Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
62/09.5TBCDN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: JUNÇÃO DE DOCUMENTO
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
RECURSO
DEVER DE SIGILO
ADVOGADO
Data do Acordão: 06/20/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE CONDEIXA-A-NOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 691 NºS 1, 3 E 4 DO CPC; 87º DO ESTATUTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS
Sumário: I – A decisão interlocutória que admite a junção de documentos ou uma testemunha a depor, por se tratar de decisão que admite meio de prova, é susceptível de impugnação autónoma imediata, e caso não o seja, transita em julgado, limitando objectivamente o recurso que seja interposto da decisão final.

II - O dever de segredo é um elemento definidor do estatuto ou da posição jurídica do advogado.

III - A prova obtida com violação do dever de segredo profissional que vincula os advogados constitui uma prova materialmente proibida e, por isso, ilícita.

IV - Os factos relativos à execução do mandato forense e às despesas ocasionadas pelo exercício do patrocínio, à respectiva nota de honorários e de despesas e à interpelação do cliente para o seu pagamento, não se integram, desde que não tornem patentes factos reservados, no perímetro do dever de segredo que vincula os advogados

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

O Sr. Advogado, Dr. D…, pediu à Sra. Juíza de Direito do Tribunal Judicial de Condeixa-A-Nova, que condenasse M… e cônjuge, O…, a pagar-lhe a quantia de € 27.224,00, acrescida de juros vencidos, no valor de € 1.769,25, e dos vincendos.

Fundamentou esta pretensão no facto de exercer a profissão de advogado e de os réus terem conferido, a si e ao falecido colega, Dr. A…, procuração para os representarem em juízo na impugnação judicial que, com o nº 184/2000, correu no Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, no âmbito da qual, e no exercício daquele mandato, prestou aos réus os serviços e fez a despesas constantes da nota de honorários, que apresenta a seu favor um saldo de € 22.225,00, que deveria ter sido pago até ao dia 29 de Junho de 2007.

Os réus defenderam-se por impugnação e por excepção dilatória, invocando a ilegitimidade ad causam do autor, por nada lhe deverem, já que os serviços lhe foram prestados pelo Dr. A…, a quem entregaram a quantia de € 11.250,00.

Oferecida a resposta – que, no despacho saneador, na parte referida à defesa por impugnação, foi dada por não escrita – seleccionada a matéria de facto, e indeferido o depoimento de parte do autor, requerido pelos réus, procedeu-se, no dia 30 de Novembro de 2011, à audiência de discussão e julgamento.

Nesta audiência, tendo as testemunhas T… e I…, ambas advogadas, produzidas pelo autor, declarado, no interrogatório preliminar, a primeira que, tinha conhecimento das partes e dos factos em atenção à sua qualidade de advogada estagiária e colaboradora do autor, exercendo funções no seu escritório, e, a segunda, que trabalha no escritório do autor desde 1992, primeiro como estagiária e depois como colaboradora e que conhece o réu como cliente do escritório, pelos réus foi atravessado o seguinte requerimento: Nos termos do artº 87 do Estatuto da Ordem dos Advogados, o dever de sigilo profissional é extensível a todas as pessoas que colaboram com o advogado, pelo que em momento prévio deverá ser requerida a dispensa junto da Ordem dos Advogados da obrigação de sigilo; não constando dos autos tal dispensa, o depoimento da testemunha constitui prova nula, o que se requer com todas as legais consequências.

O autor respondeu que se opunha ao requerido, porquanto as testemunhas foram arroladas para fazer prova de que os honorários peticionados pelo autor foram ou não pagos no âmbito de uma determinada acção e não para se pronunciarem sobre o conteúdo e tramitação da mesma, o que (não) está coberto pelo sigilo profissional, pelo que não se vislumbra que possa aqui estar em causa qualquer quebra do sigilo profissional.

A Sra. Juíza de Direito, por despacho proferido, acto contínuo, para a acta, depois de observar, designadamente, que é ao próprio advogado que incumbe exigir o sigilo dos seus colaboradores, que não pode prevalecer sobre o dever geral de contribuir para a descoberta da verdade, que, em causa nesta acção está apenas o desempenho pelo autor das funções implicadas no mandato que alega lhe ter sido conferido pelo réu e o pagamento dos serviços prestados, e que os factos a que as testemunhas iam depor não se referem, por natureza, à área de privacidade implicada no mandato, indeferiu o requerido, procedendo-se à inquirição das testemunhas, por legalmente admissível, e susceptível de ser valorada enquanto meio de prova.

Ambas as testemunhas foram inquiridas a toda a matéria e confrontadas com os documentos juntos aos autos.

Publicada, no dia 12 de Dezembro de 2011, a decisão da matéria de facto – a que os Exmos. Advogados das partes, apesar de convocados, não assistiram - a sentença final da causa, condenou os demandados a pagar ao autor a quantia de € 27.225,00, acrescida de juros moratórios vincendos, à taxa legal, desde a sua data, até pagamento.

É esta sentença que os réus, através de requerimento apresentado por via electrónica no dia 10 de Março de 2012, impugnam no seu recurso ordinário de apelação, no qual pedem a sua revogação e o proferimento de outra que os absolva do pedido.

Os recorrentes extraíram da sua alegação estas conclusões:

Na resposta, o autor, depois de obtemperar, além do mais, que por não ter sido deduzida qualquer reclamação ou recurso do despacho que admitiu os depoimentos das testemunhas, Dras. T… e I…, o mesmo passou em julgado, e que os recorrentes, quando requereram o seu depoimento pessoal, implicitamente, o dispensaram do segredo profissional, concluiu pela improcedência do recurso.

1.1. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

1. Fundamentos.

3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

Nas conclusões da sua alegação, é lícito ao recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso (artº 684 nº 2 do CPC).

Objectivamente, o âmbito do recurso é delimitado, desde logo, pelos casos julgados formados na acção. Realmente, é claro que o recurso ordinário não pode incidir sobre matéria sobre a qual se formou caso julgado, pelo que se, por exemplo, transitou em julgado a decisão da 1ª instância que não atendeu a arguição da nulidade da petição inicial – nenhum tribunal de recurso pode voltar a pronunciar-se sobre essa excepção dilatória[1].

De harmonia com a alegação dos recorrentes, é só um o fundamento do recurso: o erro na apreciação da prova produzida, por ter dado como provados factos – os constantes das respostas aos pontos nºs 1 e 2 da base instrutória. Mas esse erro, no ver dos recorrentes, tem uma causa peculiar: a consideração, pelo tribunal de que provém o recurso de elementos probatórios – documentais e testemunhais – submetidos a sigilo profissional.

Alega-se expressamente um erro na decisão da questão de facto, por erro na aferição das provas. Todavia, o conjunto da alegação dos recorrentes mostra que o que, realmente, discutem não é um error in iudicando da matéria de facto por erro na avaliação, aferição ou valoração das provas produzidas – mas o carácter materialmente proibido, e portanto, ilícito, das provas – testemunhal e documental – produzidas, por terem sido admitidas em violação do dever de sigilo que vincula o advogado e os seus colaboradores, utilizadas pelo decisor da 1ª instância para decidir a controvérsia relativa à questão de facto.

                Na verdade, os recorrentes, apesar daquela declaração, não sustentam na alegação que o decisor da 1ª instância errou na valoração das provas e, correspondentemente, na decisão da matéria de facto – antes advogam, veementemente, que as provas de que aquele se socorreu para decidir a questão de facto são proibidas por se compreenderem no perímetro do dever de segredo que vincula os advogados.

Este ponto é relevante, dado que concluindo-se que, afinal, aquelas provas não são proibidas – ou que, por preclusão, essa questão não constitui objecto admissível do recurso - não há motivo para discutir a correcção do julgamento da matéria de facto, que, assim, se deve ter por exacto.

Concorre para a exactidão desta conclusão, a circunstância de os recorrentes nem sequer se terem preocupado com a satisfação do ónus de impugnação da decisão da matéria de facto, representado pela exigência da indicação das passagens do registo sonoro da prova em que constam os depoimentos das testemunhas, ou da transcrição desses depoimentos (artº 685-C nº 1 b) e 2 do CPC).

O problema não é, assim, de error in iudicando, por erro na valoração das provas – mas de uso, pelo decisor de facto, de provas materialmente proibidas e, portanto, ilícitas.

Entre as provas proibidas estão justamente, no ver dos recorrentes, os depoimentos das duas – únicas – testemunhas produzidas pelo autor: as Sras. Advogadas, Dras. T… e I...

Tendo constatado, logo na audiência final, em face das respostas dadas pelas testemunhas no interrogatório preliminar, que ambas as testemunhas tinham a qualidade de advogadas e adquirido conhecimento dos factos por virtude da sua colaboração com o autor, os recorrentes logo trataram de invocar a vinculação de ambas ao dever de sigilo profissional e, por não ter sido requerida, junto da respectiva ordem profissional, a dispensa desse dever, de arguir a nulidade da prova correspondente. A finalidade última do requerimento era, nitidamente, esta: impugnar a admissão das testemunhas, impedindo-as de depor.

Porém, a Sra. Juíza, não se persuadiu da exactidão da alegação dos recorrentes, declarou a inquirição daquelas testemunhas legalmente admissível e procedeu a essa inquirição. Esta decisão não foi objecto de impugnação - anteriormente ao recurso interposto da decisão final - seja por via de reclamação, seja de recurso ordinário.

Em face dessa ausência de impugnação, diz o recorrido: aquele despacho transitou em julgado, não podendo tal matéria ser de novo chamada à colação pelos recorrentes.

Esta objecção do recorrido deve ter-se por exacta.

A este processo, dado que foi instaurado em data posterior a 1 de Janeiro de 2008, à aplicável, no tocante à impugnação das respectivas decisões, o sistema de recursos tal como foi reconformado pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (artºs 11 e 12 nº 1 deste diploma legal).

No direito anterior a impugnação das decisões interlocutórias era instrumentalizada pelo recurso de agravo. Em face da supressão deste recurso ordinário poderia supor-se uma restrição da recorribilidade das decisões com tal natureza. Nada de menos exacto. A lei nova manteve a regra da recorribilidade das decisões interlocutórias, limitando-se a estabelecer, para obviar às desvantagens dessa recorribilidade, a regra da sua irrecorribilidade autónoma imediata, apenas admitindo a sua impugnação diferida e concentrada com o recurso interposto na decisão final (artº 691 nºs 1, 3 e 4 do CPC).

A irrecorribilidade autónoma imediata das decisões meramente interlocutórias dá decerto satisfação ao princípio da celeridade - dado que impede que o movimento do processo seja, a todo o momento, interrompido e prejudicado pela interposição de recursos - e da concentração de meios, uma vez que possibilita a apreciação simultânea pelo tribunal ad quem, num só recurso, de todas as decisões interlocutórias desfavoráveis para o recorrente.

Mas é claro que uma tal opção não é isenta de inconvenientes.

Desde logo provoca uma permanente insegurança sobre e eficácia das múltiplas decisões interlocutórias, dado que obsta à formação de caso julgado e à produção do efeito preclusivo correspondente. O vencido pela decisão final, no recurso que dela interpuser, tenderá a impugnar toda e qualquer decisão interlocutória anterior que julgue relevante para a procedência do recurso.

A recorribilidade diferida favorece decerto, a celeridade processual, mas pode provocar, no caso de procedência do recurso no tocante a uma decisão interlocutória, a inutilização dos actos processuais praticados depois do proferimento da decisão revogada.

Na verdade, se o tribunal ad quem decidir que o recorrente tem razão relativamente quanto a qualquer decisão interlocutória, a procedência do recurso terá, em regra, como consequência a inutilização de tudo o que se processou posteriormente ao despacho não autonomamente recorrível, incluindo, naturalmente, a decisão final que, assim, é proferida em pura perda. A procedência da apelação sem o proferimento de uma decisão sobre o mérito será, por isso, uma ocorrência vulgar.

A concentração da impugnação inerente à irrecorribilidade autónoma imediata das decisões interlocutórias diminui formalmente o número de recursos – mas aumenta materialmente, por impedir que sobre elas se forme de caso julgado, o número de questões susceptíveis de constituir objecto dele e a probabilidade de proferimento, pelo tribunal ad quem, decisões de forma inutilizadoras de decisões finais de mérito.

Para obviar a este último inconveniente, a lei exceptua da regra da impugnação diferida e concentrada, justamente o despacho de admissão ou de rejeição de meios de prova – que deve ser interposto no prazo de 15 dias, contado da sua notificação (artºs 685 nº 1 e 691 nº 2 i) e 5 do CPC). A razão pela qual uma tal decisão é recorrível imediata e autonomamente prende-se, precisamente, com a minimização do risco de inutilização do processo – quer por força da necessidade de produzir o meio de prova rejeitado ou da exigência de reconformar a decisão da matéria de facto assente em meios de prova admitidos em violação da lei[2].          

Pois bem. Na espécie do recurso, os recorrentes com fundamento no carácter materialmente proibido e, portanto, ilícito, da prova testemunhal representada pelos depoimentos das duas testemunhas do autor, por terem sido produzidas com desrespeito do dever de segredo profissional do advogado, findo o seu interrogatório preliminar, impugnaram a sua admissão.

Todavia, a Sra. Juíza admitiu ambas as testemunhas a depor, o mesmo é dizer, admitiu a prova pessoal correspondente.

Ora, como os recorrentes se consideram notificados acto contínuo ao proferimento desta decisão – por estarem presentes no momento em que foi proferida – mas não a impugnaram nos 15 dias seguintes, por recurso autónomo imediato, mas apenas no recurso que interpuseram da sentença final, segue-se, como corolário que não pode ser recusado, que deixaram caducar o direito à sua impugnação e que, portanto, aquela decisão passou em julgado (artºs 144 nºs 1 a 3, 145 nºs 1 a 3 e 677 do CPC).

Portanto, por constituir res judicata, o recurso da decisão final não pode ter por objecto a questão da inadmissibilidade da prova testemunhal, representada pelos depoimentos das duas testemunhas produzidas pelo autor, por violação do dever de segredo profissional. Efectivamente, como dentro do objecto do processo, o recurso deve observar os casos julgados formados entretanto na acção, aquela questão não constitui objecto admissível dele.

Note-se que esta conclusão vale igualmente para os documentos produzidos pelo autor, apresentados com os articulados de petição inicial e de resposta.

Logo na decisão da matéria de facto, tais documentos foram considerados, tanto no plano dos factos assentes, como no domínio dos controvertidos. Do mesmo modo, como resulta quer da acta da audiência – que documenta que aquelas testemunhas foram confrontadas com os documentos juntos aos autos – quer da decisão da matéria de facto – em que é evidente a utilização, como elemento de convicção, daqueles documentos – é patente a decisão, ainda que meramente implícita, da admissibilidade da prova correspondente.

Além do julgamento expresso, deve considerar-se o caso de julgamento implícito: muitas vezes, a decisão judicial não vale somente pela vontade declarada que nela se contém, vale também pelos pressupostos tacitamente resolvidos. Se o juiz utiliza na selecção da matéria de facto, assente e controvertida, documento oferecido pela parte, ou admite que a testemunha seja confrontada com um tal documento ou o utiliza na fundamentação da decisão da matéria de facto, deve presumir-se que, antes de admitir esse confronto ou fazer aquela utilização e este uso, se certificou da admissibilidade da junção do documento, da licitude da produção da prova pré-constituída correspondente. Pouco importa que o juiz se não tenha pronunciado expressamente sobre a admissibilidade dessa prova: há-de partir-se, sempre, do pressuposto de que, antes de utilizar o documento na selecção da matéria de facto de permitir o confronto da testemunha com o documento ou de o usar para formar a sua convicção sobre a realidade dos factos controvertidos, se certificou que uma tal prova não era materialmente proibida e, portanto, ilícita.

Também uma tal decisão de admissão daquela prova, não foi objecto de impugnação no prazo de 15 dias contado do momento em qualquer das partes dela tomou conhecimento ou, usando da diligência devida, dela devia ter tomado conhecimento – no momento da notificação do despacho saneador, da realização da audiência de discussão e julgamento, em que as partes estiveram presentes, ou, ao menos, no momento da publicação da matéria de facto, acto para o qual as partes, apesar de não se encontrarem presentes, foram convocadas (artº 685 nº 3 do CPC).

Mas vamos que, ex-adverso, a questão da admissibilidade da prova pessoal e documental apontada, não deve considerar-se coisa julgada. Mesmo em tal caso, a impugnação não deveria ter-se por procedente, dado que não há razão, na espécie do recurso, para qualificar qualquer daquelas provas como materialmente proibida e, correspondentemente, ilícita.

O detalhe desta proposição – que constitui, sublinhe-se, obiter dictum – exige, porém, o exame, ainda que leve, sobre da posição jurídica do advogado, do âmbito e os limites do seu dever estatutário de sigilo profissional e do critério de decisão do conflito desse dever de discrição com outros bens ou direitos juridicamente eminentes.

3.2. Posição jurídica do advogado.

Deve ter-se por adquirido, à certeza, que o advogado é um órgão autónomo de administração da justiça e de realização do direito. O advogado exerce uma função pública de administração da justiça e é, por essa razão, um órgão dessa administração (artº 83 nº 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados – EOA - aprovado pela Lei nº 15/2005, de 26 de Janeiro, aprovado pela Lei nº 15/2005, de 26 de Janeiro, com as alterações decorrentes do DL nº 226/2008 e da Lei nº 12/2010, de 25 de Junho).

A função do advogado ultrapassa bem largamente o interesse subjectivo da pessoa que patrocina para cumprir uma tarefa que interessa à própria comunidade jurídica: a realização do direito.

O advogado é um servidor do direito, devendo colaborar na administração da justiça. Todavia, essa função é prosseguida pelo advogado de forma que nitidamente a diferencia, por exemplo, da actividade judicial. Se, como o tribunal, o advogado serve a descoberta da verdade e a realização da justiça, serve-a actuando exclusivamente em favor da parte que patrocina.

O modo diferenciado como o advogado serve o direito nem sempre é de fácil compatibilização com o dever de verdade - seja como dever processual seja como dever ético-profissional – que também o vincula (artºs 83 nº 2 do EOA e, v.g., 266, 266-A e 459 do CPC). No tocante ao advogado, o dever de verdade não significa que seja obrigado a apresentar no processo toda verdade que conheça – mas apenas aquela que possa favorecer a posição da parte que patrocina. A exactidão deste entendimento das coisas é mostrada, por outro lado, pela circunstância de um tal dever de verdade se encontrar limitado pelo dever de segredo profissional, que só cede quando esteja em causa a dignidade, os direitos e interesses do próprio advogado, do cliente ou dos seus representantes (artº 87 nºs 3 e 4 do EOA).

O advogado deve expor a verdade favorável ao cliente, à melhor luz possível, cabendo-lhe dar expressão jurídica ao ponto de vista do seu constituinte; mas isso não implica, por exemplo, que deva alegar factos que saiba não serem verdadeiros ou o dever de entravar, por qualquer modo, a apresentação, pelos outros sujeitos do processo, de material desfavorável, bem como sustentar e cobrir comportamentos que saiba desconformes com a verdade.

É na interacção destes deveres de favorecimento processual, verdade e sigilo – compatíveis entre si, ao menos teórica e abstractamente – que se encontra o critério da actuação do advogado e são eles que dão o essencial da sua posição jurídica.

Para o problema que nos ocupa, pode, portanto, assentar-se em que o dever de segredo é um elemento definidor do estatuto ou da posição jurídica do advogado.

3.3. Âmbito e limites do dever de sigilo ou de segredo profissional do advogado.

Entre os princípios instrumentais do processo civil, i.e., dos princípios que procuram optimizar os resultados do processo, conta-se seguramente o princípio da cooperação. Princípio que, estendendo-se mesmo à importante área da prova, se destaca pela universalidade da sua vocação, dado que não vincula apenas as partes – e o Tribunal – mas toda e qualquer pessoa: na sequência do direito do Tribunal à coadjuvação de outras entidades, a lei é terminante em declarar que todas as pessoas sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhe for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados (artºs 202 nº 3 da Constituição da República Portuguesa e 519 nº 1 do CPC).

Para assegurar o acatamento desse dever, reconhece-se ao Tribunal a faculdade de impor àqueles que recusem a colaboração devida pena processual de multa, sem prejuízo de outros meios coercitivos que no caso caibam (artº 519 nº 2 do CPC).

A recusa é, porém, lícita se o cumprimento do dever de cooperação importar violação, designadamente, do sigilo profissional (artº 519 nº 3 c), proémio, do CPC)

Todavia, quando o Código de Processo civil exclui do dever de cooperação certas pessoas que, por lei, estão obrigadas a guardar sigilo profissional reenvia necessariamente para disposições que estabelecem tal segredo. Esta técnica de reenvio, explicável pela natureza adjectiva daquele diploma, exprime a ideia de que é à lei de carácter substantivo que compete fixar o conteúdo e os limites do conceito de segredo ou sigilo profissional, bem como as condições do exercício do correspondente dever ou do correspondente direito.

Quer dizer - e dito doutro modo - não basta que a lei processual diga que certas pessoas, por estarem vinculadas pelo dever de segredo, não são obrigadas a depor ou que podem recusar-se a depor, quando isso importe violação de tal segredo, para que o intérprete ou o aplicador logo conclua, como corolário que não possa ser recusado, que não há dever de cooperação: é ainda necessário saber se a noção de segredo ou sigilo profissional comporta, no caso, uma extensão ilimitada, oponível mesmo ao interesse proeminente e eminentemente público da administração da justiça, rectius, se o segredo tem carácter absoluto.

O advogado está vinculado a uma obrigação de guardar segredo no que respeita a todos os factos cujo conhecimento tenha por fonte o exercício das suas funções a prestação de serviços, designadamente os factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do seu cliente ou revelados por ordem deste ou de que tenha tido conhecimento em virtude cargo desempenhado na Ordem dos Advogados (artº 87 nº 1 a) do EOA). O perímetro desde dever de sigilo é alargado - objectivamente – aos documentos e coisas que tenham, com os factos sujeito a segredo, uma relação directa ou meramente indirecta, e subjectivamente – a todas as pessoas que colaborem com advogado no exercício da sua actividade (artº 87 nºs 3 e 7 do EOA). Manifestação relevante desse dever de sigilo é também a proibição – deveras violada vezes sem conta - de discussão pública de questões profissionais pendentes (artº 88 nº 1 do EOA).

Definido deste modo, o segredo profissional apresenta um conteúdo amplo, susceptível de abranger não apenas o segredo profissional stricto sensu, como segredo de pessoas, mas igualmente elementos relevantes compreendidos na exigência de discrição profissional.

Apesar do carácter espinhoso do enquadramento dogmático do instituto, é possível construir um conceito juridicamente relevante de segredo.

O segredo pode consistir num estado de facto garantido pelo direito, para o qual uma matéria apenas dever ser conhecida de uma pessoa ou de um círculo restrito de pessoas, ou o limite posto, por uma vontade juridicamente relevante à cognoscibilidade de um facto, de um acto ou de uma coisa, de tal modo que estes sejam actualmente destinados a permanecer desconhecidos para qualquer pessoa diferente da que legitimamente os conhece, por aqueles aos quais sejam revelados por quem tenha o poder de alargar ou restringir tal limite, ou por força voluntária ou involuntária, independentemente de quem tenha a disponibilidade jurídica do segredo.

Esta noção juridicamente relevante de segredo, recortada nos seus elementos essenciais pelo modo indicado, coincide com a definição do objecto do dever geral de sigilo, abrangendo, quer as hipóteses enquadráveis no âmbito da chamada discrição profissional quer no segredo profissional estrito.

A discrição profissional é uma obrigação instituída no interesse da profissão, destinada a proteger os segredos cuja divulgação poderia prejudicar – por violar a relação de confiança em que assenta - o desenvolvimento normal da actividade profissional ou a reputação da profissão. O dever de discrição impõe-se a todos os advogados e exclui a divulgação de factos, informações, documentos ou coisas das quais o advogado tomou conhecimento no exercício ou por ocasião do exercício das suas funções.

Do dever de discrição pode distinguir-se, numa perspectiva de maior delimitação conceptual, a obrigação de segredo profissional em sentido estrito, quando considerada no interesse no aspecto de protecção do segredo dos clientes. Nesta medida a obrigação visa todas as pessoas depositárias, por estado ou profissão ou por funções temporárias ou permanentes de segredos que lhe sejam confiados.

Seja como for, ao contrário do que sucede, por exemplo, com o segredo religioso[3], o dever de sigilo que vincula o advogado não tem um carácter absoluto. Esse dever cede – mas só cede – desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes (artº 87 nº 4, 1ª parte, do EOA)[4].

À violação deste dever de reserva são associadas pela lei consequências no plano estatutário e no plano processual. No plano estatutário, a ofensa do dever de sigilo faz incorrer o advogado infractor em responsabilidade disciplinar (artº 11º do EOA); no domínio processual, os actos praticados com violação daquele dever resolvem-se numa proibição de prova: tais actos – declara terminantemente a lei – não podem fazer prova em juízo (artº 87 nº 5 do EOA).

O direito à prova – que é habitualmente deduzido, para a generalidade dos processos jurisdicionais do disposto no artº 6 nº 3 d) CEDH – não é um direito irrestrito e está, portanto, sujeito a limites que se consubstanciam nas chamadas provas proibidas, que tanto podem ser provas materialmente lícitas mas processualmente proibidas como provas que são material e processualmente proibidas.

Exemplos de provas materialmente proibidas e, portanto, ilícitas, são - além de todas aquelas que são obtidas através dos métodos previstos no artº 32 nº 6 da Constituição da República ou no artº 519 nº 3 do CPC, - justamente as provas obtidas em violação do segredo profissional.

Podemos perguntar-nos se à semelhança do ocorre com o segredo bancário, em que a doutrina é acordo em assinalar um dupla dimensão – o de um interesse geral do sistema bancário para preservação de conservação de condições de captação de poupança e, do mesmo passo, a um interesse privado dos clientes da instituição de crédito tendo em vista a protecção da vida privada[5] - não deve assinalar-se também um duplo fundamento: um interesse público; um interesse privado.

O segredo profissional do advogado, apesar de corresponder ao dever de sigilo a cargo deste servidor do direito, aproximar-se-ia desta forma do direito à intimidade sobre a vida privada e, mais latamente, dos direitos fundamentais relativos à personalidade[6]. Essa aproximação é também patente na jurisprudência constitucional a propósito de outro dever de segredo – o sigilo bancário - de harmonia com a qual, a situação económica do cidadão, espelhada na sua conta bancária, incluindo as situações activas e passivas nela registadas, faz parte do âmbito de protecção do direito à reserva da intimidade de vida privada, condensado no artº 26 nº 1, da Constituição, surgindo o segredo bancário como um instrumento de garantia deste direito[7].

Realmente, existem poucos elementos mais reveladores da personalidade e da vida de cada um do que a informação que o cliente disponibiliza ao seu advogado, que releva muitos vezes dos escaninhos mais recônditos da sua intimidade pessoal senão mesmo da sua alma. Pense-se, por exemplo, nos processos de divórcio ou, em geral, nos processos relativos ao estado das pessoas – adopção, investigação e impugnação de paternidade, etc.[8].

Uma aproximação do dever de segredo do advogado do direito à intimidade da vida privada é, decerto, fundada. Mas dessa aproximação não pode extrair-se, em caso algum, esta consequência: a disponibilidade pelo cliente do dever de segredo que vincula o advogado. A quebra do dever de sigilo só é admissível obtida que seja a prévia autorização do presidente do conselho distrital respectivo[9] (artº 87 nº 4 do EOA). E, mesmo no caso de ter sido devidamente autorizado pelo seu conselho, o advogado pode escusar-se à revelação (artº 87 nº 6 do EOA). Este regime mostra, de resto, que – ao contrário do que supõe o recorrido na sua alegação - o dever de segredo não está na disponibilidade do cliente, o que bem se compreende dado que a obrigação de sigilo está ordenada para a tutela de interesses que transcendem largamente os do mandante.

Como é claro, o cumprimento pelo advogado do dever de segredo que o vincula pode conflituar com outros interesses ou bens igualmente dignos de tutela. 

 Sempre que essa colisão se verifique entre o dever de reserva e bens ou direitos diversos da dignidade, direitos ou interesses legítimos do advogado ou do seu cliente ou dos representantes, o conflito é resolvido a favor do dever de segredo. E este juízo de ponderação e esta valoração de prevalência são efectuados logo a nível legislativo: naquele caso, o legislador, ele mesmo, indica qual o bem, direito ou dever que deva prevalecer. E neste caso, o dever prevalecente é o de reserva.

Nos casos, porém, em que o conflito se regista entre o dever de segredo e a dignidade, direitos ou interesses legítimos do advogado ou do seu cliente ou de representantes deste, aquele juízo de ponderação e de valoração exige a elaboração – pelo órgão da estrutura representativa do advogado ou pelo juiz, conforme o caso - de uma norma decisão para o caso concreto.

Resta, porém, saber qual deve ser o padrão ou critério de solução do conflito a que deve obedecer essa norma decisão.

3.4. Metódica da resolução do conflito.

Como decorre das considerações anteriores, o conflito entre o dever de discrição a que advogado está adstrito e a sua dignidade, os seus direitos e interesses ou a dignidade direitos e interesses do seu cliente não pode ser resolvido por aplicação de um princípio de concordância prática ou da ideia de melhor equilíbrio possível entre o dever e os direitos em colisão, dada a patente impossibilidade de harmonização daquele dever com estes bens ou direitos.

Para a resolução do conflito é, por isso, necessário recorrer a uma relação – recíproca - de prevalência daquele dever em relação ao bem ou direito com que se mostra colisão.

É esta, de resto, a metódica disposta na lei, condensada nesta fórmula: princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento do advogado para a descoberta da verdade (artº 135 nº 3 do Código de Processo Penal, ex-vi artº 519 nº 4 do CPC). Nem outra poderia ser, dada a inexistência de um padrão ou standart de soluções de conflitos válido em termos gerais e abstractos. E é esse o critério normativo de decisão utilizada pela jurisprudência, embora a ponderação global e concreta dos interesses em conflito conduza, em regra, ao sacrifício do dever de sigilo[10].

É evidente, porém, que uma eventual relação de prevalência só em face das circunstâncias concretas e depois de um juízo de ponderação se poderá determinar, pois só nessas condições é legítimo dizer que, por exemplo, o direito do cliente tem mais peso que o dever de sigilo do advogado ou o inverso.

Todavia, todo este sistema supõe que se trate de factos cobertos pelo véu espesso do sigilo profissional, designadamente aqueles cuja fonte de conhecimento seja, em exclusivo, o cliente, ou a parte contrária a este, no contexto de negociação para obtenção de uma solução contratualizada do litígio. Mas como é evidente não se compreendem no perímetro desse dever, designadamente, actos necessariamente sujeitos a publicidade, como, por exemplo, um instrumento de procuração ou, de um modo geral, os praticados em juízo – a apresentação de um articulado, a participação numa diligência judicial, etc. - os factos notórios, os factos de domínio público, os factos revelados pelas partes, os factos provados em juízo ou documentados em instrumentos autênticos e autenticados[11].

Nestas condições, não se compreendem no perímetro do dever de segredo que vincula o advogado e o seu colaborador os factos relativos à celebração do contrato de mandato, aos serviços prestados na sua execução e a interpelação do mandante para o pagamento da remuneração e o reembolso das despesas documentadas na nota de honorários – desde que aquela alegação e esta descrição não torne patentes factos que devam permanecer reservados.

Assim, numa acção que tenha por objecto o direito do advogado à remuneração dos serviços prestados e ao reembolso das despesas ocasionadas pela execução do mandato, se o que se discute é se o autor prestou os serviços, sem que essa discussão envolva a revelação de qualquer facto incluído no dever de reserva, não é aplicável a apontada proibição de prova.

Este viaticum habilita-me a decidir o problema que constitui o universo das nossas preocupações.

3.4. Concretização.

Na nossa lei civil fundamental a representação é dominada pela procuração. Esta tem, na linguagem jurídica corrente, um duplo sentido: traduz o acto pelo qual se confiram, a alguém, poderes representação – e, em simultâneo, exprime o documento em que tal negócio tenha sido exarado (artº 262 do Código Civil).

Enquanto acto, a procuração é um negócio jurídico unilateral: reclama apenas um única declaração de vontade, não sendo necessária qualquer aceitação para que produza os seus efeitos: caso não queria ser procurador, o beneficiário terá de renunciar á procuração (artº 265 nº 1 do Código Civil). A procuração, enquanto negócio jurídico, está, naturalmente, submetida aos respectivos preceitos gerais.

O Código Civil actual cindiu a procuração do mandato: a primeira promove a concessão de poderes de representação; o segundo dá lugar a uma prestação de serviço (artº 1157 daquele diploma legal).

Contudo, a lei pressupõe a existência sob a procuração de uma relação entre o representante e o representado, de um negócio-base, em cujos termos os poderes e deveres dela emergente devem ser exercidos.

Normalmente, esse negócio-base é um contrato de mandato. A procuração e o mandato ficam, assim, numa específica situação de união. De resto, é a própria lei a mandar aplicar ao mandato regras próprias da procuração (artºs 1179 e 1179 do Código Civil).

Esta circunstância explica que, muitas vezes, a lei, tendo em vista a procuração, não se refira directamente a esta – mas ao negócio que lhe subjaz: o mandato.

Assim, por exemplo, considera-se mandato forense o mandato judicial para ser exercido em qualquer tribunal, incluindo os tribunais ou comissões arbitrais e os julgados de paz (artº 62 nº 1 a) do EOA e 2 da Lei nº 49/04, de 24 de Agosto). O exercício do mandato forense constitui acto próprio dos advogados e, portanto, só pode ser praticado por advogado com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados (artº 1 nºs 1 e 5 a) da Lei nº 49/2004, de 24 de Agosto).

O mandato civil corresponde a uma das mais antigas formas de cooperação e resolve-se no contrato pelo qual uma das partes se obriga, gratuitamente ou mediante retribuição, a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra, que, por qualquer motivo, não quer ou não pode praticá-los pessoalmente (artº 1170 nº 1 do Código Civil).

Na sua configuração mais típica, o assunto ou negócio que é objecto da gestão pertence ao mandante, sendo este o titular da necessidade a cuja satisfação se dirige a actividade do mandatário.

Nos seus traços descritivos gerais, o mandato é um contrato consensual, sinalagmático imperfeito e supletivamente gratuito: a lei não sujeita o mandato a nenhuma forma solene, excepto no caso do mandato forense; no caso de ser gratuito, as prestações a que o mandante se encontre vinculado não equivalem às adstrições do mandatário; o mandato presume-se oneroso quando é exercido no âmbito da profissão do mandatário[12] (artºs 1157 e 1158 nº 1 do Código Civil).

Sendo o mandato oneroso, ao mandatário assiste o direito à remuneração devida pela execução do mandato, remuneração que, quanto à sua medida, não havendo acordo das partes, é determinada pelas tarifas profissionais, na sua falta, pelos usos, e na falta daquelas tarifas e destes usos, por juízos de equidade (artº 1158 nº 2 e 1167 b), 1ª parte, do Código Civil). Relativamente ao advogado, aquela medida, ou melhor, os seus parâmetros, são dadas pela sua lei estatutária (artº 100 nºs 1 a 3 do EOA).

A par do direito à remuneração, o advogado tem ainda direito a ser reembolsado das despesas feitas que, aquele, fundadamente, tenha considerado necessárias (artº 1167 c) do Código Civil). Para que haja direito a esse reembolso, exige a lei que tenham sido fundadamente consideradas pelo mandatário como indispensáveis. O critério de apreciação é, do mesmo passo, subjectivo e objectivo, pois se exige não só a convicção por parte do mandatário de que a despesa era necessária – como a razoabilidade dessa convicção. A ratio do critério é patente: evitar a oneração do mandante com despesas supérfluas ou com despesas excessivas.

A obrigação de renumerar o mandatário e o de reembolsar das despesas que vincula mandante constitui uma obrigação pecuniária. Se se constituir em mora no tocante ao cumprimento dessa obrigação – constituição que ocorre, regra geral, com a sua interpelação para o cumprimento – o mandante fica vinculado à obrigação de reparar o dano causado ao mandatário com o retardamento da realização da prestação (artºs 804 nºs 1 e 2 e 805 nº 1 do Código Civil). Tratando-se de uma obrigação pecuniária, essa indemnização corresponde, em princípio, aos juros legais, contados desde a constituição do mandante em mora (artº 806 nºs 1 e 2 do Código Civil.

O Código Civil ao fixar o princípio geral da matéria do ónus da prova apelou, nitidamente, à natureza funcional dos factos perante o direito do autor.

Assim, ao autor cabe a prova, não de todos os factos que interessem à existência actual do direito alegado – mas somente dos factos constitutivos dele; a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito, incumbe à parte contrária, aquele contra quem a invocação do direito é feita (artº 342 nºs 1 e 2 do Código Civil).

Maneira que numa acção que tenha por objecto os honorários devidos ao advogado pelo exercício do mandato forense, compete-lhe fazer a prova, desde logo, da existência desse mandato e da existência de acordo sobre valor dos honorários e, na falta desse acordo, ou de prova dele, recai sobre o autor o ónus de demonstrar todos os factos relevantes para uma adequada concretização e densificação dos critérios legais de fixação desses mesmos honorários[13].

Na espécie do recurso, a controvérsia das partes não girava à volta do valor dos honorários ou das despesas - mas em torno da existência do mandato conferido pelos recorrentes ao recorrido e da autoria da prestação dos serviços correspondentes: o autor alegava que os réus lhe tinha conferido um tal mandato e que na execução dele prestou, ele mesmo, aos réus os serviços de patrocínio; os demandados afirmavam, porém, que havia constituído mandatário, não o autor, mas o seu colega, já falecido, e que foi este, a quem entregaram a quantia de € 11 250,00, que lhes prestou os serviços.

Dada a importância do cumprimento do ónus da prova para o proferimento de uma decisão favorável à parte onerada, há que reconhecer-lhe um direito à prova (artº 341 do Código Civil). Todavia para cumprir esse ónus da prova, a autor tem de utilizar um dos meios de prova legal ou contratualmente admitidos ou não excluídos por convenção das partes (artº 345 do Código Civil).

O autor socorreu-se, no exercício do direito à prova, designadamente do concurso dos depoimentos de duas advogadas que com ele colaboram, e foi como base nesses depoimentos – e genericamente, embora, também com base nos documentos oferecidos pelo primeiro - que o tribunal recorrido se convenceu da realidade ou da veracidade dos factos alegados pelo recorrido.

 Quer porque a questão da admissibilidade de qualquer daquelas provas constitui res judicata – por a decisão correspondente não ter sido objecto de oportuna impugnação – quer porque, por não se referirem a factos incluídos no perímetro do dever de segredo que vincula, tanto o autor como aquelas duas testemunhas – tais provas não são proibidas, e, portanto, ilícitas, não há qualquer razão para discutir a exactidão daquele julgamento.

E, em face dos factos assim apurados, é indiscutível a correcção da decisão contida na sentença impugnada.

O recurso deve, por isso, improceder.

Expostos todos os argumentos, afirma-se, em síntese, que:

a) A decisão interlocutória que admite a junção de documentos ou uma testemunha a depor, por se tratar de decisão que admite meio de prova, é susceptível de impugnação autónoma imediata, e caso não o seja, transita em julgado, limitando objectivamente o recurso que seja interposto da decisão final;

b) O dever de segredo é um elemento definidor do estatuto ou da posição jurídica do advogado;

c) A prova obtida com violação do dever de segredo profissional que vincula os advogados constitui uma prova materialmente proibida e, por isso, ilícita;

d) Os factos relativos à execução do mandato forense e às despesas ocasionadas pelo exercício do patrocínio, à respectiva nota de honorários e de despesas e à interpelação do cliente para o seu pagamento, não se integram, desde que não tornem patentes factos reservados, no perímetro do dever de segredo que vincula os advogados.

As custas do recurso deverão ser satisfeitas pelo sucumbente: os apelantes (artºs 446 nºs 1 e 2 do CPC).

Dada a pouca complexidade do tratamento processual do objecto do recurso, a respectiva taxa de justiça deve ser fixada nos termos da Tabela I-B que integra o RCP (artº 6 nº 2).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.

Custas do recurso pelos apelantes, devendo a taxa de justiça ser fixada nos termos da Tabela I-B integrante do RCP.

                                                                                                                            

                                                                                                              Henrique Antunes (Relator)

                                                                                                              Regina Rosa

                                                                                                              Artur Dias


[1] Ac. do STJ de 04.02.83, CJ, 93, I, pág. 137.
[2] Abrantes Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 177.
[3] Artº 16 nº 2 da Lei de Liberdade Religiosa, aprovada pela Lei nº 16/2001, de 22 de Junho.
[4] Esta disposição inculca que, ao contrário de outros deveres de segredo, que são derrogáveis quando em conflito com os interesses da justiça, o dever de segredo do advogado prevalece ainda que em confronto com os interesses da justiça. Neste sentido, Parecer da PGR nº 28/86, Procuradoria-Geral da República, Pareceres, vol. VI, Os Segredos e a sua Tutela, pág. 365.
[5] António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, Lisboa, 1998, pág. 313, e Direito Bancário, Relatório, Almedina, Coimbra, 1997, pág. 148, Célia Ramos, “O sigilo bancário em Portugal origens, evolução e fundamentos”, in Diogo Leite de Campos et alli, Sigilo Bancário, 1997, págs. 131 e Rodrigo Santiago, “Sobre o segredo bancário uma perspectiva jurídico-criminal e processual penal”, in Revista da Banca, nº 42, Abril/Junho de 1997, págs. 44 e 45.
[6] Paulo Mota Pinto, A Protecção da Vida Privada e a Constituição BFDUC, Vol. LXXVI, Coimbra 2000, pág. 174.
[7] Ac. do TC nº 278/95, DR. II Série, de 28 de Julho de 1995. Cfr., sobre o problema da protecção constitucional do segredo bancário, Anselmo Rodrigues “Sigilo bancário e direito constitucional”, in Diogo Leite de Campos et alli, cit., págs. 50 e ss.

[8] A garantia da reserva da vida privada resulta, igualmente, da proibição de utilização de provas obtidas com violação do segredo da vida privada. O ponto é objecto de previsão específica na constituição processual penal (artº 32 nº 8 da Constituição da República Portuguesa). Trata-se de uma proibição constitucional de utilização de certos meios de prova que deve distinguir-se das simples regras processuais de produção da prova. Coloca-se, porém, o problema de saber se estas proibições de prova devem ser aplicadas em processo civil. A favor de uma resposta positiva, poderá até invocar-se um argumento a fortiori, considerando que o processo civil visa a realização de interesses privados – e não do interesse público com vista à descoberta e punição das infracções mais graves. O direito, garantido pela Constituição, à reserva da vida privada deve, assim, impor-se igualmente no processo civil, com proibição das provas obtidas em sua violação. O ponto, porém, não tem interesse no tocante à violação da obrigação de segredo do advogado, dado que a produção de provas, em violação desse dever, é objecto de previsão específica.
[9] Acórdão do Conselho Superior de 8 de Junho de 1997, in ROA, 39, 681.
[10] Cfr., v.g. Acs. da RL de 15.05.07, 20.01.09 e 23.02.10 e da RC de 16.12.09, www.dgsi.pt.
[11] Ac. da RC de 21.09.11, www.dgsi.pt.
[12] António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV, Almedina, Coimbra, 2005, pág. 74.
[13] Ac. do STJ de 24.04.11, www.dgsi.pt.