Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
25/11.0PCCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: PRESUNÇÕES JUDICIAIS
MEIOS DE PROVA
Data do Acordão: 06/20/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - 1º JUÍZO CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.ºS 125º, DO C. PROC. PENAL E 349º, DO C. CIVIL
Sumário: - A prova por presunção não é uma prova totalmente livre e absoluta, como, aliás, o não é a livre convicção (sob pena de abandono do patamar de segurança da decisão pressuposto pela condenação penal, em homenagem ao princípio do in dubio pro reo) conhecendo limites que quer a doutrina quer a jurisprudência se têm encarregado de formular:

- Desde logo, é necessário que haja uma relação directa e segura, claramente perceptível, sem necessidade de elaboradas conjecturas, entre o facto que serve de base à presunção e o facto que por presunção se atinge (sendo inadmissíveis “saltos” lógicos ou premissas indemonstradas para o estabelecimento dessa relação);

- Por outro lado, há-de exigir-se que a presunção conduza a um facto real, que se desconhece, mas que assim se firma (por exemplo, a autoria – desconhecida – de um facto conhecido, sendo conhecidas também circunstâncias que permitem fazer funcionar a presunção, sem que concomitantemente se verifiquem circunstâncias de facto ou sejam de admitir hipóteses consistentes que permitam pôr em causa o resultado assim atingido);

- Por fim, a presunção não poderá colidir com o princípio in dubio pro reo (é esse, aliás, o sentido da restrição referida na parte final do exemplo que antecede).

Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO:

Nestes autos de processo comum que correram termos pelo 1º Juízo Criminal de Coimbra, após julgamento com documentação da prova produzida em audiência, foi proferida sentença em que se decidiu nos seguintes termos:
“(…)
Julga-se procedente a acusação e condena-se A..., pela autoria material de um crime de furto qualificado, na forma continuada, p. e p. pelos art.os 30.º, 2, 202.º e), 203.º, 1, e 204.º, 2 e), todos do Cód. Penal, na pena de dois ( 2 ) anos e nove ( 9 ) meses de prisão, que, pelas razões supra expostas, se suspende na sua execução, por igual período de tempo.
Julga-se parcialmente procedente o pedido cível e condena-se a arguida / demandada a pagar à A. a importância de vinte e cinco mil, setecentos e cinquenta euros ( € 25 750 ), acrescida de juros de mora sobre o referido montante, à taxa de 4%, desde a notificação até integral pagamento.
(…)”.

Inconformada, a arguida interpôs recurso da sentença retirando da respectiva motivação as seguintes conclusões:
I. Impugnam-se os factos dados como provados pelo Tribunal a quo na sua sentença, com os números 1, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 11 a 15.

II. Tais factos não se coadunam com as provas produzidas em julgamento,
III. Porquanto:
lV. De todos os depoimentos prestados, cujas transcrições se encontram, na parte do articulado referente às motivações, bem como as demais a que formos aludindo nesta parte do articulado, sobressai que nenhuma pessoa estava presente à data de 16 de Novembro de 2010, à hora e no local onde, alegadamente, ocorreu o forto.
V. De realçar que foi nesse dia e só nesse que, alegadamente, terão desaparecido os objectos indicados pela ofendida no seu pedido de indemnização cível.
VI. Ora, assim sendo, como pode o Tribunal a quo condenar a aqui recorrente pela prática do crime quando não há quaisquer evidências de que tenha sido a autora do mesmo?
VII. Mais: do depoimento da ofendida e da Sra. ..., ressalta que o prédio da ofendida estava há já mais de um ano com andaimes, pois encontrava-se em fase de recuperação.
VIII. Para além disso, teriam já havido outros assaltos no mesmo prédio, mesmo sem os andaimes lá estarem, conforme disse a ofendida.
IX. A ofendida, no seu depoimento, confessou que deixava sempre a porta da sala de jantar aberta, mesmo com os andaimes colocados na parte exterior do edifício.
X. Portanto: como pode o Tribunal a quo, sem haver qualquer evidência da presença da recorrente, à data, hora e local dos factos, sem qualquer margem de dúvidas, dizer que foi a mesma a praticar o crime, quando podia, muito bem, ter sido qualquer outro individuo, pois tinha os meios para tal, beneficiando de uma porta aberta para o interior da residência da ofendida?
XI. No que respeita aos objectos/montantes alegadamente furtados, temos que qualquer das testemunhas apresentadas pela ofendida apenas conseguiram fazer prova de que alguns deles existiam, chegando mesmo a precisar o local onde os mesmos se encontravam ...
XII. Ou seja: havia várias pessoas a ter conhecimento dos bens que a ofendida possuía, bem como do dinheiro que alegadamente recebia por ser "procuradora" e onde a mesma os guardava ....
XIII. Mas nenhum deles concretizou nunca qual o valor dos mesmos, qual o montante que estaria na casa quando ocorreu o alegado furto…
XIV. Pior: nenhuma das pessoas ouvidas em sede de julgamento pode, sem peias, afirmar que os bens estariam na casa da ofendida à data dos factos! Que foi nessa data que os mesmos desapareceram!
XV. Como pode o Tribunal a quo condenar a recorrente numa indemnização por danos patrimoniais e morais sem poder categoricamente afirmar que os bens estariam lá e qual o seu valor concreto????
XVI. O Tribunal a quo baseou a sua convicção num juízo de experiência, motivado pelo "episódio" de 30 de Dezembro, sobre o qual nos vamos debruçar já de seguida.
XVII. Pois bem: neste dia, a recorrente teria tido um "encontro" completamente estranho, no mínimo, com a ofendida, que estaria acompanhada de duas amigas, tendo uma delas testemunhado nesse sentido, a Sra. ....
XVIII. O grande problema que aqui se coloca é que a versão apresentada pela testemunha e a da ofendida contradizem-se nos seus próprios termos, o que inviabiliza a credibilidade de ambos.
XIX. Diferem no que diz respeito aos tons da discussão e, até, à própria maneira como a recorrente teria saído da casa da ofendida.
XX. Podemos mesmo afirmar que tudo isto se passou, conforme relatou a ofendida?
XXI. Mesmo tendo tido lugar essa "cena", o que não concedemos, nesse dia não desapareceram quaisquer objectos!
XXII. O Tribunal a quo preferiu dar crédito a esses depoimentos, e fundar a sua convicção neles e em regras de experiência comum ....
XXIII. Pois bem: o que é feito do princípio constitucionalmente consagrado do in dubio pro reo?
XXIV. De todas as provas resultantes da audiência de julgamento, outra não seria a decisão correcta senão a de absolver a recorrente do crime de que vinha acusada.
XXV. Nada, nem ninguém a colocou no local, dia e hora do furto.
XVI. Não se conseguiu fazer prova de que os bens/montante alegadamente furtados de facto existiam e estavam na casa da ofendida no dia em que os mesmos "desapareceram", nem qual o seu valor. Nunca a recorrente foi vista com os bens!
XXVIII. Um crime apenas se consuma quando verificados todos os elementos que constituem o tipo de ilícito criminal, sendo nesse momento que se verifica o evento jurídico ou lesão do interesse tutelado.
XXIX. Verifica-se o furto quando o agente do crime, com intenção de apropriação, subtrai coisa alheia. Ora: é necessário identificar quais os pressupostos essenciais do crime de furto, que são:
a. Em primeiro lugar, identificar o agente do crime;
b. identificação das coisas furtadas e do seu valor;
c. O furto ter ocorrido com intenção de apropriação de coisa alheia e inserção na esfera jurídica do agente do crime desses bens.
XXXI. No caso em apreço nada disso se verifica.
XXXII. Em lado algum existem provas de quem foi o agente do crime.
XXXIII. A própria ofendida não efectuou a queixa-crime logo na altura em que foi alegadamente vítima do furto, nem quando a recorrente, alegadamente, foi vista pela ofendida na sua fracção, tendo subido pelos andaimes.
XXXIV. Mais: a ofendida apresentou queixa porque "tinha de apresentar contra alguém".
XXXV. Ninguém viu a arguida no dia, hora e local do alegado furto.
XXXVI. Não se conseguem identificar, em concreto, quais os bens/montantes que foram alegadamente furtados, se estariam ou não na casa aquando do crime, qual o seu valor ....
XXXVII. Ninguém viu a arguida na posse dos bens indicados como furtados pela ofendida.
XXXVIII. Ou seja: tudo não passa de meras conjecturas, baseadas numa convicção de que mais ninguém poderia subir andaimes e entrar na casa da ofendida que estaria, como sempre esteve, aliás, com as portas destrancadas de acesso ao exterior, tal como confessou a ofendida no seu depoimento.
XXXIX. Por isso mesmo, o Tribunal entendeu que seria de condenar a aqui recorrente a uma pena de prisão suspensa na sua execução de dois anos e nove meses de duração ... mais que não fosse por regras de experiência!
XL. Como se tal não bastasse, julgou parcialmente procedente o P.I.C., sem que tenha sido alvo de qualquer fundamentação, o que aliás não podia existir, dado que não houve prova nesse sentido.
XLI. Salvo o devido respeito, isto é completamente incomportável e inadmissível] num Estado que se diz de Direito e que busca a verdade material dos factos.
XLII. Nunca poderia o Tribunal a quo ter condenado a aqui recorrente no crime de que vinha acusada, face à prova gravada em julgamento, a qual deverá ser, nesta instância reapreciada,
Nestes termos e nos melhores de direito, deve este Superior Tribunal dar provimento ao presente recurso, revogando a decisão de 1.ª Instância, absolvendo a arguida, aqui recorrente, do crime de que vinha acusada, bem como da indemnização cível, com todas as legais consequências, assim sendo feita a acostumada justiça.

A demandante respondeu, pronunciando-se pela manutenção do decidido em 1ª instância.
Também o M.P. respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.
Nesta instância, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer sufragando a posição assumida pelo M.P. em 1ª instância, pronunciando-se pela improcedência do recurso.
A recorrente respondeu, renovando o teor da motivação do recurso.
Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, há que decidir as seguintes questões:
- Impugnação da matéria de facto;
- Violação dos princípios da presunção da inocência e do in dubio pro reo;

* * *

II - FUNDAMENTAÇÃO:

Na sentença recorrida tiveram-se como provados os seguintes factos:
Da acusação:
1. No dia 16.11.2010, entre as 08:00 horas e as 13:15 horas, na Av. Fernão de Magalhães, em Coimbra, a arguida, utilizando uns andaimes que se achavam colocados no exterior do edifício para obras de recuperação, trepou até ao 5.º … residência de B..., tendo deste modo acedido à respectiva varanda, onde entrou;
2. A arguida já ali fora inquilina alguns meses antes, pelo que conhecia os hábitos da casa, da sua dona e o que esta tinha no seu interior.
3. Verificando que no interior da residência não se encontrava ninguém, tal como previra, a arguida acedeu àquela através da porta da sala, que dava para a varanda e se encontrava aberta.
4. Uma vez no seu interior, a arguida daí retirou, lançando mão e levando consigo, os seguintes bens:
- uma gargantinha em ouro amarelo, com um medalhão também em ouro com brilhantes;
- um fio em ouro amarelo;
- um anel em ouro amarelo com brilhantes;
- uma aliança em ouro amarelo;
- um par de brincos em ouro amarelo,
tudo no valor global de cerca de € 10 000;
e
- quinze mil euros ( 15 000 ) em numerário, que B... guardava em casa.
5. Na posse desses bens e valores a arguida abandonou o local, passando a dispor dos mesmos como se sua dona fosse, usando-os e gastando-os em proveito próprio.
6. Animada pelo êxito da sua actuação, no dia 30.12.2010, a arguida voltou ao local, acima mencionado, trepando de novo pelos andaimes ainda aí colocados;
7. Acontece que, ao chegar à varanda e quando se preparava para entrar na residência de B..., verificou que, contrariamente ao que esperava, esta estava em casa e avistou-a na parte de fora do edifício;
8. Sentindo-se descoberta, a arguida logo assumiu um comportamento evasivo;
9. Assim, depois de B... lhe abrir a porta para entrar, perguntou à arguida se vinha entregar aquilo que lhe roubara, ao que a arguida ripostou: “oh, deixe lá isso!...”;
10. A arguida sentou-se, dizendo que já tinha no banco o dinheiro restante que lhe devia (referente a um empréstimo de € 5 000 que a B... lhe concedera para comprar um veículo automóvel, na altura em que era sua inquilina);
11. B... disse-lhe então que devia sair por onde entrou, mas a arguida levantou-se e saiu pela porta principal, esgueirando-se pelas escadas do prédio.
12. Agiu a arguida livre, deliberada e conscientemente;
13. Com o propósito de se apropriar dos referidos bens e valores, integrando-os no seu património, bem sabendo que não lhe pertenciam e que o fazia contra a vontade e em prejuízo da respectiva dona;
14. Também na segunda ocasião a arguida queria lançar mão dos bens que encontrasse na residência e lhe aprouvessem, só não tendo alcançado o seu propósito devido à presença de B...;
15. Sabia as suas condutas contrárias à lei e criminalmente puníveis.
16. Aufere cerca de € 600 líquidos mensais; vive só, em casa arrendada por € 375 mensais; tem o 12.º Ano de Escolaridade;
17. Não se lhe conhecem antecedentes criminais.
Do pedido cível:
18. Em consequência da conduta da arguida, referida, a B... ficou angustiada, triste e preocupada;
19. Aufere cerca de € 772,33 líquidos mensais; vive só, em casa arrendada por € 329 mensais; tem a 4.ª Classe.

Relativamente ao não provado foi consignado o seguinte:
Da acusação:
20. Aquando da ocorrência referida em 6. a 11. a arguida perguntou a B... se a polícia ou o tribunal tinham andado à sua procura.
21. A arguida voltou a dirigir-se à residência de B... no dia 06.01.2011;
22. Voltou a utilizar o mesmo método, trepando pelo andaime exterior e que ainda ali se encontrava, acedendo desse modo ao nível do 5.º DT, onde chegou a partir o vidro de uma janela, para ali entrar e retirar o que lhe agradasse, só não tendo concretizado os seus intentos por não ter conseguido abrir a janela e entrar na residência.
Do pedido cível:
23. A substituição do vidro da janela partido pela arguida importa no valor de cerca de € 75.
24. Alguns dos objectos em ouro subtraídos tinham sido oferecidos à A. pelos seus progenitores.
25. A conduta da arguida tem causado à A. perturbações do sono e muitas noites sem dormir.
Da contestação:
26. A 16.11.2010, entre as 08:00 horas e as 13:15 horas, a arguida encontrava-se a trabalhar.
Quaisquer outros factos emergentes da discussão da causa, para além dos que ficaram descritos como provados.
[ De salientar aqui que não se fez constar dos factos provados e/ou não provados a matéria da acusação / pedido cível / contestação que conforma matéria de direito, juízos de valor, conclusões ou se considerou irrelevante face ao objecto do processo ].

A convicção do tribunal recorrido quanto à matéria de facto foi fundamentada nos seguintes termos:
Convicção do tribunal:
Foram determinantes para a fundamentar:
Factos provados:
1.º a 11.º: As declarações da B... – que começou por precisar que fora senhoria da arguida até Junho de 2010, razão pela qual esta sabia que todas as manhãs se ausentava da residência para tratamento de fisioterapia; mais recordou que no dia 16.11.2010 esteve fora de casa pelo período constante da acusação, sendo que, ao regressar já encontrou o quarto remexido e deu pela falta dos bens e dinheiro dados por assentes, adiantando que só a porta da sala que dava para o terraço tinha ficado aberta; inclusive deixara a porta do quarto fechada à chave; o andaime já lá se achava havia cerca de um ano; no dia 30.12.2010, encontrava-se em casa e ouviu barulhos no andaime, depois, deparou com a arguida na parte da varanda e permitiu que entrasse em casa, abrindo-lhe a porta, perguntando-lhe se vinha entregar aquilo que lhe roubara, ao que a arguida ripostou: “oh, deixe lá isso!...”, e sentando-se, disse que já tinha no banco o dinheiro restante que lhe devia ( referente a um empréstimo de € 5 000 que a B... lhe concedera para comprar um veículo automóvel, na altura em que era sua inquilina ), ao que a declarante ripostou então que devia sair por onde entrou, mas a arguida levantou-se e saiu pela porta principal, esgueirando-se pelas escadas do prédio; finalmente concluiu que está convencida que fora a arguida quem lhe subtraiu o ouro e o dinheiro, sendo este em grande parte referente a rendas de terceiros que recebia para entrega aos respectivos senhorios –, que foram corroboradas, na parte concernente, fornecendo-lhe consistência, pelos depoimentos das testemunhas ..., amiga da B... – que lembrou o dia, que não sabe precisar [ a não precisão só evidencia que não houve depoimento ensaiado ], mas recorda ter sido em Dezembro de 2010, quando se encontrava de visita à amiga, em que apareceu a arguida no terraço, depois de ouvirem um estrondo do lado dos andaimes, tendo a amiga ido abrir-lhe a porta do terraço, deixando-a entrar; seguiu-se uma discussão, a amiga dizia que a arguida lhe tinha ficado com o ouro e a arguida dizia que não, depois a arguida pediu para sair pela porta principal; mais confirmou ser a amiga possuidora das peças em ouro descritas na acusação, que viu muitas vezes no quarto – e … , amigo da B... – que recordou o dia do seu casamento, cerimónia essa em que a B... usava uma gargantilha em ouro com medalhão, referindo ainda que era do seu conhecimento que ela recebia rendas de terceiros para entrega aos respectivos senhorios –, em detrimento das declarações da arguida – que apenas se limitou a confirmar ter sido inquilina da B..., num quarto da casa, de onde referiu ter acabado por sair em Setembro de 2010, negando peremptoriamente toda a demais factualidade imputada, com o propósito de branquear a sua conduta, ao ponto de, como informou a testemunha ..., supra referenciada, se ter deslocado a sua casa ameaçando-a de que se viesse a tribunal depor contra si a metia atrás das grades – que, para além de mentir despudoradamente (evidenciando assim o seu comprometimento), não tiveram qualquer suporte probatório.
Sendo certo que ninguém viu a arguida a introduzir-se na residência da B... nem na posse de qualquer dos bens que a esta foram subtraídos, não deixa de ser evidente que a autoria da subtracção se afere da conduta da arguida quando é “apanhada” em flagrante a chegar à varanda da residência da B..., depois de escalar todos os andaimes que se encontravam encostados ao prédio respectivo.
Com que propósito utilizava a arguida aquele caminho íngreme, sinuoso e perigoso para a varanda de uma residência que não era a sua e que tinha sido assaltada no mês anterior? Esta pergunta tem uma resposta simples e lógica, que as regras da experiência da vida nos ensinam: a arguida voltava ao mesmo local onde antes havia estado, usando o mesmo “caminho”, e lhe dera avultados proveitos, ao ponto de tentar uma nova “aventura”.
A primeira ocorrência teve por base o conhecimento das “andanças” da antiga senhoria, aproveitando período horário que sabia corresponder a ausência daquela na residência; o facto de os bens subtraídos se acharem no quarto, fechado à chave, não foi óbice para a arguida, porquanto havendo várias formas de contornar esse contratempo ( v. g., gazua, ou chave de que dispusesse, adquirida nos tempos em que fora inquilina ), uma delas serviu para se introduzir no quarto e apoderar-se dos bens subtraídos – veja-se que o propósito era aquele e só quem conhecia a casa poderia saber essa localização dos bens.
A segunda ocorrência é tão ostensiva na explicação da primeira, que entra pelos olhos dentro, essa evidência. Porque razão não utilizou a arguida a porta de entrada principal para comunicar com a ex-senhoria, se é que tinha algo a comunicar-lhe?... O teor da conversa mantida, e a forma e local de saída da arguida são expressão cabal de que a arguida se deu conta de que fora descoberta da sua anterior prática e da que pretendia mais uma vez realizar e tratou de se escapulir logo que pode.
A posterior abordagem da testemunha ... pela arguida é a prova final da sua postura desresponsabilizante e com pretensões de impunidade e ocultação, para não dizer manipulação, de prova, utilizando, assim, a intimidação como fito de evitar uma condenação que previa certa.
Não nos restam pois dúvidas de que a prática da subtracção dos bens dados por assentes teve por autora a arguida;
12.º a 15.º: Presunção natural – atenta a idade da arguida e experiência de vida;
16.º: As declarações da arguida – informando o tribunal sobre os seus elementos pessoais – que, na ausência de outros elementos mais consistentes, se consideraram atendíveis;
17.º: O teor do doc. de fls. 56 ( CRC da arguida, de onde resulta nada constar );
18.º: As declarações da B... – que confirmou esse resultado ( estado de espírito ) –, que obtiveram respaldo nos depoimentos das testemunhas ..., supra identificada – na parte em que precisou que ela ficou bastante aborrecida, até a viu chorar várias vezes –, … , já referenciada, e … , seu conhecido – que precisaram essa factualidade que presenciaram nos contactos que tiveram com a mesma –, sendo que tais sentimentos e estados de alma são o resultado natural para a normalidade das pessoas em situação semelhante;
19.º: As declarações da B... – informando o tribunal sobre os seus elementos pessoais – que, na ausência de outros elementos mais consistentes, se consideraram atendíveis.
Factos não provados:
20.º a 26.º: Ausência de prova.
Não foi produzida prova alguma susceptível de sustentar essa factualidade, sendo que para partir um vidro de uma janela basta uma pedrada proveniente mesmo de um lugar distante ( v. g., uma fisgada ) ou até uma pomba que se projecta contra o vidro ao avistar ao seu reflexo, o que é frequente nas cidades.

* * *

Vejamos então as questões suscitadas, começando precisamente pela impugnação da matéria de facto.
Resulta claramente da motivação do provado que o tribunal recorrido formou a sua convicção tendo como assentes os factos relevantes para o preenchimento do tipo legal de crime imputado à arguida essencialmente com base em presunções assentes na experiência comum. E a questão que fundamentalmente se suscita é precisamente a de saber se são lícitas as ilações que o tribunal assim retirou, na avaliação que fez da prova produzida, ou se porventura tais ilações excederam o que lhe era consentido no âmbito da livre valoração da prova.
Sendo inquestionável a admissibilidade em processo penal de todas as provas que não sejam proibidas por lei (art. 125º do Código de Processo Penal, diploma a que se reportam também todas as demais disposições legais citadas sem menção de origem), aí se incluem as presunções judiciais, que são as ilações que o julgador retira de factos conhecidos para firmar outros factos, desconhecidos (art. 349º do Código Civil). Não sendo a presunção judicial um meio de prova proibido por lei, pode o julgador, à luz das regras da experiência e da sua livre convicção, retirar dos factos conhecidos as ilações que se ofereçam como evidentes ou como razoáveis e firmá-las como factos provados. Este é, de resto, um mecanismo recorrente na formação da convicção, de utilização necessária na prova de todos aqueles factos que pela sua própria natureza não são directamente percepcionáveis pelos sentidos do espectador, havendo que inferi-los a partir da exteriorização da conduta. É o que sucede, por exemplo, com a prova da intenção criminosa que, constituindo acontecimento da vida psicológica, não admite prova directa, podendo no entanto ser inferido a partir de outros factos que tenham sido directamente provados. Por recurso à presunção judicial, diluída naquilo que em processo penal se designa por “livre convicção”, podem esses factos ser comprovados através de outros factos susceptíveis de percepção directa e das máximas da experiência, extraindo-se como conclusão o facto presumido, que assim se pode ter como assente. Desde que as máximas da experiência (a chamada “experiência comum”, assente na razoabilidade e na normalidade das situações da vida), não sejam postas em causa, desde que através de um raciocínio lógico e motivável seja possível compreender a opção do julgador, nada obsta ao funcionamento da presunção judicial como meio de prova, observadas que sejam as necessárias cautelas. No entanto, a prova por presunção não é uma prova totalmente livre e absoluta, como aliás o não é a livre convicção (sob pena de abandono do patamar de segurança da decisão pressuposto pela condenação penal, em homenagem ao princípio do in dubio pro reo) conhecendo limites que quer a doutrina quer a jurisprudência se têm encarregado de formular:
- Desde logo, é necessário que haja uma relação directa e segura, claramente perceptível, sem necessidade de elaboradas conjecturas, entre o facto que serve de base à presunção e o facto que por presunção se atinge (sendo inadmissíveis “saltos” lógicos ou premissas indemonstradas para o estabelecimento dessa relação);
- Por outro lado, há-de exigir-se que a presunção conduza a um facto real, que se desconhece, mas que assim se firma (por exemplo, a autoria – desconhecida – de um facto conhecido, sendo conhecidas também circunstâncias que permitem fazer funcionar a presunção, sem que concomitantemente se verifiquem circunstâncias de facto ou sejam de admitir hipóteses consistentes que permitam pôr em causa o resultado assim atingido);
- Por fim, a presunção não poderá colidir com o princípio in dubio pro reo (é esse, aliás, o sentido da restrição referida na parte final do exemplo que antecede).

Em que termos se repercutem estas afirmações no caso dos autos?
A arguida, ora recorrente, prestou declarações em audiência em que negou os factos que lhe são imputados. Na ausência de confissão, total ou parcial, a demonstração dos factos que consubstanciam a tipicidade do evento criminoso terá que decorrer de prova directa ou indirecta (ou de ambas, como normalmente sucede), competindo ao tribunal de recurso, em sede de impugnação da matéria de facto, exclusivamente verificar se a motivação do provado constitui alicerce seguro para os factos que o tribunal a quo teve como provados e não provados.
As declarações prestadas pela demandante cível assumiram particular relevo no contexto da prova valorada pelo tribunal recorrido. Essas declarações são, no entanto, de molde a suscitar reservas de vulto, como se verá:
Desde logo, respondendo a questão colocada pela Digna Magistrada do M.P., disse a demandante a dado passo: “… Srª Drª eu fiz queixa dela porque tinha que fazer queixa de alguém, que era a única pessoa que sabia da minha vida toda como devia ser, porque esteve lá em casa, era ela, de maneira que eu não me podia queixar de mais ninguém, porque eu todos os dias ia e vou a um tratamento à clínica de Santa Filomena no Penedo da Saudade e ela sabia que perdia a manhã toda no tratamento…”.
Estranha explicação esta, que a demandante oferece para o facto de ter apresentado queixa contra a arguida, sobretudo se se tiver presente que à data dos factos a sua residência era acessível por andaimes, através dos quais se podia subir até ao seu andar e saltar para o terraço, o que em abstracto permite considerar que qualquer outra pessoa que não a arguida poderia ter praticado o furto na sua residência. Foi a própria demandante que relatou que o andaime já lá estava há ano e meio e que cada lanço tinha uma escada. Explicou ainda que quando regressou da clínica encontrou o seu quarto remexido, quarto que tinha deixado fechado à chave, transportando a chave consigo. A porta do quarto tinha sido aberta e quem quer que a abriu, voltou a fechá-la. A única coisa que estava aberta era a porta da sala de jantar que dava para o terraço, que a demandante não costumava fechar.
Ora, também não deixa de ser estranho que numa época em que a criminalidade atinge níveis preocupantes, com particular relevo para aquela criminalidade que visa a apropriação do património alheio, o que de tão insistentemente noticiado nos jornais e televisões não poderá deixar de se considerar como sendo do conhecimento do comum dos cidadãos, a demandante mantivesse aberta a porta da sala de jantar que dava para o terraço acessível através dos andaimes, como referiu em audiência, dizendo que não a fechava porque “nunca tinha acontecido nada”; e isto é tanto mais estranho quanto, a crer nas declarações da demandante, esta guardava em casa, para além de jóias valiosas, avultadas quantias em dinheiro…
A demandante prosseguiu as suas declarações, referindo que em data ulterior viu a arguida saltar dos andaimes para o terraço, ocasião em que estariam em sua casa duas senhoras que a tinham ido visitar e que viram também a arguida saltar para o terraço. Nessa ocasião, depois de constatar que tinha sido vista pela ofendida, que estava em casa, a arguida pediu-lhe para a deixar entrar e no decurso da conversa que com ela manteve disse-lhe que “… o meu pai mandou-me dinheiro todos os meses eu tenho no banco todo, todo, todo, para entregar à senhora no dia do julgamento” (decl. da demandante, minuto 20:18). O dinheiro em causa seria para pagamento de um empréstimo feito pela demandante à arguida para esta adquirir um automóvel. Simplesmente, também esta afirmação se nos afigura estranha. Com efeito, tratar-se-á de declaração proferida pela arguida no dia em que entrou pelo terraço em casa da demandante e no decurso da conversa que então mantiveram, ou seja, no dia 30 de Dezembro de 2010. Ora, nessa data ainda a queixa que originou os presentes autos não tinha sido apresentada; apenas veio a ser apresentada em 8 de Janeiro de 2011. A que julgamento se referia então a arguida? Ao dos presentes autos não podia ser… Havia algum outro julgamento para ter lugar, em qualquer outro processo, que envolvesse a arguida e a demandante? Não resulta nem dos autos nem da audiência… Tratou-se de confusão da declarante? Ou esta conversa nunca existiu?
Claro que em função do valor do furto, nada negligenciável, o que seria lógico é que a demandante tivesse de imediato apresentado queixa, o que teria a vantagem de permitir a pesquisa de vestígios que permitissem a identificação do assaltante, nomeadamente, a pesquisa de vestígios lofoscópicos. No entanto, tendo o furto ocorrido em 16 de Novembro de 2010, a queixa só veio a ser apresentada em 8 de Janeiro de 2011, quase dois meses depois, o que inviabilizava qualquer pesquisa de vestígios…
Por outro lado, o tribunal teve como assente o valor da quantia subtraída exclusivamente com base nas declarações da demandante (já quanto à existência de objectos em ouro, houve prova testemunhal). Contudo, não poderemos deixar de estranhar o facto de a demandante ter sabido precisar que tinha em casa 15 mil euros, dinheiro proveniente de rendas que tinha recebido e que não tinha depositado por se encontrar doente. Estranha-se, desde logo, o facto de se tratar de um número “redondo”, quando é sabido que as rendas de casa têm actualizações anuais em percentagens fixadas por Portaria do Governo que inevitavelmente conduzem por sistema a valores que nada têm de “redondo”. Estranha-se também o facto de a ofendida não ter sabido dizer a quantos meses de renda correspondia tal valor (estranho precisamente por, tratando-se de um número redondo, as contas serem certamente fáceis de fazer…). Também não soube mencionar o valor das rendas. E por fim, questionada sobre qual o banco onde fazia os depósitos, disse que os fazia em vários bancos, mas não identificou nenhum...
Admitamos por mera hipótese de raciocínio, já que a ofendida não se pronunciou quanto a valores, que as rendas tivessem um valor médio de €500 (conhecidos os valores habitualmente praticados no mercado de arrendamento, esse valor teria que corresponder a rendas recentes). Essa base de cálculo corresponderia a 30 rendas. Ainda que se reportasse a vários locados com diversos senhorios, o que seria normal é que a demandante efectuasse o respectivo depósito num prazo razoável, já que não é normal que os senhorios aceitem ver-se privados dos montantes das rendas durante prolongados períodos de tempo por inércia da sua procuradora em proceder ao respectivo depósito. Os valores em causa não são negligenciáveis e o seu depósito ainda que por curtos períodos de tempo, só por si, seria susceptível de produzir outros rendimentos, nomeadamente, juros bancários.
As incongruências verificadas no depoimento da demandante não dispensavam uma averiguação mais insistente e detalhada em audiência, relativamente ao valor do furto. As hesitações e a falta de resposta a questões essenciais, a que a demandante deveria ter sabido responder ainda que apenas por aproximação, retiram credibilidade ao seu depoimento!
Do que acabou de se expor resulta desde já uma manifesta insuficiência da prova para a decisão de facto proferida, questão que se situa no âmbito do princípio da livre apreciação da prova, com sede legal no art. 127º do CPP [e não no âmbito do vício previsto no art. 410º, nº 2, al.a), do mesmo diploma, a exigir o reenvio dos autos para novo julgamento].
Por outro lado, mesmo aceitando-se como correspondendo à verdade o episódio da entrada da arguida em casa da demandante pelos andaimes, numa ocasião em que esta última estava em casa, tratando-se sem dúvida alguma de actuação muito estranha, apta a levantar sérias suspeitas sobre as intenções da arguida e permitindo formular uma suspeita muito forte sobre a responsabilidade desta última no furto ocorrido (que, repete-se, no que concerne a valores sempre careceria de melhor averiguação), ainda assim não seria possível, com base nos elementos apurados em audiência, formular um juízo suficientemente seguro para permitir a condenação da arguida. O tribunal justificou a sua opção, invocando a conduta da arguida na ocasião em que subiu os andaimes e saltou para a varanda da casa da demandante quando esta lá se encontrava como evidencia de que a arguida já o teria feito anteriormente, na ocasião do furto, e extrapolou desses factos conhecidos o facto desconhecido. Simplesmente, isto traduz um verdadeiro salto no escuro. Não se verifica no caso uma relação directa e imediata com exclusão de qualquer outra possibilidade razoável e, por outro lado, a prova produzida suscita demasiadas dúvidas sobre o que efectivamente se passou e sobre o que é que foi efectivamente subtraído, dúvidas essas intransponíveis por recurso a mera presunção judicial, não havendo elementos suficientes para se terem como assentes os factos vertidos sob os nºs 1, 3, 4, 5, 6 (este, na parte em que refere “Animada pelo êxito da sua actuação” e “ a arguida voltou ao local, acima mencionado, trepando de novo…”), 12, 13, 14 e 15, o que acarreta necessariamente a revogação da sentença recorrida.

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III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, concede-se provimento ao recurso e revoga-se a sentença recorrida, absolvendo-se a arguida do crime de furto que lhe havia sido imputado na acusação e do pedido cível contra si deduzido.
Sem tributação.

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Jorge Miranda Jacob (Relator)

Maria Pilar de Oliveira