Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
506/09.6T2ILH.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
PRESTAÇÃO DE CONTAS
APERFEIÇOAMENTO DOS ARTICULADOS
Data do Acordão: 01/11/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ÍLHAVO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.65, 65-A, 73, 74, 85, 101, 105, 508, 1014, 1017, 1019 CPC, 20179 CC
Sumário: 1. Na resposta ao despacho de aperfeiçoamento, não pode o autor apresentar um aditamento ou correcção do seu articulado inicial, que conduza a uma alteração do pedido ou da causa de pedir, não sendo admissível, por esta via, o suprimento de uma petição inepta, nem a convolação para uma causa de pedir diferente da inicialmente invocada.

2. O aperfeiçoamento do articulado apenas pode ter por objecto o suprimento de pequenas omissões, ou meras imprecisões ou insuficiências na alegação da matéria de facto, sob pena de completa subversão do princípio dispositivo, o que justifica as limitações restritivas, imperativamente impostas pelo n.º 5 do artigo 508.º do CPC.

3. Deve considerar-se não escrito tudo o que no segundo articulado apresentado vai para além do que foi determinado no despacho de aperfeiçoamento (esclarecimento do pedido), com manifesta violação dos parâmetros imperativos enunciados no n.º 5 do artigo 508.º do CPC.

4. Os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para a acção de prestação de contas de cabeça-de-casal, com domicílio em França, relativamente a bens situados naquele país.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório
E (…), divorciado, com domicílio na Rua (…), lugar e freguesia da ..., ... Ílhavo, intentou a presente Acção Especial de Prestação de Contas, nos termos dos artigos 1019.º e 1014.º a 1017.º do CPC, contra EL (…) divorciada, residente em (…) ..., France, alegando em síntese: Requerente e Requerida foram casados no regime da comunhão de adquiridos até 21 de Outubro de 1996, data em que o seu casamento foi dissolvido por divórcio; por dependência da acção de divórcio litigioso que correu termos no Tribunal de Família e Menores de Aveiro, com o nº 304/94, procedeu-se a inventário para separação de meações; o referido inventário teve como objecto, exclusivamente, a partilha de bens situados em Portugal; a Requerida foi nomeada cabeça de casal, no âmbito do mencionado inventário; a partilha desses bens sitos em Portugal foi homologada por sentença de 13/06/1999, já transitada; o casal possuía diversos bens, designadamente, edifícios destinados a habitação e contas de depósito bancário e outras aplicações financeiras, em França; de modo que também em França houve que proceder à partilha deste património comum; Requerente e Requerida acordaram perante os Tribunais Franceses, sobre a divisão provisória dos rendimentos do património global; estabelecendo que, enquanto não fossem concluídas as partilhas, o ora requerente receberia os rendimentos dos bens sitos em Portugal e a Requerida, os rendimentos dos bens sitos em França; nos termos daquele acordo a Requerida recebeu todos os frutos e rendimentos dos bens comuns sitos em França, desde a data da separação do casal, ocorrida em 04 de Janeiro de 1994, até à partilha daqueles bens, operada por sentença de 16 de Novembro de 2006; até ao presente a requerida não prestou contas dos mencionados rendimentos.
Citada, a Ré contestou, deduzindo a excepção de incompetência internacional e alegando que não há contas a prestar.
Foi proferido o despacho de fls. 138, no qual, com fundamento no erro de autuação da acção (forma sumária), se anulou todo o processado, desde o acto de citação.
Citada novamente a Ré (fls. 115), veio deduzir nova contestação (fls. 173), com teor idêntico à anteriormente apresentada.
Foi proferido o despacho de fls. 203, com o seguinte teor:
«Compulsados os autos e analisados os articulados do autor E (…) tem de reconhecer-se que não se logrou entender o seu pedido, sendo certo que a junção de documentos oportunamente determinada não permite suprir as dúvidas quanto ao mesmo pedido.
Assim sendo, convida-se o autor a juntar aos autos nova petição inicial esclarecendo a sua pretensão.
Junta esta, notifique a parte contrária para sobre a mesma exercer o seu contraditório.»
Aproveitando o ensejo, veio o Autor apresentar uma nova petição, na qual não se limita a responder ao convite de aperfeiçoamento (esclarecimento do pedido), indicando uma nova morada da Ré (para contornar a excepção de incompetência deduzida), e alongando-se numa nova petição de 56 artigos (a petição inicial tinha apenas 13).
Mais aproveitou o Autor, para na nova petição ampliar o pedido, que reformulou nestes termos: «… deve a presente acção ser julgada procedente e provada, ordenando-se que a Requerida preste as contas referentes à administração de bens comuns do seu dissolvido casal com o Requerente, desde data da propositura da acção que determinou a dissolução do casamento entre ambos e 16 de Novembro de 2006, data em que ficou concluída a partilha dos bens comuns do casal ou, quando assim não se entenda, ordenando-se que a Requerida preste as referidas contas, desde a data em que ficou concluída a partilha dos bens sitos em Portugal (Maio de 1999), até ao referido dia 16 de Novembro de 2006.»
A Ré foi notificada para apresentar nova contestação (a terceira), na qual continua a excepcionar a incompetência internacional do tribunal.
Foi proferida sentença (fls. 248), na qual se decidiu: «… julgar o presente Juízo de Média e Pequena Instância Cível territorial e internacionalmente incompetente para conhecer da presente acção, absolvendo-se da instância a requerida EL (…) – arts. 101º e 105º do Cód. Proc. Civil.»
Não se conformando, recorreu o Autor, apresentando alegações, nas quais formula as seguintes conclusões:

1. Na presente acção, ambas as partes têm nacionalidade portuguesa. 

2. E  ambas  –  ao  contrário  do  que  se  diz  na  decisão  recorrida  –  têm  residências  em França e em Portugal.

3. De onde resulta, por força do nº 1 do artigo 82º do Código Civil, que ambas se têm por domiciliadas em qualquer das suas referidas residências.

4. Pelo que se acha preenchido o requisito da alínea a) do nº 1 do artigo 65º do Código de Processo Civil para a competência territorial e internacional do Tribunal recorrido.

5. De igual modo se acha preenchido o requisito da alínea b) da citada disposição, uma vez que nos termos do nº3 do artigo 85º do Código de Processo Civil “se o réu tiver o domicílio e a residência em país estrangeiro, será demandado no tribunal no lugar em que se encontrar, não se encontrando em território português, será demandado no domicílio do autor”.

6. Igualmente se verificam os requisitos das alínea c) e d) do citado artigo 65º do Código de  Processo  Civil,  dado  que  recorrente  e  recorrida  têm,  como  se  disse,  nacionalidade portuguesa,  se  divorciaram  em  Portugal,  tendo  corrido  em  Portugal  um  dos  inventários destinados a dividir o património comum.

7. Inventário onde, aliás, a ora recorrida exerceu funções de cabeça de casal.

Acresce que

8. Diferentemente do que pressupõe a decisão recorrida, o pedido principal  formulado pelo A. é que a recorrida preste todas as contas relativas a todo o património comum, desde a data da propositura da acção de divórcio, até à conclusão da partilha do aludido património.

9. A sentença recorrida  viola  as  normas  do  nº1  do  artigo  82º  do Código Civil  e  das alíneas a), b), c) e d) do nº1 do artigo 65º do Código de Processo Civil e do nº3 do artigo 85º do citado diploma, das quais decorre a competência do Tribunal recorrido para a presente acção.»
A Ré apresentou contra-alegações, nas quais preconiza a manutenção do julgado.
Também a Digna Magistrada do MP respondeu às alegações de recurso, preconizando a manutenção do julgado.

II. Do mérito do recurso

1. Objecto do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 684º, nº 3, e 690º, nºs 1 e 3, CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2, in fine), consubstancia-se numa única questão: saber se o tribunal a quo tem competência internacional para a tramitação da acção.

2. Fundamentação de facto
Está provada nos autos a seguinte factualidade relevante:
1. Na primeira petição apresentada, o Autor indicou como residência da Ré (…) ..., France».
2. A Ré foi citada em «(…), ..., France», assinando o respectivo aviso de recepção, em 13.10.2009; (fls. 16 dos autos)
3. Face à anulação do processado, a Ré foi novamente citada em «(…) ..., France», assinando o respectivo aviso de recepção, em 25.02.2010; (fls. 16 dos autos)
4. Da procuração junta aos autos pela Ré, consta a indicação de que reside em França. (fls. 28 dos autos)
5. O Autor e a Ré foram casados entre si, tendo sido o casamento dissolvido por divórcio decretado por sentença de 30 de Setembro de 1996, transitada em julgado em 21 de Outubro de 1996. (fls. 6 dos autos)
6. Por dependência da acção de divórcio litigioso que correu termos no Tribunal de Família e Menores de Aveiro, com o nº 304/94, procedeu-se a inventário para separação de meações, o qual teve como objecto, exclusivamente, a partilha de bens situados em Portugal.
7. A partilha desses bens sitos em Portugal foi homologada por sentença de 13/06/1999, já transitada em julgado.
8. Quanto aos bens sitos em França, foram objecto de partilha notarial (Notário AP..., ..., France), nos termos que constam de fls. 58 a 73 dos autos).
9. O Autor requereu a prestação de contas, em apenso ao processo de inventário, tendo sido proferido pelo Tribunal de Família e Menores de Aveiro, o despacho, transitado em julgado, cuja cópia se encontra junta a fls. 8 e 9, no qual se decidiu: «… a prestação de contas deverá ser feita em acção autónoma (…). Pelo exposto, decido julgar este tribunal incompetente».
10. Na referida decisão, foi considerado com fundamento, nomeadamente, o facto de «O inventário apenso apenas dizer respeito aos bens situados em Portugal».

3. Fundamentação de direito
3.1. Questão prévia: delimitação do pedido, face à manifesta violação do n.º 5 do artigo 508.º do CPC.
Como se referiu no relatório do presente acórdão, foi proferido nos autos (fls. 203) um despacho dirigido ao autor, de convite ao aperfeiçoamento da sua petição, fundamentando a M.ª Juíza tal convite no facto de «reconhecer-se que não se logrou entender o seu pedido», concluindo, em conformidade: «convida-se o autor a juntar aos autos nova petição inicial esclarecendo a sua pretensão.»
O âmbito do convite transparece do despacho, sem margem para dúvidas: aperfeiçoamento da petição de forma a esclarecer o pedido.
No entanto, como também já se referiu, o Autor aproveitou o ensejo e, exorbitando o convite que o Tribunal lhe dirigiu, alterou a petição, que inicialmente tinha 13 artigos, e que passou a ter 56.
Vejamos as restrições impostas por lei:
Dispõe o n.º 3 do artigo 508.º do CPC: «Pode ainda o juiz convidar qualquer das partes a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido
Nos termos do n.º 5, do mesmo dispositivo «As alterações à matéria de facto alegada, previstas nos números 3 e 4, devem conformar-se com os limites estabelecidos no art. 273º, se forem introduzidas pelo autor, e nos arts. 489º e 490º, quando o sejam pelo réu.»
Como refere Lopes do Rego[1], o n.º 5 do artigo 508.º do CPC estabelece claramente os limites ao aperfeiçoamento “substancial” da matéria de facto alegada, não podendo o autor, na resposta ao despacho de aperfeiçoamento, apresentar um aditamento ou correcção do seu articulado inicial, que conduza a uma “alteração unilateral” do pedido ou da causa de pedir, em colisão com o preceituado no art. 273.º, que apenas a admite na réplica, e não em fases ulteriores do processo.
Conclui o autor citado, que não é admissível, por esta via, o suprimento de uma petição inepta, nos termos do art.º 193.º, nem a convolação para uma causa petendi diferente da invocada pelo autor como suporte da petição[2].
O aperfeiçoamento do articulado apenas pode ter por objecto o suprimento de pequenas omissões ou meras imprecisões ou insuficiências na alegação da matéria de facto, sob pena de completa subversão do princípio dispositivo (artigos 264º e 664º), o que justifica as limitações impostas pelo n.º 5 do artigo 508.º do CPC[3].
Como se refere no acórdão da Relação do Porto, de 16.06.2009[4], não pode «invocar-se ‘ex novo’ por ocasião da resposta ao convite ao aperfeiçoamento, pois que este não está previsto na lei com o objectivo de suprir uma qualquer omissão factual de que dependesse, na acção, o reconhecimento do direito invocado (…) a nova petição há-de ser um aperfeiçoamento da anterior, de modo que entre uma e outra só devem existir as diferenças destinadas a corrigir com a segunda o vício da primeira…».
Ainda no sentido de que o convite ao aperfeiçoamento dos articulados abrange apenas deficiências meramente formais na exposição da matéria de facto e não serve para suprir omissões relativas ao ónus de alegação em matéria de facto, veja-se o acórdão da Relação do Porto, de 17.11.2009[5].
Assim, deverá ter-se por não escrito, tudo o que no segundo articulado apresentado, vai para além do que foi determinado no despacho de aperfeiçoamento (esclarecimento do pedido), com manifesta violação dos parâmetros imperativos enunciados no n.º 5 do artigo 508.º do CPC.
Por outro lado, salvo todo o respeito devido, não conseguimos vislumbrar grande necessidade do aperfeiçoamento, já que dos factos articulados na petição inicial originária, sob os n.º 8.º a 11.º, se conclui de forma transparente que o Autor pretende nesta acção, que a Ré preste contas relativamente aos «frutos e rendimentos dos bens comuns sitos em França».
Vejamos os artigos em causa:
«Art. 9.º - Requerente e Requerida acordaram perante os Tribunais Franceses, sobre a divisão provisória dos rendimentos do património global.
Art. 10.º - Estabelecendo que, enquanto não fossem concluídas as partilhas, o ora requerente receberia os rendimentos dos bens sitos em Portugal e a Requerida, os rendimentos dos bens sitos em França.
Art. 11.º - Nos termos daquele acordo a Requerida recebeu todos os frutos e rendimentos dos bens comuns sitos em França, desde a data da separação do casal, ocorrida em 04 de Janeiro de 1994, até à partilha daqueles bens, operada por sentença de 16 de Novembro de 2006.
Art. 12.º - Até ao presente a requerida não prestou contas dos mencionados rendimentos.»
Ou seja: o Autor pretende ab initio, que a Ré preste contas dos rendimentos dos bens comuns sitos em França, que passou a receber na sequência da partilha efectuada naquele país[6].
Esta pretensão, ressalvando sempre o devido respeito, é claramente perceptível e óbvia, por três razões: i) o Autor demanda a Ré na qualidade de cabeça-de-casal (art. 4.º da petição inicial original - ora, é sabido que as funções de cabeça-de-casal terminam com a partilha (art. 2079.º do CC)[7]; ii) a partilha dos bens sitos em Portugal foi homologada por sentença de 13.06.1999, já transitada (art. 5.º do mesmo articulado); o Autor expressamente declara que a Ré passou a receber os rendimentos dos bens sitos em França, na sequência da “divisão provisória” de tais bens, efectuada naquele país, e que pretende contas desses rendimentos (art. 8.º a 11.º).
A mesma coerência e perceptibilidade não transparece do segundo articulado, em que o Autor, ao invés de prestar qualquer esclarecimento sobre a sua pretensão, vem alterá-la[8], tornando-a absolutamente confusa.
Vejamos porquê.
Na sequência do despacho de aperfeiçoamento, vem o Autor formular nova pretensão, nestes termos:
«Termos em que deve a presente acção ser julgada procedente e provada, ordenando-se que a Requerida preste as contas referentes à administração de bens comuns do seu dissolvido casal com o Requerente, desde data da propositura da acção que determinou a dissolução do casamento entre ambos e 16 de Novembro de 2006, data em que ficou concluída a partilha dos bens comuns do casal ou, quando assim não se entenda, ordenando-se que a Requerida preste as referidas contas, desde a data em que ficou concluída a partilha dos bens sitos em Portugal (Maio de 1999), até ao referido dia 16 de Novembro de 2006.»
A manifesta confusão e insuperável contradição, reside, salvo o devido respeito, no facto de o Autor alegar (estando provado nos autos), que a partilha dos bens sitos em Portugal foi homologada por sentença de 13/06/1999, já transitada em julgado, invocar a qualidade de cabeça-de-casal da Ré, e pedir a prestação de contas (agora na segunda petição), de forma a abranger os bens incluídos nessa partilha.
Ora, como já se disse, e agora se repete, as funções de cabeça-de-casal da Ré, relativamente à administração dos bens que foram objecto da partilha realizada em Portugal (de onde emergia a sua obrigação de prestação de contas), já terminaram há muito[9].
E não se vislumbra como se possa pedir, alguns anos após o trânsito em julgado de uma sentença de partilha, a prestação de contas por parte de quem desempenhou as funções de cabeça-de-casal, relativamente à administração de um património comum que já não existe[10].
Pelas razões expostas se conclui que o pedido do Autor, a considerar na presente acção, é o inicialmente formulado (prestação de contas dos rendimentos dos bens comuns sitos em França, que a Ré passou a receber na sequência da partilha efectuada naquele país), e não o que, na sequência do despacho de aperfeiçoamento, extravasando tal despacho, com manifesta violação dos parâmetros imperativos (e restritivos) do n.º 5 do artigo 508.º do CPC, veio a formular na segunda petição[11].

3.2. A questão da competência internacional
Definido o pedido validamente formulado pelo Autor nesta acção - prestação de contas dos rendimentos dos bens comuns[12] sitos em França, que a Ré passou a receber na sequência da partilha efectuada naquele país – há que definir a competência internacional.
Vejamos as seguintes, as normas que regem esta matéria[13]:
Dispõe o artigo 65.º do CPC

1 - Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos comunitários e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:

a) (revogada)

b) Quando a acção possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;

c) (revogada)

d) Quando o direito invocado não possa tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.

2. (revogado)
Dispõe o artigo 65.º - A, do mesmo diploma legal:

Os tribunais portugueses são exclusivamente competentes:

a) Nos casos previstos em regulamentos comunitários ou em outros instrumentos internacionais;

b) Para as execuções sobre bens imóveis situados em território português

c) As acções relativas a direitos reais ou pessoais de gozo sobre bens imóveis sitos em território português;

d) Os processos especiais de recuperação de empresa e de falência, relativos a pessoas domiciliadas em Portugal ou a pessoas colectivas ou sociedades cuja sede esteja situada em território português;

e) As acções relativas à apreciação da validade do acto constitutivo ou ao decretamento da dissolução de pessoas colectivas ou sociedades que tenham a sua sede em território português, bem como à apreciação da validade das deliberações dos respectivos órgãos;

f) As acções que tenham como objecto principal a apreciação da validade da inscrição em registos públicos de quaisquer direitos sujeitos a registo em Portugal;
Provou-se (facto 9), que o Autor requereu a prestação de contas, em apenso ao processo de inventário, tendo sido proferido pelo Tribunal de Família e Menores de Aveiro, o despacho, transitado em julgado, cuja cópia se encontra junta a fls. 8 e 9, no qual se decidiu: «… a prestação de contas deverá ser feita em acção autónoma (…). Pelo exposto, decido julgar este tribunal incompetente».
Está assim definitivamente afastada a competência por apensação.
Afastada também se encontra a competência exclusiva dos tribunais nacionais, por não se verificar nenhuma das circunstâncias enunciadas no artigo 65.º-A do CPC, não derivando a mesma competência, in casu, de qualquer regulamento comunitário ou internacional (corpo do art. 65/1), e não se verificando também o pressuposto enunciado na alínea d) do artigo 65.º, há que decidir a questão em função do critério estabelecido na alínea b) do citado normativo – relevância do princípio da coincidência entre a competência internacional e a competência interna.
Tal raciocínio leva-nos aos artigos 73.º e seguintes.
Os bens que foram património comum do casal constituído pelo Autor e pela Ré, objecto da prestação de contas requerida, situam-se em França.
Parte desses bens são imóveis.
Dispõe o n.º 1 do artigo 73.º do CPC: «Devem ser propostas no tribunal da situação dos bens as acções referentes a direitos reais ou pessoais de gozo sobre imóveis, as acções de divisão de coisa comum, de despejo, de preferência e de execução específica sobre imóveis, e ainda as de reforço, substituição, redução ou expurgação de hipotecas.»
O critério legal enunciado atribui competência aos tribunais franceses.
Há depois que considerar que a Ré tem domicílio em França[14], tendo-se provado, quanto a esta matéria, os seguintes factos:

1. Na primeira petição apresentada, o Autor indicou como residência da Ré (…) ..., France».

2. A Ré foi citada em (…), ..., France», assinando o respectivo aviso de recepção, em 13.10.2009; (fls. 16 dos autos)

3. Face à anulação do processado, a Ré foi novamente citada em (…) ..., France», assinando o respectivo aviso de recepção, em 25.02.2010; (fls. 16 dos autos)

4. Da procuração junta aos autos pela Ré, consta a indicação de que reside em França. (fls. 28 dos autos)
Também o critério previsto no n.º 1 do artigo 74.º, de competência para o cumprimento da obrigação (neste caso de prestação de contas), atribui jurisdição aos tribunais franceses: «A acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento é proposta no tribunal do domicílio do réu, podendo o credor optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida, quando o réu seja pessoa colectiva ou quando, situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o réu tenha domicílio na mesma área metropolitana.»[15]
Finalmente, também de acordo com a regra geral, enunciada no n.º 1 do artigo 85.º do CPC (considerando que a lei não prevê qualquer regra especial aplicável ao caso), se revelam competentes os tribunais franceses: «Em todos os casos não previstos nos artigos anteriores ou em disposições especiais é competente para a acção o tribunal do domicílio do réu.»
Tal critério de competência, para o qual remetem todas as normas citadas, faz todo o sentido, neste caso particular, considerando que o Autor pretende a prestação de contas da Ré, relativamente a bens sitos em França e partilhados por escritura notarial celebrada nesse país[16].
Revela-se, face ao exposto, improcedente o recurso, naufragando a tese defendida pelo recorrente nas suas alegações.

III. Decisão
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente o recurso, ao qual se nega provimento, confirmando, com diversa fundamentação, a sentença recorrida.
Custas pelo Apelante.
Notifique.
                                                                    *

Carlos Querido ( Relator )
Pedro Martins
 Emídio Costa


[1] Comentários ao Código de Processo Civil, 2.ª edição, 2004, Vol. I, página 431.
[2] No mesmo sentido, veja-se Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, 2.º Volume, Almedina, 1997, pág. 81.
[3] Vide acórdão do STJ, de 3.02.2009, proferido no processo n.º 08A3887, acessível em http://www.dgsi.pt.
[4] Proferido no processo n.º 0828060, acessível em http://www.dgsi.pt.
[5] Proferido no processo n.º 3770/04.3TBGDM.P1 – 2.ª Sec., acessível em http://www.dgsi.pt.

[6] Recorde-se que os bens sitos em Portugal foram já objecto de partilha por sentença, com trânsito em julgado.
[7] Refere Lopes Cardoso - Partilhas Judiciais, Vol. I, pág. 245 – que as funções de cabeça de casal terminam com o trânsito em julgado da sentença de homologação da partilha.
[8] Com violação do n.º 5 do art. 508.º do CPC.
[9] Com o trânsito em julgado da sentença de homologação da partilha, como refere Lopes Cardoso na obra citada supra - Partilhas Judiciais, Vol. I, pág. 245.
[10] Sendo certo que todas as contas e “acertos” hão-de estar prestados no momento da partilha.
[11] Cabe referir a latere, que não vislumbramos como possa o Autor designar por “provisória”, a partilha dos bens efectuada em França, face ao teor do documento junto aos autos a fls. 59 a 73 (escritura de partilha), onde consta, nomeadamente: «… primeiro e segunda outorgante reconhecem que todas as contas relativas à comunhão de bens que entre eles existiu se encontram total e definitivamente liquidadas, renunciando ambos a qualquer investigação ou procedimento judicial, por toda e qualquer razão relativa a esta liquidação, bem como por qualquer crédito que possam fazer valer um contra o outro».
[12] Como já se referiu na nota anterior, encontra-se junta aos autos a escritura de partilha efectuada em França, na qual o Autor e a Ré declaram que «… todas as contas relativas à comunhão de bens que entre eles existiu se encontram total e definitivamente liquidadas, renunciando ambos a qualquer investigação ou procedimento judicial, por toda e qualquer razão relativa a esta liquidação, bem como por qualquer crédito que possam fazer valer um contra o outro». Resulta de tal documento a definitividade da partilha efectuada e a actual inexistência de bens comuns, também em França. No entanto, sobre esta matéria não temos que nos preocupar, na medida em que o que está em discussão é apenas a excepção dilatória de incompetência internacional.
[13] Redacção aplicável a esta acção, introduzida pela Lei nº 52/2008, de 28 de Agosto. Quando deu entrada a presente acção (6.10.2009), esta redacção legal era aplicável apenas às comarcas piloto, a título experimental (nelas se incluindo a comarca do Baixo-Vouga – art. 171/1), até 31.08.2010, sendo depois generalizada a todo o território nacional (artigo 187.º).
[14] Afigura-se, sempre ressalvando o devido respeito, lamentável a conduta processual do Autor, que, na sequência do despacho de aperfeiçoamento, e alertado para a relevância da residência da Ré em França, pela contestação anteriormente apresentada, com violação das restrições legais enunciadas no n.º 5 do artigo 508.º do CPC, veio alterar a identificação da Ré, no que respeita à morada.
[15] O domicílio da Ré situa-se em França, como expressamente o declara o Autor na petição original, tendo sido a Ré citada por duas vezes, naquele país.

[16] Idêntica seria a solução, à luz do anterior regime legal, como se conclui do acórdão do STJ, de 17.07.1986, proferido no processo n.º 073547, acessível em http://www.dgsi.pt: «Para a acção especial de prestação de contas, é territorialmente competente o Tribunal em que o réu tem o seu domicílio, o que torna esse Tribunal também internacionalmente competente por força da regra contida na alínea a) do n. 1 do artigo 65 do Código de Processo Civil…».