Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
261/06.1TBSRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARTINS DE SOUSA
Descritores: CAMINHO PÚBLICO
CLASSIFICAÇÃO
Data do Acordão: 04/20/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SERTÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ASSENTO DO STJ DE 19/04/1989.
Sumário: I – A caracterização de um caminho como público sofreu, ao menos a nível jurisprudencial, alguma flutuação de posições, de que emergiram as patenteadas nos acórdãos em confronto no Assento do STJ de 19/04/1989 (DR de 2/06/1989), hoje com valor de acórdão de uniformização de jurisprudência.

II – Na opção doutrinal desse Assento decidiu-se que “são públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público”.

III – A Jurisprudência do STJ, no entanto, passou a interpretar restritivamente o mencionado Assento, exigindo que, além da afectação ao trânsito das pessoas com imemorialidade, essa utilização corresponda a satisfação de interesses colectivos com atendível grau e relevância, numa clara adesão aos critérios do destino – na subespécie de uso público – e do carácter – na vertente da afectação.

IV – Donde que se deva entender que, por muitas que sejam as pessoas que utilizem um determinado caminho ou terreno, só se poderá sustentar a relevância desse uso por todos para conduzir à classificação de caminho ou terreno público se o fim visado pela utilização for comum à generalidade dos respectivos utilizadores, por o destino dessa utilização ser a satisfação da utilidade pública e não de uma soma de utilidades individuais.

Decisão Texto Integral:          ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

A... instaurou, no Tribunal Judicial da Sertã, acção declarativa de condenação, em processo comum e sob forma sumária, contra B.... e mulher, C...., pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de 7.500,00€, acrecida de juros desde a citação, a pagar-lhe uma sanção pecuniária compulsória, em caso de incumprimento da decisão do tribunal, a estabelecer as condições de passagem por veículos no caminho que é objecto da contenda, dotando-o das medidas legais previstas de 4,5 m de largura e 5 m de altura na construção aérea da Latada das Videiras, a remover o portão, a rede fixa de arame e ferro, a rede de esgotos, bem como o entulho depositado nesse mesmo caminho e a absterem-se da prática de quaisquer actos ou procedimentos que impeçam o autor e o público em geral de nele circularem livremente e em condições de segurança.

Para tanto alegou, em síntese: é dono e legítimo proprietário do prédio identificado no seu articulado inicial que adquiriu por sucessão, encontrando-se registada tal aquisição a seu favor na Conservatória do Registo Predial da (...); o referido prédio tem cinco parcelas, separadas, fisicamente, por muros, e apenas uma tem acesso directo à estrada principal que serve a Povoação, pois as restantes quatro têm acesso por um caminho público, sito na estrema poente do prédio rústico, propriedade do autor, e integrado no prédio dos réus, sendo que este caminho dá acesso a outras casas de habitação. Alegou ainda que os réus foram alterando o referido caminho: concretamente, aí instalaram uma canalização de água de esgotos (oculta), com saída para o prédio do autor, procederam à abertura de um furo de captação de água, oculto com cobertura de terra, colocaram uma vedação fixa de arame e ferro, na zona contígua e de acesso às quatro parcelas do prédio rústico do autor e depositaram o entulho extraído do furo, no caminho tornando-o intransitável e obrigando as águas pluviais e de esgotos a confluir directamente para o prédio do autor. E continuando, invocou que toda esta actuação lhe originou nervosismo, angústia, despesas e desgaste; e em Junho de 2005, contratou uma máquina fresadora, para cultivar as suas parcelas de terreno e a mesma ficou à entrada do caminho, porque a largura reduzida deste não permitiu a passagem e que a azeitona da última colheita foi retirada a ombros.

Os réus contestaram, impugnando, em termos gerais, a factualidade alegada na petição inicial e alegando, em resumo, que o acesso pretendido pelo autor é privado e que realizaram melhorias no acesso à sua habitação, que identificam, devido ao seu estado de saúde e dificuldade de locomoção; aquando do arranjo da pavimentação da estrada municipal contígua, a linha natural de água existente entre os prédios do autor e réus foi desviada pelas autoridades municipais e conduzida a uma linha de água já existente no topo poente da propriedade dos contestantes, unindo-se a esta e com um escoamento superficial lateral ao acesso privado o que passou a originar, durante as invernias que se sucederam, excesso de água que invadia a sua área de cultivo e o poço donde, à data, se abastecia de água potável, contaminando-se com entulhos e água imprópria para o consumo, motivo pelo qual os contestantes procederam á construção de ma caixa de águas fluviais e ao entubamento subterrâneo da referida linha de água, lateral ao seu acesso privado e procederam à abertura de um furo de captação de água para o abastecimento da casa de habitação. Mais alegaram que em fins de Julho de 2005, o autor tentou sem autorização destes, introduzir no seu acesso privado uma máquina agrícola de dimensão incompatível com aquele acesso, o que o levou a deslocar-se à casa destes, provocando-os verbalmente e exigindo a destruição dos muros circundantes e o alargamento do mencionado acesso privado, para a largura de 4,5 metros, pelo que os contestantes procederam à vedação total da sua propriedade. Concluem pugnando pela improcedência da acção e deduziram reconvenção que viria a ser julgada inadmissível em sede de despacho saneador.

O autor apresentou resposta, inviabilizada pela decisão de fls. 96, oportunamente, transitada em julgado.

Decorridos demais trâmites, veio a ter lugar a audiência de julgamento a que, após seu termo, se seguiu a decisão da matéria de facto que não foi objecto de reclamação.

Por fim, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, por falta de prova dos respectivos pressupostos.

Inconformado dela apelou o Autor que conclui a sua alegação nos seguintes termos:

[………………………………………………….]

Contra-alegaram os RR, rebatendo ponto por ponto aquela alegação, concluindo pela manutenção da sentença recorrida.

A questão crucial que o recurso coloca respeita à natureza da dominialidade – pública ou privada – do caminho que dará acesso ao prédio dos AA.

II.

A. OS FACTOS

Da instância recorrida vêm assentes os seguintes factos:

[………………………………………………….]

B. O DIREITO

[…………………………………………………..]

Já se referiu que a questão crucial do recurso é a que se prende com a qualificação do caminho de que emergiu a contenda.

Na verdade, formulando o Autor diversos pedidos, não há dúvida que todos eles directa ou indirectamente, têm como precedente lógico a decisão daquela questão da dominialidade.

Assim, o pedido de condenação dos réus a removerem o portão, a rede fixa de arame e ferro, a rede de esgotos e o entulho depositado no caminho em apreço, não se encontrando tais objectos e apetrechos instalados ou colocados no prédio do Autor e limitando-se este apenas a invocar a dominialidade pública como seu fundamento, é evidente que soçobrará na falta de prova desta.

No tocante ao pedido de condenação dos réus na remoção do portão colocado no acesso directo de uma das parcelas do seu prédio à via pública, se não for por via da dominialidade dessa natureza, o seu hipotético encravamento parcial não pode ser considerado, por se encontrar vedado o tribunal de condenar em objecto diverso do peticionado, tal como se se escreveu na sentença sob recurso.

E o mesmo se dirá quanto ao pedido de condenação dos réus a absterem-se de praticar actos e procedimentos que impeçam o autor e o público em geral de circularem no caminho, já que a sua legitimidade e interesse em agir assenta, no desenho da lide, na mesma dominialidade pública de tal caminho.

Por sua vez, a condenação dos RR no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, sendo dependente da procedência dos pedidos anteriores, dependente está da verificação da mesma causa de pedir; tal como o pedido de indemnização por responsabilidade extracontratual que supõe, antes de mais, um facto ilícito na origem dos danos causados e que, face à alegação do Autor, só pode ser consubstanciado na violação do estatuto público que rege o dito caminho.

Vejamos então:

Tal como se refere na sentença, a caracterização de um caminho como público sofreu, ao menos a nível jurisprudencial, alguma flutuação de posições de que emergiram as patenteadas nos acórdãos em confronto no Assento do STJ de 19.04.1989 (DR I de 2.06.89), hoje, com valor de acórdão de uniformização de jurisprudência: um que defendia a ideia da necessidade de demonstração que o caminho foi construído ou apropriado pelo Estado ou outra pessoa de direito público, dado o teor do artº380º do CCivil de Seabra que estaria em vigor, o outro que entendia suficiente a demonstração do uso imemorial pelo público em geral. Na opção doutrinal desse Assento decidiu-se que “são públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público”

Escreveu-se no texto de tal Assento: “… quando a dominialidade de certas coisas não está definida na lei, como sucede com as estradas municipais e os caminhos, essas coisas serão públicas se estiverem afectadas de forma directa e imediata ao fim de utilidade pública que lhes está inerente”

Seria, pois, esta utilidade pública inerente à coisa que determinaria, essencialmente, a sua publicidade, sendo seu indicador o “uso directo e imediato pelo público”, critério que, todavia, mostrando-se seguro para qualificar como públicas coisas não enumeradas pela lei (cfr M. Caetano, Manual, 9ª, 864), se veio a revelar demasiado elástico, mormente, no confronto com os atravessadouros, entretanto abolidos pelo artº1383ºdo CC que, sendo meios que tal como os caminhos se destinavam “em regra para atalhar ou encurtar determinados trajectos ou distâncias” ( P. Lima e A. Varela, CC Anotado, III, 1987,282), integravam, no entanto, propriedade particular e eram considerados resquícios de limitação inaceitável da propriedade privada da terra (cfr voto de vencido no aludido Assento).

Eis porque na jurisprudência do STJ, com o aplauso dos Autores citados, se passou a interpretar restritivamente o mencionado Assento (se bem que, salvo o devido respeito, no texto acima citado seja claro que era este o entendimento subjacente ao aresto), exigindo-se que, além da afectação ao trânsito das pessoas com imemorialidade, essa utilização corresponda a satisfação de interesses colectivos com atendível grau e relevância “numa clara adesão aos critérios do destino – na subespécie de uso público – e do carácter – na vertente da afectação” (Ac STJ de 10.11.93, CJ, III, 136 e no mesmo sentido, Ac STJ de 15.06.2000, RLJ, 134º, 366, 18.05.2006, p. 06B1468 e 13.03.08, p. 08A542, in www.dgsi.pt).

Eis porque num outro aresto se escreveu “que o uso público relevante para o efeito é precisamente o que pressupõe uma finalidade comum desse uso. Isto é, se cada pessoa, isoladamente, considerada, utiliza o caminho ou terreno apenas com vista a um fim exclusivamente pessoal ou egoístico, distinto dos demais utilizadores do mesmo caminho ou terreno, para satisfação apenas do seu próprio interesse sem atenção aos interesses dos demais, não é a soma de todas as utilizações e finalidades pessoais que faz surgir o interesse público necessário para integrar aquele uso público relevante. Por muitas que sejam as pessoas que utilizem um determinado caminho ou terreno, só se poderá sustentar a relevância desse uso por todos para conduzir à classificação de caminho ou terreno público se o fim visado pela utilização for comum à generalidade dos respectivos utilizadores, por o destino dessa utilização ser a satisfação da utilidade pública e não de uma soma de utilidades individuais” (cfr Ac STJ de 13 .01.2004, in www.dgsi.pt).

Ora, seguindo a sentença recorrida, “na situação dos autos apenas se demonstrou que por o caminho em causa sempre circularam viaturas e pessoas, desde uma imensidade temporal anterior, cujo início se desconhece, que o mesmo nunca foi alcatroado e não tinha limitações de qualquer espécie, que três parcelas do prédio do autor têm acesso à Estrada Municipal n.º 1161, que faz a ligação entre esta Estrada e duas casas de habitação antigas, até ao local registado no documento n.º 6 (fls. 20) e a partir das duas referidas casa de habitação, também dava acesso, via pedestre, a outras casas de habitação. Assim sendo, não se provou que o mesmo fosse utilizado pela generalidade das pessoas, ou que estivesse afecto ao trânsito de pessoas e viaturas sem discriminação, nem que se destinasse à ligação de outros caminhos entre si, não resultando de tal factualidade a afectação a um fim de utilidade pública”.

Acresce que, apesar da intervenção acidental quer da Junta de Freguesia quer da própria Câmara Municipal que veio ao processo apenas para, sem fundamento expresso, desde logo, de ordem histórica, classificar o aludido caminho como “vicinal”, certo é que nunca foi colocada como fonte da respectiva dominialidade, a construção ou apropriação do leito do caminho por qualquer dessas entidades, assim como tão pouco se vislumbra a prática de acto a seu cargo que pudesse confundir-se com a gestão ou manutenção de tal caminho de que pudesse resultar a sua afectação a fim de utilidade pública.

Conclui-se assim que, emergindo do litígio apenas a “soma das utilidades individuais” espelhadas no conflito de vizinhança desenhado nos autos, entre as partes, no que respeita ao caminho em apreço, ficou por demonstrar além de consistente generalização de sua utilização, o fim comum que a ela deve presidir e se conforma na satisfação da utilidade pública inerente.

Irrepreensível, portanto, o non liquet que neste domínio, a sentença ditou.

E porque dessa qualificação como caminho público (causa de pedir) dependia de forma directa ou indirecta a procedência dos demais pedidos formulados pelo Autor, como já se deixou referido, é, inevitavelmente, lógico que estes soçobrem também.

III

Termos em que se nega provimento à apelação e se confirma a sentença recorrida.

Custas pelo Recorrente.