Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2008/10.9TBACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: LIMITES DA CONDENAÇÃO
DECLARAÇÃO
NULIDADE DO CONTRATO
CONTRATO-PROMESSA
RESTITUIÇÃO DO SINAL
Data do Acordão: 05/10/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LERIA, LEIRIA, INSTÂNCIA CENTRAL – SECÇÃO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTIGO 609.º DO NCPC E ARTIGO 286.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: Tendo a decisão recorrida considerado o contrato promessa de compra e venda, que está na génese dos autos, nulo por falta de forma, deve ordenar a restituição da quantia paga a título de sinal, em singelo, ainda que não tenha sido pedida, podendo dizer-se que tal constitui uma excepção ao disposto no artigo 609.º do NCPC, tanto mais que tal declaração até pode ser oficiosamente declarada pelo tribunal, em conformidade com o disposto no artigo 286.º do Código Civil, atentas as razões de ordem pública que subjazem a tais casos.
Decisão Texto Integral:        




     Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

           

A... e mulher, B... , e C... intentaram a presente acção declarativa de condenação, então, com processo ordinário, contra D... , Lda., e E.... , já todos identificados nos autos, pedindo a condenação dos réus a:

 1. Ser declarado resolvido e sem efeito, por falta de cumprimento por parte da Ré D... , Ldª, o contrato promessa junto aos autos celebrado em princípios de 2004;

2. Se for entendido que a declaração de 21.11.2008 preenche os requisitos de promessa de venda, se declare tal contrato resolvido e sem efeito, por incumprimento por parte do R. E... , perdendo o sinal pago, no montante de 3.614,00€;

3. Se declare que os RR estão a possuir ilegalmente os prédios referidos, pertencentes aos AA., devendo retirar deles as tendas, materiais e vedações que lá colocaram, entregando-lhos livres e desembargados a cada um dos AA. ou seja, os artigos 3084 e 3068 ao C... e os artigos 3075 e 3067 ao A... e mulher.

Subsidiariamente ao pedido elencado em 2, pediram que:

4. Na hipótese de se considerar que a promessa de venda ao R. E... é nula por falta de forma, que se declare o contrato nulo e sem efeito.

Para tal, em resumo, alegam que, no início de 2004, outorgaram com o réu um contrato promessa de compra e venda, em nome da ré D... , mas que o réu assumiu, pessoalmente, tendo por objecto os quatro prédios rústicos, identificados no artigo 7.º da p.i., pelo preço global de 118.614,14 €, obrigando-se a comprador a pagar a quantia de 25.000,00 €, a título de sinal, com a assinatura do referido contrato promessa; 20.000,00 € até ao dia 15/12/2005; 25.000,00 € até 15/04/2006; 20.000,00 € até 15/08/2006 e 28.614,14 €, no acto da escritura, que teria de ser, peremptoriamente, outorgada até 15/12/2006, em dia e cartório a indicar pela promitente compradora.

Não obstante nada foi pago, nem marcada a escritura, em face do que, os autores, em finais de 2007, invocaram, verbalmente, a falta de cumprimento do contrato, considerando-o nulo e sem efeito.

Mas, no início de Maio de 2008, o réu, também, de forma verbal, prometeu comprar aos autores, para si, os mesmos prédios, pelo preço acima referido, prometendo pagá-los de imediato, mas não o fez, tendo, para o efeito, apresentado letras, aceites por um terceiro, convencendo o autor A... a dar-lhe metade do respectivo valor, quando as mesmas fossem pagas, o que este fez.

Quando disso se deu conta, o autor A... , reuniu-se com o réu, para “acerto de contas”, na sequência do que foi elaborado o doc, junto a fl.s 24, denominado “Declaração”, em que o réu declara dever ao autor A... a quantia de 124.564,00 €, englobando o valor dos terrenos e contas resultantes das referidas letras.

Em face do que se mantinha a promessa de compra e venda dos referidos terrenos, desde que o réu pagasse a quantia devida, o que não fez.

Pelo que o autor C... , em Junho de 2010, notificou o réu, referindo que se o referido preço não fosse pago até ao fim desse mês, o contrato ficava sem efeito por falta de cumprimento por parte do réu e, em 16 de Setembro desse ano, o autor A... , enviou ao réu carta registada com a.r., para a residência deste, comunicando-lhe que o contrato estava sem efeito e que tinha o prazo de 8 dias para lhe entregar os prédios livres e devolutos, a qual veio devolvida.

Os autores não querem manter a promessa de venda, que reputam de nula, por falta de forma, pretendendo a devolução dos prédios.

O Réu E... contestou, alegando, em resumo, que sempre agiu em representação da D... e nunca em nome pessoal e que em 12 de Dezembro de 2008, cedeu a sua posição nesta e renunciou à respectiva gerência.

No final de 2008, contactou o autor A... para o negócio ser feito em seu nome pessoal, tendo acordado o preço de 124.564,00 €, tendo feito vários pagamentos, entre Abril de 2009 e Setembro de 2010, no total de 10.865,00 €.

Em Julho de 2011, o autor A... e o réu renegociaram os valores da venda, por já ter sido paga a quantia ora referida e porque existia uma dívida daquele autor para com o réu, no valor de 76.000,00 €, na sequência do que o réu pagou ao referido A... , a quantia de 5.000,00 €, em 28 de Agosto de 2011; 4.000,00 €, no dia 09 de Março de 2012 e 200,00 €, no dia 08 de Junho de 2012.

Em 09 de Julho de 2012, houve nova reunião entre os autores e o réu, tendo sido celebrado novo acordo e fixadas novas datas para a realização das escrituras, tendo o réu, nesta data, entregue ao autor A... , a quantia de 4.000,00 €.

Os autores nunca manifestaram a intenção de desistir do negócio, tendo sempre recebido as quantias referidas, até já depois de proposta a presente acção e impugnando os demais factos alegados, tendo já, os autores, recebido a quantia global de 101.565,00 €, só não se tendo realizado as escrituras porque estes não facultaram os elementos para tal necessários.

Porque mantém interesse na realização destas escrituras, o réu deduziu pedido reconvencional em que pediu a condenação dos RR na «realização das escrituras dos quatro terrenos em causa, sob pena de indemnizarem o Réu E... em valor nunca inferior ao dobro dos valores pagos por estes».

Os AA replicaram, reiterando o que já haviam alegado na p.i., designadamente que, no acordo que fizeram com o réu, se mantinha o preço anteriormente acordado, estando incluídas na quantia de 124.564,00 €, o que o réu havia recebido em virtude dos pagamentos efectuados por via das supra referidas letras, em função do que o réu, a título de sinal, por conta do pagamento do preço, apenas pagou a quantia de 15.356,00 €, nunca tendo o réu emprestado qualquer quantia ao autor A... e reiterando que se mostram disponíveis a outorgar as escrituras, desde que o réu lhes pague a quantia em dívida, que computam em 103.258,00 €.

Ao que o réu, respondeu, reiterando a veracidade dos pagamentos que efectuou ter-lhes feito.

Por despacho de 27.04.2015, transitado em julgado, foi declarada a extinção da instância, relativamente aos pedidos feitos contra a Ré D... , por inutilidade superveniente da lide, decorrente da extinção daquela sociedade por efeito do encerramento da liquidação.          

Com dispensa de audiência prévia, por se considerar que a questão a decidir é de direito e o estado dos autos já permitia a sua decisão, foi proferida a decisão de fl.s 192 a 205, em que se procedeu ao saneamento tabelar dos autos e se decidiu o seguinte:

“Deste modo, e nos termos e com os fundamentos acima enunciados, o Tribunal decide;

1. Quanto à ação:

Julgar parcialmente procedente, por parcialmente provada, a presente ação e, consequentemente:

1.1. Declara-se nulo por falta de forma o contrato promessa celebrado em 21.11.2008, incidente sobre os quatro prédios descritos no artigo 7º da douta petição;

1.2. Condena-se o Réu a entregar aos AA tais prédios livres e desimpedidos:

1.3. No mais, absolve-se o Réu do pedido;

1.4. Condenam-se AA e Réu nas custas processuais, na proporção do decaimento (artº 527º do CPC), fixando-se a sua responsabilidade em 1/3 para os AA e 2/3 para o Réu.

2. Quanto à reconvenção:

Julgar improcedente por não provada, a reconvenção e, consequentemente:

1.1. Absolvem-se os AA do pedido reconvencional;

1.2. Condena-se o Réu nas custas processuais atinentes á reconvenção (artº 527º do CPC).”.  

Inconformado com a mesma, recorreu o réu, E... , recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cf. despacho de fl.s 225), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

a) Decidiu o Tribunal “a quo” declarar nulo o contrato-promessa de compra e venda em causa nos presentes autos, por falta de forma, e em consequência, condenou o Réu a proceder à entrega dos prédios em causa, aos Autores, nas mesmas condições como os recebeu, livres e desimpedidos.

b) Todavia, e muito embora a Mmª Juiz “a quo” referir expressamente na sua fundamentação que “a declaração de nulidade tem como consequências a restituição do que tiver sido prestado ou, se a restituição não for possível, do valor correspondente – artº 289.º, nº 1, CC”, esqueceu-se que os Autores também teriam de restituir os valores recebidos do Réu como pagamento pela compra dos imóveis; muito embora fundamente que “Aquilo a que o Réu tem direito é a que lhe seja restituído o que prestou, designadamente o sinal em singelo.”

c) Justifica a sua decisão deste modo: “Todavia, o Réu não efetuou tal pedido, nem a título subsidiário, estando o Tribunal vinculado ao que foi pedido – artº 609º do CPC.”

d) O Réu não tinha que o pedir! A declaração de nulidade por falta de forma não tem sequer de ser invocada, é de conhecimento oficioso e os seus efeitos são os previstos no artigo 289.º do CC, artigo referido na fundamentação da sentença recorrida.

e) À luz desse regime, e na sequência da nulidade do contrato, assiste aos autores, o direito à restituição dos prédios que o réu detém, livres e desocupados, e a este assiste o direito a que lhe seja devolvido o montante total que entregou como pagamento e no âmbito do contrato nulo.

f) Tudo se passa como se o contrato em causa não tivesse existido. – Vd. Ac. TRC de 05/02/2002, Proc. nº 3599/2001; Ac. STJ de 17/01/2002, Proc. Nº 01B3778.

g) Tem ainda direito o Réu ao pagamento de juros de mora calculados, à taxa legal supletiva, desde a data da citação da presente acção, sobre a quantia paga a título de sinal e que tem de ser restituída pelos Autores, por força da remissão operada pelo nº 3 do artigo 289º para os artigos 1269º e seguintes, art. 804º; 805º, nº1 e nº2, este a contrário; 806º e 559º, todos do Código Civil.

h) O artigo 609.º do CPC limita os poderes do tribunal a não condenar em quantidade superior ao pedido. No caso concreto, em última análise, o Réu pediu o sinal em dobro, tem direito ao sinal singelo. Nunca condenaria o Tribunal “a quo” acima do pedido, simplesmente é visível a desorientação da Mmª Juiz “a quo” que tenta aplicar ao caso concreto um sumário de um Acórdão da Relação de Coimbra, datado de 30/06/2015, Proc. Nº 2943/13.2TBLRA.C1, precisamente que recaiu sobre um processo desta mesma secção cível, onde correm os presentes autos (situação totalmente distinta do caso concreto).

i) Muito embora, a sentença não refira quais os factos dados como provados e os factos dados como não provados, o que não obedece ao disposto no artigo 607.º, nº 3 do CPC., constata-se que os Autores confessam ter recebido do Réu a quantia total de € 21.305,00 (vinte e um mil trezentos e cinco euros), no artigo 11º da réplica apresentada a 30/01/2013.

j) Existe igualmente cabal prova documental apresentada pelo Réu que não foi impugnada pelos Autores que sustentam os pagamentos efectuados.

k) E como é óbvio e legalmente exigível, com a declaração de nulidade, não só o Réu tem de devolver os imóveis aos Autores, como estes têm de devolver ao Réu a quantia de € 21.305,00 (vinte e um mil trezentos e cinco euros) que confessam terem recebido, a que acrescem juros de mora calculados a partir da data da citação da presente acção, mais precisamente 27/11/2012, até integral pagamento.

Termos em que e sempre com mui douto suprimento de Vªs Exªs, Venerandos Desembargadores devem conceder provimento ao presente recurso, com o que se fará inteira JUSTIÇA.

Contra-alegando, os autores, pugnam pela manutenção da decisão recorrida, apresentando as seguintes conclusões:

1º- A decisão condena o recorrente a fazer a entrega dos prédios livres e desembargados por ser nulo o contrato promessa;

2º- O recorrente não formulou qualquer pedido, pelo que a decisão não podia condenar os AA. a restituírem o sinal pago,

3º- Por outro lado, não está provado qual o montante pago a titulo de sinal,

4º- Além disso ao AA. já ofereceram ao R. a devolução do sinal, contra a entrega dos prédios que estão na posse, deste e ele não quis aceitar, pelo que não se compreende este recurso e este não o quis.

5º- Só julgando improcedente até porque não justificado este recurso, se fará justiça.

Dispensados os vistos legais, há que decidir.          

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do NCPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de saber se, em consequência da declaração de nulidade do contrato promessa de compra e venda celebrado entre as ora partes, devem os autores ser condenados a restituir ao réu, a quantia que deste receberam, a título de sinal.

A matéria de facto a ter em conta para a decisão do presente recurso é a que consta do relatório que antecede.

Se, em consequência da declaração de nulidade do contrato promessa de compra e venda celebrado entre as ora partes, devem os autores ser condenados a restituir ao réu, a quantia que deste receberam, a título de sinal.

Como resulta do relatório que antecede, apesar de na decisão recorrida se ter considerado que o contrato promessa de compra e venda que está na génese dos autos, é nulo por falta de forma (o que nenhuma das partes coloca em crise), o que acarretaria a que o réu tivesse direito a receber, a ver-lhe restituída, a quantia que pagou a título de sinal, em singelo, nos termos do disposto no artigo 289.º, do Código Civil; não se ordenou tal restituição (em consequência do que a tal não se condenaram os autores), em virtude de o réu não ter formulado tal pedido e assim não fora, incorreria o Tribunal na violação do disposto no artigo 609.º do NCPC.

Defende o réu que tal condenação é uma consequência directa da declaração de nulidade do referido contrato, ainda que não se peticione tal restituição, o que mais se acentua, em casos como o presente, em que o réu pugna pela validade de tal contrato, mas o mesmo veio a ser considerado nulo, com as consequências que daí advêm.

Em conformidade com o Assento n.º 4/95 (in DR 114/95 Série I-A, de 1995-05-17),“quando o Tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade, e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido, com fundamento no n.º 1 do artigo 289.º do Código Civil” – em face do que, como dele consta, se remete para o preenchimento do requisito de “terem na acção sido fixados os necessários factos materiais”, ou seja, o busílis/critério passa a estar, segundo o assento, em saber se devem ou não considerar-se como fixados os factos necessários.

Requisito que só deve ser dado por preenchido se a discussão fáctica havida compreender/responder/esgotar (em termos fácticos) o enfoque jurídico que preside aos efeitos restitutórios decorrentes da declaração de nulidade, para além de, claro está, tal condenação oficiosa (em efeitos restitutórias) ter que ser englobável no apertado espectro do pedido que foi efectivamente formulado.

Como consabido, o negócio nulo não é propriamente um nullum/nada, sendo antes um evento existente a que a ordem jurídica recusa as consequências negociais desejadas pelas partes, embora lhe reconheça alguma eficácia jurídica, embora não negocial. Como refere Pais de Vasconcelos, Teoria Geral, pág. 631, “o negócio jurídico inválido não alcança criar direito, não gera direito interprivado, não põe em vigor uma regulação negocial. Pelo contrário, é tido como simples facto jurídico, de cujas consequências jurídicas constitui mero suporte inerte. As consequências jurídicas do negócio inválido não são já aquelas que os seus autores lhe quiseram atribuir, mas antes as que a lei determina”.

Por outro lado, a recusa de tais consequências negociais é desde o momento inicial do negócio, que é ineficaz desde o original momento em que foi celebrado (ex tunc); motivo por que se diz que, em sentido próprio, só há retroactividade na anulação, uma vez que, na declaração de nulidade, a eficácia jurídica não chega a verificar-se e, por isso, não será correcto, em termos puramente técnico-jurídicos, falar de retroactividade.

De todo o modo (pondo de lado a pureza técnico-jurídica), o que releva é que, não raras vezes, o negócio nulo, antes da declaração de nulidade, produz efeitos fácticos, tornando-se assim necessário repor a situação fáctica de acordo com a situação jurídica (ineficácia originária do negócio).

Assim e de acordo com os art. 289.º e 290.º do C. Civil:

Deve, em primeiro lugar, ser restituído tudo o que tiver sido prestado.

Se ainda possível, a restituição deve ser feita em espécie; se já não for possível, deve ser restituído o valor correspondente.

Se sobre a coisa tiver sido constituída “posse”, aplicam-se as respectivas regras (1269.º e ss do C. Civil), seja directamente seja por analogia.

Se da nulidade resultarem obrigações de restituição que sejam recíprocas, devem ser cumpridas simultaneamente, podendo cada uma das partes sustar a restituição que lhe incumbe, enquanto a outra não cumprir.

É pois por estas regras que se rege a relação de repristinação/liquidação actualmente existente entre as partes e resultante da declaração de nulidade negocial.

Assim, é mister concluir que sendo a obrigação de restituição decorrente da declaração de nulidade de um contrato, desde que verificados os requisitos acima explicitados, uma consequência da declaração de nulidade ou anulação, a mesma pode, nos termos expostos, ser decretada ainda que não tenha sido pedida, podendo dizer-se que tal constitui uma excepção ao disposto no artigo 609.º do NCPC, tanto mais que tal declaração até pode ser oficiosamente declarada pelo tribunal, em conformidade com o disposto no artigo 286.º do Código Civil, atentas as razões de ordem pública que subjazem a tais casos.

Pelo que, não é pelo facto de o réu não ter formulado o pedido de restituição do que pagou a título de sinal, em singelo, que obstava a que tal condenação fosse imposta aos autores.

Como refere Miguel Mesquita, in RLJ, ano 143, pág. 138 e nota 17:

“O juiz tem de apreciar e julgar um objecto – pedido e causa de pedir – e este é definido principalmente pelo autor, na petição inicial” – ou pelo réu, se se tratar de reconvenção.

Acrescentando que “contra a possibilidade de o juiz decretar efeitos não expressamente requeridos pelo réu levanta-se, precisamente, o princípio do pedido. (…) Uma importantíssima ressalva deverá ser feita para a excepção da nulidade (substantiva). De acordo com o artigo 286.º do Código Civil, esta é «invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal». O ordenamento jurídico, fundado em razões de interesse público, autoriza o juiz, com base nos factos alegados e provados, a declarar, para todos os efeitos, a nulidade, não se devendo limitar a julgar a acção improcedente. E deve mesmo entender-se (…) que, no caso especial da excepção da nulidade (uma autêntica excepção reconvencional), o juiz pode também, oficiosamente, condenar as partes com fundamento no artigo 289.º, n.º 1, do Código Civil, a restituírem uma à outra «tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente».”.

O problema é que a decisão recorrida, como o réu aflora na conclusão i), é absolutamente omissa no que toca à indicação da factualidade dada como assente e/ou não provada e em que se pode fundamentar o conhecimento e decisão da questão da pretendida (pelo réu) devolução do correspondente ao sinal, em singelo.

Efectivamente, para que tal seja possível é, desde logo, inevitável que esteja quantificada tal cifra. Só depois de estar comprovado quanto é que o réu pagou a título de sinal é que se podem condenar os autores a restituírem, o que assim receberam, ao réu.

Nos termos do disposto no artigo 595.º, n.º 1, al. b), do NCPC, logo no despacho saneador, sempre que o estado do processo permitir, pode-se conhecer do mérito da causa ou de alguma excepção peremptória, caso em que passa a ter, para todos os efeitos, o valor de sentença, cf. seu n.º 3.

E para que possa ter este efeito (valor de sentença), tem de se basear numa determinada factualidade (provada e não provada), que ali dever ser identificada e fundamentada, como decorre do disposto no artigo 607.º, n.os 3 e 4, do NCPC.           

Deste modo, estava a M.ma Juiz a quo obrigada a, nos termos daquele preceito, findos os articulados, declarar quais os factos que julga provados e não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador, designadamente, por constituir o objecto do recurso, no respeitante à decisão da questão da restituição ou não, da quantia paga pelo réu, a título de sinal.

Mas, reitera-se, a decisão recorrida não contém qualquer referência à descrição dos factos que considera como provados ou não provados, não obstante concluir que os autores não estão obrigados a restituir o que receberam a título de sinal, ainda que em singelo, no assinalado pressuposto de que o réu não formulou tal pedido, o que, como vimos, não obsta a que fosse proferida tal condenação, mas, repete-se, sem que se saiba qual a quantia a este título entregue.

Efectivamente, apesar de o réu ter alegado que pagou a quantia global de 101.565,00 €, sem que esclareça qual o sinal entregue, os autores na réplica (artigo 11.º) alegam que a quantia paga a título de sinal foi apenas a de 15.356,00 €, face ao que não se pode ter por assente qual a quantia que foi entregue pelo réu aos autores, a título de sinal.

Assim sendo, a decisão recorrida omite a decisão sobre a matéria de facto a que se alude no artigo 607.º, n.os 3 e 4, do NCPC, o que acarreta a respectiva nulidade, por equiparação à situação prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. b), do NCPC.

           

De acordo com o disposto nos artigos 662.º e 665.º, n.º 1, ambos do NCPC, a declaração de nulidade da sentença proferida em 1.ª instância, não seria impeditiva que este Tribunal conhecesse do objecto do recurso, substituindo-se ao Tribunal recorrido, desde que os autos já contivessem todos os elementos necessários a esse julgamento.

Mas tal não se verifica no caso em apreço, designadamente, não se pode dar como assente qual a matéria dada como provada e não provada, mesmo por referência à decisão recorrida, dada a omissão acima assinalada, o que impede um efectivo recurso sobre a matéria de facto, dado que as partes desconhecem, em toda a sua amplitude, qual a matéria de facto a considerar, e subsequente conhecimento por parte deste Tribunal, sendo nosso entendimento que a matéria de facto a ter em consideração para a decisão da questão em apreço não pode ser fixada, pela primeira vez, “ex novo”, em sede do Tribunal de recurso, sob pena de se desvirtuar o efeito útil e as finalidades (de reapreciação) da interposição de um qualquer recurso.

Para além do que, como acima já referido, in casu, nem sequer existe acordo das partes relativamente à quantia que foi paga/recebida, a título de sinal.

Assim, não nos resta, se não anular a decisão recorrida, a fim de ser cumprido o disposto no artigo 607.º, n.os 3 e 4, do NCPC, ficando, para já, sem efeito útil o conhecimento do mérito do presente recurso.

E só depois de dada como provada e não provada a matéria de facto relevante para a decisão da referida obrigação de restituição da quantia equivalente ao sinal recebido, se poderá decidir esta, sem necessidade de produção de prova, no caso de se entender que o estado dos autos já o permite, ou prosseguindo os autos os seus ulteriores trâmites, para o caso de se entender que o estado do processo ainda não o permite.

Consequentemente, nos termos, expostos, anula-se a decisão recorrida.

Nestes termos se decide:

Anular a decisão recorrida, devendo proferir-se nova decisão, em que se especifiquem quais os factos, atinentes, tidos como provados e não provados, se o estado dos autos já o permitir ou, assim não sendo, devendo os mesmos prosseguir os seus ulteriores termos.

Custas a fixar a final.

Coimbra, 10 de Maio de 2016.

Arlindo Oliveira (Relator)
Emidio Francisco Santos

     Declaração de voto

Discordo da decisão proferida no presente Acórdão por entender que os Autores não poderão ser, aqui, condenados a restituir ao Réu aquilo que este pagou a título de sinal.

Conforme se disse no Acórdão de 30/06/2015 (por mim relatado e proferido no processo nº 2943/13.2TBLRA.C1, disponível em http://www.dgsi.pt.), o que está subjacente à doutrina do Assento nº 4/95 é apenas a possibilidade de convolar a causa de pedir que era invocada e de alterar a qualificação da pretensão material deduzida, mas apenas para decretar o efeito prático-jurídico que foi solicitado, ainda que sob diferente qualificação jurídica, e não para o efeito de decretar um efeito que não foi, de todo, solicitado[1].

O que aquele Assento consente é uma aplicação menos rígida e menos formal do art. 609º do CPC, ao admitir que o Tribunal possa decretar uma determinada pretensão que não coincidia rigorosamente com o pedido que havia sido formulado, porque tal pretensão – embora coincidindo, nos seus efeitos práticos, com o pedido – baseia-se em causa de pedir diversa da que havia sido invocada, correspondendo, no rigor dos princípios, a uma pretensão diferente. O aludido Assento não terá pretendido, todavia, fazer “letra morta” do disposto no art. 609º do CPC e contrariar um dos princípios fundamentais que regem o nosso sistema processual civil de acordo com o qual – e sem prejuízo das excepções consagradas na lei – a parte tem o ónus de formular um pedido, não podendo o juiz sobrepor-se à vontade das partes para efeito de decretar uma pretensão que não lhe foi solicitada.

Assim, sendo formulado uma determinada pretensão cuja causa de pedir radica num determinado negócio e tendo como pressuposto a sua validade e concluindo-se que esse negócio é nulo, o Tribunal, na medida em que pode e deve declarar a nulidade – apesar de tal não lhe ter sido solicitado – poderá também, com base nessa nulidade, satisfazer a pretensão que lhe havia solicitada, sendo que, ao actuar nesses termos – como é admitido pelo aludido Assento – o Tribunal limita-se decretar o efeito prático que lhe foi solicitado (ainda que com base em diferente causa de pedir e com diferente qualificação jurídica). Todavia, se a parte não formulou qualquer pedido onde se possa considerar incluído (ainda que com uma interpretação menos rígida) o efeito decorrente da nulidade, o Tribunal, não obstante poder e dever declarar a nulidade, está impedido, sob pena de violação directa e frontal do art. 609º do CPC, de decretar os seus efeitos e condenar as partes (ou uma delas) na restituição a que haja lugar.

Penso, portanto, que a doutrina do aludido Assento não poderá ser invocada para o efeito de condenar os aqui Autores a restituir ao Réu o que dele receberam em cumprimento do contrato nulo, porquanto o Réu não formulou qualquer pretensão no âmbito da qual se pudesse inserir, ainda que sob diversa qualificação, essa condenação. O Réu apenas pediu a condenação dos Autores na realização das escrituras e no âmbito dessa pretensão não pode considerar-se incluída a condenação dos Réus à restituição do sinal, porquanto estão em causa pretensões totalmente distintas e com um efeito prático-jurídico totalmente diferente.

Importa notar, aliás, que os Autores pediram, desde logo, ainda que subsidiariamente, a declaração de nulidade do contrato e, portanto, também o Réu poderia ter pedido, ainda que subsidiariamente, a condenação dos Autores à restituição do que havia sido prestado. E, tendo optado – por razões que não relevam – por não formular esse pedido, nenhuma razão existiria para que o Tribunal o viesse agora a decretar.

Não se discute, naturalmente, o direito do Réu à restituição daquilo que pagou; todavia, ainda que tenha esse direito, ele não pode ser reconhecido e declarado nos presentes autos porquanto não foi formulada qualquer pretensão em cujos efeitos prático-jurídicos aquela restituição possa ser incluída.

Assim, pelas razões expostas, confirmaria a decisão recorrida.

Catarina Gonçalves


[1] Neste sentido, os Acórdãos do STJ de 20/05/2003 e de 05/11/2009, proferidos nos processos nºs 03A1402 e 308/1999.C1.S1, respectivamente, ambos disponíveis em http://www.dgsi.pt.