Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
217/12.5TTLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: RAMALHO PINTO
Descritores: SANÇÃO DISCIPLINAR
SUSPENSÃO DE TRABALHADOR
NÃO PAGAMENTO DA RETRIBUIÇÃO
ABUSO
PROCESSO DISCIPLINAR
Data do Acordão: 04/11/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE LEIRIA – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 329º, Nº 6, 331º, Nº 1, 352º A 358º DO CÓDIGO DO TRABALHO.
Sumário: I – Só o procedimento disciplinar relativo à acção disciplinar que conduza ao despedimento do trabalhador com invocação de justa causa é que se encontra regulado no Código de Trabalho, nos seus artºs 352º a 358º.

II – Tal não significa, todavia, que na condução do procedimento disciplinar com vista à aplicação de outra sanção que não seja o despedimento não tenha a entidade empregadora de observar os requisitos que contendam com o direito de audição do trabalhador (salvaguarda do direito de defesa deste – artº 329º, nº 6 do CT).

III – A ratio legis do carácter abusivo da sanção disciplinar reside na natureza persecutória da punição aplicável.

Decisão Texto Integral:                         Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

                       A... veio instaurar, no Tribunal do Trabalho de Leiria, a presente acção emergente de contrato de trabalho contra B..., SA, pedindo que seja a sanção disciplinar de suspensão sem retribuição por um período de 10 dias que lhe foi aplicada declarada nula e de nenhum efeito, bem como abusiva, e a Ré condenada a pagar-lhe a quantia de € 7.749,60, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.

                        Alegou, para o efeito e em síntese, que se verifica a caducidade do procedimento disciplinar, sendo este, por outro lado, inválido, por violação do seu direito de audiência prévia.

                        A Ré contestou, alegando que não se verifica a pretendida caducidade e que todas as formalidades foram cumpridas nos termos do CCT aplicável às relações entre as partes e que regulam de uma forma específica o procedimento disciplinar. Por outro lado, a sanção aplicada nunca poderá ser considerada como abusiva.

                        Realizado o julgamento, foi proferida sentença, decidindo da seguinte forma:

                        “Pelo exposto declaro o procedimento disciplinar instaurado pela ré entidade empregadora contra o autor irregular e a sanção nula e abusiva pelo que condeno a entidade empregadora a pagar ao trabalhador a quantia total de € 3.502,90 (três mil quinhentos e dois euros e noventa cêntimos) acrescida dos juros moratórios à taxa legal a partir da citação até efectivo e integral pagamento.

                        Custas por autor e ré na proporção dos decaimentos”.

                                                                       x
                        Inconformada com o decidido, veio a Ré interpor o presente recurso de apelação, onde formulou as seguintes conclusões:
                                […]

                        O Autor contra-alegou, propugnando pela manutenção do julgado.

                        Foram colhidos os vistos legais.

                        O Exmº Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

                                                                       x

                        Definindo-se o âmbito do recurso  pelas suas conclusões, temos como questões a apreciar:

                        - a invalidade do procedimento disciplinar;

                        - carácter  abusivo da sanção aplicada.

                                                                       x

                        Na 1ª instância considerou-se provada a seguinte factualidade, não objecto de impugnação e que este Tribunal de recurso aceita:

                        […]

                                                                       x
                        O direito:
                        - a invalidade do procedimento disciplinar:
                        Está em causa saber se, com a comunicação enviada ao Autor de que lhe tinha sido instaurado um procedimento disciplinar e com a posterior tomada de declarações ao mesmo, foi respeitado o seu direito de audição prévia.
                        Como já tivemos oportunidade de referir no acórdão desta Relação de 07/02/2013, proc. 1004/11.3T4AVR.C1, com os mesmos relator e adjuntos, só o procedimento disciplinar relativamente à acção disciplinar que conduza ao despedimento do trabalhador com invocação de justa causa é que se encontra regulado no Código do Trabalho (CT), nos seus artºs 352º a 358, o mesmo já não se verificando no que toca ao procedimento disciplinar em que a sanção aplicada ao trabalhador não seja o despedimento.

                        Daí que não seja de considerar aplicável ao caso dos autos o disposto no artº 382º, nº 2, que estabelece o elenco, taxativo, das causas de invalidade do procedimento disciplinar. Tanto mais que esta norma se encontra inserida na Subsecção II da secção IV do Capítulo VII do CT, com referência à “ilicitude do despedimento” e o próprio artigo tem como epígrafe “ilicitude de despedimento por facto imputável ao trabalhador”.

                        Tal não significa, todavia, que na condução do procedimento disciplinar com vista à aplicação de outra sanção que não seja o despedimento não tenha a entidade empregadora de observar os requisitos que contendam com o direito de audição do trabalhador, com a salvaguarda do direito de defesa deste e com a observância do necessário contraditório, por forma a habilitar o trabalhador a conhecer, em toda a sua extensão e implicações, os factos que lhe são imputados.

                        Assim, impõe-se que, nestes casos, o procedimento obedeça a determinados formalismos, pois, como diz Monteiro Fernandes, in Direito do Trabalho, I, 12.ª edição, pag. 268, a propósito das normas similares do CT de 2003 mas cujo ensinamento mantém plena actualidade à luz do CT de 2009, nada impede que, não havendo intenção de despedir, a tramitação seguida não coincida com a prevista para o procedimento com vista ao despedimento, mas “essa não coincidência apenas dirá respeito, como é evidente, aos passos não essenciais do processo,  o que vale por dizer, como diz aquele autor, que  se têm “como essenciais – isto é, condicionantes da validade do procedimento disciplinar –, a dedução de nota de culpa de que constem, concretamente, os factos imputados ao arguido, incluindo as «condições de modo, tempo e lugar em que ocorreram», e o envio dela ao trabalhador, bem como a audiência do arguido entendida como a oportunidade de se defender e produzir prova, documental ou não”.

                        E compreende-se que assim seja, uma vez que o cabal exercício do direito de defesa, com a amplitude referida, implica a forma escrita e pressupõe também uma acusação escrita - cfr. Ac. do STJ de 24/02/2010, in www.dgsi.pt

                                Daí também que o artº 329º, nº 6, do CT prescreva que a “sanção disciplinar não pode ser aplicada sem audiência prévia do trabalhador”.

                        No caso que nos ocupa, essa exigência de forma escrita, com o conteúdo apontado, está claramente prevista  no CCT aplicável- que as partes não põem em causa que é o celebrado entre a APICER – Assoc. Portuguesa da Ind. De Cerâmica e a FETICEQ – Feder. Dos Trabalhadores das Ind. Cerâmica, Vidreira, Extractiva, Energia e Química (pessoal fabril), publicado no BTE, 1ª série, nº 32, de 29 de Agosto de 2007-  e que estipula, na sua cláusula cláusula 50ª, nº 3:

                        “O poder disciplinar exerce-se obrigatoriamente através de processo disciplinar devidamente elaborado com audição das partes e testemunhas, tendo em consideração tudo o que puder esclarecer os factos:

                        a) os factos constantes da acusação serão concreta e especificamente levados ao conhecimento do trabalhador arguido, através de documento escrito, revestindo a forma de nota de culpa apenas quando houver intenção de despedimento com justa causa;

                        b) ao trabalhador será permitido, querendo, apresentar a sua defesa, por escrito, dentro do prazo de 10 dias úteis.”

                        Estabelecida a imposição de elaboração de uma nota de culpa apenas quanto houver intenção de despedimento, dúvidas não há da exigência de forma escrita da comunicação onde se leva ao conhecimento do trabalhador os factos concretos de que é acusado. E essa comunicação deverá incluir a descrição precisa dos mesmos factos, incluindo as condições de modo, tempo e lugar em que ocorreram.

                        Como é bom de ver, não respeita essas exigências a comunicação, constante de fls. 39 e repetida a fls. 84, onde, sem a inclusão da menção a qualquer infracção disciplinar, e, muito menos, de quais circunstâncias de tempo, modo e lugar em que terá ocorrido o comportamento merecedor de censura disciplinar, a Ré informa o Autor de que “decorrente de factos que chegaram ao nosso conhecimento a Administração decidiu instaurar processo disciplinar”.

                        E não é com a simples tomada de declarações ao trabalhador que se pode considerar suprida essa necessidade e essas exigências da comunicação.

                        Esta, de modo  a salvaguardar o seu direito de defesa, deveria ter concedido  ao Autor a faculdade, legalmente consagrada, de percepcionar, em toda a sua plenitude, os factos de que era acusado, exigências que a referida comunicação de fls. 39 não respeitou.

                        Daí a invalidade do procedimento disciplinar, como bem se decidiu na sentença.

                        -  o carácter abusivo da sanção:

                        Verificada a  mencionada invalidade, a consequência da mesma é de se considerar nula a sanção disciplinar que foi aplicada ao Autor.

                        A questão que se põe é a de saber se essa sanção se deve considerar também como abusiva, como se decidiu na sentença, que fez apelo ao disposto no nº 5 do artº 331º do CT.

                        O nº 1 deste artigo contêm o elenco, taxativo, das situações em que se deve considerar abusiva a sanção disciplinar:

                         “1 – Considera-se abusiva a sanção disciplinar motivada pelo facto de o trabalhador:

                        a) Ter reclamado legitimamente contra as condições de trabalho;

                        b) Se recusar a cumprir ordem a que não deva obediência, nos termos da alínea e) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 128.º;

                        c) Exercer ou candidatar-se ao exercício de funções em estrutura de representação colectiva dos trabalhadores;

                        d) Em geral, exercer, ter exercido, pretender exercer ou invocar os seus direitos ou garantias”.

                   Escreve Menezes Cordeiro, in Manual de Direito do Trabalho, Almedina, 1994, pags. 755-756 que “O princípio da boa fé apresenta-se aqui sob a sua dupla faceta de tutela da confiança e da primazia da materialidade subjacente. (...) A primazia da materialidade subjacente veda a utilização do processo disciplinar para quaisquer outros fins que não aqueles para que a lei o estabelece: o apuramento duma efectiva infracção disciplinar e a sua punição. Justamente este ponto dá lugar a delicados conflitos de interesses: o empregador pode usar o poder disciplinar para retaliar contra trabalhadores incómodos ou para os desincentivar no exercício das suas posições sindicais. A lei especificou, assim, a categoria das sanções abusivas, que mais não são do que um afloramento desta regra geral.

                        Conforme se decidiu no Ac. da Rel. do Porto de 23/4/2012, disponível em www.dgsi.pt, o abuso implica a conjugação entre dois elementos:

                        - um elemento objectivo, traduzido no facto de, a uma determinada actuação do trabalhador em defesa dos seus direitos, se seguir um procedimento disciplinar;
                        - um elemento subjectivo consistente no facto de, com o procedimento disciplinar, a entidade empregadora visar responder ao exercício, pelo trabalhador, das suas posições.
                        Exige-se, também, uma relação directa de causa /efeito entre uma situação enquadrável numa das 4 alíneas desse nº 1 do artº 335º e a sanção aplicada.
                        No Ac. do STJ de 5/12/2001, in Ac. Doutrinais, 487º, 1068, decidiu-se, em termos que mantêm plena actualidade, que a ratio legis do carácter abusivo da sanção reside na natureza persecutória da punição, ou seja, no facto de  a verdadeira razão da aplicação da sanção disciplinar se situar fora da punição da conduta ilícita e culposa do trabalhador. Inexistindo ilicitude da conduta disciplinarmente punida, ou, acrescentamos nós, invalidade do procedimento disciplinar, a sanção aplicada ao trabalhador mostra-se ilegal, mas não abusiva, quando não está demonstrado que, subjacente ao exercício do poder disciplinar, se encontrava uma medida de retaliação da entidade empregadora face ao exercício de direitos por parte do trabalhador.
                        Ora, no caso que nos ocupa, o fundamento arvorado pela Ré como determinante para a aplicação, ao Autor, da sanção de 10 dias de suspensão, foi a invocada agressão que terá sido perpetrada pelo Autor num seu colega de trabalho, não tendo ficado provado que a mesma Ré tivesse em vista outros propósitos com  tal aplicação.

                        Como se diz na sentença, “sempre estaríamos perante uma infracção muito grave que até, salvo melhor opinião, justificaria o despedimento com justa causa”.
                        O que interessa reter, porém, é que a sanção não teve como fundamento nenhum comportamento do Autor que se enquadre em qualquer das alíneas contidas no nº 1 do artº 331º do CT, designadamente o exercício, ou a intenção de exercício, dos direitos do trabalhador. O que se verificou foi, como se disse, a violação do seu direito de audição prévia em sede de procedimento disciplinar, mas a sanção não foi motivada por qualquer das circunstâncias previstas em tal disposição legal.
                        Assim, o Autor apenas terá direito à restituição da retribuição correspondente aos 10 dias de suspensão do trabalho, no montante de € 350,29 – facto nº 18.
                                                                       x

                        Decisão:

                        Nos termos expostos, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação, indo a Ré condenada a pagar ao Autor, em consequência da invalidade do procedimento disciplinar e da subsequente nulidade da sanção aplicada, a quantia de € 350,29, acrescida dos juros moratórios à taxa legal a partir da citação até efectivo e integral pagamento.

                        Em tudo o mais se confirma a sentença recorrida.

                        Custas, em ambas as instâncias, na proporção de vencidos.

                                  Ramalho Pinto (Relator)

                                   Azevedo Mendes

                                  Joaquim José Felizardo Paiva