Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
190/12.0GARSD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: SUSPEITO
CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDO
ACTOS CAUTELARES DE PROVA
PROVA INDIRETA
Data do Acordão: 02/22/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO CRIMINAL DE LAMEGO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 58.º A 61.º, 125.º, 127.º, 249.º, 355.º A 357.º, DO CPP; 349 DO CC
Sumário: I - Um suspeito, enquanto tal, só pode ser validamente ouvido depois de ser constituído arguido.

II - Se a suspeita surge posteriormente, a regra é sempre a mesma: no momento em que a suspeita surge a inquirição tem que ser suspensa para se proceder à constituição do suspeito como arguido, nos termos referidos. Feito isto a diligência poderá prosseguir.

III - Os órgãos de polícia podem executar actos cautelares com vista à conservação da prova, com excepção das informações prestadas por pessoa que, no momento em que é ouvida ao abrigo daquela mesma norma, já seja suspeita da prática de ilícitos criminais.

IV - Em tais casos, ao ouvir as pessoas que possam ter informações relevantes ao apuramento da verdade, o órgão de polícia criminal actua dentro da legalidade, com respeito pela lei, e, por isso, as informações que recolher podem ser validamente consideradas, mais tarde, pelo tribunal, aquando da formação da sua convicção sobre os factos a julgar.

V - Das provas, irrefutáveis, feitas podem retirar-se ilações desfavoráveis ao arguido, no caso de elas exigirem uma resposta que o arguido está em condições de fornecer mas que opta por não apresentar.

VI - Neste caso, se as provas, interpretadas de acordo com o bom senso – as nossas regras da experiência comum de vida -, não permitirem outra explicação plausível, então será o arguido considerado culpado.

Decisão Texto Integral:





Acordam na 4ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra

RELATÓRIO

1.

O arguido A... foi condenado na pena de 10 meses de prisão, substituída por 300 dias de multa, à taxa diária de 5,50 €, pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, dos art. 203º, nº 1 e 204º, nº 2, e), do Código Penal.

2.

O arguido recorreu, retirando da motivação as seguintes conclusões:

«1-) O facto nº1 dos factos julgados provados, com todo o respeito, não deveria ter sido julgado provado como foi, nomeadamente no que a identificação do Recorrente diz respeito;

2-) As declarações da testemunha D... e o auto de apreensão por si elaborado, são nulos por violação do disposto nos artigos 58º a 61º e 64º, nº1 alínea c-) do C. P. Penal;

3-) A nulidade das declarações da testemunha e do auto de apreensão, implicam que o facto provado nº 1, seja dado como não provado;

4-) Declarando a nulidade das declarações da testemunha D... e do auto de apreensão por si elaborado e, consequentemente, declarando como não provado o facto supra referido, nomeadamente, no que diz respeito á identificação do recorrente e absolvendo o Recorrente, será feita a habitual e costumada justiça».

3.

O recurso foi admitido.

O Ministério Público respondeu, defendendo a manutenção da sentença recorrida.

Sobre a nulidade invocada refere que o tribunal não valorou quaisquer conversas mantidas com o arguido. Valorou, sim, o auto de apreensão e as declarações da testemunha que o elaborou e que disse que os bens apreendidos e subtraídos foram entregues de forma livre e voluntária pelo arguido, que os foi buscar à sua residência. Portanto, o que foi valorado foi o facto de o arguido ter os bens furtados na sua posse.

Quanto à nulidade da apreensão, refere que se tratou de uma medida cautelar de polícia, destinada a preservar a prova.

Quanto ao respectivo auto, foi elaborado antes da constituição de arguido e também ao abrigo das referidas medidas. Nesta altura não havia suspeitos pelo que não havia a obrigação de constituição de arguido.

 Diz, ainda, que esta invocada nulidade não se insere no elenco do art. 119º do C.P.P., sendo que nenhuma outra norma sanciona com a nulidade a situação. Também não se inclui no elenco do art. 120º pelo que mesmo que padecesse de tal vício há muito se encontraria sanado.

Quanto à valoração do depoimento do órgão de polícia criminal, o mesmo foi ouvido relativamente à diligência de prova em que teve intervenção directa, pelo que não se trata de depoimento indirecto.

 Sobre o silêncio do arguido, ou a sua falta a julgamento, não tem a virtualidade de apagar as provas que tenham sido recolhidas.

E quanto às provas refere que o tribunal a quo fundamentou de forma adequada e de acordo com as regras de experiência a sua convicção formada, que determinou a condenação.

Nesta Relação, o Sr. P.G.A. emitiu parecer de concordância.

Refere que da fundamentação transparece que não foram valoradas provas proibidas.

A situação retratada tem sido objecto de abundante jurisprudência dos tribunais superiores, que tem acolhido de forma dominante a solução adoptada quanto à validade e possibilidade de valoração do auto de apreensão e dos depoimentos dos órgãos de polícia criminal sobre as medidas cautelares e conservatórias da prova levadas a cabo, de que tiveram uma directa percepção e das quais resultaram elementos de prova material.

Refere, de novo, que é bem explícita a fundamentação da sentença recorrida sobre o percurso de formação da convicção. E aqui o tribunal socorreu-se de provas indirectas, mas também de provas directas, que determinaram a colocação do arguido e do seu veículo no local dos factos, no dia em que estes ocorreram.

Foi cumprido o disposto no nº 2 do art. 417º do C.P.P..

4.

Proferido despacho preliminar foram colhidos os vistos legais.

Realizada a conferência cumpre decidir.

 


*

FACTOS PROVADOS

5.

Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:

«1 – No dia 17 de Outubro de 2012, no período compreendido entre as 12h 00m e as 14h 30m, o arguido A... e outros indivíduos não concretamente apurados, dirigiram-se ao imóvel sito no Lugar Anho Bom de Cima, em Anreade, Resende, residência, em férias, de B... e C... .

2 – Aí chegados dirigiram-se ao referido imóvel.

3 – Acederam à janela do imóvel, subindo o muro que dista entre a referida janela e o chão, e de forma não concretamente apurada procederam à sua abertura, e por aí introduziram-se no interior da residência.

4 – Uma vez lá dentro retiraram uma carta de condução, uma carta vital e um cartão de identificação emitidos pelas entidades francesas, um cartão de contribuinte, um cartão de débito do BPI, um cartão europeu de saúde, mil euros em notas, um relógio de pulso da marca Casio no valor de € 20,00, um par de brincos em ouro no valor de € 100,00, oito cheques do BPI, vinte notas de 1 dólar americano, diversa documentação de contas bancárias e diversa documentação relativa à propriedade de imóveis, tudo pertença dos lesados B... e C... .

5 – Após o que, puseram-se em fuga, levando consigo os bens supra descritos.

6 – Com a actuação descrita, causaram um prejuízo patrimonial aos ofendidos, pelo menos, no valor dos bens subtraídos.

7 - Agiram de forma deliberada, livre e conscientemente, em conjugação de esforços e intentos com o propósito, conseguido, de se apoderarem dos bens que se encontrassem no interior da referida residência, bem sabendo que actuavam contra a vontade dos seus legítimos donos, mais sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. 8. Os arguidos I... e A... não têm antecedentes criminais.

9. O arguido H... já foi anteriormente condenado tal como consta do certificado do registo criminal de fls. 351 a 353, que aqui se dá como reproduzido».

6.

O tribunal recorrido motivou a sua decisão sobre os factos provados e não provados nos seguintes termos:

«… a convicção do tribunal formou-se com base na conjugação:

- o arguido H..., usando um direito que a lei lhe concede não prestou declarações em sede de audiência de julgamento. Conjugado com o depoimento das testemunhas:

- G... , militar da GNR de Resende, esclareceu que se deslocou ao local após os factos terem ocorrido, que falou com a ofendida que lhe relatou o que lhe tinha sido retirado do interior da habitação; verificou a existência de uma janela aberta, e marcas na terra; esclareceu ainda quais as diligências no âmbito do inquérito que efectuou; confirmou o teor do auto de noticia, o aditamento e o auto de apreensão de fls. 3 a 7.

- B... , ofendida nos presentes autos, confirmou como é que encontrou a habitação quando chegou, quais os objectos que lhe retiraram, por onde é que tinham entrado; esclareceu ainda que no sentido de tentar saber quem foram os autores dos factos, a testemunha F... lhe contou que tinha visto no local um ”Honda Civic branco”; e que na semana anterior o seu marido tinha visto este mesmo carro perto da habitação e um individuo com um tatuagem no pescoço o abordou.

Que se deslocou às Bombas da Galp, em Resende e que nas filmagens viu o aludido carro. Mais afirmou que através da GNR de Baião recuperou os documentos; confirmou que a fls. 18 a 25 a assinatura é sua.

- C... , marido da ofendida, confirmou como é que encontrou a habitação quando chegou, quais os objectos que lhe retiraram, por onde é que tinham entrado; esclareceu ainda que no sentido de tentar saber quem foram os autores dos factos, a testemunha F... lhe contou que tinha visto no local um ”Honda Civic branco”; e que na semana anterior o viu este mesmo carro perto da habitação e um individuo com um tatuagem no pescoço o abordou. Mais afirmou que ao ver os fotogramas reconhece o individuo que viu na semana  anterior.

- E... , militar da GNR de Baião, confirmou o aditamento, auto de apreensão e auto de entrega de fls. 14 a 25; esclareceu ainda porque que razão se deslocou à residência do A... e como é que o mesmo procedeu à entrega dos documentos da ofendida.

- F... , pessoa que no dia dos factos viu um “Honda Civic Branco junto da habitação da ofendida, com três pessoas no interior; foi confrontado com os fotogramas  de fls. 100 a 104.

Quanto aos antecedentes criminais atendeu-se aos certificados de registo criminal junto aos autos.

Teve-se ainda em consideração o auto de notícia de fls. 3 a 4, o aditamento de fls. 6 a 9, o aditamento de fls. 14 a 17, termo de entrega de fls. 18, auto de reconhecimento de fls. 19, auto de apreensão de fls. 20 a 25, informação da Conservatória do Registo Automóvel de fls. 70, extracção de fotogramas de fls. 80 a 81, fls. 90 a 91, e 100 a 105.

Da questão da nulidade do auto de apreensão, invocada em sede de alegações.

Quando houver indícios de que os objetos relacionados com um crime ou que possam servir de prova, se encontram em lugar reservado ou não livremente acessível ao público, é ordenada busca (art. 174º nº 2 CPP).

As buscas (tal como as revistas) são autorizadas ou ordenadas por despacho pela autoridade judiciária competente, devendo esta, sempre que possível, presidir à diligência - art. 174º nº 3 CPP.

As apreensões são autorizadas, ordenadas ou validadas por despacho da autoridade judiciária (art. 178º nº 3 CPP). A regra é a autorização ou a ordem da busca por despacho da autoridade judiciária competente (art. 174º nº 3 CPP). Excepções a essa regra são desde logo as previstas no art. 174º nº 4 do CPP e no art. 251º do C.P.P. (medida cautelar de polícia).

Estando em causa o direito fundamental à inviolabilidade do domicílio (art. 34º nº 1 da CRP) – enquanto “forma de tutela do direito à reserva da vida privada” (art. 26 nº 1 da CRP) – a busca domiciliária segue o regime previsto no art. 177º do CPP.

A intervenção jurisdicional com vista à tutela e garantia dos direitos fundamentais das pessoas significa, assim, o acolhimento da “afirmação de que o direito processual penal é verdadeiro direito constitucional aplicado” … No caso do artigo 251.º trata-se de uma nítida medida cautelar, de uma atividade típica de polícia, visando evitar a perda de um meio de prova que poderá desaparecer se não forem tomadas cautelas imediatas, por parecer iminente a fuga de um suspeito ou por existir fundada razão de que o lugar onde ele se encontra oculta objetos relacionados com o crime, suscetíveis de servir a prova, e que de outra forma poderiam perder-se.

O artigo 251º aplica-se naturalmente a situações fora de flagrante delito, bastando que se verifique uma das situações ali previstas.

A apreensão neste autos, em si mesma foi efectuada como medida cautelar de polícia acto seguido aos acontecimentos e como meio de preservação de prova, sendo certo que, se é verdade que auto de apreensão e apreensão são coisas bem distintas ainda que complementares.

Assinala-se ainda que o auto de apreensão foi elaborado antes da constituição como arguido, ao abrigo de medidas cautelares de polícia exercidas nos termos do artº 251º do CPP.

Consequentemente, entendemos que a circunstância de o então suspeito A... não ter de imediato sido constituído arguido não implica que a apreensão em si não seja válida e não sofre de qualquer nulidade e o auto que a formaliza.

Mas, em todo o caso, a questão processual suscitada não se inclui no elenco das nulidades insanáveis previsto no art. 119º do C. Processo Penal, nem nenhuma outra disposição deste código como tal a comina.

Por outro lado, também não vemos que possa tratar-se de nulidade sanável, relativa ao inquérito, designadamente, a da alínea d) do nº 2 do art. 120º do C. Processo Penal sendo certo que, ainda que assim fosse, há muito se encontraria sanada (cfr. nº 3 do art. 120º citado diploma legal).

Quanto à valoração do depoimento da testemunha E... órgão de polícia criminal, o mesmo foi ouvido relativamente à diligência de prova em que teve intervenção directa. O depoimento não é pois indireto, na medida em que relata a ocorrência vivida pela testemunha. Não se trata de depor sobre declarações recebidas do arguido mas de relatar diligências de investigação efetuadas pelo órgão de polícia criminal, dos vestígios do crime, da possibilidade de determinado suspeito poder ser constituído arguido.

O silêncio do arguido, ou a sua ausência em sede de audiência de julgamento, não pode apagar o caminho percorrido pelos investigadores até à constituição como tal, dentro dos critérios da investigação e dos princípios da boa-fé, com respeito pela dignidade e da integridade física e moral dos intervenientes … o militar da GNR contactou com o arguido H... no âmbito de investigações preliminares para que estava legitimados nos termos do artigo 249º do CPP, procurando nos termos do n.º 2 desse preceito colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime e a sua reconstituição.

Neste contexto entendemos que inexistia a obrigação de constituir como arguido, a pessoa que ainda não tinha a qualidade de suspeita. 

Posto isto, analisemos a prova produzida.

Verificamos que não existe prova directa dos factos, nomeadamente por alguém ter visto os arguidos cometerem o crime.

A prova pode ser directa ou indirecta/indiciária …

A nossa lei processual penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova indiciária, pelo que o fundamento da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, sendo embora pessoal, deve ser sempre motivada e objectivável, nada impedindo que, devidamente valorada, por si e na conjugação dos vários indícios e acordo com as regras da experiência, permita fundamentar a condenação.

Analisando toda a prova produzida temos de concluir que os depoimentos das testemunhas, que se nos afiguraram imparciais, não foi percetível nada que pudesse colocar em causa a veracidade do seu depoimento.

… será admissível o estabelecimento de presunções judiciais, de modo que perante certos factos conhecidos se adquira ou se admita a realidade de um facto até então ignorado, quando exista a convicção, determinada pelas regras da experiência, de que este é a consequência normal e típica daqueles outros que já se verificaram, o que sucederá quando exista uma forte e credível conexão causal entre o facto conhecido e o facto adquirido, o que não sucede quando o facto base não é seguro ou então se entre um e outro se verifica uma relação demasiado longínqua.

… tendo presentes estas considerações de direito e os elementos de prova produzidos em sede de julgamento, temos que resultou apurado com certeza como é que se procedeu à entrada na habitação e que foram retirados os objectos, e isto assim é pelos vestigios que ficaram no local e os objectos eu foram recuperados e reconhecidos pela sua proprietária.

No que concerne à autoria dos factos, é certo que ninguém viu os arguidos a pratica-los. No entanto, não restam dúvidas ao Tribunal sobre a autoria dos mesmos, pelo menos relativamente ao arguido A... , porquanto o carro do arguido foi visto no local uma semana antes pelo também ofendido C... , no dia dos factos a viatura e arguido foram visto nas Bombas da Galp de Resende, perto do local dos factos, e momentos antes a sua viatura foi vista em frente à habitação pela testemunha F... .

Ao que acresce que pouco tempo após os factos o A... procedeu à entrega dos documentos pessoais da ofendida à GNR.

Assim, temos como razoável e racional o estabelecimento da presunção judicial de que o arguido A... foi um dos autores dos factos que se deram como provados. Quanto aos arguidos I... e H... apenas existem indícios, mas que não são suficientes para que o tribunal possa concluir que os mesmos também tiveram intervenção na prática dos factos que se deram como provados, uma vez quanto a esta matéria não foi produzida prova suficientemente sólida e que permitisse ao tribunal adquirir a certeza necessária».


*

DECISÃO

Atento o disposto no art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., são as seguintes as questões a decidir:

I – utilização, por parte do tribunal recorrido, de provas nulas para fundamentar a convicção

II – impugnação da decisão sobre a matéria de facto


*

            Da fundamentação da sentença recorrida resulta que o tribunal assentou a convicção que formou, de que o arguido A... cometeu o furto julgado neste processo, nomeadamente no documento de fls. 15 a 17 – aditamento ao auto de notícia -, e no depoimento do seu subscritor, E... , cabo da GNR.

            Consta do referido documento que em 21-10-2012 o posto foi contactado para que os guardas de serviço se deslocassem às bombas de combustível da Repsol, Eiriz, Gôve, Baião, por a queixosa, que ali se encontrava, querer dar informações sobre o assalto que tinha havido à sua residência.

Também consta que quando os guardas chegaram a ofendida comunicou que devido a informações recebidas concluiu que o autor do furto tinha sido A... , possuidor do veículo Honda, branco, MQ (...), e que ele lhe tinha levado documentos muito importantes.

Mais consta que depois disto os guardas deslocaram-se à residência de A... e como ele não estava regressaram no dia seguinte, 22/10, cerca das 10h, e confrontaram-no com o relato da ofendida, que disse ter sido fora ele o autor do furto e que se tinha deslocado à residência furtada no seu veículo, acima referido, e quando foi perguntado pelos documentos ele respondeu que os tinha em casa, tendo-se prontificado a entregá-los, o que fez. Entregou três carteiras com diversos documentos e outros pertences da ofendida, entre os quais sete cheques do banco BPI em nome de C... , seu marido.

Diz-se, também, que os referidos bens foram apreendidos e foram, depois, entregues à ofendida.

            Na altura A... não foi constituído arguido.

            E... disse, para além do mais, o que consta do documento acima mencionado, isto é, que a ofendida lhe disse que o arguido foi um dos autores do furto à sua residência e que houve testemunhas que tinham visto o veículo dele no local.

            Também disse que nesse dia foi a casa do arguido mas como ele não estava voltou lá no dia seguinte. Neste dia o arguido confirmou que tinha cometido o furto, foi buscar as carteiras que tinha tirado e entregou-as ao depoente.


*

            O arguido alega que o auto referido e as declarações prestadas pela testemunha, «nomeadamente quando refere as conversas que manteve com o recorrente, são nulas por violação do disposto nos artigos 58º a 61º e 64, nº 1, alínea c) do C. P. Penal».

            O que pretende dizer com esta alegação explica-o depois. Refere o arguido que «o principio da legalidade do processo e o estatuto do arguido (cf.,v.g., os arts.2º, 56.º e ss., 262.º e ss., 275.º, 355.º a 357.º, com especial destaque para o n.º 7 do art.356.º e n.º2 do art. 357.º), impedem que sejam consideradas como prova depoimentos de órgãos de polícia criminal, encarregados de actos de investigação, referindo declarações do arguido (ou de alguém que devesse ser constituído como tal – cf. Arts.58.º e 59.º do C.P.P.), mesmo que sob a forma de conversas informais, a esses órgãos de policia criminal encarregados de actos de investigação, quando essas declarações não forem reduzidas a auto».

Obtida a notícia de um crime há que iniciar a investigação no mais curto espaço de tempo, investigação esta cuja competência pertence a autoridade judiciária própria, ou seja, o Ministério Público [1].

No entanto, conforme dispõe o nº 1 do art. 249º do C.P.P., «compete aos órgãos de polícia criminal, mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária competente para procederem a investigações, praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova».

E nos termos das al. b) e c) do nº 2 desta norma compete aos OPC´s, nomeadamente, «colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime e a sua reconstituição» e «proceder a apreensões no decurso de revistas ou buscas ou em caso de urgência ou perigo na demora, bem como adoptar as medidas cautelares necessárias à conservação ou manutenção dos objectos apreendidos».

A lei estabelece, nesta norma, a chamada competência cautelar própria, ao abrigo da qual os órgãos de polícia podem executar actos cautelares com vista à conservação da prova. Entre estes actos de conservação de prova inclui-se, como diz a lei, o poder de inquirir pessoas que possam ter informações relevantes à descoberta da verdade. Sendo verdade que estas pessoas não têm, no momento, qualquer estatuto, e que nem sequer são obrigadas a depor, também é verdade que podem e devem ser inquiridas por aquelas entidades se isso se afigurar relevante e se elas nisso acederem, à luz daquele normativo.

Em tais casos ao ouvir as pessoas que possam ter informações relevantes ao apuramento da verdade o órgão de polícia criminal actua dentro da legalidade, com respeito pela lei, e por isso as informações que recolher podem ser validamente consideradas, mais tarde, pelo tribunal, aquando da formação da sua convicção sobre os factos a julgar.

E se estas informações forem prestadas por pessoas que, posteriormente, venham a ser constituídas arguidas, nem por isso as declarações anteriormente prestadas perdem validade.

Mas há uma restrição a fazer ao âmbito de aplicação desta norma: a validade das informações prestadas ao abrigo da competência cautelar própria dos OPC’s não abrange as informações prestadas por pessoa que, no momento em que é ouvida ao abrigo daquela mesma norma, já seja suspeita da prática de ilícitos criminais.

Vejamos porquê.

Diz a lei, no nº 1 do art. 57º do C.P.P., que é arguido aquele contra quem for deduzida acusação ou requerida instrução.

Por outro lado, diz o art. 58º, nº 1, al. a), que é obrigatória a constituição de arguido logo que correr inquérito contra pessoa determinada.

Para além disso se, durante qualquer inquirição feita a pessoa que não é arguido, surgir fundada suspeita de crime por ela cometido, a entidade que procede ao acto suspende-o imediatamente e comunica à pessoa que a partir daquele momento deve considerar-se arguida num processo penal, indicando-lhe os direitos e deveres processuais daí decorrentes – art. 59º, nº 1, e 58º, nº 2, do C.P.P. 

Ou seja, a partir do momento em que uma qualquer pessoa se torna suspeita num processo penal – no âmbito do qual até poderia estar a ser ouvida ao abrigo da competência cautelar própria dos OP’s -, a inquirição que eventualmente esteja em marcha terá que ser suspensa e a pessoa tem que ser constituída arguida.

Neste momento tudo muda: o seu estatuto muda e mudam, consequentemente, as regras legais aplicáveis, pois é a partir daqui que os “direitos do arguido”, como tal contemplados na lei, passam a ser invocáveis – art. 259º e 59º, ambos do C.P.P.

Como resulta do auto e do depoimento da testemunha quando esta abordou o arguido tinha a informação que ele teria sido o autor do furto.

Conjugando o art. 61º, nº 1, do C.P.P., que enumera os direitos processuais dos arguidos, com o disposto no art. 59º resulta que se à abordagem pelo OPC preside uma suspeita de prática de ilícito penal, então o indivíduo terá, logo inicialmente, que ser constituído arguido, antes de qualquer declaração sobre os factos. Um suspeito, enquanto tal, só pode ser validamente ouvido na qualidade de suspeito depois de ser constituído arguido. Se a suspeita surge depois, a regra é sempre a mesma: no momento em que a suspeita surge a inquirição tem que ser suspensa para se proceder à constituição do suspeito como arguido, nos termos referidos. Feito isto a diligência poderá prosseguir.

No caso quando a testemunha falou com o arguido já tinha a informação que teria sido ele o autor do furto. Portanto, havia uma suspeita da autoria do crime comunicado.

E quando conversaram o arguido confirmou as suspeitas.

Então, o que havia a fazer era proceder, formalmente, à constituição do suspeito como arguido, informá-lo dos respectivos direitos e deveres e, depois, reduzir a conversa que se seguisse a auto, nos termos da lei.

Portanto, o arguido tem razão quando alega que a conversa mantida com o guarda E... não pode ser considerada em sede de formação da convicção.

Mas a verdade é que essa conversa não foi considerada.

Recordando, o tribunal recorrido relevou o depoimento prestado por esta testemunha na medida em que «… confirmou o aditamento, auto de apreensão e auto de entrega de fls. 14 a 25; esclareceu ainda porque que razão se deslocou à residência do A... e como é que o mesmo procedeu à entrega dos documentos da ofendida».

Portanto, a testemunha explicou os motivos que o levaram a casa do arguido, ou seja, confirmou o conteúdo do documento de fls. 14 a 17 (aditamento ao auto de notícia), a entrega dos objectos por parte do arguido, bom como a sua posterior apreensão (doc. de fls. 18 a 25).

Este relato nada tem a ver com a narração do conteúdo da conversa mantida com o arguido.

Para além disso o depoimento, nos exactos termos em que foi considerado, é prova directa, pois a testemunha relatou aquilo de que teve conhecimento directo por via da sua intervenção pessoal.

Quanto à nulidade imputada à apreensão, por ter sido realizada antes da constituição de arguido, decidiu o tribunal recorrido que se tratou de medida cautelar de polícia, portanto válida.

Como acima dissemos o nº 1 do art. 249º do C.P.P. confere aos OPC´s o poder/dever de praticarem os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova, nomeadamente procederem a apreensões (nº 2, al. c)), mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária competente para procederem a investigações.

E a circunstância em que a apreensão realizada nos autos teve lugar enquadra-se na norma. Citando a sentença recorrida, neste enquadramento «a circunstância de o então suspeito A... não ter de imediato sido constituído arguido não implica que a apreensão em si não seja válida e não sofre de qualquer nulidade e o auto que a formaliza».

Agora e quanto às provas que conduzem ao arguido, da leitura da sentença recorrida resulta, como o arguido alega, que ninguém o viu a furtar.

Assim, se à decisão fosse essencial prova directa não podíamos concluir pela condenação do arguido.

Mas se não há provas directas, há outras provas de que o tribunal recorrido se serviu e que, em nosso entendimento, são suficientes à formação da convicção de que foi o arguido o autor do furto.

Temos, desde logo, que o arguido entregou à testemunha os objectos furtados no interior da residência da ofendida.

Para além disso o veículo do arguido foi visto nas imediações da residência furtada e, de novo, no dia dos factos a viatura e arguido foram vistos nas Bombas da Galp de Resende, perto daquela residência, e momentos antes a viatura foi vista em frente à habitação por F... .

Portanto, estes dados levaram o Ministério Público a concluir que foi o arguido o autor do furto.

Daí a acusação.

Sabendo o arguido que estes factos levariam a concluir pela sua intervenção no crime nem por isso cuidou de dar uma qualquer explicação os artigos furtados estarem na sua posse que arredasse aquela conclusão, que invalidasse um tal juízo.

Sendo certo que o arguido não tem o ónus de se defender para não ser condenado, a verdade é que conhecendo as provas existentes, que sabia que apontavam para a sua participação no furto, nem assim curou de desfazer aquilo que, na sua tese, é um erro de julgamento. Sabendo o arguido que havia provas sérias contra si cabia-lhe desmontar o juízo que, segundo as regras da experiência comum - regras estas legalmente previstas - se formariam perante aquelas provas explicando, então, como é que estavam em seu poder bens furtados.

E só ele podia dar tal explicação.

Nos termos do art. 125º do C.P.P. são admissíveis em processo penal as provas que não forem proibidas por lei.

Para além disso, como dispõe o art. 127º as provas são apreciadas segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, a menos que a lei disponha diferentemente.

Se os princípios são os da liberdade de prova e da livre convicção, resulta que um dos meios de prova passíveis de serem usados neste campo é constituído, precisamente, pelas presunções judiciais, que são «as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido» (art. 349.º do Código Civil).

Da conjugação de determinados factos conhecidos pode o julgador retirar um facto desconhecido, por a ele conduzirem as regras da experiência e os demais factos provados. Se as provas, analisadas à luz das regras da experiência, apontavam para o arguido como autor do furto e se esta leitura das provas não foi posta em causa, a convicção formou-se desta forma e sedimentou-se nos termos expostos na decisão sobre a matéria de facto.

E não se diga que a conclusão retirada daqueles dados mais do facto de não ter sido avançada qualquer explicação razoável, ou mesmo irrazoável, viola as regras legais, nomeadamente os princípios da presunção de inocência e do processo equitativo, por revelarem que o silêncio do arguido foi interpretado desfavoravelmente.

Um princípio fundamental do nosso direito – bem como de todos os Estados de direito democrático – é o do processo justo e equitativo, do qual faz parte o direito de o arguido guardar silêncio sobre os factos, isto é, o direito de ele não contribuir, com as suas palavras, para a sua condenação, sem que este silêncio o possa desfavorecer.

Da conjugação de todos os dados resulta a participação do arguido no furto.

A formação da convicção neste sentido era incontornável.

E o arguido, sabendo disso, não invalidou este juízo, não deu qualquer explicação que fizesse inflectir o raciocínio do julgador. Sendo certo que o arguido não tem o ónus de se defender para não ser condenado, a verdade é que conhecendo as provas existentes, que sabia que apontavam para a sua participação nos factos, nem assim curou de desfazer aquilo que, na sua tese, se deveria a um equívoco. Sabendo o arguido que havia provas sérias contra si cabia-lhe desmontar o juízo que, segundo as regras da experiência comum - regras estas legalmente previstas - se formariam perante aquelas provas explicando, então, como é que estavam em seu poder os bens furtados na residência da ofendida.

E repare-se que só o arguido podia dar tal explicação.

Isto não é nem prejudicar o arguido por ele ter exercido, inicialmente, o seu direito ao silêncio e, muito menos, onerá-lo com o ónus de provar a sua inocência.

A esta mesma conclusão chegou o Tribunal Europeu dos Direito do Homem, no acórdão John Murray v. R.U., de 8-2-1996, onde decidiu que das provas, irrefutáveis, feitas podem retirar-se ilações desfavoráveis ao arguido, no caso de elas exigirem uma resposta que o arguido está em condições de fornecer mas que opta por não apresentar. Neste caso se as provas, interpretadas de acordo com o bom senso – as nossas regras da experiência comum de vida -, não permitirem outra explicação plausível então será o arguido considerado culpado.

O TEDH também assinalou que deduzir conclusões razoáveis com base no comportamento do arguido não desloca o ónus da prova da acusação para a defesa, em violação do princípio da presunção de inocência.


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            Pelo exposto é irrelevante a circunstância de nenhuma testemunha ter presenciado o furto.

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DISPOSITIVO

Pelos fundamentos expostos, na improcedência do recurso confirma-se a decisão recorrida.

Fixa-se em 4 UC´s a taxa de justiça, a cargo do arguido.


Elaborado em computador e revisto pela relatora, 1ª signatária – art. 94º, nº 2, do C.P.P.

Coimbra, 2017-02-22

(Olga Maurício – relatora)

(Luís Teixeira – adjunto)


[1] Artigos 1º e 3º do respectivo Estatuto.