Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | MARIA PILAR DE OLIVEIRA | ||
Descritores: | PRISÃO POR DIAS LIVRES FALTA ESTABELECIMENTO PRISIONAL INEXIGIBILIDADE DE OUTRO COMPORTAMENTO | ||
Data do Acordão: | 12/10/2014 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | PENAMACOR | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGO 45.º DO CP; ARTIGO 125.º, N.º 4, DO CEPMPL (CÓDIGO DA EXECUÇÃO DAS PENAS E MEDIDAS PRIVATIVAS DA LIBERDADE) | ||
Sumário: | I - A culpa - base de todo o direito sancionatório expressa no brocardo latino “nulla poena sine culpa” - é censurabilidade e supõe a exigibilidade de comportamento diferente. ~ II - Não só a aplicação da pena como também a sua execução deve estar subordinada ao princípio penal referido. III - Não dispondo o condenado, em prisão por dias livres, de rendimentos suficientes para satisfação das suas necessidades básicas e do seu agregado familiar, e inexistindo transporte público da sua residência para o Estabelecimento Prisional, nestas circunstâncias, não lhe é exigível, no quadro de uma valoração jurídico-penal, a comparência naquele centro de reclusão pelos seus próprios meios. IV - Consequentemente, no descrito circunstancialismo fáctico, não é juridicamente aceitável o cumprimento da prisão em regime de continuidade. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:
I. Relatório No processo 303/11.9TXCBR do Tribunal de Execução de Penas de Coimbra, referente a A..., condenado em pena de prisão por dias livres, foi proferida decisão em 4 de Abril de 2014 julgando injustificada a falta de comparência no EP e determinando o cumprimento em regime contínuo da pena remanescente, do seguinte teor: Foi instaurado o presente processo supletivo em virtude de não apresentação do condenado A..., já identificado nos autos, no EP no qual cumpria pena de prisão por dias livres. As faltas do condenado foram julgadas justificadas até 17/12/2011 mas, após esta data, o condenado não se voltou a apresentar no EP. O condenado foi ouvido nos termos do art. 125.º/4 do CEPMPL, conforme resulta da acta junta a fls. 266
O M.º P.º solicitou a realização de relatório social acerca das condições de vida do condenado, relatório este que foi junto aos autos. Finda a instrução, o MP pronunciou-se, promovendo que se considerem justificadas as faltas. Foi dado o contraditório ao arguido, que nada disse.
O Tribunal é competente. O processo é o próprio. Não há nulidades, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
II – Fundamentação: 2.1. De facto: a) Factos provados: 1) Por sentença transitada em julgado a 1/3/2011, proferida nos autos de Processo Sumário n.º 7/11.2 GAFAG, do T. J. de Fornos de Algodres, foi o requerido condenado na pena de 5 meses de prisão, a cumprir em regime de dias livres, equivalentes a 30 períodos de fim-de-semana, com duração de 36 horas cada período e foi notificado da guia de apresentação no EP da Covilhã. 2) O arguido não compareceu no EP em nenhum fim-de-semana após o dia 17/12/2011. 3) O condenado vive com a mulher e com os 4 filhos, o maior dos quais com 7 anos de idade. 4) O casal recebe €:430,00 de RSI e €:35,00 de abono por cada filho e ainda, duas ou três vezes por ano, ajuda com o fornecimento de bens alimentares, e o condenado iniciou um curso de formação parental, desconhecendo ainda quanto irá ganhar. 5) Residem numa casa abarracada com razoáveis condições de habitabilidade, não pagando renda de casa. 6) Não existe transporte público entre a residência do condenado e a Covilhã, aos fins de semana, que seja compatível com os horários fixados na sentença condenatória. 7) Nos fins de semana que cumpriu, cada viagem para o EPR da Covilhã custou ao condenado €:20,00, que pagava a familiares que o transportavam, considerando a inexistência de transporte público.
b) Motivação: Para dar como provados os factos que nessa qualidade se descreveram, o Tribunal valorou o teor dos documentos juntos aos autos, o relatório social que foi elaborado e que está junto ao processo e as declarações prestadas pelo condenado, nesse sentido.
2.2. Fundamentação de Direito: Considerado o trânsito em julgado da sentença que impôs o cumprimento de 5 meses de prisão a cumprir em regime de dias livres, equivalentes a 30 períodos de fim-de-semana e emitida a correspondente guia de apresentação, encontra-se o condenado privado da sua liberdade e vinculado à reclusão nos períodos indicados. De acordo com o art 125.º, nº4, do CEPMPL, as faltas de entrada no estabelecimento prisional de harmonia com a sentença são imediatamente comunicadas ao TEP. Se este tribunal, depois de ouvir o condenado e de proceder às diligências necessárias, não considerar a falta justificada, passa a prisão a ser cumprida em regime contínuo pelo tempo que faltar, passando-se, para o efeito, mandados de captura. A não apresentação apenas será justificável, segundo julgamos, perante hipóteses de impossibilidade absoluta. Trata-se de hipóteses sobreponíveis ao conceito de justo impedimento. De acordo com a definição fornecida pelo art.146º do CPC, por justo impedimento entende-se todo o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários, que obste à prática atempada do acto. Na sua anterior redacção, a norma referida em último lugar definia o justo impedimento como "o evento normalmente imprevisível, estranho à vontade da parte, que a impossibilite de praticar o acto, por si ou por mandatário". Tal definição levava a doutrina a circunscrever o âmbito da previsão legal àquelas hipóteses em que a pessoa onerada com a prática do acto tivesse sido colocada na absoluta impossibilidade de o fazer, por si ou por mandatário, em virtude da ocorrência de um facto, independente da sua vontade, e que o cuidado e diligências normais não fariam prever (cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 1º, pg.321). Como bem nota Abílio Neto (Código de Processo Civil Anotado, 14º ed., pg.211), a esta quase responsabilidade pelo risco contrapôs a reforma de 95 uma definição conceitual mais flexível, fazendo derradeiro apelo ao "meio termo" de que falava Vaz Serra (RLJ, 109º, pg.267): deve exigir-se às partes que procedam com a diligência normal, mas já não lhes é exigível que entrem em linha de conta com circunstâncias excepcionais. Sob a égide do revisto conceito, agora indubitavelmente estruturado sob uma ideia de culpa, entende-se que não configuram casos de justo impedimento as hipóteses em causa nos autos. Senão, vejamos. São inegáveis as dificuldades económicas do condenado e são estas que, aliadas à ausência de transporte compatível com o horário fixado na sentença, o condenado invocou para justificar a sua não comparência no EP da Covilhã. Contudo, mesmo tendo presentes e lamentando as condições de vida árduas do condenado e das sua família, a verdade é que não se consegue com facilidade perceber que o condenado não tenha conseguido, desde Novembro de 2011 (altura em que se apresentou pela última vez no EP) e até hoje, – uma única vez que fosse - e ainda que com um enorme esforço, reunir o dinheiro necessário para custear a viagem para a Covilhã e para poder cumprir a sua pena, ainda que para tanto tivesse de ir na véspera e pernoitar na Covilhã. E a verdade é que muitos dos indivíduos que são condenados em penas de prisão por dias livres é com imensa dificuldade e enorme esforço que as cumprem (até mesmo dormindo em bancos de jardim ou da Rodoviária) esforço este que não nos parece que o condenado tenha feito nos últimos 3 anos. Entende-se, pois, que as dificuldades económicas do condenado não podem justificar o incumprimento da pena em que foi condenado. Aliás, se assim fosse, bastaria a um condenado permanecer inativo durante o período de prescrição da pena para não a chegar a cumprir. Tem ainda de se salientar que, relativamente ao horário de apresentação do condenado no EP da Covilhã, nunca o condenado não propôs um horário alternativo para o cumprimento da sua pena, que fosse compatível com os horários dos transportes públicos. E mesmo depois da inquirição neste Tribunal, onde foi esclarecido e alertado para a possibilidade de alterar o horário de apresentação no EP por forma a poder cumprir a pena em que foi condenado, o condenado nada requereu neste sentido, continuando sem se apresentar. Assim, nos termos do disposto no art.º 125º n.º 4 do CEP julgo injustificadas as faltas do arguido ocorridas nos fins de semana posteriores a 17/12/2011 e até ao presente momento.
III – Decisão: Por todo o exposto, em conformidade com as disposições legais supra referidas, decide-se julgar injustificadas as não apresentações do condenado no Estabelecimento Prisional posteriores a 17/12/2011 e, consequentemente, determina-se o cumprimento em regime contínuo do remanescente da pena de 5 meses de prisão em que foi condenado. Custas pelo condenado com taxa de justiça fixada em 2 UC.
Inconformado com a decisão, dela recorreu o Ministério Público, extraindo da respectiva motivação do recurso as seguintes conclusões: 1. Determina o nº 4 do artigo 125º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade que, na execução da prisão por dias livres "as faltas de entrada no estabelecimento prisional de harmonia com a sentença são imediatarnente comunicadas ao tribunal de execução das penas. Se este tribunal, depois de ouvir o condenado e de proceder às diligências necessárias, não considerar a falta justificada, passa a prisão a ser cumprida em regime contínuo pelo tempo que faltar, passando-se, para o efeito, mandados de captura." 2. Determina o nº 2 do artigo 13º da Constituição da República Portuguesa que "ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual". 3. Ficou provado que o condenado, mulher e 4 filhos recebem mensalmente 430,00 €, acrescido de 35,00 € de abono por cada filho. 4. Ficou provado que o condenado não dispõe de transportes públicos para se deslocar da residência até ao estabelecimento prisional. 5. Foi considerado que a falta de dinheiro e de transportes para se apresentar no estabelecimento não serve para justificar faltas. 6. Foi considerado que as dificuldades económicas não afastam a culpa pela falta de comparecimento no estabelecimento de quem não tem dinheiro para o custear. 7. Foi considerado que um condenado deve cumprir a sua pena, mesmo que "dormindo em bancos de jardim ou da Rodoviária". 8. Foi considerado que quem vive abaixo do limiar da pobreza deve fazer poupanças podendo "ainda que com um enorme esforço reunir o dinheiro necessário para custear a viagem para a Covilhã". 9. Foram lamentadas "as condições de vida árduas do condenado". 10. Foi considerado que aceitar justificações económicas para faltas de comparecimento poderia mesmo levar a que, se o condenado permanecesse desempregado durante o prazo de prescrição da pena, poderia nunca a cumprir, 11. Entendemos que não pode fazer-se um juízo de censura ético-penal pela falta de meios para custear deslocações necessárias ao cumprimento de uma pena. 12. Entendemos que quem não tem dinheiro para se deslocar para cumprir uma pena de prisão por fins de semana não deve ser condenado a cumprir a pena em regime contínuo. 13. Entendemos que não deve haver um regime penal para quem tem dinheiro e outro para quem o não tem. 14. Entendemos que um condenado não deve ser discriminado pela sua situação económica. 15. Entendemos que os juízos ético-penais se baseiam em juízos concretos de culpa. 16. Entendemos que no nosso ordenamento jurídico não existem conceitos de culpa pela falta de condições económicas e sociais. 17. Foram violados, para além dos princípios gerais do direito (e do penal em particular) as normas do artigo 2º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (in DR de 9/03/1978), do nº 2 do artigo 13º da Constituição da República Portuguesa e do nº 4 do artigo 125º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade. Termos em que, com os do douto suprimento de V. Exas., deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida e declarando-se justificadas as faltas, com todas as legais consequências, não se discriminando um condenado por falta de meios económicos, pois assim é de DIREITO e só assim se fará JUSTIÇA!
O recurso foi objecto de despacho de admissão. Notificado, o arguido não respondeu. O Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso merece provimento. Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não tendo ocorrido resposta. Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar conferência, cumprindo apreciar e decidir. *** III. Apreciação do Recurso Como é sabido, o âmbito do recurso delimita-se através das conclusões extraídas pelo recorrente e formuladas na motivação (cfr. artigos 403º, nº 1 e 412º, nº 1 e nº 2 do Código de Processo Penal). Vistas as conclusões do recurso, cumpre equacionar se a falta de meios económicos para custear as despesas de transporte para cumprimento de pena de prisão por dias livres pode conduzir à injustificação de falta de comparência no estabelecimento prisional com as legais consequências.
Como consta da decisão recorrida o condenado vive com a mulher e quatro filhos menores, tendo como rendimentos 430 euros de RSI e 35 euros de abono de cada um dos filhos. Mais consta que não existe transporte público entre a residência do condenado e a Covilhã (onde se situa o estabelecimento prisional) aos fins de semana que seja compatível com os horários estabelecidos na sentença condenatória e que, nos fins de semana em que o arguido se apresentou no EP foi transportado por familiares a quem pagou o respectivo custo. Apesar de se apelar na decisão recorrida para a figura jurídica do justo impedimento, mencionando-se que a não apresentação do condenado apenas será justificável perante hipóteses de impossibilidade absoluta, reconhece-se a essencialidade do conceito de culpa. Ora a culpa, base de todo o direito sancionatório expressa no brocardo latino “nulla poena sine culpa” é censurabilidade e supõe a exigibilidade de comportamento diferente. E não só a aplicação da pena como a sua execução deve estar subordinada a esta máxima. Situações existem que, não se reconduzindo a impossibilidade absoluta, expressam, no entanto, a inexigibilidade de comportamento diferente. Comprovadamente o condenado não tem rendimentos suficientes para satisfação das suas necessidades básicas e do seu agregado familiar e tanto bastará para concluir que não lhe é, nessas circunstâncias, exigível a comparência no E.P. pelos seus próprios meios, precisamente porque não os têm, quando isso supõe despesas que não pode custear sem colocar em crise as necessidades básicas suas, como as do seu agregado familiar, a que acresce a inexistência de transporte público. Não podemos deixar de lamentar a referência à possibilidade de deslocação na véspera com pernoita em bancos de jardim ou na Rodoviária, porque avessa ao respeito da dignidade humana. Tal como bem refere o recorrente considerar exigível e culposa a falta nas circunstâncias em causa atenta contra o disposto no artigo 13º da CRP porque descriminaria negativamente quem não possui meios económicos e de uma forma gravosa. Manifesta é a razão do recurso pelo que nos dispensamos de maior labor justificativo. *** IV. Decisão Nestes termos acordam em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e em consequência revogar a decisão recorrida, considerando justificadas as faltas do condenado. Não há lugar a tributação em razão do recurso. *** Coimbra, 10 de Dezembro de 2014
(Maria Pilar de Oliveira - relatora)
(José Eduardo Martins - adjunto) |