Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3175/16.3T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
ATRIBUIÇÃO PROVISÓRIA
EX-CÔNJUGES
PAGAMENTO
COMPENSAÇÃO
Data do Acordão: 04/27/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO LOCAL CÍVEL DE VISEU – J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 236º, Nº 1 DO C. CIVIL.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO DO S. T. J. DE 13.10.2016;
Sumário: I – É legalmente admissível a fixação de uma compensação pa­trimonial do cônjuge privado do uso daquela que foi a casa de morada de família por força da sua atribuição ao outro cônjuge até à partilha do bem. Tal compensação deve ter lugar por razões de justiça e equidade, designadamente porque o cônjuge privado do uso desse bem pode estar sujeito, e, por isso, não pode deixar de ter em conta as circunstâncias concretas da vida dos cônjuges.

II - Tal compensação não poderá deixar de ser determinada pelo juiz como consequência da decisão provisória de atribuição do uso da casa de morada de família ou estipulada pelo acordo das partes quando, ao porem termo ao processo de divórcio convertendo-o em divórcio por mútuo consentimento, acordam, acordo sujeito a homologação judicial, na atribuição da casa de morada de família a um dos cônjuges até à partilha desse bem.

III - Nada sendo decidido pelo juiz ou acordado pelas partes, já não será possível, em ação judicial posterior, proceder a tal fixação, porquanto tal implicaria, na verdade, uma alteração substancial do teor da decisão judicial ou do acordo das partes que contempla uma utilização do bem incondicionada, passando-se a estipular, como acima se disse, uma utilização condicionada ao pagamento de quantia pecuniária.

IV - Não constando do acordo outorgado qualquer pagamento pela atribuição do uso da habitação da casa de morada de família ao Réu, qualquer declaratário normal – que de acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 236º do C. Civil corresponde ao "bonus pater familias" equilibrado e de bom senso, pessoa de qualidades médias de instrução, inteligência e diligência normais –, entenderá que foi porque as partes o não quiseram convencionar pois se o quisessem o contrário tê-lo-iam deixado expresso, nada permitindo que se equacione coisa diversa.

Decisão Texto Integral:





Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
A Autora instaurou contra o Réu a presente acção de processo comum, pe­dindo que lhe seja reconhecido o direito a ser compensada pela atribuição provisória da casa de morada de família àquele desde o dia 20 de Junho de 2012 até à partilha dos bens comuns do casal, no valor mensal de 600,00 €, o que perfaz, até ao mo­mento de interposição da acção, o valor de 28.800,00 €, e bem assim a quantia de 600,00 € por cada mês subsequente de utilização daquela casa, terrenos adjacentes e anexos que o Réu continue a usufruir até à efectivação da partilha dos bens comuns do extinto casal, nos quais se incluem a casa morada de família, terreno adjacente e anexos que têm vindo a ser utilizados de modo exclusivo pelo réu.
Para fundamentar a sua pretensão alega em síntese:
- Por sentença transitada em julgado foi decretado o divórcio entra ambos, tendo aí ficado acordado que o direito de uso e habitação da casa de morada de família caberia ao aqui Réu  até à partilha do bem.
- Desde o dia 20 de Junho de 2012, data da fixação do regime provisório da atribuição da utilização da casa de morada de família, o Réu tem vindo a utilizar de modo exclusivo tal casa.
- Consequentemente, a Autora, que se vê privada de utilizar tal imóvel, que lhe pertence, pelo menos em compropriedade, carece de ser compensada.
- Considerando as características da casa em causa, a sua localização e os preços de mercado corrente, o valor de arrendamento desse imóvel será de cerca de 1.200,00 € mensais, cabendo a cada um dos seus comproprietários metade desse valor, ou seja, 600 € mensais.
O Réu contestou, alegando que o bem não tem sido utilizado como meio de obter enriquecimento pessoal, mas antes como residência familiar sua e dos filhos comuns do ex-casal, ao que acresce a circunstância de tal utilização resultar de acordo expresso e voluntário das partes.
Por despacho de 17.11.2016 as partes foram notificadas para se pronunciar para a hipótese de ser imediatamente conhecido o mérito da causa.
Em resposta, a Autora reiterou a jurisprudência citada na petição inicial, destacando divergências jurisprudenciais quanto à apreciação da matéria em questão.
Foi proferida decisão que julgou a acção improcedente, absolvendo o Réu do pedido.
A Autora interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
I) A recorrente propôs acção pedindo a condenação do réu no pagamento de uma compensação pela utilização, em exclusivo, de coisa comum, no caso, a casa morada de família.
 II) Fê-lo na convicção de que tinha um direito a essa compensação com base nessa utilização exclusiva pelo seu ex-cônjuge, vendo-se, por isso, privada do seu uso, e, por isso, violando-se disposto no n.º 1 do art.º 1406º do Cód. Civil.
III) Na verdade, foi decretado o divórcio entra a autora e o réu, no âmbito do processo de Divórcio Sem Consentimento do Outro Cônjuge que, com o número ..., correu seus termos no extinto Tribunal Judicial de ...;
IV) Tendo ficado acordado que o direito de uso e habitação da casa de mo­rada de família caberia ao aqui réu – doc-1– (querendo-se aí dizer até à partilha).
V) Tal casa de morada de família é uma casa de habitação de rés-do-chão, 1º andar e quintal, ..., com a área total de 2900 m2, área coberta de 180 m2 e área descoberta de 2720 m2, na matriz sob o artigo urbano ..., na conservatória sob o número ...
VI) Esse prédio assume-se, assim, como o bem comum do extinto casal de maior valor, tendo, no entanto, sido construído em terreno doado à autora pela sua mãe, com cláusula de incomunicabilidade, cujos contornos, para o presente processo, não interessa alongar.
VII) No entanto, a verdade é que desde o dia 20 de junho de 2012, aquando da fixação do regime provisória da atribuição da utilização da casa de morada de família, que o aqui réu, tem vindo a utilizar de modo exclusivo, tal casa e nessa utilização se compreendendo toda a área correspondente ao dito prédio urbano, ou seja, quintal e anexos adjacentes.
VIII) Tal prédio é um bem comum.
 IX) Encontra-se a ser utilizado, de forma legal, diga-se, em exclusivo pelo réu, desde o dia 20 de Junho de 2012.
X) A partilha dos bens comuns do extinto casal, a correr no Cartório Nota­rial de ..., encontram-se ainda por realizar.
XI) Ainda que o acordo relativo à utilização provisória da casa de morada de família não estabeleça qualquer renda/compensação, aquele acordo também não afasta tal possibilidade.
XII) Ora, ao decidir como veio a ser decidido, a Mma Juiz a quo, não ne­cessitou, sequer, de fazer uma valoração prudencial e casuística das circunstâncias pessoais e patrimoniais dos cônjuges, limitando-se a adoptar a posição vertida no Acórdão do STJ de 13.10.2016, no âmbito do processo n.º 135/12.7TBPBL.C.C1.
XIII) No entanto, a recorrente, respeitando humildemente tal posição, não concorda com a mesma, antes entendendo como acertada, com o devido respeito, as decisões que vão no sentido, também nesta instância superior, de que “é justificável a fixação de uma quantia a pagar pelo Requerente à Requerida pois não seria justo que se beneficiasse um deles (o cônjuge que fica com o direito de utilizar a casa de morada de família) sem compensar o outro da privação do uso e fruição de um bem que também foi, durante vários anos, a sua residência permanente e que merece tutela jurídica autónoma”.
XIV) Como tal, ao decidir como decidiu, a Mm.a Juiz a quo violou, entre outras, as normas dos artigos 1083º, 1305º e 1406º do Cód. Civil, 931º e 1793º do CPC, já que, por todos, a utilização exclusiva do bem comum – casa morada de família – priva o outro consorte, a aqui recorrente, do uso a que igualmente tem direito, sem que, por aquela utilização exclusiva, seja, de qualquer modo, compen­sada.
XV) De facto, com base naquelas normas, caberia, desde logo, conhecer da privação da recorrente de um bem comum, de cujo uso se viu privada, é certo, com o seu acordo, mas nem a pagar, nem a não pagar qualquer compensação.
XVI) E aqui, pergunta-se: também na expropriação, o expropriado pode dar o seu acordo, mas poderá esse acordo significar não ser compensado?
XVII) Ou, noutros termos, poderá o gozo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas ser entendido como pleno e exclusivo quando um dos consortes usa a coisa comum e em troca, o outro consorte nada recebe? – Julgamos, com todo o respeito, que não.
XVIII) Por todo o exposto, julgando procedente o presente recurso, deve o recorrido ser condenado a pagar à recorrente o valor peticionado a título de compen­sação, € 28.800,00, ou, no caso de se considerar não estarem reunidos elementos de prova suficientes para tanto, deve ser ordenada a prossecução dos autos na primeira instância, ordenando-se a substituição do d. despacho proferido por outro em conso­nância do que vier, nesta instância superior, a ser decidido.
Conclui pela procedência do recurso.
O Réu apresentou resposta, defendendo a improcedência do recurso.
1. Objecto do recurso
Considerando que o objecto do recurso é definido pelas conclusões for­muladas a questão que cumpre apreciar é a seguinte:
Não tendo sido fixada qualquer quantia como prestação devida pela utili­zação da casa de morada de família ao Réu pode a mesma ser agora determinada?
2. Os factos
Com interesse para a decisão da causa encontram-se provados os seguintes factos:
 1 – Por sentença proferida em 22.11.2013 nos autos de divórcio por mú­tuo consentimento com vista à dissolução do casamento entre a Autora e o Réu foram homologados os acordos por estes apresentados, entre os quais o referente ao destino da casa de morada de família, declarado dissolvido o casamento.
2 – O acordo sobre o destino da casa de morada de família junto aos autos de divórcio e subscrito por Autora e Réu tem o seguinte conteúdo:
J... e M..., já de­vidamente identificados nos presentes autos, acordam, em conformidade com o estabelecido nos artigos 1775º, n.º 2 do Código Civil e 1419ª, n.º 1, alínea f) do Código de Processo Civil, o destino da casa de morada de família nos termos seguintes:               I
Os Requerentes acordam que o direito de uso e habitação da casa de mo­rada de família caberá ao Requerente J...
3 - O direito de propriedade da casa de morada de família encontra-se ins­crito a favor da Autora desde 24.1.1994 por doação feita a esta que era, na data casada com o Réu segundo o regime de comunhão geral de bens.
3. O direito aplicável
A Autora intentou a presente acção, pretendendo a condenação do Réu, seu ex-marido, a pagar-lhe uma compensação pela utilização que o mesmo vem fazendo da casa de morada de família, utilização essa que foi acordada no processo de divórcio e objecto de homologação por sentença transitada em julgado.
Para defender a bondade da sua pretensão a Autora aduz que apesar da casa em questão ser um bem comum do casal não é justo que o cônjuge a quem foi atribuído o direito de nela habitar seja beneficiado sem compensar o outro da privação do uso e fruição dos bens que também lhe pertencem.
Por sua vez o Réu defende que da atribuição a si do uso da casa de mo­rada de família não resulta para a Autora o direito a qualquer compensação uma vez que do acordo que justificou essa atribuição não consta o pagamento de qualquer montante nem tal foi acordado entre ambos.
Na decisão recorrida, que aderiu ao entendimento seguido no Acórdão do S. T. J. de 13.10.2016 [1], consta:
 ‘Aderimos integralmente ao entendimento jurisprudencial acabado de expor.
Efetivamente, cremos que é legalmente admissível a fixação de uma compensação pa­trimonial do cônjuge privado do uso daquela que foi a casa de morada de família por força da sua atribuição ao outro cônjuge até à partilha do bem. Porém, tal compensação deve ter lugar por razões de justiça e equidade, designadamente porque o cônjuge privado do uso desse bem pode estar sujeito, e, por isso, não pode deixar de ter em conta as circunstâncias concretas da vida dos cônjuges.
Assim sendo, tal compensação não poderá deixar de ser determinada pelo juiz como consequência da decisão provisória de atribuição do uso da casa de morada de família ou estipulada pelo acordo das partes quando, ao porem termo ao processo de divórcio convertendo-o em divórcio por mútuo consentimento, acordam, acordo sujeito a homologação judicial, na atribuição da casa de morada de família a um dos cônjuges até à partilha desse bem.
Nada sendo decidido pelo juiz ou acordado pelas partes, já não será possível, em ação judicial posterior, proceder a tal fixação, porquanto tal implicaria, na verdade, uma alteração substancial do teor da decisão judicial ou do acordo das partes que contempla uma utilização do bem incondicionada, passando-se a estipular, como acima se disse, uma utilização condicionada ao pagamento de quantia pecuniária.
Pelo exposto, não tendo sido judicialmente estabelecida nem acordada pelas partes uma utilização pelo réu da casa de morada de família até à partilha do bem sujeita ao pagamento à autora, privada da utilização desse bem, de uma compensação pecuniária, não pode a autora, através da presente ação, obter a condenação do réu no pagamento à autora de uma compensação pecuniária mensal, no valor de 600,00 € ou qualquer outro, pela atribuição provisória da casa de morada de família ao réu, desde o dia 20 de junho de 2012 e até à partilha dos bens comuns do casal.’.
Defende a Recorrente que a situação do acórdão proferido pelo S. T. J. e seguido pela decisão recorrida não tem aplicação ao caso dos autos, pois apesar de no acordo não constar qualquer contraprestação por aquela utilização o certo é que também não consta que a requerente prescindia da mesma. Ou seja, não ficou acordado o pagamento, mas também não ficou acordado a sua gratuitidade. Acres­centa ainda, como argumento para a procedência da sua pretensão, que a posição adoptada não admite qualquer alteração das circunstâncias.
Face à clareza do acórdão proferido pela S. T. J. e que a sentença trans­creve, subscrevendo totalmente tudo quanto no mesmo de encontra defendido, entendemos que a posição da Autora não pode proceder.
As objecções que a Recorrente aponta à aplicabilidade do entendimento perfilhado por aquele aresto não colhem.
Não constando do acordo outorgado qualquer pagamento pela atribuição do uso da habitação da casa de morada de família ao Réu, qualquer declaratário normal – que de acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 236º do C. Civil corresponde ao "bonus pater familias" equilibrado e de bom senso, pessoa de qualidades médias de instrução, inteligência e diligência normais –, entenderá que foi porque as partes o não quiseram convencionar pois se o quisessem o contrário tê-lo-iam deixado expresso, nada permitindo que se equacione coisa diversa.
Aduz a Recorrente ainda o argumento da decisão recorrida não admitir a alteração do acordo que atribuiu a casa de morada de família ao Réu em consequência da alteração das circunstâncias. Independentemente daquilo que se possa depreender dessa decisão quanto a esse aspecto, o facto é que a Autora não configurou a acção com esse fundamento, visando antes a condenação do Réu a pagar-lhe aquilo que denominou de compensação, no valor que reputou justo, desde a data em que este ocupa em exclusivo a casa de morada de família e até partilha dos bens do casal, pelo que essa questão não apresenta qualquer interesse para a decisão deste recurso.[2]
Também no caso presente como naquele acórdão a utilização actual da casa pelo Réu fundamenta-se no conteúdo de um acordo celebrado pelos ex-cônjuges, que possibilitou, aliás, o imediato decretamento do divórcio por mútuo consenti­mento.
Como já atrás dissemos a Autora com esta acção pretende uma modifica­ção do acordo homologado na acção de divórcio, pretendendo transformar a utilização incondicionada, ali efectivamente prevista, numa utilização condicio­nada ao pagamento de quantia pecuniária, que não encontrava o mínimo rasto ou traço nas cláusulas que o integravam.[3]
Assim, improcede o recurso.
Decisão:
Nos termos expostos, julgando improcedente o recurso confirma-se a deci­são recorrida.
Custas pela Autora.

Relatora: Sílvia Pires

Adjuntos: Maria Domingas Simões

                  Jaime Ferreira


***


[1] Relatado por Lopes do Rego e acessível em www.dgsi.pt .
[2] A modificação por alteração das circunstâncias foi admitida no acórdão proferido no T. R. P. em 5.2.2007, relatado por Pinto Ferreira e acessível em www.dgsi.pt .

[3] Acórdão citado.