Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
33/19.3GASRE-C.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
VALOR
NULIDADE POR EXCESSO DE PRONÚNCIA
COMPENSAÇÃO
EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO
Data do Acordão: 03/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE SOURE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 847.º E 848.º DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 265.º, 2; 296.º, 1; 297.º, 1; 304.º; 588.º, 1 E 2; 609.º, 1 E 615.º, 1, E), DO CPC
Sumário: I - Os embargos de executado, ainda que incidente nominado da execução, assumem, substantiva e processualmente, autonomia, pelo que se o seu valor diferir do valor executivo, deve ele ser-lhe atribuído – artºs 304º nº1, 296º nº1 e 297º nº1 do CPC.

II - O conhecimento, qualitativo ou quantitativo, para além do inicialmente impetrado, num processo em que os princípios da substanciação, do dispositivo sobrelevam e em que o pedido podia ter sido ampliado em articulado superveniente, implica a nulidade por excesso de pronúncia – artº 615º bº1 al. e) do CPC.

III - A exigibilidade judicial do crédito como requisito de efetivação da compensação – artº 847º do CPC – não impõe que ele tenha sido previamente reconhecido judicialmente, mas apenas que o possa vir a ser.

Decisão Texto Integral:
Relator: Carlos Moreira
1.º Adjunto: Rui Moura
2.º Adjunto: Fonte Ramos






ACORDAM OS JUIZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

AA  deduziu embargos de executado à execução  que contra si foi proposta por BB.

Invocou:

A nulidade da citação relativamente à penhora realizada nos autos da execução.

Que na  constância do matrimónio com o exequente/embargado, os mesmos contraíram um crédito à habitação junto da Banco 1... com o nº  ...85, sendo que apenas a executada/embargante tem pago as prestações mensais no valor de cerca de €340,00 (trezentos e quarenta euros) das respetivas prestações contratadas, perfazendo, à data da oposição, a quantia de €12.920,00 (doze mil novecentos e vinte euros), sendo que ½ desse mesmo valor seria da responsabilidade do exequente/embargado, também ele responsável pelo cumprimento do pagamento do crédito.

Existe  assim um contra-crédito a seu favor, no valor de 6.460,00 € (seis mil quatrocentos e sessenta euros),  face à quota-parte de responsabilidade do exequente  no crédito à habitação, contraído por ambos, o qual deverá ser objeto de compensação com o crédito exequendo.

Deduziu ainda  oposição à penhora por entender que a penhora do bem imóvel é excessiva para o pagamento do crédito exequendo.

O exequente/embargado contestou.

Alegou que o crédito a que se reporta a executada/embargante está em discussão no processo de inventário por ter sido deduzida reclamação de créditos nesse processo.

Assim, o crédito em causa é apenas hipotético e a sua invocação pela executada/embargada configura uma verdadeira reconvenção que não é admissível neste incidente.

A embargante não prova a factualidade que alega na oposição à execução.

Conclui  pela improcedência da oposição à execução.

O embargado juntou aos autos a certidão da reclamação de créditos  no inventário.

Foi determinada a suspensão da instância incidental destes embargos até ao trânsito em julgado da sentença a proferir no incidente de reclamação à relação de bens do processo de inventário.

Cessada a suspensão, prosseguiram os autos os seus termos tendo, a final, sido  proferida sentença.

Nela foi fixado o valor da causa nos seguintes termos:

«2. Valor da causa

Fixa-se em €3.887,79 (três mil, oitocentos e oitenta e sete euros e setenta e nove cêntimos) o valor da presente causa (artigos 296.º, 297.º, n.º 1, 299.º, n.ºs 1 e 2, 304.º n.º 2, e 306.º do Código de Processo Civil).»

2.

Seguidamente, quanto ao objeto da causa, foi proferida decisão final na qual foi decidido:

«Face ao exposto, decide-se julgar procedente, por provada, a oposição à execução mediante embargos de executado e, em consequência, determinar a extinção da execução nos termos do artigo 732.º, n.º 4, do Código de Processo Civil com o consequente levantamento, após trânsito, de penhoras realizadas no processo de execução.»

3.

Inconformado recorreu o embargado.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1.º - A toda a causa deve ser atribuído um valor certo o qual representa a utilidade económica do pedido.

2.º - A Embargante pretende obter com a oposição à execução mediante embargos um crédito sobre o Embargado, crédito esse de valor certo e determinável, correspondente ao total de metade das prestações pagas entre agosto de 2018 e setembro de 2021, de um contrato de crédito de que eram ambos devedores, pelo que será esse valor a utilidade económica do pedido que apresenta.

3.º - Pelo exposto, deve o valor do pedido formulado nos termos do seu requerimento de oposição à execução mediante embargos ser aquele a ter em conta para efeitos de fixação do valor da causa.

4.º - Assim, tendo a Embargante requerido que seja reconhecido um crédito da mesma sobre o Embargado, deve ser esse valor do crédito que deve ser fixado como o valor da causa, ou seja, o valor de €6.460,00.

5.º - Conclui-se que o valor da causa deve ser fixado em €6.460,00, nos termos conjugados do n.º 1 do artigo 296.º, n.º 1 do artigo 297.º, artigo 299.º e n.º 1 do artigo 304.º todos do Código de Processo Civil, pelo que a sentença deve ser revogada e alterada nesta parte em conformidade.

6.º - O contracrédito como fundamento de oposição à execução mediante embargos de executado exige que o mesmo já seja exigível judicialmente, não podendo o reconhecimento judicial ser obtido em oposição à execução.

7.º - A execução é um processo como um todo e os fundamentos da execução e da sua suspensão funcionam de forma ampla no seu âmbito, não sendo possível haver interpretações contrárias à Lei, nem incidentes que permitam atingir objetivos que não seja legalmente consignados para a mesma.

8.º - A compensação formulada pela Executada/Embargante na oposição à execução mediante embargos do crédito exequendo com um seu alegado contracrédito sobre o Exequente/Embargado, não reconhecido previamente e cuja existência pretende ver declarada na instância de oposição, não é legalmente admissível.

9.º - O crédito invocado pelo Executado/Embargante para poder ser apresentado a compensação, não pode carecer de reconhecimento judicial a efetuar nos autos de oposição à execução mediante embargos de executado, o que aconteceu nos presentes embargos, pelo que, em consequência, é inadmissível, o que terá como consequência a improcedência da oposição à execução mediante embargos e a revogação da sentença recorrida.

10.º - O Tribunal está, na sua decisão, limitado pelo pedido efetuado pelo Embargante nos embargos apresentados, pelo que, no incidente dos presentes autos, não poderá decidir extra vel ultra petitum.

11.º - O n.º 1 do artigo 609.º do Código de Processo Civil impede o Tribunal de decidir para além do que lhe é pedido pela parte e nos limites factuais pedidos pela parte.

12.º - A Embargante alega na sua petição de oposição à execução mediante embargos que é credora de metade do valor pago das prestações do crédito habitação de que ela e o Embargante eram e são devedores, tendo apenas ela suportado o pagamento dessas prestações mensais de agosto de 2018 até ao momento da apresentação dos embargos de executado, até 26 de outubro de 2021.

13.º - Por mero cálculo aritmético do documento junto aos autos emitido pela entidade credora, onde indica o valor mensal das prestações pagas e a sua metade, conclui-se que a Embargante seria apenas credora de um montante de €6.536,74, correspondente à soma de metade das prestações pagas de 01 de agosto de 2018 a 26 de outubro de 2021.

14.º - O Tribunal não poderia conhecer à Embargante um quantitativo superior ao que a mesma pediu, atento os factos por ela alegados em sede de articulado de oposição à execução.

15.º - O Tribunal, ao ter reconhecido na sentença um crédito de €8.653,01, violou o principio do pedido e decidiu extra vel ultra petitum, pelo que a decisão padece de nulidade, nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.

NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO, que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser totalmente procedente e em consequência, deve:

a) Ser declarado o valor de €6.460,00 como o valor da ação, revogando-se neste ponto a sentença recorrida.

b) Ser declarado improcedente a oposição mediante embargos por o contra crédito reclamado não se encontrar, no momento do pedido, nas condições legalmente admissíveis. Ou assim não se entendendo,

c) A sentença ser declarada nula por ter condenado o Embargante em pedido superior ao apresentado pela Embargada.

Contra alegou a embargante pugnando pela manutenção do decidido com os seguintes argumentos finais:

1- A ação em causa não foi instaurada com o objetivo de obter uma quantia certa em dinheiro, mas sim para ser reconhecido o crédito já existente e declarado em sede do processo de inventário n.º ...1..., que correu termos no Tribunal de Família e Menores da Comarca ....

2- No âmbito do processo de inventário n.º ...1... do Juízo de Família e Menores ..., Juiz ..., o exequente/embargado reconheceu o crédito da executada/embargante pelas prestações bancárias pagas à Banco 1..., S.A. desde Março de 2018 a Junho de 2022, na proporção de metade do valor pago. - vide Ponto 5.1.6. Fundamentação de facto da sentença.

3- Nos termos do n.º1 do artigo 299.º do Código de Processo Civil: “Na determinação do valor da causa, deve atender-se ao momento em que a ação é proposta...”

4- Nos termos do n.º 1 do artigo 297.° do Código de Processo Civil: "se pela ação se pretende obter qualquer quantia certa em dinheiro, é esse o valor da causa".

5- O valor da causa é estabelecido durante o processo de execução, no qual o exequente/embargado apresentou como título executivo o Acórdão do Tribunal de Coimbra, que tornou definitivo em 9 de Dezembro de 2020, condenando a executada/embargante a pagar ao exequente a quantia de €3.000,00 (três mil euros) a título de danos não patrimoniais acrescidos de juros moratórios à taxa legal de 4% a contar da data da proferimento do acórdão, 4 de Novembro de 2020, até o pagamento integral e efetivo, e a quantia de €779,25 (setecentos e setenta e nove euros e vinte e seis cêntimos) a título de danos patrimoniais acrescidos de juros moratórios à taxa legal de 4% a partir da data da notificação do pedido de indenização civil, 4 de Outubro de 2019, até o pagamento integral e efetivo.

6- O valor da presente causa é fixado em €3.887,79 (três mil, oitocentos e oitenta e sete euros e setenta e nove cêntimos), de acordo com os artigos (artigos 296.º, 297.º, n.º 1, 299.°, n.ºs 1 e 2, 304.° n.º 2, e 306.° do Código de Processo Civil).

7- O Contracrédito foi admitido e confessado expressamente pelo próprio em sede da audiência prévia realizada em 7 de Junho de 2022 no âmbito do processo de inventário n.º ...1... do Juízo de Família e Menores ..., Juiz ..., facto que como supra se referiu foi dado como provado em sede de sentença.

8- O contracrédito encontra-se nas condições legais para ser admitido.

9- Na sentença está consignado em sede de conclusão é que “a oposição à execução mediante embargos procede com a consequente extinção da execução, nos termos do artigo 732º, nº 4, do Código de Processo Civil, e levantamento, após trânsito, de quaisquer penhoras realizadas no processo de execução.”

10- Em sede de Dispositivo se diz que: “Face ao exposto, decide-se julgar procedente, por provada, a oposição à execução mediante embargos de executado e, em consequência, determinar a extinção da execução nos termos do artigo 732º, nº 4, do Código de Processo Civil com o consequente levantamento, após trânsito, de penhoras realizadas no processo de execução.”

11-Não houve qualquer condenação na sentença em pedido superior ao apresentado pela Embargada.

12-Logo a sentença não deve ser declarada nula!

4.

Sendo que, por via de regra: artºs  635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas  são, lógica e metodólogicamente,   as seguintes:

1ª-  Valor do incidente dos embargos.

2ª -  Nulidade da sentença por condenação ultra petitum.

-  Improcedência dos embargos.

5.

Foram dados como provados os seguintes factos:

5.1.1. No âmbito do processo de execução, o exequente/embargado apresentou como título executivo o Acórdão do Tribunal de Coimbra, transitado em julgado em 9 de Dezembro de 2020, que condenou a executada/embargante a pagar àquele a quantia de €3.000,00 (três mil euros) a título de danos não patrimoniais acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% a contar da data da prolação do acórdão – 4 de Novembro de 2020 - até efectivo e integral pagamento, e a quantia de €779,25 (setecentos e setenta e nove euros e vinte e seis cêntimos) a título de danos patrimoniais acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde a data da notificação do pedido de indemnização civil – 4 de Outubro de 2019 - até efectivo e integral pagamento.

5.1.2. Em 29 de Novembro de 2007, executada/embargante e o exequente/embargado firmaram um acordo com a Banco 1..., S.A. através do qual esta emprestou àqueles a quantia de €91.497,73 (noventa e um mil, quatrocentos e sete euros e setenta e três cêntimos) para construção do prédio urbano composto de casa de habitação de cave, rés-dochão e logradouro, inscrito na matriz sob o artigo ...67, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...24, sobre o qual foi constituído uma hipoteca, mediante a restituição do montante no prazo de 26 anos, através do pagamento de prestações mensais após o período de carência.

5.1.3. Desde 29 de Março de 2018 até, pelo menos, 29 de Maio de 2022, apenas a executada/embargada tem pago o valor integral das prestações mensais do acordo mencionado em 5.1.2, num total de €17.306,01 (dezassete mil, trezentos e seis euros e um cêntimo).

5.1.4. No âmbito do processo de inventário n.º ...1... do Juízo de Família e Menores ..., Juiz ..., a executada/embargante reclamou ao exequente/embargado o pagamento de metade do valor pago a título de prestações do acordo mencionado em 5.1.2..

5.1.5. O exequente/embargado impugnou o crédito mencionado em 5.1.4.

5.1.6. Na audiência prévia realizada em 7 de Junho de 2022 no âmbito do processo de inventário n.º ...1... do Juízo de Família e Menores ..., Juiz ..., o exequente/embargado reconheceu o crédito da executada/embargante pelas prestações bancárias pagas à Banco 1..., S.A. desde Março de 2018 a Junho de 2022, na proporção de metade do valor pago.

5.1.7. A executada/embargante foi notificada no âmbito da execução após a realização da penhora de ½ do bem imóvel, por expediente datado de 1 de Outubro de 2020, para, no prazo de 20 dias, pagar ao exequente ou deduzir, querendo, oposição à execução mediante embargos, sendo que, com a oposição à execução, podia cumular a oposição à penhora que pretendesse deduzir.

6.

Apreciando.

6.1.

Primeira questão.

Os embargos consubstanciam-se, por reporte à ação executiva de que são dependentes, como um incidente nominado, de índole declarativa.

 Assim, substantivamente, eles assumem um objeto próprio, ainda que conexionado com a execução, e, processualmente, têm autonomia procedimental.

Nesta senda  há que atentar no disposto no artº 304.º do CPC, a saber:

1 - O valor dos incidentes é o da causa a que respeitam, salvo se o incidente tiver realmente valor diverso do da causa, porque neste caso o valor é determinado em conformidade com os artigos anteriores.

Temos assim que o valor dos embargos será, em princípio, o valor da execução, se eles tiverem o valor desta.

Mas se tiverem valor diverso este valor é o que deve ser considerado.

No caso vertente assim acontece.

Na execução visa o exequente receber valor próximo dos 4 mil euros decorrentes de condenação judicial em processo pretérito.

Nos embargos pretende a embargante operar a compensação de um crédito de mais de seis mil euros  invocado no inventário para separação de meações e decorrente de empréstimo bancário que pagou na totalidade, mas que era da responsabilidade de ambos os cônjuges.

Temos, pois, valores diversos, quer quanto à sua génese e natureza, quer no atinente ao seu quantum.

Por conseguinte, na consideração da mencionada autonomia dos embargos, e por remissão da parte final do aludido segmento normativo para os artigos precedentes, rectius o artºs 296º nº1 e 297º nº1, tem de concluir-se que a utilidade económica do pedido da autora nos embargos e, em última análise, a quantia em dinheiro que ela quer ver relevada e considerada pelo tribunal, é a metade do que pagou pelo empréstimo, ou seja, a quantia de 6.460,00 euros.

Assim sendo, como é, aos embargos deve ser atribuído este valor e não o valor da execução.

6.2.

Segunda questão.

Dispõe o artº 609º nº1 que «a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir».

E dispõe o artº 615º nº 1 al. e) que «é nula a sentença quanto o juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir».

Há decisão “ultra petitum” sempre que o julgador não confina o julgamento da questão controvertida ao pedido formulado pelo autor ou ao pedido reconvencional deduzido pelo réu.

 Condenando em quantidade superior ou em objeto diverso o juiz excede o limite imposto por lei ao seu poder de condenar e infringe o princípio do dispositivo que assegura à parte a faculdade de circunscrever o thema decidendum.

Para que não se verifique tal vício terá de existir uma correspondência entre a pronúncia e a pretensão, isto é, a sentença não pode decidir para além do que está ínsito no pedido, nos termos formulados pelo demandante. Este princípio é válido quer para o conhecimento excessivo em termos quantitativos, quer por condenação em diverso objeto - excesso qualitativo – cfr. Ac. do STJ de 28.09.2006, dgsi.pt, p.06A2464

In casu.

Clama o recorrente que  a sentença é nula por condenar em  quantidade superior ao pedido pois que considerou um crédito de €8.653,01 quando não podia ir além de 6.536,74 euros.

E assim é.

Na petição de embargos a embargante alega apenas o crédito no montante de 6.460,00 € por prestações pagas até outubro de 2021.

Mesmo considerando o teor do documento da Banco 1... junto aos autos  e os valores nele constantes, a metade do devido pelo embargado à embargante não vai, até aquela data, além dos aludidos 6.536,74 euros.

Certo é que, perante tal documento, a embargante podia introduzir nos autos articulado superveniente, ou, ao menos, na audiência prévia que teve lugar antes da sentença, formular ampliação do pedido, pois que tal constituiria desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo – artºs 265º nº2 e 588º nºs 1 e 2  do CPC.

Mas não deduziu tal articulado nem efetivou tal ampliação.

Por conseguinte, e num processo do presente jaez, em que os princípios do dispositivo, da substanciação e da autorresponsabilidade das partes pairam e sobrelevam, a consideração pela Julgadora de valor superior ao impetrado pela embargante é ilegal e  integra-se na previsão da al. e) do nº1 do artº 615º do CPC.

Sendo que, pelo exposto, o valor do crédito da embargante a considerar não pode ultrapassar os ditos 6.460,00 €.

Porém, «Ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação.» - artº 665º nº1 do CPC.

É o que infra se fará.

6.3.

Terceira questão.

A Srª Juíza decidiu nos seguintes, sinóticos e essenciais termos:

Preceitua o artigo 847.º do Código Civil que:

“Quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor, verificados os seguintes requisitos:

a) Ser o seu crédito exigível judicialmente e não proceder contra ele excepção, peremptória ou dilatória, de direito material;

b) Terem as duas obrigações por objecto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade”.

A compensação é uma forma de extinção das obrigações quando os obrigados são simultaneamente credor e devedor, operando-se o que, em linguagem coloquial, se apoda de “encontro de contas”.

Assim, o compensante, se demandado (ou interpelado) para cumprir exonera-se do seu débito através da realização do seu crédito, na mesma lide, sendo que a compensação legal não é automática mas sempre potestativa, por depender de uma declaração de vontade, ou pedido, do titular do crédito secundário.

De facto, a lei considera de equidade não obrigar a cumprir quem também é credor do seu credor.

Segundo Menezes Cordeiro (cfr. “Direito das Obrigações”, 2001, 2.º, 219 – nota 99), a compensação de créditos ocorre “quando duas pessoas estão obrigadas uma para com a outra, os dois débitos extinguem-se pela quantidade correspondente ...”.

No caso vertente, a executada/embargante é credora da quantia correspondente a metade do valor total das prestações que pagou à Banco 1..., S.A., da qual o exequente/embargado se reconheceu devedor, sendo, assim, este crédito certo, líquido e exigível.

À data de 29 de Maio de 2022, o valor do crédito a favor da executada/embargante é de €8.653,01 (oito mil, seiscentos e cinquenta e três euros e um cêntimo) por corresponder a metade do valor total pago.

Por sua vez, na presente data – 31 de Outubro de 2022 – o crédito a favor do exequente/embargado reconhecido no acórdão ascende à quantia total de €4.113,83 (quatro mil, cento e treze euros e oitenta e três cêntimos):

- €3.000,00 (três mil euros) a título de danos não patrimoniais acrescidos de juros de mora à taxa legal de 4% a contar da data da prolação do acórdão – 4 de Novembro de 2020 - até à presente data, sendo o valor dos juros na presente data de €238,68 (duzentos e trinta e oito euros e sessenta e oito cêntimos);

- €779,25 (setecentos e setenta e nove euros e vinte e seis cêntimos) a título de danos patrimoniais acrescidos de juros de mora à taxa legal de 4% desde a data da notificação do pedido de indemnização civil – 4 de Outubro de 2019 – até à presente data, sendo o valor dos juros na presente data de €95,90 (noventa e cinco euros e noventa cêntimos).

Acresce àquele valor o montante devido a título de sanção pecuniária compulsória legal prevista no artigo no n.º 4 do artigo 829.º A do Código Civil, ou seja, juros compulsórios correspondentes a 5% de €3.779,25 (três mil setecentos e setenta e nove euros e vinte e cinco cêntimos) cuja exigibilidade não depende de pedido formulado a esse título pelo credor (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, em comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 12 de Setembro de 2019, no processo n.º 8052/11.1TBVNG-B.P1.S1, disponível em https://blogippc.blogspot.com/2020/02/jurisprudencia-2019-172.html. Assim também, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, datados de 8 de Novembro de 2018, no processo n.º 1772/14.0TBVCTS.G1.S2, de 12 de Setembro de 2019, no processo n.º 8052/11.1TBVNG-B.P1.S1, de 23 de Fevereiro de 2021, no processo n.º 708/14.3T8OAZ-A.P1.S1, do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 16 de Fevereiro de 2018, no processo n.º 681/10.7TBCTB-B.C1, do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 1 de Março de 2018, no processo n.º 6432/06.3TBGMR-F.G1, disponíveis em www.dgsi.pt).

A sanção pecuniária compulsória é devida desde o trânsito em julgado da decisão condenatória até efectivo e integral pagamento que, no caso da compensação, corresponderá à data da compensação.

Do valor apurado reverte 50% para o exequente e 50% para o Estado, sendo que, em caso de extinção da execução, competirá ao Ministério Público promover a execução da sanção pecuniária compulsória nos termos do artigo 35.º, n.º 1, do Regulamento das Custas Processuais.

A título de sanção pecuniária compulsória é devido o valor total de €357,73 (trezentos e cinquenta e sete euros e setenta e três cêntimos), sendo 50% para o exequente/embargado, ou seja, €178,87 (cento e setenta e oito euros e oitenta e sete cêntimos).

O valor total devido ao exequente/embargado é de €4.292,70 (quatro mil, duzentos e noventa e dois euros e setenta cêntimos).

Ora, não há dúvidas que quer a executada/embargante quer o exequente/embargado são reciprocamente devedores numa determinada quantia em dinheiro, assim, numa obrigação fungível.

Desta forma, deverá deduzir-se à quantia exequenda em dívida na presente data – €4.292,70 (quatro mil, duzentos e noventa e dois euros e setenta cêntimos) – a quantia de €8.653,01 (oito mil, seiscentos e cinquenta e três euros e um cêntimo), o que manifestamente implica que a obrigação exequenda se extingue por compensação.».

Esta argumentação alcança-se, desde logo em tese, curial; e, para o caso concreto e atentos os seus contornos fáctico-circunstanciais apurados, vislumbra-se adequada, exceto na consideração do montante do contra crédito da embargante, nos termos supra mencionados.

Em seu abono dir-se-á mais o seguinte.

Perante o estatuído no artº 847 do CC e para que a compensação se verifique e possa ser invocada é pois necessário que estejam presentes os seguintes requisitos:

1º - A existência de dois créditos recíprocos entre duas pessoas;

2º - A exigibilidade do crédito do autor da compensação;

3º - Que as obrigações sejam fungíveis e da mesma espécie e qualidade;

4º - A não exclusão da compensação pela lei;

5º - A declaração da vontade de compensar - artº 848º.

«Para que possa livrar-se da sua dívida por compensação, é essencial que o devedor seja, por outro lado, credor do seu credor» - Antunes Varela, Das obrigações em Geral, 2ª ed. 2º Vol. p.164.

« A compensação traduz-se fundamentalmente na extinção de duas obrigações, sendo o credor de uma delas devedor na outra, e o credor nesta última devedor na primeira. É, assim, um encontro de contas, que se justifica pela conveniência de evitar pagamentos recíprocos» -Almeida Costa in Direito das Obrigações, 3ª ed. p.797.

Efetivamente: «a compensação baseia-se na conveniência de evitar pagamentos recíprocos quando o devedor tem, por sua vez, um crédito contra o seu credor. E funda-se ainda em julgar equitativo que se não obrigue a cumprir aquele que é, ao mesmo tempo, credor do seu credor, visto que o seu crédito ficaria sujeito ao risco de não ser integralmente satisfeito, se entretanto se desse a insolvência da outra parte» -  Vaz Serra, Compensação, BMJ n.º 31, p. 13

Nem obstando à compensação o facto de não se provar o valor dos danos ou defeitos.

Pois que «a iliquidez da dívida não impede a compensação» -  nº3 do artº 847º do CC.

No caso vertente.

Está em causa a verificação do requisito da exigibilidade do crédito da invocante da compensação.

O recorrente pugna pela não verificação de tal requisito pois que: «O contra crédito como fundamento de oposição à execução mediante embargos de executado exige que o mesmo já seja exigível judicialmente, não podendo o reconhecimento judicial ser obtido em oposição à execução.»

 Mas, sdr, não é assim.

Certo é que a exigibilidade da obrigação necessária à invocação da compensação é a exigibilidade em sentido forte, ou seja, teremos de estar perante uma obrigação que, não sendo voluntariamente cumprida, dá direito à ação de cumprimento e à execução do património do devedor –  cfr. Acs. do STJ de 14.02.2008, p. 07B4401 e de  in dgsi.pt., como os infra referidos.

Efetivamente, e como constituem doutrina e jurisprudência inequivocamente maioritárias: «a compensação só pode operar-se no caso de o autor da compensação comprovar a exigibilidade do seu crédito; e, “para efeitos de compensação, um crédito só se torna exigível quando está reconhecido judicialmente…» - Ac. do STJ de 12.09.2013, p. 5478/06.6TVLSB.L1.S1.

Porém não é necessário que o crédito esteja reconhecido previamente , vg. em ação pretérita.

Por outras palavras, a exigibilidade em questão reporta-se somente à possibilidade de o compensante  poder impor à outra parte a realização coativa do seu crédito – Cfr. Ac. RP de 14-02-2008, p.0736864, in dgsi.pt.

Na verdade, reitera-se:  «É judicialmente exigível a obrigação que, não sendo voluntariamente cumprida, dá direito à acção de cumprimento ou à execução do património do devedor.» - Ac. do STJ de 11.07.2019, p. 1664/16.9T8OER-A.L1.S1.

(sublinhado nosso)

Havendo até quem entenda, versus o defendido pelo recorrente, que: «este reconhecimento pode ocorrer em simultâneo na fase declarativa do litígio, contrapondo o réu o seu crédito, como forma de operar a compensação» - Ac. do STJ de 12.09.2013 cit., e, entre outros, Ac. do STJ de 14.03.2013, p. 4867/08.6TBOER-A.L1.S1.

Ora assim sendo, como é, a exigibilidade está aqui presente.

Na verdade, a embargante invocou um contra crédito perante o embargado que   é oriundo de um negócio jurídico celebrado entre as partes no processo de inventário, rectius, um reconhecimento/confissão do embargante perante a embargada ali interessada –cfr. ponto 5.1.6. dos factos provados.

Perante tal reconhecimento entrou na esfera jurídico patrimonial da embargante o direito de crédito sobre os valores reconhecidos pelo embargado.

Pelo que, em caso de incumprimento deste assiste aquela jus a exigir o seu cumprimento via judicial.

Ou, como agora está a fazer, a invocar tal crédito para operar a compensação nos termos e pelos valores que plasmou na pi.

Está, pois, satisfeito o requisito da exigibilidade para os efeitos do artº 847º do CC.

De notar ainda que: «Nos casos em que estamos perante um contracrédito do réu de montante superior ao do autor e aquele pede, na contestação da acção que lhe foi movida por este, a compensação de tal crédito, estaremos perante um pedido de natureza reconvencional (compensação pedido).

Porém, nos casos em que, sendo o contracrédito do réu de montante inferior ao crédito do autor, aquele apenas alega tal crédito, não pedindo a condenação do autor no seu pagamento, mas invocando matéria factual que, em caso de provada, reduzirá ou impedirá a produção dos efeitos jurídicos dos factos alegados pelo autor, estaremos perante a dedução de uma excepção peremptória (compensação excepção)» - Ac. do STJ de s. 28.05.2009, p. 09B0676.

Em suma: quando o valor que o réu quer ver compensado é igual ou inferior ao montante impetrado pelo autor a compensação funciona como exceção perentória.

Quando é superior e o réu pretende obter o remanescente/excesso terá de expressamente deduzir tal pedido em termos reconvencionais: artº 266º nº2 al. c) do CPC. Estamos perante a figura que certa doutrina denomina de reconvenção a meia haste.

No caso sub judice o valor compensante excede o valor do pedido inicial do  exequente.

Mas a executada/embargante não exerceu o seu direito a ser indemnizada do excesso.

Destarte, urge apenas operar a compensação pelo valor de 6.460,00 euros, o qual, não obstante, e considerando que o valor exequendo é ainda inferior, tem ainda virtualidade bastante para operar a extinção da execução.

Improcede, nesta vertente substancial e definitiva, o recurso.

(…)

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda fixar aos embargos o valor de  6.460,00 euros; mais se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas pelo recorrente.

Coimbra, 2023.03.28.