Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
16/09.1GCCNT-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RAMOS
Descritores: DA QUEBRA DE SEGREDO BANCÁRIO
REQUISITOS
Data do Acordão: 02/10/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CANTANHEDE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: INDEFERIDA
Legislação Nacional: ARTIGO 181º DO CP, 135º DO CPP ART.º 78º E 79.º, N.º 2., AL. D. DO DECRETO-LEI N.º 298/92, DE 31 DE DEZEMBRO
Sumário: 1.O critério adoptado pelo nosso legislador é o de que o tribunal só pode impor a quebra do segredo profissional quando esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante.
2 Assim só se justifica fazer tal ponderação se o levantamento do sigilo se mostrar indispensável para a investigação do crime.
3.No caso dos autos, tendo a queixosa do crime de injúria identificado a denunciada e tendo fornecido elementos que permitem não só averiguar se existe crime como também o seu autor, não se vislumbra indispensabilidade, nem mesmo sequer utilidade na diligência pretendida (quebra de sigilo)

4.Ora, para além de se não vislumbrar que interesse poderá ter tal dado para a investigação, o certo é que não se efectuaram diligências de inquérito.
5 Conclui-se que no caso em apreço a informação pretendida não tem qualquer interesse para a investigação e consequentemente não se justifica a operação de moderação dos interesses em jogo.
Decisão Texto Integral: No de decurso do inquérito n.º …/09.1GCCNT em que se investiga a prática de um crime de injúria, entendeu o Ministério Público que era essencial para a investigação apurar a identidade do(s) titular(es) e das pessoas autorizadas a movimentar as contas identificadas a fls. 5 e 6 dos presentes autos.

Solicitada a referida informação à Caixa Geral de Depósitos e à Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo, estas instituições de crédito, invocando o segredo bancário, recusaram-na.

Perante tal recusa o Digno Magistrado do Ministério Público requereu M.mo Juiz de Instrução Criminal a intervenção deste Tribunal da Relação nos termos do art.º 135.º, n.º 3 do Código de Processo Penal a fim de que fosse ordenada a quebra do sigilo bancário por forma a que aquelas entidades bancárias prestem a informação negada.

O M.mo Juiz proferiu o despacho pronunciando-se no sentido de que o pedido de quebra de segredo deveria ser deferido uma vez que, sendo a escusa legítima e a obtenção das informações em causa essenciais para a descoberta da verdade, no conflito em jogo deve prevalecer o dever de colaboração com a justiça penal.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

Nos presentes autos investiga-se a eventual prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo art. 181° do Código Penal, em que o êxito da investigação, segundo o Ministério Público e o Meritíssimo Juiz, depende do exame dos elementos supra referidos, mas cujo fornecimento foi recusado pela entidade bancária com a invocação do dever de sigilo profissional.

Vejamos:

No Regime Geral de Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro está previsto um conjunto de regras de conduta cuja finalidade é proteger de forma eficaz a posição do consumidor de serviços financeiros, no qual se destaca para o caso “sub judice” o n.º 2 do art.º 78.º que nos diz que “estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias”, acrescentando por seu turno, o art.º 84.º do mesmo diploma que “sem prejuízo de outras sanções aplicáveis, a violação do dever de segredo é punível nos termos do Código Penal”([1])([2]).

O critério adoptado pelo nosso legislador é o de que o tribunal só pode impor a quebra do segredo profissional quando esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante, o que, como escreve Costa Andrade (in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, pág. 795-796) «se projecta em quatro implicações normativas fundamentais:

a) Em primeiro lugar e por mais óbvia, avulta a intencionalidade normativa de vincular o julgador a padrões objectivos e controláveis.

b) Em segundo lugar, resulta líquido o propósito de afastar qualquer uma de duas soluções extremadas; tanto a tese de que o dever de segredo prevalece invariavelmente sobre o dever de colaborar com a justiça penal (que, já o vimos, fez curso nos tribunais portugueses, pelo menos em matéria de sigilo bancário, supra, § 50); como a tese inversa de que a prestação de testemunho perante o tribunal (penal) configura só por si e sem mais, justificação bastante da violação do segredo profissional. Esta última uma compreensão das coisas recusada pela generalidade dos autores (cfr. v. g. Haffke, GA 1973 66 ss., M/ S / Maiwald 293) mas que começou por ter o aplauso claramente maioritário da doutrina e da jurisprudência. Que, em geral, se reviam na proclamação feita logo no princípio do século (1911) por SAUTER: "Segundo a compreensão moderna do Estado (...) a realização da justiça em conformidade com o direito satisfaz um interesse público tão eminente que por este bem e por este preço pode sempre sacrificar-se o interesse individual na protecção da esfera de segredo." (apud HAFFKE 67).

c) Em terceiro lugar, o apelo ao princípio da ponderação de interesses significa o afastamento deliberado da justificação, neste contexto, a título de prossecução de interesses legítimos. Isto é: a realização da justiça penal, só por si e sem mais (despida do peso específico os crimes a perseguir) não figura como interesse legítimo bastante para justificar a imposição a quebra do segredo. E isto sem prejuízo da pertinência e validade reconhecidas a esta derimente no regime geral da violação de segredo (infra § 61 s.).

d) Em quarto lugar, com o regime do art. 135º do CPP, o legislador português conheceu à dimensão repressiva da justiça penal a idoneidade para ser levada à balança a ponderação com a violação do segredo: tudo dependerá da gravidade dos crimes a perseguir. A lei portuguesa não aderiu, assim, à tese extremada que denegou à repressão criminal qualquer possibilidade de ponderação com o sacrifício real da violação de segredo. Como a sustentada por HAFFKE: "a necessidade de punição e o interesse da defesa da ordem jurídica não podem legitimar a violação do segredo" (cit. 69). O art. 135º do CPP consagrou a solução mitigada que admite a justificação (ex vi ponderação) da violação do segredo desde que esteja em causa a perseguição dos crimes mais graves, sc. os que provocam maior alarme social.»

Ora, ao contrário de casos como, por exemplo, o segredo religioso, o segredo bancário não tem carácter absoluto devendo ceder perante o dever de cooperação com as autoridades judiciárias (art.º 79.º, n.º 2., al. d. do Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro) sempre que o interesse público de colaboração com a justiça se sobreponha aos interesses protegidos de confiança na banca/discrição da vida privada([3]).

Ou, como se diz no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2008, D.R. n.º 63, Série I de 2008-03-31[[4]]:

“O segredo bancário pretende salvaguardar uma dupla ordem de interesses.

Por um lado, de ordem pública: o regular funcionamento da actividade bancária, baseada num clima generalizado de confiança, sendo o segredo um elemento decisivo para a criação desse clima de confiança, e indirectamente para o bom funcionamento da economia, já que o sistema de crédito, na dupla função de captação de aforro e financiamento do investimento, constitui, segundo o modelo económico adoptado, um pilar do desenvolvimento e do crescimento dos recursos.

Por outro lado, o segredo visa também a protecção dos interesses dos clientes da banca, para quem o segredo constitui a defesa da discrição da sua vida privada, tendo em conta a relevância que a utilização de contas bancárias assume na vida moderna, em termos de reflectir aproximadamente a «biografia» de cada sujeito, de forma que o direito ao sigilo bancário se pode ancorar no direito à reserva da intimidade da vida privada, previsto no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

Porém, esse direito ao sigilo, embora com cobertura constitucional, não é um direito absoluto, até porque, pela sua referência à esfera patrimonial, não se inclui no círculo mais íntimo da vida privada das pessoas, embora com ele possa manter relação estreita. Pode, pois, ter de ceder perante outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, cuja tutela imponha o acesso a informações cobertas pelo segredo bancário.”

Pode-se assim concluir que, de acordo com a lei vigente, o levantamento do sigilo bancário só pode ter lugar quando a ponderação de interesses em jogo o justifique.

Ora, só se justifica fazer tal ponderação se o levantamento do sigilo se mostrar indispensável para a investigação do crime.

No caso dos autos, não se vislumbra tal indispensabilidade.

Até se pode dizer que não se vislumbra qualquer utilidade na diligência pretendida.

Explicando:

A queixosa apresentou queixa contra a “Sr.ª B., cozinheira no restaurante “O SR..” sito… Montemor-o-Velho” porquanto recebeu, enviadas através do telemóvel com o número 96… e àquela pertencente, no seu telemóvel duas mensagens escritas de teor que considera injurioso.

Explica ainda na participação que a referida B. já anteriormente a ameaçara e que lhe enviou do mesmo telemóvel, outras mensagens de idêntico conteúdo.

Mais: uma parte das mensagens continuam registadas no seu telemóvel.

Ou seja, a denunciante identificou a denunciada e forneceu elementos que permitem não só averiguar se existe crime, como também o seu autor.

No entanto, a única diligência de inquérito foi a solicitação às instituições bancárias da identidade do(s) titular(es) e das pessoas autorizadas a movimentar as contas identificadas a fls. 5 e 6 dos presentes autos para que se apurasse, presume-se, quem carregava o telemóvel em causa.

Ora, para além de não vislumbrarmos que interesse poderá ter tal dado para a investigação, o certo é que não se efectuaram diligências de inquérito que são importantíssimas e que poderão, com facilidade, apurar a autoria das mensagens.

Estamo-nos a referir, por exemplo, ao interrogatório da denunciada.

Assim sendo, temos que concluir que no caso em apreço a informação pretendida não tem qualquer interesse para a investigação e consequentemente não se justifica a operação de moderação dos interesses em jogo.

Face ao exposto, indefere-se o presente incidente de quebra de sigilo bancário.

Notifique.

Sem tributação.

Coimbra, 10 de Fevereiro de 2010

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[1] Este normativo tem aliás um enorme alcance prático uma vez que veio suprir uma, a nosso ver, enorme deficiência da ordem jurídica no que respeita às relações entre o dever de segredo bancário e o dever de colaboração com a justiça uma vez que era prática corrente no âmbito da vigência do Decreto-Lei n.º 2/78 de 9 de Janeiro considerar-se que o primeiro prevalecia inabalavelmente sobre o segundo.
[2] Artigo 195º (Violação de segredo)
“Quem, sem consentimento, revelar segredo alheio de que tenha tomado conhecimento em razão do seu estado, ofício, emprego, profissão ou arte é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias.”
[3] Este dever de cedência e portanto, o carácter relativo do dever de sigilo bancário, é bem evidente em diversas disposições avulsas, tais como as previstas nos art.ºs 13.º-A do Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro aditado pelo Decreto-Lei 316/97, de 19 de Novembro (cheques sem provisão), 60.º do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro (tráfico de estupefacientes), 10.º do Decreto-Lei 113/93, de 15 de Setembro e 19.º do Decreto-Lei 325/95, de 2 de Dezembro (branqueamento de capitais) e 5.º da Lei n.º 36/94 de 29 de Setembro (combate à corrupção e à criminalidade económica e financeira).
[4] Onde foi fixada a seguinte jurisprudência: “Requisitada a instituição bancária, no âmbito de inquérito criminal, informação referente a conta de depósito, a instituição interpelada só poderá legitimamente escusar-se a prestá-la com fundamento em segredo bancário. Sendo ilegítima a escusa, por a informação não estar abrangida pelo segredo, ou por existir consentimento do titular da conta, o próprio tribunal em que a escusa for invocada, depois de ultrapassadas eventuais dúvidas sobre a ilegitimidade da escusa, ordena a prestação da informação, nos termos do n.º 2 do artigo 135.º do Código de Pro-cesso Penal. Caso a escusa seja legítima, cabe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado ou, no caso de o incidente se suscitar perante o Supremo Tribunal de Justiça, ao pleno das secções criminais, decidir sobre a quebra do segredo, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo.
http://dre.pt/pdf1sdip/2008/03/06300/0187901885.PDF