Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
303/11.9TXCBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: PRISÃO POR DIAS LIVRES
FALTA
ESTABELECIMENTO PRISIONAL
INEXIGIBILIDADE DE OUTRO COMPORTAMENTO
Data do Acordão: 12/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: PENAMACOR
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 45.º DO CP; ARTIGO 125.º, N.º 4, DO CEPMPL (CÓDIGO DA EXECUÇÃO DAS PENAS E MEDIDAS PRIVATIVAS DA LIBERDADE)
Sumário: I - A culpa - base de todo o direito sancionatório expressa no brocardo latino “nulla poena sine culpa” - é censurabilidade e supõe a exigibilidade de comportamento diferente. ~

II - Não só a aplicação da pena como também a sua execução deve estar subordinada ao princípio penal referido.

III - Não dispondo o condenado, em prisão por dias livres, de rendimentos suficientes para satisfação das suas necessidades básicas e do seu agregado familiar, e inexistindo transporte público da sua residência para o Estabelecimento Prisional, nestas circunstâncias, não lhe é exigível, no quadro de uma valoração jurídico-penal, a comparência naquele centro de reclusão pelos seus próprios meios.

IV - Consequentemente, no descrito circunstancialismo fáctico, não é juridicamente aceitável o cumprimento da prisão em regime de continuidade.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

No processo 303/11.9TXCBR do Tribunal de Execução de Penas de Coimbra, referente a A..., condenado em pena de prisão por dias livres, foi proferida decisão em 4 de Abril de 2014 julgando injustificada a falta de comparência no EP e determinando o cumprimento em regime contínuo da pena remanescente, do seguinte teor:

Foi instaurado o presente processo supletivo em virtude de não apresentação do condenado A..., já identificado nos autos, no EP no qual cumpria pena de prisão por dias livres.

As faltas do condenado foram julgadas justificadas até 17/12/2011 mas, após esta data, o condenado não se voltou a apresentar no EP.

O condenado foi ouvido nos termos do art. 125.º/4 do CEPMPL, conforme resulta da acta junta a fls. 266

O M.º P.º solicitou a realização de relatório social acerca das condições de vida do condenado, relatório este que foi junto aos autos.

Finda a instrução, o MP pronunciou-se, promovendo que se considerem justificadas as faltas.

Foi dado o contraditório ao arguido, que nada disse.

O Tribunal é competente.

O processo é o próprio.

Não há nulidades, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

II – Fundamentação:

2.1. De facto:

a) Factos provados:

1) Por sentença transitada em julgado a 1/3/2011, proferida nos autos de Processo Sumário n.º 7/11.2 GAFAG, do T. J. de Fornos de Algodres, foi o requerido condenado na pena de 5 meses de prisão, a cumprir em regime de dias livres, equivalentes a 30 períodos de fim-de-semana, com duração de 36 horas cada período e foi notificado da guia de apresentação no EP da Covilhã.

2) O arguido não compareceu no EP em nenhum fim-de-semana após o dia 17/12/2011.

3) O condenado vive com a mulher e com os 4 filhos, o maior dos quais com 7 anos de idade.

4) O casal recebe €:430,00 de RSI e €:35,00 de abono por cada filho e ainda, duas ou três vezes por ano, ajuda com o fornecimento de bens alimentares, e o condenado iniciou um curso de formação parental, desconhecendo ainda quanto irá ganhar.

5) Residem numa casa abarracada com razoáveis condições de habitabilidade, não pagando renda de casa.

6) Não existe transporte público entre a residência do condenado e a Covilhã, aos fins de semana, que seja compatível com os horários fixados na sentença condenatória.

7) Nos fins de semana que cumpriu, cada viagem para o EPR da Covilhã custou ao condenado €:20,00, que pagava a familiares que o transportavam, considerando a inexistência de transporte público.

b) Motivação:

Para dar como provados os factos que nessa qualidade se descreveram, o Tribunal valorou o teor dos documentos juntos aos autos, o relatório social que foi elaborado e que está junto ao processo e as declarações prestadas pelo condenado, nesse sentido.

2.2. Fundamentação de Direito:

Considerado o trânsito em julgado da sentença que impôs o cumprimento de 5 meses de prisão a cumprir em regime de dias livres, equivalentes a 30 períodos de fim-de-semana e emitida a correspondente guia de apresentação, encontra-se o condenado privado da sua liberdade e vinculado à reclusão nos períodos indicados.

De acordo com o art 125.º, nº4, do CEPMPL, as faltas de entrada no estabelecimento prisional de harmonia com a sentença são imediatamente comunicadas ao TEP. Se este tribunal, depois de ouvir o condenado e de proceder às diligências necessárias, não considerar a falta justificada, passa a prisão a ser cumprida em regime contínuo pelo tempo que faltar, passando-se, para o efeito, mandados de captura.

A não apresentação apenas será justificável, segundo julgamos, perante hipóteses de impossibilidade absoluta.

Trata-se de hipóteses sobreponíveis ao conceito de justo impedimento.

De acordo com a definição fornecida pelo art.146º do CPC, por justo impedimento entende-se todo o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários, que obste à prática atempada do acto.

Na sua anterior redacção, a norma referida em último lugar definia o justo impedimento como "o evento normalmente imprevisível, estranho à vontade da parte, que a impossibilite de praticar o acto, por si ou por mandatário".

Tal definição levava a doutrina a circunscrever o âmbito da previsão legal àquelas hipóteses em que a pessoa onerada com a prática do acto tivesse sido colocada na absoluta impossibilidade de o fazer, por si ou por mandatário, em virtude da ocorrência de um facto, independente da sua vontade, e que o cuidado e diligências normais não fariam prever (cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 1º, pg.321).

Como bem nota Abílio Neto (Código de Processo Civil Anotado, 14º ed., pg.211), a esta quase responsabilidade pelo risco contrapôs a reforma de 95 uma definição conceitual mais flexível, fazendo derradeiro apelo ao "meio termo" de que falava Vaz Serra (RLJ, 109º, pg.267): deve exigir-se às partes que procedam com a diligência normal, mas já não lhes é exigível que entrem em linha de conta com circunstâncias excepcionais.

Sob a égide do revisto conceito, agora indubitavelmente estruturado sob uma ideia de culpa, entende-se que não configuram casos de justo impedimento as hipóteses em causa nos autos.

Senão, vejamos.

São inegáveis as dificuldades económicas do condenado e são estas que, aliadas à ausência de transporte compatível com o horário fixado na sentença, o condenado invocou para justificar a sua não comparência no EP da Covilhã.

Contudo, mesmo tendo presentes e lamentando as condições de vida árduas do condenado e das sua família, a verdade é que não se consegue com facilidade perceber que o condenado não tenha conseguido, desde Novembro de 2011 (altura em que se apresentou pela última vez no EP) e até hoje, – uma única vez que fosse - e ainda que com um enorme esforço, reunir o dinheiro necessário para custear a viagem para a Covilhã e para poder cumprir a sua pena, ainda que para tanto tivesse de ir na véspera e pernoitar na Covilhã. E a verdade é que muitos dos indivíduos que são condenados em penas de prisão por dias livres é com imensa dificuldade e enorme esforço que as cumprem (até mesmo dormindo em bancos de jardim ou da Rodoviária) esforço este que não nos parece que o condenado tenha feito nos últimos 3 anos. Entende-se, pois, que as dificuldades económicas do condenado não podem justificar o incumprimento da pena em que foi condenado. Aliás, se assim fosse, bastaria a um condenado permanecer inativo durante o período de prescrição da pena para não a chegar a cumprir.

Tem ainda de se salientar que, relativamente ao horário de apresentação do condenado no EP da Covilhã, nunca o condenado não propôs um horário alternativo para o cumprimento da sua pena, que fosse compatível com os horários dos transportes públicos. E mesmo depois da inquirição neste Tribunal, onde foi esclarecido e alertado para a possibilidade de alterar o horário de apresentação no EP por forma a poder cumprir a pena em que foi condenado, o condenado nada requereu neste sentido, continuando sem se apresentar.

Assim, nos termos do disposto no art.º 125º n.º 4 do CEP julgo injustificadas as faltas do arguido ocorridas nos fins de semana posteriores a 17/12/2011 e até ao presente momento.

III – Decisão:

Por todo o exposto, em conformidade com as disposições legais supra referidas, decide-se julgar injustificadas as não apresentações do condenado no Estabelecimento Prisional posteriores a 17/12/2011 e, consequentemente, determina-se o cumprimento em regime contínuo do remanescente da pena de 5 meses de prisão em que foi condenado.

Custas pelo condenado com taxa de justiça fixada em 2 UC.

 

Inconformado com a decisão, dela recorreu o Ministério Público, extraindo da respectiva motivação do recurso as seguintes conclusões:

1.  Determina  o  nº  4  do  artigo  125º  do  Código  da  Execução  das  Penas  e  Medidas  Privativas  da  Liberdade  que,  na  execução  da  prisão  por  dias  livres  "as  faltas  de  entrada  no  estabelecimento  prisional  de  harmonia  com  a  sentença  são  imediatarnente  comunicadas  ao  tribunal  de  execução  das  penas.  Se  este tribunal,  depois  de  ouvir  o  condenado  e  de  proceder  às  diligências  necessárias,  não  considerar  a  falta  justificada,  passa  a  prisão  a  ser  cumprida  em regime  contínuo  pelo  tempo  que  faltar,  passando-se,  para  o  efeito,  mandados  de  captura."

2.  Determina  o  nº  2  do  artigo  13º  da  Constituição  da  República  Portuguesa  que  "ninguém  pode  ser  privilegiado,  beneficiado,  prejudicado,  privado  de  qualquer  direito  ou  isento  de  qualquer  dever  em  razão  de  ascendência,  sexo,  raça,  língua,  território  de  origem,  religião,  convicções  políticas  ou  ideológicas,  instrução,  situação  económica,  condição  social  ou  orientação  sexual".

3.  Ficou  provado  que  o  condenado,  mulher  e  4  filhos  recebem  mensalmente  430,00  €,  acrescido  de  35,00  €  de  abono  por  cada  filho.

4.  Ficou  provado  que  o  condenado  não  dispõe  de  transportes  públicos  para  se  deslocar  da  residência  até  ao  estabelecimento  prisional.

5.  Foi  considerado  que  a  falta  de  dinheiro  e  de  transportes  para  se  apresentar  no  estabelecimento  não  serve  para  justificar  faltas.

6.  Foi  considerado  que  as  dificuldades  económicas  não  afastam  a  culpa  pela  falta  de  comparecimento  no  estabelecimento  de  quem  não  tem  dinheiro  para  o  custear.

7.  Foi  considerado  que  um  condenado  deve  cumprir  a  sua  pena,  mesmo  que  "dormindo  em  bancos  de  jardim  ou  da  Rodoviária".

8.  Foi  considerado  que  quem  vive  abaixo  do  limiar  da  pobreza  deve  fazer  poupanças  podendo  "ainda  que com  um  enorme  esforço  reunir  o  dinheiro  necessário  para  custear  a  viagem  para  a  Covilhã".

9.  Foram  lamentadas  "as  condições  de  vida  árduas  do  condenado".

10.  Foi  considerado  que  aceitar  justificações económicas  para  faltas  de  comparecimento  poderia  mesmo  levar  a  que,  se  o  condenado  permanecesse  desempregado  durante  o  prazo  de  prescrição  da  pena,  poderia  nunca  a  cumprir,

11.  Entendemos  que  não  pode  fazer-se  um  juízo  de censura  ético-penal  pela  falta  de  meios  para  custear  deslocações  necessárias  ao  cumprimento  de  uma  pena.

12.  Entendemos  que  quem  não  tem  dinheiro  para  se deslocar  para  cumprir  uma  pena  de  prisão  por  fins  de  semana  não  deve  ser  condenado  a  cumprir  a  pena  em  regime  contínuo.

13.  Entendemos  que  não  deve  haver  um  regime penal  para  quem  tem  dinheiro  e  outro  para  quem  o  não  tem.

14.  Entendemos  que  um  condenado  não  deve  ser discriminado  pela  sua  situação  económica.

15.  Entendemos  que  os  juízos  ético-penais  se baseiam  em  juízos  concretos  de  culpa.

16.  Entendemos  que  no  nosso  ordenamento  jurídico não  existem  conceitos  de  culpa  pela  falta  de  condições  económicas  e  sociais.

17.  Foram  violados,  para  além  dos  princípios  gerais do  direito  (e  do  penal  em  particular)  as  normas  do  artigo  2º  da  Declaração  Universal  dos  Direitos  do  Homem  (in  DR  de  9/03/1978),  do  nº  2  do  artigo  13º  da  Constituição  da  República  Portuguesa  e  do  nº  4  do  artigo  125º  do  Código  da  Execução  das  Penas  e  Medidas  Privativas  da  Liberdade.

Termos  em  que,  com  os  do  douto  suprimento  de  V.  Exas.,  deve  o  presente  recurso  ser  julgado  procedente,  revogando-se  a  decisão  recorrida  e  declarando-se  justificadas  as  faltas,  com  todas  as  legais  consequências,  não  se  discriminando  um  condenado  por  falta  de  meios  económicos,  pois  assim  é  de  DIREITO  e  só  assim  se  fará

JUSTIÇA!

O recurso foi objecto de despacho de admissão.

Notificado, o arguido não respondeu.

O Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso merece provimento.

Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não tendo ocorrido resposta.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar conferência, cumprindo apreciar e decidir.


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III. Apreciação do Recurso

Como é sabido, o âmbito do recurso delimita-se através das conclusões extraídas pelo recorrente e formuladas na motivação (cfr. artigos 403º, nº 1 e 412º, nº 1 e nº 2 do Código de Processo Penal).

Vistas as conclusões do recurso, cumpre equacionar se a falta de meios económicos para custear as despesas de transporte para cumprimento de pena de prisão por dias livres pode conduzir à injustificação de falta de comparência no estabelecimento prisional com as legais consequências.

Como consta da decisão recorrida o condenado vive com a mulher e quatro filhos menores, tendo como rendimentos 430 euros de RSI e 35 euros de abono de cada um dos filhos. Mais consta que não existe transporte público entre a residência do condenado e a Covilhã (onde se situa o estabelecimento prisional) aos fins de semana que seja compatível com os horários estabelecidos na sentença condenatória e que, nos fins de semana em que o arguido se apresentou no EP foi transportado por familiares a quem pagou o respectivo custo.

Apesar de se apelar na decisão recorrida para a figura jurídica do justo impedimento, mencionando-se que a não apresentação do condenado apenas será justificável perante hipóteses de impossibilidade absoluta, reconhece-se a essencialidade do conceito de culpa.

Ora a culpa, base de todo o direito sancionatório expressa no brocardo latino “nulla poena sine culpa” é censurabilidade e supõe a exigibilidade de comportamento diferente. E não só a aplicação da pena como a sua execução deve estar subordinada a esta máxima.

Situações existem que, não se reconduzindo a impossibilidade absoluta, expressam, no entanto, a inexigibilidade de comportamento diferente.

Comprovadamente o condenado não tem rendimentos suficientes para satisfação das suas necessidades básicas e do seu agregado familiar e tanto bastará para concluir que não lhe é, nessas circunstâncias, exigível a comparência no E.P. pelos seus próprios meios, precisamente porque não os têm, quando isso supõe despesas que não pode custear sem colocar em crise as necessidades básicas suas, como as do seu agregado familiar, a que acresce a inexistência de transporte público.

Não podemos deixar de lamentar a referência à possibilidade de deslocação na véspera com pernoita em bancos de jardim ou na Rodoviária, porque avessa ao respeito da dignidade humana.

Tal como bem refere o recorrente considerar exigível e culposa a falta nas circunstâncias em causa atenta contra o disposto no artigo 13º da CRP porque descriminaria negativamente quem não possui meios económicos e de uma forma gravosa.  

 Manifesta é a razão do recurso pelo que nos dispensamos de maior labor justificativo.


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            IV. Decisão

Nestes termos acordam em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e em consequência revogar a decisão recorrida, considerando justificadas as faltas do condenado.

Não há lugar a tributação em razão do recurso.


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Coimbra, 10 de Dezembro de 2014

(Maria Pilar de Oliveira - relatora)

(José Eduardo Martins - adjunto)