ao interior daquelas instalações fabris.
Dali os arguidos retiraram um compressor de ar, uma máquina de impressão de tinta e um acessório de bomba.
Os arguidos carregaram os objectos para a viatura e colocaram-nos dentro dela.
Os arguidos vieram a ser surpreendidos pela testemunha P..., quando se encontravam na zona industrial da Embra, Comeira.
Pouco tempo depois, os agentes da P.S.P. da esquadra de Marinha Grande chegaram ao local e apreenderam os objectos que se encontravam na posse dos arguidos.
Os arguidos sabiam que aqueles objectos não lhe pertenciam, o que não os demoveu de prosseguir nos seus intentos e tinham perfeito conhecimento de que, ao apoderarem-se dos mesmos, agiam contra a vontade do seu legítimo proprietário, tendo determinado a sua conduta com essa intenção, o que quiseram e conseguiram.
Os arguidos agiram livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
O arguido M...tem um processo pendente e do seu certificado de registo criminal consta a seguinte condenação:
Por decisão de 23.6.2008, foi o arguido condenado pela prática de um crime de furto simples, no âmbito do Proc. 99/07.9GDLRA do 2o Juízo Criminal de Leiria, na pena de 10 meses de prisão cuja execução foi suspensa pelo período de um ano, sujeita a deveres.
O arguido M...vive com os pais e a expensas destes.
O arguido M...tem o 6o ano de escolaridade
O arguido M...começou a consumir heroína com 23 anos de idade e encontra-se actualmente a fazer tratamento no CAT.
O arguido D...não tem processos pendentes e do seu certificado de registo criminal consta a seguinte condenação:
Por decisão de 5.9.2008, foi o arguido condenado no âmbito do Proc. 31/08.2GELRA do 2o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Leiria, pela prática de um crime de condução de veiculo em estado de embriaguez, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de 5 € e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 5 meses.
O arguido D...começa a trabalhar no próximo dia 27 de Abril numa empresa de recolha de lixo onde irá auferir cerca de 450 € mensais.
O arguido D...vive com a mulher que trabalha em cestos de madeira e aufere mensalmente a quantia de 450 € .
O casal tem um filho de três anos de idade a seu cargo e vive em casa de renda pela qual paga 200 € mensais.
O arguido contraiu empréstimo para aquisição de viatura própria pelo qual paga à Banca 167 € mensais.
O arguido possui o 6o ano de escolaridade como habilitações literárias.

- Factos Não Provados
“Da discussão da causa não se provaram quaisquer outros factos, nomeadamente: Que os arguidos tenham arrombado um dos portões de entrada das instalações fabris. Que os arguidos tenham retirado uma caixa de ferramentas.”
- Motivação
“Prima facie, importa salientar que entre nós, o julgador é livre na apreciação da prova, conquanto vinculado esteja aos princípios em que se consubstancia o direito probatório[2], pelo que, a liberdade concedida se trata de uma liberdade de acordo com um dever, qual seja o de perseguir a chamada verdade material, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto redutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo[3]. A luz das considerações supra expostas temos que, in casu, a convicção do Tribunal se formou a partir das declarações dos arguidos que fizeram, ambos, uma confissão parcial dos factos e referiram ao Tribunal que o portão das instalações se encontrava apenas encostado e no trinco e que a caixa de ferramentas se encontrava dentro da viatura onde se fizeram transportar, propriedade do arguido D…. No mais esclareceram o Tribunal quanto à sua situação económica e social.
Sopesado o depoimento da testemunha de acusação C..., que confirmou os objectos furtados, admitindo, no entanto, que a caixa de ferramentas pudesse não fazer parte dos mesmos. A testemunha não pode garantir com certeza absoluta que o portão de entrada se encontrasse fechado com um cadeado.
Foram ainda considerados os certificados de registo criminal junto aos autos de fls. 69 a 72, bem como a análise dos documentos juntos a fls. 4, 18 e 19.
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APRECIANDO:
I – Contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.
Trata-se de um vício que se reporta a uma “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão" - cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, in "Recursos em Processo Penal", 4ª Edição, pág. 72.
A análise atenta da sentença revela que - não obstante ter resultado provado que os arguidos penetraram no interior das instalações da fábrica "F...", sitas na Rua do …em Marinha Grande, de onde retiraram um compressor de ar, uma máquina de impressão de tinta e um acessório de bomba, que carregaram na viatura no Rover, apesar de saberem que os mesmos não lhe pertenciam e que o faziam contra a vontade do dono, - foram considerados preenchidos os elementos objectivos do tipo-de-ilícito do crime de furto punido e previsto, pelos arts. 203°, n.° 1, do Código Penal. O que aparentemente se enquadra no vício em questão.
No entanto, cuidou-se na sentença recorrida de averiguar se a conduta dos arguidos era, ou não, subsumível às circunstâncias agravantes ou modificativas previstas na alínea e) do n.° 2, do art. 204°, como se conclui na douta acusação, concluindo-se pela negativa por não ter ficado provado que os arguidos tinham arrombado um dos portões de entrada para acederem às referidas instalações fabris.
É claro que a factualidade apurada consente a sua integração no tipo legal de crime de furto qualificado, previsto e punido pelos art. 203º, nº 1, e art. 204º, n.º 1, alínea f), do Código Penal, na consideração de que as coisas furtadas não são de valor diminuto - valor igual ou inferior a uma UC, à data fixada em € 96,00 - ( nº 4 do preceito referido).
Como salienta o MP no seu parecer, “o único obstáculo a essa integração poderia ser a disposição do nº 4 deste preceito, que afasta a qualificação se a coisa furtada for de diminuto valor, mas o certo é que o tribunal não o refere expressamente, sendo, no entanto, de presumir que o tenha aplicado "implicitamente", já que, se o não tivesse feito, teria forçosamente de integrar a conduta dos Recorridos na previsão da falada al. f). E dizemos "poderia ser", porque entendemos que, na realidade, aquele nº 4 não tem aplicação nos casos, como o presente, em que não se sabe qual o valor dos bens furtados. De facto, para além de propendermos para o entendimento do PROF. FARIA COSTA, segundo o qual este comando legal só actua quando o agente tiver representado "que aquilo que quer furtar tem um diminuto valor" [4] - o que, seguramente, não aconteceu aqui - temos por ajustada a jurisprudência do STJ nos termos da qual "A circunstância de não se ter conseguido apurar o real valor das quantias pecuniárias subtraídas não serve para se desqualificar o furto, nos termos do n. 3 do artº 297º do C.P./82 (ou do n.4 do art° 204° C.P./95), por isso que, para se considerar tal valor insignificante (ou diminuto - no segundo caso) seria necessário um juízo positivo sobre esse valor, o que não se verifica". (Acórdão de 26/06/97, na C.J.-Ac. STJ, V, II, 250).
De todo o modo, atentos o âmbito da acusação, o princípio da vinculação temática, e o enquadramento jurídico efectuado, a sentença não sofre do invocado vício.
Com efeito, os arguidos M...e D...foram acusados pela prática de um crime de furto p. e p. pelos arts 203° e 204° n° 2 al. e) do C.Penal, ou seja um furto com entrada através de arrombamento ( sublinhado nosso).
Mas “Se ao MP compete fazer a acusação, ao tribunal (e só a ele) compete constitucionalmente aplicar a lei e dizer o direito, decidindo os casos que lhe são apresentados e sendo independente nessa função (art. 203.º da CRP). Estando vinculado à lei e sendo independente, o tribunal tem liberdade para qualificar juridicamente de maneira diversa os factos descritos na acusação, apenas devendo prevenir o arguido de qualquer alteração de qualificação” -  Ac STJ de 17-09-2009.
No caso concreto – e sem cuidar ainda do valor das coisas furtadas – o Tribunal devia ter procedido à alteração da qualificação jurídica, devidamente comunicada ao arguido nos termos do n.º 1 do art. 358.º do CPP, por remissão do respectivo n.º 3.
 Senão vejamos:
O art. 1º, nº 1 al. f) do CPP, dispõe que a alteração substancial dos factos é aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
Ensina o Prof. Germano Marques da Silva, ( Curso de Processo Penal, vol. III, pág. 280), que “o art. 359º do CPP contempla a alteração dos factos em razão do acrescentamento ou amputação de um elemento do facto que implique que o facto novo resultante da alteração constitui um outro tipo legal de crime...”. E esclarece ( in ob. cit. vol. I, pág. 381, ) “crime diverso não é o mesmo que tipo incriminador diverso. É que o mesmo juízo de desvalor pode ser comum a diversas normas, a diversos tipos, que mantendo em comum o juízo de ilicitude, divergem apenas na sua quantidade, não na essência, mas na gravidade”.
E, acrescenta, “qualquer alteração dos factos descritos na acusação, desde que não implique alteração do juízo base de ilicitude nem agrave os limites máximos das sanções aplicáveis ao agente do crime acusado, pode ser tomada em conta, assegurando-se ao arguido a possibilidade de se defender em razão da alteração (art. 358º), mas já não nas hipóteses contrárias”. E  que “se os novos factos puderem ainda integrar a hipótese do facto histórico descrita na acusação, podem alterar-se as modalidades da acção, pode o evento material não ser inteiramente coincidente com o modo descrito, podem alterar-se as circunstâncias e a forma de culpabilidade que o crime não será materialmente diverso, desde que a razão do juízo de ilicitude permaneça a mesma” ( pág 382).
Também a alteração da qualificação jurídica é alteração não substancial, face ao nº 3 do art. 358 do CPP, redacção introduzida pela alteração da lei 59/98 de 25-08, como se deixou já assinalado.
A alteração não substancial por força da subsunção dos factos provados no art 204º nº 1, al f) do CP, não representa uma modificação dos factos que constam da acusação e não agrava o limite máximo da pena.
Recorde-se que as circunstâncias qualificativas são de funcionamento automático, ou seja, não é necessário averiguar, para que elas possam operar, se a sua verificação indicia uma especial gravidade do crime ou uma especial perigosidade ou censurabilidade do agente e, em segundo lugar, pode suceder que o agente, pela sua conduta, preencha várias circunstâncias qualificativas aí elencadas.
Das consequências da omissão do mencionado procedimento cuidaremos no final do item seguinte.
2 – Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça, existe quando os factos provados são insuficientes para justificar a decisão proferida, ou quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso submetido à apreciação do tribunal - cfr., entre muitos outros, o Acórdão de 24 de Novembro de 1998 e os arestos neste identificados, in BMJ 481, pág. 350.

Reportando-nos ao caso concreto, constata-se que a sentença não contém qualquer alusão aos valores dos objectos furtados, não obstante o objecto do processo definido pela acusação. É a acusação que define e fixa, perante o tribunal, o objecto do processo. É ela que delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal e é nela que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade e da consunção do objecto do processo penal – v., entre outros, Figueiredo Dias, Lições de Direito Processual Penal, UC, ano 88/89, pag. 99 e ss.
Porém, o processo penal nacional obedece ao modelo acusatório  -(art. 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa), - mitigado, conforme Prof. Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, 2004, págs. 71-72), pelo princípio «que se poderá denominar “investigatório”, da “investigação”, ou “instrutório”, através do qual se pretende traduzir o poder-dever que ao tribunal pertence de esclarecer ou e instruir autonomamente – i. e., independentemente das contribuições da acusação e da defesa – o facto sujeito a julgamento, criando ele próprio as bases necessárias à sua decisão», desta forma se acentuando «o carácter indisponível do objecto e do conteúdo do processo penal, a sua intenção dirigida à verdade material …».
Um dos momentos essenciais de aplicação deste princípio da verdade material é, precisamente, o do julgamento. Daí o dever de o tribunal ordenar, ao abrigo do nº 1 do art. 340º do C.P.P., oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento seja necessário à descoberta da verdade material. - no âmbito da indagação dos factos integradores do tipo legal imputado. – Ac Rel Porto 2009-11-18.
São elementos constitutivos do crime de furto:
   - a subtracção de uma coisa móvel, e que tal coisa seja alheia (elementos objectivos); e como elemento subjectivo a ilegítima intenção de apropriação para si ou para outrem da coisa.
Coisa móvel, para efeitos penais e de crime de furto, é toda a substância corpórea, material, susceptível de apreensão, pertencente a alguém e que tenha um qualquer valor, mas juridicamente relevante.
É de notar que não é coisa para efeitos penais o objecto sem valor venal, desde que a coisa não tenha valor efectivo para o seu possuidor ( António Barreiros, Faria Costa, Costa Andrade, Paulo Matta e Maia Gonçalves, apud Comentario Código Penal, de Paulo Pinto de Albuquerque, pág. 552).

Revela-se assim de primordial importância – até para a medida da pena – a investigação e prova do valor das coisas.

Também o STJ entende que “… é indiscutível que em qualquer crime patrimonial o valor da coisa objecto material e imediato do crime é de importância jurídica imprescindível, tal como vai implícito, desde logo, na disposição preliminar constituída pelas definições legais do artigo 202.º do Código Penal, que abre com as diversas definições de valor, e também, por outro lado, nas consequências drásticas que a sua variação pode acarretar inclusive a nível da tipicidade relevante, tal como se vê da disposição do n.º 4 do artigo 203.º, do mesmo diploma, que importa a desqualificação do crime quando for diminuto o valor da coisa furtada.” – Ac de 18 de Abril de 2002.

Nem sempre é necessária a expressa indicação do valor dos bens. “Se, por exemplo, alguém furta com chaves falsas um automóvel topo de gama em estado novo, não é imprescindível indicação do valor para que o tribunal possa concluir que a coisa valia mais do que uma unidade de conta. Trata-se de facto notório, de conhecimento geral, que não carece de alegação e prova” – cfr. art. 514 nº 1 do CPC – Ac da Rel Gui. 27-04-2008.

A omissão na sentença de qualquer referência ao valor das coisas inculca a violação do princípio da verdade material, que impõe ao juiz o conhecimento amplo e alargado dos factos que interessam à correcta aplicação do direito penal.

O STJ tem entendido que “a insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão de ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. – e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ser apurados na audiência vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena”.( sublinhado nosso).

Ponto é que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Ora, do próprio texto da sentença, atento o facto de ali se referir que a testemunha C..., "confirmou os objectos furtados'', resulta em conjugação com as regras da experiência, que o mencionado C...estará em condições de indicar o seu valor, com a mesma credibilidade que lhe foi atribuída na motivação da sentença recorrida.

Certo é que não foi investigada toda a matéria de facto com relevo para a decisão, pelo que está inquinada de insuficiência - artigo 410.º, n.º 2, a), do CPP.

Tal vício determina o reenvio do processo para novo julgamento - art.º 426º, n.º 1 do CPP) - circunscrito à mencionada questão do valor dos objectos furtados e à eventual subsunção dos factos na al f) do nº 1 do art 204º do CP, cumprindo-se o disposto no art. 358º, nºs 1 e 2, do C. Processo Penal, elaborando-se depois nova sentença em conformidade com os factos que, assim, venham a ser correctamente apurados.
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III – DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 5ª Secção desta Relação em conceder provimento ao recurso, anulam o julgamento e, para os apontados efeitos, determinam o reenvio do processo para o tribunal aludido no artigo 426.º-A, do CPP, seguindo-se depois os subsequentes trâmites, até final.

Sem tributação.

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Coimbra, 3-02-2010
Consigna-se que o acórdão foi revisto pelos signatários – art 94, do CPP.

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Isabel Valongo

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Paulo Guerra


[1] Com algumas especificidades no que respeita à impugnação da matéria de facto, como afirma o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005 “a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões. Perante esta margem de indefinição legal, e tendo o recorrente procedido à mencionada especificação no texto da motivação e não nas respectivas conclusões, ou a Relação conhecia da impugnação da matéria de facto ou, previamente, convidava o recorrente a corrigir aquelas conclusões” (proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577, no mesmo site) Esta posição mantém a sua actualidade com a versão introduzida pela Lei 48/07 de 29.8 ao Código de Processo Penal que manteve a divergência entre a redacção dos nºs 2 e 3 do art. 412º do Código de Processo Penal. No caso dos autos o Recorrente especificou nas suas conclusões os pontos de facto que no seu entender foram incorrectamente julgados e da motivação resultam quais as provas que impõem decisão diversa da recorrida.
' Art. 127° do C.P.P.
[3] Ac. da RC, 13.01.99, CJ, 1999,1, 44 relatado pelo Exm° Des. Oliveira Mendes e Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, 1981,1, 202.
[4] "Comentário Conimbricense do Código Penal",II Vol. 1999, pg.87