Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1264/11.0TTCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE MANUEL LOUREIRO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAIS DO TRABALHO
EMPRESA MUNICIPAL
EMPREGADOR
Data do Acordão: 04/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DO TRABALHO – J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 64º E 96º NCPC; 126º, Nº 1, AL. C) DA LOSJ (LEI 62/2013, DE 26/08).
Sumário: Os tribunais do trabalho são materialmente incompetentes para conhecer e decidir de acções emergentes de acidentes de serviço ocorridos no âmbito de uma relação de trabalho de emprego público em que figura como empregador uma empresa municipal que integra a denominada administração autárquica indirecta privada que faz parte da denominada administração pública autónoma, mesmo que tenha sido transferida para uma seguradora a responsabilidade civil emergente desses acidentes.
Decisão Texto Integral:





Acordam na 6.ª secção social do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

O autor propôs contra as rés a presente acção especial emergente de acidente de trabalho, formulando os pedidos seguidamente transcritos:

Nestes termos e com o mui douto suprimento reconhecido a Vossa Excelencia deverão os RR ser condenados:

I

Primacialmente a condenação da primeira Ré, Companhia de Seguros A... e terceira Ré,B... Empresa Municipal a:

a) Reconhecerem que o autor foi vítima de um acidente de trabalho no dia 3/2/2011 quando trabalhava sob a autoridade e fiscalização da terceira Ré,B... Empresa Municipal;

b) Reconhecerem que o autor trabalhava ao serviço daB... Empresa Municipal, mediante a retribuição anual de 12.190,94€;

c) A reconhecerem que do acidente de trabalho resultou uma inicial incapacidade permanente parcial de 5,9%, em 30/5/2011;

d) A pagarem ao autor 10,00€ por despesas de transportes;

e) A pagarem ao autor 900,41€, de indemnizações por incapacidade temporária (diferencial);

d) A reconhecerem o direito do autor a uma pensão anual e vitalícia de 503,49€, com inicio em 31/5/2011;

e) A pagarem ao autor a quantia de 7.285,50€ [(12.190,14 x 0,70 x 0,059) x 14,470] a titulo de remição do capital desta pensão;

f) A pagarem ao autor juros de mora a taxa legal sobre as quantias antecedentes calculados desde a data da citação ate a sua efectiva e integral liquidação.

II

Subsidiariamente

A condenação da segunda Re, Companhia de Seguros Fidelidade eB... Empresa Municipal:

h) A reconhecerem as lesões do sinistro de 30/11/2012 como recaída relativamente ao primeiro de 3/2/2011, com as legais consequências designadamente reabertura do processo por recaída, e o sinistrado ser submetido a nova perícia medica efectuada pelo Instituto Nacional de Medicina Legal.”.

Alegou o autor, como fundamento da sua pretensão, que sofreu ao serviço da ré empregadora os acidentes melhor descritos na petição inicial, os quais devem ser qualificados como de trabalho, assistindo-lhe a protecção infortunística com base na qual deduz as pretensões supra transcritas; a ré empregadora tinha transferido para as rés seguradoras a responsabilidade civil emergente de acidentes de trabalho que vitimassem trabalhadores seus.

Excepcionada a incompetência material dos tribunais do trabalho para conhecer do litígio que é objecto destes autos, o tribunal a quo proferiu o despacho seguidamente transcrito:

Nos termos do disposto no artigo 131º do Código de Processo de Trabalho, “Findos os articulados, o juiz profere.... despacho saneador destinado a” : a) “Conhecer das exceções dilatórias….”

Atento o disposto nos artigos 278.º, n.º 1.º, alínea a) e 595.º, n.º 1.º, alínea a) ambos, do C.P.C, aqui aplicável “ex vi”, artigo 1º, nº2 alínea a) do C.P.T, compete, desde já, apreciar tal questão, isto é, saber se este Tribunal é ou não, absolutamente competente, para conhecer da presente causa.


***

É sabido que, nos termos dos artigos 211.º, n.º 1.º e 213.º, ambos da Constituição da República Portuguesa, os Tribunais Judiciais são os Tribunais comuns em matérias cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais, designadamente não exercem jurisdição para a área atribuída aos Tribunais de Trabalho.

De igual modo, o artigo 64.º do C.P.C, atribui competência aos tribunais judiciais das causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, o mesmo se encontrando no artigo 40º, da Lei 62/2013, de 26/08 – Lei da Organização do Sistema Judiciário – eu dispõe no seu nº 1 que “os Tribunais Judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” e no seu nº2 que “a presente Lei determina a competência em razão da matéria entre os Tribunal da 1ª instância estabelecendo as causas que competem às secções de competência especializada dos Tribunais de Comarca ou aos Tribunais de Competência Territorial Alargada”.

Importa, pois, determinar se cabe ou não à Instância Central do Trabalho, conhecer a matéria do presente litígio.

Nos termos do artigo 126.º nº 1 alínea c) da citada Lei de Organização do Sistema Judiciário, “compete as secções do Trabalho conhecer, em matéria cível, das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais”, o que não é o caso, pois que, como resulta dos autos o Autor, terá tido o acidente, a que se reporta no seu articulado, ao serviço da, B..., EM, empresa municipal do Município de B..., sendo que à data do mesmo – 03/02/2011 -, desempenhava funções de assistente operacional, tendo transitado em, 01/01/2009, para o regime de contrato de trabalho em funções públicas, por tempo indeterminado, sendo subscritor da Caixa Geral de Aposentações – vd. recibo de vencimento de folhas 45 – e sendo que o acidente aqui em causa, estava até a ser tramitado nos termos do diploma supra citado – DL 50/99 de 20/11 -, (e não pela Lei 98/2009 de 04/09 - atual LAT), conforme decorre de folhas 40 e seguintes – Junta Médica – ADSE – Acidentes em Serviço, na qual se refere eu deve ser presente à Junta da CGA – desconhecendo-se o desfecho que ali terá tido.


***

Como muito bem referiu o Digno Magistrado do Ministério Público, a folhas 123, “…conclui-se que o acidente dos autos é protegido pelo regime específico aplicável à Administração Pública …..tratando-se de “acidente em serviço”…..pelo que não é o Tribunal de Trabalho competente, em razão da matéria, para decidir sobre o mesmo e direitos dele emergentes que beneficiem o sinistrado…”

Veja-se a este respeito, entre outros acórdão, do STJ de 07/11/06 “O estatuto dos trabalhadores com vínculo de natureza pública…..engloba o regime de proteção dos acidentes em serviço decorrentes do DL nº 503/99 de 20/11…”….” incumbe aos tribunais da jurisdição administrativa, nos termos do artigo 4º do ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002 de 17/02, o conhecimento do litígio derivado de acidente em serviço sofrido por trabalhador ao serviço de ….com vínculo de natureza pública que não optou pelo contrato de trabalho de direito privado”.


***

Por tudo o exposto, forçoso se torna concluir, que o acidente em causa nos autos, não poderá qualificar-se como de trabalho e, consequentemente, não será este tribunal competente, em razão da matéria, para apreciar e decidir acerca do mesmo.

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Dispõe o artigo 126, nº1º, alínea c), da LOSJ, que os tribunais do trabalho são competentes para conhecer da matéria respeitante a acidentes de trabalho, mas já não a de acidentes de outra natureza.

***

Nos termos do artigo 96º do Código de Processo Civil, “determinam a incompetência absoluta do Tribunal: a) a infração das regras de competência em razão da matéria e da hierarquia e das regras de incompetência internacional”.

Por sua vez nos termos do artigo 97º nº1 do Código de Processo Civil, “a incompetência absoluta pode ser arguida pelas partes e, exceto se decorrer da violação de pacto privativo de jurisdição ou de preterição de tribunal arbitral voluntário, deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa.”


***

Pelo exposto, sem necessidade de mais considerandos e ao abrigo das disposições combinadas dos artigos, 131º, nº1 alínea a) do CPT, 96º, alínea a), 97º, nº1, 577º, alínea a) e 578º, estes, do Código de Processo Civil, aqui aplicável, “ex vi” artigo 1º, nº2 alínea a) do CPT e artigo 126º, nº1 alínea c) da LOSJ – lei nº 62/2013, de 26/08, declaro este tribunal do trabalho, (a instância Central do Trabalho da Comarca de Coimbra), incompetente, em razão da matéria, para conhecer do acidente participado, e, consequentemente, absolvo as Rés da instância - artigo 99º nº 2 do CPC.

Registe e notifique - artigos 153.º, nº 4, 253.º do C.P.C. e 23.º do C.P.T.

Custas pelo Autor – artigo 527ºnº 1, do CPC. D.n..”.

Não se conformando com o assim decidido, apelou o autor, rematando as suas alegações com as conclusões seguidamente transcritas:

[…]

Foram produzidas contra-alegações, pugnando pela improcedência da apelação.

O Exmo. Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


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II - Principais questões a decidir

Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso, integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, é a seguinte a única questão a decidir: saber se os tribunais do trabalho têm competência material para conhecer e decidir desta acção.


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III – Fundamentação

A) De facto

Factos provados

O autor foi trabalhador subordinado do Município de (...) , desempenhando as suas funções nos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de (...)

Com a criação daB... Empresa Municipal, e consequente extinção dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de (...) , o autor passou a exercer funções naquela empresa em regime de requisição ao abrigo do art. 37º/3/4 da Lei 58/98, de 18/8.

No dia 1/1/2009, o autor transitou para o regime de contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado, na categoria de assistente operacional, por força das disposições conjugadas aos arts. 88º/1 e 100º da Lei no 12-A/2008, de 27/2, e art. 7º do DL 121/2008, de 11/7, mantendo-se ao serviço da ré empregadora.

O autor é subscritor da Caixa Geral de Aposentações.

Através da presente acção pretende o autor exercer os direitos às prestações infortunísticas emergentes de acidentes que sofreu no local e tempo de trabalho nos dias 3/2/2011 e 30/11/2012.


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B) De Direito

Questão única: saber se os tribunais do trabalho têm competência material para conhecer e decidir desta acção.

Importa determinar, antes de mais, a natureza jurídica da ré patronal e a sua integração na administração pública portuguesa em sentido subjectivo ou orgânico - o correspondente ao conjunto das entidades, serviços e órgãos que prosseguem a actividade materialmente administrativa, sabido que deste ponto de vista a administração pública divide-se em três grandes ramos, a saber: a administração directa do Estado, a administração indirecta do Estado e a administração autónoma do Estado[1] – neste sentido, Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, I, 1994, pp. 393 e ss, Sérvulo Correia, Noções de Direito Administrativo, I, 1982, pp. 144 e ss, João Caupers, Direito Administrativo I, 1999, pp. 266 e ss., e pp. 292 e ss, Vital Moreira, Administração Autónoma e Associações Públicas, 1997, pp. 104 e ss, e Rebelo de Sousa, Lições de Direito Administrativo, I, 1999, pp. 157 e ss., e pp. 239 e ss.

A administração indirecta do Estado integra: a) as pessoas colectivas de estatuto público, nas quais se integram os institutos públicos[2] [de prestação (v.g. hospitais públicos não empresariais, Instituto Nacional de Estatística), reguladores (v.g. INTF, I.P. - transportes ferroviários; InIR, I.P. – infra-estruturas rodoviárias; INAC, I.P. – aviação civil; IMOPPI, I.P. – mercados de obras públicas e particulares e do imobiliário; ERSAR, I.P. – serviços de águas e resíduos), fiscalizadores (v.g. Autoridade da Concorrência, Agência para a Qualidade e Segurança Alimentar) e de infra-estruturas (v.g. Instituto Marítimo-Portuário)], e as entidades públicas empresariais[3]; b) as pessoas colectivas de estatuto privado[4], nas quais se integram as empresas públicas sob a forma societária, as fundações e as associações - João Caupers,  Introdução ao Direito Administrativo, 10ª edição, Editora Âncora, pp. 123 e ss.

Os serviços personalizados da administração indirecta do Estado devem ser qualificados como institutos públicos (arts 2º e 3º/1 da Lei 3/04, de 17/1) – cfr. Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. I, 3ª edição, Almedina, p. 366.

No âmbito da administração autónoma existem administrações autónomas territoriais e administrações autónomas corporativas.

Relevam particularmente para o caso em apreço as administrações autónomas territoriais, nas quais se integram as regiões autónomas (arts. 225 e ss da CRP) e as autarquias locais (arts. 235 e ss da CRP; Lei 75/2013, de 12/9, que estabelece o regime jurídico das autarquias locais, aprova o estatuto das entidades intermunicipais, estabelece o regime jurídico da transferência de competências do Estado para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais e aprova o regime jurídico do associativismo autárquico).

No âmbito da administração autárquica, deve distinguir-se a directa[5] da indirecta, podendo esta ser formada por entes públicos[6] ou por entes privados[7] [8] [9].


+

 No início do século XX foram criados os Serviços Municipalizados de (...) que passaram a administrar a distribuição de água, transportes e electricidade na cidade de (...) .

Com efeito, no dia 17 de Novembro de 1910 aprovou-se em reunião camarária a instalação nos Paços do Concelho de uma repartição dos Serviços Municipalizados (gás, água e eléctricos) e a constituição do respectivo quadro de pessoal.

Em 26/11/1984, o executivo camarário aprovou a separação dos Serviços Municipalizados de (...) em dois Serviços: Transportes Colectivos, por um lado, e Águas e Saneamento, por outro lado, a qual veio a efectivar-se em 1 de Janeiro de 1985 com a criação dos Serviços Municipalizados de Transportes Urbanos de (...) (SMTUC) e dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento.

Em 24/5/2003, os Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de (...) transformaram-se na Empresa Municipal, denominada B..., E.E.M.

Actualmente, a B..., E.M., é uma pessoa colectiva de direito privado, com natureza municipal, sob a forma de entidade empresarial local, dotada de personalidade jurídica e autonomia administrativa, financeira e patrimonial – art. 1º/1 dos correspondentes Estatutos[10].


+
A competência material dos tribunais deve ser aferida em função do pedido deduzido pelo autor na sua petição inicial, devidamente enquadrado pela respectiva causa de pedir – v.g., Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, p. 91; acórdãos do Tribunal de Conflitos de 11/7/2000 (Conflito n.º 318[11]), de 3/10/2000 (Conflito n.º 356[12]), e de 5/2/2003 (Conflito n.º 6/02[13]); acórdãos do STJ de 16/11/2010 e de 30/3/2011, proferidos, respectivamente, no âmbito dos processos 981/07.3TTBRG.S1 e 492/09.2TTPRT.P1.S1.

Através da presente acção pretende o autor exercer os direitos às prestações infortunísticas emergentes de acidentes que sofreu no local e tempo de trabalho nos dias 3/2/2011 e 30/11/2012.

Comece por dizer-se que de nada relevam directamente para os efeitos em apreço as decisões convocadas pela decisão recorrida[14] e pelo apelante[15] para fundamentarem as suas teses divergentes sobre a questão que está em análise, pois que todas essas decisões foram proferidos em processos em que estavam em causa entidades empregadoras que eram Centros Hospitalares, EPE´s, integrados, por isso e como supra explicado, na administração indirecta do Estado, o que não acontece com a ré empregadora na situação em apreço, com a consequente inaplicabilidade do disposto no art. 2º/1, do DL 503/1999, de 20/11, na redacção em vigor à data dos acidentes (Lei 64-A/2008, de 31/12, e Lei 59/2008, de 11/09).

Como quer que seja, importa não perder de vista que, como referido, o autor era, à data dos acidentes, trabalhador subordinado de um empresa municipal integrada, por isso, na administração autónoma, autárquica, indirecta e privada.

Ora, nos termos do art. 2º/2 do DL 503/1999, o disposto nesse diploma também é “… aplicável aos trabalhadores que exercem funções públicas nos serviços das administrações … autárquicas …”.

A significar que a terem ocorrido nas circunstâncias descritas na petição inicial, os acidentes a que os autos se reportam configuram acidentes de serviço – art. 1º e 2º/2, do DL 503/1999, de 20/11.

Importa dizer que não obsta à qualificação dos acidentes relatados pelo autor como sendo de serviço a circunstância de a empregadora do autor ter celebrado com as rés seguradoras contratos de seguro do ramo de acidentes de trabalho por via dos quais transferiu para estas a responsabilidade civil emergente de acidentes de trabalho, pois que existência ou não de seguro não é facto condicionante dessa qualificação, o que se compreende pela circunstância do próprio DL 503/1999 permitir, excepcionalmente e mediante prévia autorização ministerial, a celebração de contratos de seguro para transferência da responsabilidade pela reparação dos acidentes em serviço – neste sentido, acórdãos da Relação de Lisboa de 24/03/1999, proferido no processo nº 0097354, de 24/1/2007, proferido no processo 9139/2006-4, de 26/7/2007, proferido no processo 2066/2007-4, acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul de 20/12/2012, proferido no processo 07999/11.

Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais" (art. 211º/1 da Constituição da República Portuguesa – CRP – onde se consagra o princípio da plenitude da jurisdição comum).

Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.” – art. 40º/1 da Lei 62/2013, de 26/8 (LOSJ); no mesmíssimo sentido estatuiu o art. 64º do NCPC.
Do estatuído nas normas antecedentemente aludidas resulta que a competência dos tribunais judiciais é definida por exclusão ou residualmente, no sentido de que a mesma só se regista se e quando as normas disciplinadoras da competência dos demais órgãos jurisdicionais lhes não determinarem o conhecimento da questão que estiver concretamente em equação.

Ora, nos termos da LOSJ, compete às secções do trabalho conhecer, em matéria cível, das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais, estando por isso afastada a respectiva competência para conhecer das questões referentes aos acidentes de serviço – art. 126º/1/c.

Aos tribunais administrativos compete o conhecimento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas - art. 212º/3 CRP.

Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais – art. 1º/1 do ETAF (Lei 13/2002, de 19 de Fevereiro, na versão actual); cfr., também, art. 144º/1 da LOSJ.
Segundo Fernandes Cadilha “Por relação jurídico-administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas. Pode tratar-se de uma relação jurídica intersubjectiva, como a que ocorre entre a Administração e os particulares, intra-administrativa, quando se estabelecem entre diferentes entes administrativos, no quadro de prossecução de interesses públicos próprios que lhes cabe defender, ou inter-orgânica, quando se interpõem entre órgãos administrativos da mesma pessoa colectiva pública, por efeito do exercício dos poderes funcionais que lhes correspondem”[16].

Por outro lado, como ensinam Gomes Canotilho e Vital Moreira, na determinação do conteúdo do conceito de relação jurídico administrativa ou fiscal deve ter-se presente que “Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal.” - Constituição da República Portuguesa, Volume II, Coimbra Editora, 2010, pp. 566 e 567.

Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público – art. 4º/1/f do ETAF.

Por sua vez, nos termos do art. 83º/1 da Lei 12-A/2008, de 27/02, em vigor à data em que ocorreram os acidentes a que os autos se reportam, “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os competentes para apreciar os litígios emergentes das relações jurídicas de emprego público.”.

No mesmo sentido dispõe o art. 12º da Lei 35/2014, de 20/6.

Ficam igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público, com excepção dos litígios emergentes de contratos de trabalho em funções públicas – art. 4º/3/f do ETAF.
A significar, tal como decidido no acórdão da Relação de Lisboa de 4/12/2013, proferido no âmbito do processo 636/12.7TTALM.L1-4, que “A excepção à exclusão redunda manifestamente na inclusão, o que é o mesmo que dizer que os litígios emergentes de contratos de trabalho em funções públicas são da competência da jurisdição administrativa e fiscal.” – no mesmo sentido, acórdãos da Relação do Porto de 28/10/2015, proferido no processo 206/14.5T8VLG.P1, e de 30/11/2015, proferido no processo 1423/13.0TTPRT-B.P1, este último relatado pelo também aqui relator.

Resta concluir, em face dos elementos de facto e disposições legais supra referidas, que estando em causa acidentes ocorridos no tempo e no local de trabalho, no desempenho de funções prestadas no âmbito de uma relação jurídica de emprego público em que figura como empregadora uma entidade integrada na administração pública autárquica, logo acidentes de serviço sofridos por um trabalhador a desempenhar funções públicas no âmbito de um contrato de trabalho em funções públicas, compete aos tribunais administrativos e fiscais a competência material para conhecer e decidir da acção que tem aqueles acidentes por objecto – neste sentido, acórdãos da Relação do Porto de 18/11/2013, proferido no âmbito do processo 23/12.7TTVCT-A.P1, de 16/1/2006, proferido no processo 0515414, de 30/11/2015, proferido no processo 1423/13.0TTPRT-B.P1; acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 23/8/2012, proferido no processo 9001/12[17].

Por isso, embora com fundamentação não inteiramente coincidente com a invocada na decisão recorrida, deve improceder a apelação.


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IV - Decisão

Acordam os juízes que compõem esta secção social do Tribunal da Relação de Coimbra no sentido de julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Sem custas, por delas estar isento o autor.

Coimbra, 7/4/2017


(Jorge Manuel Loureiro)

(Paula do Paço)

(Ramalho Pinto)


Sumário:

Os tribunais do trabalho são materialmente incompetentes para conhecer e decidir de acções emergentes de acidentes de serviço ocorridos no âmbito de uma relação de trabalho de emprego público em que figura como empregador uma empresa municipal que integra a denominada administração autárquica indirecta privada que faz parte da denominada administração pública autónoma, mesmo que tenha sido transferida para uma seguradora a responsabilidade civil emergente desses acidentes.


.....................................

(Jorge Manuel Loureiro)



[1] Para o caso em apreço relevam apenas a indirecta e a autónoma.
[2] Os institutos públicos podem revestir diferentes modalidades organizativas:
a) Serviços Personalizados (v.g. IGESPAR - Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico; IVV - Instituto da Vinha e do Vinho; ISS - Instituto da Segurança Social; ACSS - Administração Central do Sistema de Saúde; Instituto dos Registos e do Notariado; ICNB –Instituto de Conservação da Natureza e da Biodiversidade; INFARMED (medicamentos); Turismo de Portugal;  Instituto de Reinserção Social; Administrações das Regiões Hidrográficas; Autoridades Metropolitanas de Transportes (AMT/Lisboa e AMT /Porto); INA – Instituto Nacional de Administração; AMA - Agência de Modernização Administrativa);
b) Estabelecimentos Públicos (v.g. Universidades e Institutos Politécnicos públicos, Centros de Investigação Científica, Hospitais públicos não empresarializados);
c) Fundações Públicas – Fundação para a Ciência e Tecnologia,  Centro Cultural de Belém, Fundação CEFA (formação autárquica).
Os Institutos públicos (I.P.) são actualmente objecto de regulação-quadro pela Lei 3/2004, de 15/1, alterada e republicada pelo DL 105/07, de 3/4, embora alguns estejam sujeitos a regimes específicos, nos termos do artigo 48.º da Lei, como as universidades e institutos politécnicos,  as instituições públicas de solidariedade social, os estabelecimentos do Serviço  Nacional de Saúde, as regiões de turismo, o Banco de Portugal e as entidades  administrativas independentes.
[3] As entidades públicas empresariais (EPEs) são pessoas colectivas de direito público e de regime privado, que foram autonomizadas do conceito de institutos públicos. Embora sujeitas a regimes de direito privado, dispõem, em regra, de  poderes públicos de autoridade e estão submetidas a superintendência e a tutela mais ou menos intensa. Exemplos: na área dos transportes [REFER, CP, API, NAV, Metropolitano de Lisboa]; na área da gestão de recursos públicos [GeRAP (Gestão Partilhada de Recursos na Administração Pública), ANCP (Agência Nacional de  Compras Públicas), SPMS (Serviços Partilhados do Ministério da Saúde), Agência para o Investimento e Comércio Externo, Parque Escolar]; na área cultural [Teatro Nacional D. Maria II, Teatro Nacional de S. João, OPART  (Organismo de Produção Artística – CNB e TNSC)]; na área da saúde [alguns  Hospitais (CHUC, Curry Cabral, etc.), Centros Hospitalares (Barreiro Montijo, etc.) e Unidades Locais de Saúde (Alto Minho, Baixo Alentejo, Guarda)].
As Entidades Públicas Empresariais são reguladas por diplomas  específicos, bem como pelo Capítulo III do Decreto-lei n.º 558/99, de 17 de  Dezembro (alterado pelo Decreto-lei n.º 300/2007, de 23 de Agosto).
[4] Estão aqui incluídas a generalidade das empresas públicas, que são sociedades de capitais exclusiva ou maioritariamente públicos, instituídas para  finalidades públicas sob a forma de sociedades comerciais, como, entre muitas, a  PARPÚBLICA, a SIEV- Sistema de Identificação Electrónica de Veículos, SA, etc.
Excepcionalmente, estas empresas podem ser detentoras de poderes públicos de autoridade, como é o caso das várias Administrações Portuárias.
O sector empresarial do Estado (que inclui, além das empresas públicas,  as empresas participadas) é regulado pelo DL 558/99, de 17/12 (alterado pelo DL 300/07, de 23/8)
Há ainda as fundações (públicas) de direito privado que são objecto de  criação estadual (Fundações universitárias, nos termos do RJIES: U. Porto, U.  Aveiro, ISCTE), que tem de ser autorizada por diploma legal, nos termos do  artigo 3º/4 da Lei 3/04.
[5] Da qual fazem parte os órgãos municipais e os serviços dependentes da câmara municipal, caso dos serviços municipalizados, com organização empresarial – arts. 8º a 18º da Lei 50/2012, de 31/8.
[6] Fundações públicas municipais (art. 57º da Lei 50/2012, de 31/8, e Lei 24/2012, de 9/7, máxime arts. 48º e ss), que são pessoas colectivas de direito público (art. 49º/1 da Lei 24/2012, de 9/7).
[7] Empresas locais (arts. 19º e ss da Lei 50/2012, de 31/8), que são pessoas colectivas de direito privado (art. 19º/4 da Lei 50/2012, de 31/8).
[8] No sentido da integração das empresas locais na administração autónoma, autárquica e indirecta - Ana Cristina Paiva dos Reis, A Organização dos Transportes a Nível Municipal, Relatório de Estágio, Mestrado em Gestão, Setembro 2012, pp. 12 e ss; Viera de Andrade, Lições de Direito Administrativo, 2015, pp. 118 e 119; Ivone Fernandes Cordeiro, (In)cumprimento Legal e Viabilidade das empresas municipais, Estudo de caso das empresas do município de Lisboa, Dissertação de Mestrado em Contabilidade, 2012, pp. 11 e 12; Nuno Miguel Ferreira da Cruz, Viabilidade das Empresas Municipais na Prestação de Serviços de Infra-Estruturas Urbanas, Dissertação de Mestrado, Coimbra, Setembro de 2008, p. 12

[9] Importa reter que o sector empresarial público integra hoje o sector empresarial local (art. 2º/1 do DL 133/2013, de 3/10).
[10] Disponíveis em http://www.aguasdecoimbra.pt/index.php/quem-somos/estatutos.
[11] http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/3e2a269de39b31fc8025713b003b5a53?OpenDocument.
[12] http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/cf567db4e6d860028025713b003b5a44?OpenDocument.
[13] http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/1676ba5eeb0106a88025713b003b5a5a?OpenDocument.

[14] Acórdão do STJ de 17/11/2016, proferido no processo 31/14.3T8PNF.P1.S1.
[15] Acórdão do TCAS, de 23/8/2012, proferido no processo no 09001/12; acórdão do TCAN, de 11/4/2014, proferido no processo no 01470/11.7BEBLS.
[16] Dicionário de Contencioso Administrativo, Coimbra, 2007, pp. 117-118.
[17] Este acórdão declarou a competência dos tribunais do trabalho para conhecer e decidir de acidentes de trabalho que vitimem apenas trabalhadores que exerçam funções em entidades públicas empresariais ou noutras entidades não abrangidas pelo disposto nos números 1, 2 e 3 do art. 2º do DL 503/1999, de 20/11, na redacção do art. 9º da Lei nº 59/2008, de 11/09, reconhecendo, ao menos implicitamente, a competência dos tribunais administrativos e fiscais para conhecer e decidir desses mesmos acidentes que vitimem trabalhadores que exerçam funções públicas nas entidades enunciadas naqueles números 1, 2 e 3, entre as quais se incluem os serviços da administração autárquica (nº2), estando integrada nestes últimos a entidade empregadora do aqui autor.