Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
247/11.4TBSEI.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: PROCESSO CONTRA-ORDENACIONAL
AUDIÊNCIA
NÃO REDUÇÃO DA PROVA A ESCRITO
Data do Acordão: 05/30/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE SEIA - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 66º, DO REGIME GERAL DAS CONTRA-ORDENAÇÕES E COIMAS (D.L. N.º 433/82, DE 27/10).
Sumário: A norma do art.º 66º, do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, no segmento “não havendo lugar à redução da prova a escrito”, se interpretada no sentido de que a prova não é gravada, não é inconstitucional.
Decisão Texto Integral: I. Relatório
No âmbito do processo de contra-ordenação n.º CO/002168/09, do Ministério do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional – Inspecção-Geral do Ambiente e do Ordenamento do Território, correspondente ao auto de notícia n.º 102/2009, levantado no dia 26/8/2009, o arguido A... foi condenado, por decisão de 14/3/2011, na coima de € 20.000,00 (vinte mil euros), pela prática, em autoria material e na forma consumada, de uma contra-ordenação p. e p. pelas disposições conjugadas do artigo 18.º, n.º 1 e n.º 4, do D/L n.º 46/2008, de 12 de Março, sancionável com coima de € 20.000,00 a € 30.000,00, nos termos previstos na al. a) do n.º 4.º do artigo 22.º da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, na redacção dada pela Lei n.º 89/2008, de 31 de Agosto, e, ainda, nas custas do processo. ****
O arguido, notificado da decisão administrativa, impugnou-a judicialmente, em 18/4/2011, ao abrigo do disposto nos artigos 59.º e seguintes do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro, e do artigo 18.º, do Decreto-Lei n.º 235/2000, de 26 de Setembro, defendendo o arquivamento dos autos e, quanto muito, a suspensão da aplicação da coima.
O recurso foi admitido, em 19/5/2011, já no âmbito do Processo de Recurso (Contra-Ordenação) n.º 247/11.4TBSEI, do Tribunal Judicial de Seia, 1.º Juízo, tendo sido designada data para audiência de julgamento.
Esta veio a ter lugar, com observância do formalismo legal.
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Na sequência, foi, em 7/7/2011, proferida decisão na qual foi decidido julgar o recurso de impugnação improcedente, tendo sido, por consequência, mantida a decisão da autoridade administrativa.
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Inconformado com a decisão judicial, dela recorreu o arguido, em 25/8/2011, defendendo a procedência da impugnação ou, quanto muito, a suspensão da execução da sanção, extraindo da motivação as seguintes conclusões:
1. Deve considerar-se inconstitucional a norma do artigo 66.º, do Regulamento, no segmento “não havendo lugar à redução da prova a escrito” se interpretada – como fez o tribunal – no sentido de que a prova não é gravada.
2. Estando hoje assegurada a tutela de recurso da matéria fáctica, de pouco valerá dizer-se que este tribunal superior funciona como revista, se com isso quisermos desconsiderar a garantia do artigo 32.º, da CRP.
3. O Tribunal de recurso (Relação) pode julgar os factos que se encontram nos autos, aplicando direito aos mesmos, porque todos constam nos autos, que contém praticamente todos os elementos (excepção feita ao pormenor que o Tribunal ignorou da separação dos resíduos), podendo por via dessa aplicação aos elementos dos autos alterar factos provados e não provados.
4. Facto n.º 9 (dos provados), por ser mera conclusão jurídica, deve ser considerado nulo, padecendo a sentença, desde logo, dessa nulidade.
5. As regras da experiência aconselham a conjugar os documentos e os depoimentos das testemunhas e a concluir por contradição existente entre os factos 10, 11 e 12 com o facto dado como não provado elencado sob a alínea b e d (e até f).
6. Mas esta contradição em nada afecta a aplicação legal que a Relação deve efectuar, no sentido de concluir o que as testemunhas disseram nos autos e perante autoridade administrativa, depoimentos esses que podem e devem ser analisados para verificar que as decisões são injustas.
7. O processo perante a autoridade administrativa não é um inquérito criminal em que o Juiz esteja impedido de ler o que consta da defesa.
8. “O conceito de resíduo inclui toda a substância, matéria ou produto de que o detentor tem obrigação de se desfazer”, mas para aferir dessa obrigação tem ainda que se verificar se os materiais em causa têm níveis de concentração de perigosidade.
9. O resíduo só será considerado efectivamente perigoso se essas substâncias estiverem presentes em concentração (percentagem ponderal) suficiente para que o resíduo apresente uma ou mais características referidas no n.º 2 do n.º 1 (Portaria 209/2004).
10. Além disso, para preenchimento do tipo legal de contra-ordenação relativamente a resíduos de construção, como betão, tijolo e cerâmica exige-se ainda a sua referência na acusação como materiais que envolvam substâncias perigosas.
11. Exigindo-se prova de tal facto e sua menção entre os factos provados, atenta a cautela que o legislador teve em escrever a necessidade de aferição dos níveis de concentração e acrescentar a referência legal “envolvam substâncias perigosas”.
12. Porquanto só existirá ilicitude enquanto tal, isto é, se reportada a conduta de uso desses materiais que envolvam substâncias perigosas, não sendo o uso desses em si proibido (por não conterem essas substâncias).
13. Por isso, exige-se a descrição na acusação dos elementos de concentração, tanto mais que a lei exigiu ainda que essas substâncias perigosas estejam presentes com as características elencadas na lista europeia.
14. O que não é o caso dos materiais de betão, tijoleiras e cerâmicas que só são perigosos se contiverem substâncias perigosas, aferidas pelos ditos níveis de concentração.
15. Não há pois ilicitude em conduta que se limita a usar os materiais para aterro e nivelamento do solo.
16. Quanto muito, mesmo a existir a dita ilicitude, sempre inexiste culpa por erro não censurável ao depositar-se resíduo para esse aterro e nivelamento que se não fez entretanto porque o condomínio ficou sem dinheiro para efectuar obras.
17. Privilegiando a lei o ciclo de vida dos materiais, o seu uso pelo produtor é ainda lícito, mesmo que sejam materiais retirados de obra, desde que com a finalidade de uso se vise a sua utilização noutra.
18. Pode ser suspensa a execução da sanção principal.
19. Foram violadas as disposições dos artigos 32.º, da CRP, - o que arrastou à violação dos artigos 364.º, n.º 1, 428.º, n.º 1, do CPP – 9.º e 12.º, da Lei 89/2009, de 31/08, 16.º e 17.º, do Código Penal, e DL 46/2008, de 12 de Março (artigo 25.º), Portaria 209/2004 (artigos 1.º, 2.º, 3.º, nºs 1 e 2, 5.º, DL 178/2006 (artigo 25.º), 18.º do DL 46/2008, de 12 de Março, e 39.º da Lei 50/2006, de 29 de Agosto.
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O Ministério Público junto da 1ª instância respondeu ao recurso, em 14/10/2011, e, sem apresentar conclusões, argumentou, em resumo, o seguinte:
1. Não é admissível a junção de documentos com a motivação do recurso.
2. Nos processos de contra-ordenação, não há necessidade de documentação dos actos da audiência.
3. O presente processo não padece de nulidade nem de inconstitucionalidade.
4. A decisão recorrida está bem fundamentada.
5. Não há erro notório na apreciação da prova.
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O recurso foi, em 25/10/2011, admitido.
Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, em 8/11/2011, no qual defendeu a improcedência do recurso.
Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido exercido o direito de resposta.
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, teve lugar conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II. Decisão Recorrida:
I. Relatório
Nos presentes autos de recurso de contra-ordenação, A..., vem acusado de haver infringido o disposto no art. 18º, nº 1 do Decreto-lei nº 46/2008, de 12 de Março, relativo ao abandono ou à descarga de RCD em local não autorizado.
Por não se conformar com a decisão da autoridade administrativa – Inspecção-Geral do Ambiente e do Ordenamento do Território – que lhe aplicou uma coima no valor de € 20.000,00 (vinte mil euros), veio recorrer desta decisão alicerçando a sua fundamentação, em síntese, nas seguintes razões:
- é falso que o entulho se encontre depositado em terreno propriedade do condomínio, mas antes do próprio recorrente;
- não obstante, destinava-se, efectivamente, ao condomínio e foi objecto de decisão de obras por parte deste;
- em reunião de condomínio constante de acta foi deliberado pedir orçamento para arranjo de um muro de separação de imóveis;
- mais se deliberou preparar o espaço entre garagens e caminho público, aterrando o enorme buraco que aí existe;
- a construção foi adiada para 2010, por não se saber quanto é que o condomínio ia gastar com uma acção judicial;
- os resíduos não eram só do recorrente, mas também do prédio, que os gerou e aí depositou aquando da remodelação do telhado;
- o entulho foi aí depositado para reutilizar os resíduos numa obra de aterro e nivelamento do logradouro do referido prédio;
- o que não é uma prática proibida, mas antes permitida;
- para não ter que pagar mais a um construtor que fizesse o aterro, o recorrente acedeu a que fossem os resíduos depositados nesse imóvel, em favor do condomínio ou de outra obra sua, caso aquele não deliberasse proceder a obras;
- antes mesmo das obras que geraram os resíduos e a que se refere a decisão administrativa, o recorrente “intentou” no Ministério da Agricultura pedido de desafectação de solo para uma arrecadação;
- e caso não viesse a utilizar o entulho no prédio do condomínio, se viesse a ter oposição dos condóminos, utilizaria neste outro a licenciar;
- as operações relativas a tais resíduos são enquadradas por legislação especial, por força do disposto no art. 20º, nº 2 do D.L. 178/2006, de 5 de Setembro, e tais actividades não estão sujeitas a licenciamento, existindo poucas normas técnicas, que não constam, ainda, de legislação;
- não havendo legislação, não colhe a punição ao abrigo do supra citado D.L.;
- por outro lado, a expressão resíduo não se aplica ao caso em apreço, uma vez que resíduo ou lixo é qualquer material considerado inútil, supérfluo e/ou sem valor, gerado pela actividade humana, e a qual precisa ser eliminada;
- no caso em apreço, o destino era a sua utilização para aproveitamento próprio;
- não houve representação nem vontade legal de violar dispositivos legais, nem negligência, já que o que se visava era uma finalidade pública e privada;
- não há efectivo esclarecimento de como proceder em casos do género, já que não está “emitida” a dita legislação especial.
Para além de tudo o mais supra referido, o recorrente entende que a decisão administrativa é nula por omissão de factos e de pronúncia.
Por fim, alega ser um proprietário modesto, sem actividade e reformado.
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O processo foi remetido a este tribunal para os efeitos dos artigos 62º e 63º do R.G.C.O.C. (D.L. nº 433/82, de 27 de Outubro, sucessivamente alterado pelo D.L. nº 356/89, de 17 de Outubro; DL nº 244/95, de 14 de Setembro e Lei nº 109/2001, de 24 de Dezembro).
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No requerimento de recurso, o arguido indicou testemunhas para serem ouvidas e juntou documentos.
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Por despacho de fls. 127 foi admitido o recurso (cf. art. 59º e 60º do D.L. nº 433/82, de 27.10) e designada data para realização da audiência de discussão e julgamento (cf. art. 64º, nº 1 do DL nº 433/82, de 27.10).
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Após o recebimento do recurso não ocorreu qualquer nulidade.
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Procedeu-se a julgamento em estrito cumprimento do formalismo legal, conforme se alcança das actas respectivas.
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O Tribunal é competente em razão do território, da matéria e da hierarquia.
O Ministério Público detém legitimidade para acusar e o recorrente é também parte legítima.
O processo é o próprio.
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II. Dos factos:
Da audiência de discussão e julgamento, e relativamente à factualidade que aqui interessa apurar, resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia … de 2009, pelas 14h 40 m, na sequência de uma denúncia a relatar a existência de resíduos de construção abandonados num terreno, propriedade do recorrente e contíguo ao logradouro de um prédio sito na … , Seia, o Serviço de Protecção à Natureza e Ambiente da Guarda Nacional republicana (Comando Territorial da Guarda – Destacamento Territorial de Gouveia), verificou que no citado local se encontravam depositados diversos resíduos de construção e demolição (RCD), nomeadamente tijolos e cerâmicas.
2. Os resíduos foram ali depositados pelo recorrente.
3. Os resíduos foram provenientes de obras de remodelação de uma fracção que é um restaurante.
4. As obras de remodelação do restaurante tinham sido concluídas há mais de seis meses.
5. O recorrente manteve os RCD no local referido em 1. após a conclusão da obra.
6. O recorrente é proprietário de um terreno para construção urbana com área de 1.815 m2, registado sob o nº … da Freguesia e Concelho de Seia.
7. O recorrente solicitou à Comissão Regional da Reserva Agrícola do Centro autorização para proceder à utilização de 100 m2 para construção de uma arrecadação de alfaias agrícolas.
8. O recorrente recebeu uma comunicação da Comissão Regional da Reserva Agrícola do Centro, datada de 16.09.2009, dizendo que se aguardavam provas vindas da Câmara Municipal de Seia da localização da construção contígua ao local requerido.
9. Ao realizar a descarga de RCD em local não autorizado o recorrente não agiu com o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz.
10. Em reunião de condomínio constante de acta datada de 13.03.2009 foi deliberado pedir orçamento para arranjo de um muro de separação de imóveis.
11. Mais se deliberou preparar o espaço entre garagens e caminho público, aterrando o enorme buraco que aí existe.
12. Esta construção foi adiada para 2010, por não se saber quanto é que o condomínio ia gastar com uma acção judicial.
13. O recorrente encontra-se reformado e, para além da sua reforma, aufere cerca de € 20.000,00 a € 30.000,00 anuais de rendas.
Nada mais se provou, e no que concerne à restante matéria constante da decisão da autoridade administrativa e do recurso do arguido, para além da infra dada como não provada, por consubstaciar matéria irrelevante, conclusiva, de direito e juízos de valor, não pôde sobre ela recair qualquer juízo probatório.
Não se provaram os seguintes factos, com relevância para a decisão da causa:
a) Os resíduos encontram-se no logradouro do prédio em que o arguido é condómino.
b) Os resíduos destinavam-se ao condomínio e foi objecto de decisão de obras por parte deste.
c) Os resíduos não eram só do recorrente, mas também do prédio, que os gerou e aí depositou aquando da remodelação do telhado.
d) O entulho foi aí depositado para reutilizar os resíduos numa obra de aterro e nivelamento do logradouro do referido prédio.
e) Para não ter que pagar mais a um construtor que fizesse o aterro, o recorrente acedeu a que fossem os resíduos depositados nesse imóvel, em favor do condomínio ou de outra obra sua, caso aquele não deliberasse proceder a obras.
f) E caso não viesse a utilizar o entulho no prédio do condomínio, se viesse a ter oposição dos condóminos, utilizaria neste outro a licenciar.
g) O recorrente é um proprietário modesto.
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III. Motivação da decisão de facto
Para a formar a sua convicção o Tribunal procedeu ao exame do conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, através de uma ponderação crítica à luz das regras da experiência.
Assim, fundou o Tribunal a sua convicção no conjunto da prova produzida, nomeadamente nas declarações do recorrente, depoimento das testemunhas e no teor dos documentos juntos aos autos, maxime a fotografia de fls. 6 e actas de fls. 111 e ss..
Para além do relato circunstanciado da factualidade provada em 1. a 5. pela testemunha … , militar da G.N.R. que deu início ao processo, o próprio recorrente confirmou toda a factualidade objectiva dada como provada, alegando, contudo, que os resíduos de obra que foram colocadas no seu terreno, e não em terreno propriedade do condomínio, destinavam-se a aterrar um buraco existente no logradouro do prédio que construiu, e no qual ainda detém uma série de fracções, para, de seguida, ser feito um muro de delimitação entre prédios.
O recorrente admitiu que os resíduos em causa já aí se encontravam há alguns meses, uma vez que as obras do restaurante terminaram ainda no ano de 2008.
No que concerne às obras do condomínio, pese embora tivesse começado por garantir que as mesmas eram ponto assente, o recorrente acabou, depois, por assumir a existência de uma série de problemas entre os condóminos que inviabilizaram a sua realização até ao momento, para além da falta de dinheiro para as mesmas.
O recorrente não referiu espontaneamente a existência de qualquer outra obra para a qual os resíduos pudessem ser reconduzidos, acabando, quando questionado acerca disso, e sem grande convicção, por referir ter, ainda, cogitado utilizar os resíduos numa obra da sua exclusiva propriedade.
Todas as testemunhas arroladas pelo recorrente, … (administradora do condomínio do prédio a que vimos aludindo); … (morador do referido prédio); … (morador do referido prédio) e … (arrendatário do restaurante onde foram efectuadas as obras) relataram a intenção de efectuar as obras alegadas pelo recorrente e intuito que o recorrente sempre teve de utilizar o “entulho” depositado no seu prédio para enchimento de um buraco existente no logradouro do referido prédio.
Contudo, todas as testemunhas foram peremptórias em referir que tal projecto ainda não passou da fase de orçamentação e que dificilmente será levado a cabo, pelo menos por ora, por não existir dinheiro para tal.
Acresce, ainda, que todas as actas de condomínio juntas aos autos são posteriores a Março de 2009, muito depois, portanto, do depósito dos resíduos no terreno do recorrente.
Em face da prova a este respeito produzia e da não certeza da realização das referidas obras, não podia, obviamente, o Tribunal julgar como provados os factos constantes das alíneas b) a f) dos factos não provados.
Para além do agora referido, sempre se dirá que da observação da fotografia junta aos autos a fls. 6 resulta que os resíduos em causa foram espalhados de forma uniforme ao longo do terreno em causa e não colocados, por exemplo, num monte, o que inculcaria muito mais a ideia de que aí se encontravam temporariamente para, posteriormente, serem carregados e levados para outro local.
A forma como os resíduos se encontram espalhados no terreno anda longe de permitir uma recolha fácil e posterior transporte para outro local.
A factualidade constante da alínea g) resultou não provada em face dos factos que resultaram demonstrados no que concerne à situação financeira do recorrente.
IV. Enquadramento jurídico
Antes de mais, importa começar por consignar que, contrariamente, ao que sustenta o recorrente, não se vislumbra qualquer nulidade da decisão administrativa ora em recurso.
De facto, e contrariamente ao que muitas vezes sucede, para além de ter apreciado as questões suscitadas pelo recorrente na fase administrativa, a decisão em crise pronunciou-se de forma expressa, mesmo ao nível dos factos provados, relativamente a toda a matéria de facto alegada pelo recorrente, retirando as respectivas consequências ao nível de direito.
Por outro lado, e uma vez que a invocada nulidade assenta, no entendimento do recorrente, no facto de a autoridade administrativa não se ter pronunciado, nem ter apreciado factos relativos à utilização dos resíduos em aterro do condomínio, sempre se dirá que é com grande estranheza que analisamos esta questão, pois foi o próprio recorrente que no ponto 15. da defesa que apresentou na fase administrativa que afirmou que os entulhos aí depositados visavam a sua reutilização numa obra de aterro e nivelamento do logradouro, não do referido prédio, mas de um outro cuja obra está a ser licenciada.
Em face de todo o exposto, e sem necessidade de qualquer outro considerando adicional, resulta manifesta a improcedência da sua pretensão de ver julgada nula tal decisão.
Por outro lado, igual estranheza nos causa a posição assumida pelo recorrente no que diz respeito ao invocado vazio legal na matéria que nos ocupa.
Certamente por lapso, não atentou o recorrente nos normativos legais abundantemente invocados e explorados na decisão administrativa, nomeadamente no D.L. 46/2008, de 12 de Março, que veio, precisamente, criar um regime jurídico próprio, estabelecendo normas técnicas relativas às operações de gestão de resíduos de RCD, em concretização do por si invocado art. 20º do D.L. 178/2006, de 5 de Setembro.
Por esse motivo, e sem necessidade de outras explicitações adicionais, não pode proceder, também, este concreto fundamento de recurso, na medida em que o diploma especial aplicado e aplicar ao caso dos autos é o D.L. 46/2008, de 12 de Março e só subsidiariamente o invocado D.L. 178/2006, de 5 de Setembro (por força do disposto no art. 22º do anteriormente referido D.L.), que como infra analisaremos regulamenta de forma cabal a conduta que constitui o objecto do processo.
Vejamos, então.
Nos termos do disposto no art. 3º, al. x) do D.L. 178/2006, de 5 de Setembro, «Resíduo de construção e demolição» é o resíduo proveniente de obras de construção, reconstrução, ampliação, alteração, conservação e demolição e da derrocada de edificações.
O conceito de resíduo inclui ainda: toda a substância, matéria ou produto de que o detentor tem obrigação de se desfazer (alíneas u) e xvi).
Dispõe, por seu turno, o art. 3º D.L. 46/2008, de 12 de Março, que “1- A gestão dos RCD é da responsabilidade de todos os intervenientes no seu ciclo de vida, desde o produto original até ao resíduo produzido, na medida da respectiva intervenção no mesmo, nos termos do disposto no presente decreto -lei.
2 - Exceptuam-se do disposto no número anterior os RCD produzidos em obras particulares isentas de licença e não submetidas a comunicação prévia, cuja gestão cabe à entidade responsável pela gestão de resíduos urbanos.
3 - Em caso de impossibilidade de determinação do produtor do resíduo, a responsabilidade pela respectiva gestão recai sobre o seu detentor.
4 - A responsabilidade das entidades referidas nos números anteriores extingue -se pela transmissão dos resíduos a operador licenciado de gestão de resíduos ou pela sua transferência, nos termos da lei, para as entidades responsáveis por sistemas de gestão de fluxos de resíduos.”
O art. 18º nº 1 do Decreto-Lei nº 46/2008, de 12 de Março, estipula que é contra-ordenação muito grave o abandono e a descarga de resíduos de construção e demolição em local não licenciado ou autorizado para o efeito.
Por sua vez, define o seu supra citado art. 3º als. a) e g) como:
- abandono: a renúncia ao controlo de resíduo sem qualquer benefício determinado, impedindo a sua gestão;
- descarga: como a operação de deposição de resíduos;
Ora, tijolo e cerâmica proveniente de obras de construção civil, face às normas citadas, integram, sem qualquer margem para dúvidas, e contrariamente ao sustentado pelo recorrente, o conceito jurídico de resíduo para efeitos da aplicação do disposto do 18º nº 1 do Decreto-Lei nº 46/2008, de 12 de Março e do Decreto-Lei nº 178/2006, de 05 de Setembro.
Assim, o recorrente não tem razão quando diz que aqueles materiais não são resíduos.
Dúvidas também não se nos colocam, em face dos factos que resultaram provados, que o recorrente abanou e descarregou aqueles resíduos em terreno da sua propriedade, não os tendo afectado a nenhum dos fins lícitos previstos na lei.
Importa a este respeito consignar que, para além de não ter resultado provado, em face do supra exposto, que o recorrente tivesse destinado aqueles resíduos a qualquer obra, sempre se dirá que a motivação por si avançada para a manutenção dos resíduos no terreno em causa jamais excluíra o carácter ilícito da sua conduta.
Uma vez que o material depositado pelo recorrente no seu terreno não pode ser classificado como solo e/ou rocha, afastamos, de imediato, a aplicabilidade ao caso vertente do regime referente à reutilização de solos e rochas.
Da conjugação de todas as normas previstas no D.L. 46/2008, de 12 de Março, resulta evidente que é possível a utilização de RCD em obra, mesmo em outras obras que não as de origem.
Contudo, e até nessa utilização, que implicava uma triagem e fragmentação de RCD, o seu produtor (neste caso o recorrente) estava obrigado a promover a reutilização de materiais e a incorporação de reciclados de RCD na obra; assegurar a existência na obra de um sistema de acondicionamento adequado que permita a gestão selectiva dos RCD; assegurar a aplicação em obra de uma metodologia de triagem de RCD ou, quando tal não seja possível, o seu encaminhamento para operador de gestão licenciado; assegurar que os RCD são mantidos em obra o mínimo tempo possível, sendo que, no caso de resíduos perigosos, esse período não pode ser superior a três meses; cumprir as demais normas técnicas respectivamente aplicáveis; efectuar e manter, conjuntamente com o livro de obra, o registo de dados de RCD, de acordo com o modelo constante do anexo II ao citado decreto-lei, do qual faz parte integrante, cfr. art. 11º do D.L. 46/2008, de 12 de Março.
Ora, para além de não ter resultado provado o cumprimento de nenhuma das referidas obrigações, resultou provado, tendo sido expressamente alegado pelo próprio recorrente, que os RCD não se encontravam, já, na obra levada a cabo, tendo, antes, sido depositados num outro terreno sua propriedade.
Em face do exposto, dos factos que resultaram provados e sendo a contra-ordenação em causa punível a título de negligência, nos termos do nº 4 do art. 18º, não se verificando qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, terá o recorrente que ser condenado pela prática do ilícito de que vinha acusado.
V. Da medida concreta da coima:
Na decorrência do supra exposto, o presente recurso cingir-se-á, de ora em diante, à apreciação da medida da coima aplicada, questão também submetida à apreciação do Tribunal.
A contra-ordenação em causa é punível com a coima de € 20.000,00 a € 30.000,00, uma vez que tem aplicação in casu o princípio da aplicação da lei mais favorável, neste caso a redacção do art. 22º da Lei 50/2006, de 29 de Agosto dada pela Lei 89/2009, de 31 de Agosto, por ter uma moldura abstracta da coima mais baixa.
Como é consabido, a regra é a aplicação da lei vigente no momento da prática dos factos, art. 3º nº1 do R.G.C.O.C.. A excepção é a aplicação da lei mais favorável quando a lei vigente ao tempo da prática do facto for posteriormente modificada, art. 3º nº 2 do R.G.C.O.C., como sucedeu no caso vertente.
No concernente à determinação da medida da coima rege o disposto no art. 20º da Lei 50/2006, de 29 de Agosto e no art. 18º do Regime Geral das Contra-Ordenações, segundo o qual esta se faz em função da gravidade, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da contra-ordenação.
Quanto à gravidade da contra-ordenação considera-se que esta se revela escassa atentos a concreta natureza dos resíduos depositados, os quais não revestem características de perigosidade considerável.
Por outro lado, e no que concerne à culpa do agente (entendida como juízo de censura que lhe é possível dirigir por não se ter comportado como devia, de acordo com a norma), entendemos que a mesma se revela mediana.
Relativamente à situação económica do recorrente, nada há que imponha uma elevação da coima, sendo que no que concerne ao benefício económico que a retirou da prática da contra-ordenação não resultou provado nada para além do sublinhado pela autoridade administrativa e respeitante às despesas inerentes ao adequado encaminhamento dos RCD.
Face à ponderação de todos os factos ora analisados considera-se, também, adequado fixar a medida concreta da coima no montante mínimo, portanto em € 20.000,00.
Entendemos, efectivamente, que a factualidade provada, não deixando de integrar o tipo contra-ordenacional em causa, não se compadece com punição superior à mínima legalmente prevista, a qual, diga-se, não obstante a diminuição ocorrida por força da última alteração legislativa continua a ser, em nosso entender, exagerada no que concerne ao seu mínimo legal.
Ao valor da coima em dívida acresce o pagamento de juros contados desde a data da notificação da decisão da autoridade administrativa ao recorrente, à taxa mínima estabelecida na lei fiscal, cfr. art. 53º da Lei 50/2006, de 29 de Agosto.
Tal como fez já em sede administrativa, o recorrente “solicitou” a suspensão da coima.
Ora, tal como salientado também já em sede de decisão administrativa, nos termos do disposto no art. 39º da supra citada Lei, não é possível suspender a aplicação da coima, mas sim de sanções acessórias, que in casu não foram aplicadas ao recorrente, pelo que nada há a suspender.
VI. Decisão:
Nestes termos o tribunal decide:
Julgar totalmente improcedente o recurso interposto, e em consequência manter a decisão administrativa que condenou o arguido:
- na coima de € 20.000,00, pela prática de uma contra-ordenação ambiental muito grave p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 18º, nºs 1 e 4 do D.L. 46/2008, de 12 de Março e 22º, nº 4 da Lei 50/2006, de 29 de Agosto, na redacção dada pela Lei 89/2008, de 31 de Agosto.
- nas custas do processo na fase administrativa no montante de € 50,00, nos termos do disposto no art. 58º da Lei 50/2006, de 29 de Agosto, na redacção dada pela Lei 89/2008, de 31 de Agosto.
Condenar o recorrente no pagamento das custas do processo da fase judicial, fixando-se (corrigindo-se) a taxa de justiça em 2 U.C.’s, nos termos do estipulado no art. 93º, nº 3 do R.G.C.O.; art. 8º, nº 4 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa a este diploma legal.
Em conformidade com o disposto no art. 75º do mesmo diploma legal, consigna-se que não é aplicável ao presente processo de contra-ordenação a proibição de reformatio in pejus.
Lida, vai a presente sentença ser depositada na secretaria deste Tribunal – cfr. artigos 372º, nº 5 e 373º nº 2 do C.P.P. ex vi art. 41º do R.G.C.O.C..
Notifique.
Comunique a presente decisão à autoridade administrativa, nos termos do artigo 70º, nº 4, do D.L. nº 433/82, de 27 de Outubro.”
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III. Apreciação do Recurso:
Nos termos do artigo 75.º do Decreto-Lei 433/82, de 27.12, nos processos de contra-ordenação, a segunda instância conhece apenas, por regra, da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões. Isto é, este Tribunal, no caso, funcionará, como tribunal de revista.
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (artigos 403.º, n.º 1 e 412º, nº 1 do Código de Processo Penal), as questões que vêm colocadas pelo recorrente são as seguintes: 1) Saber se deve ser considerado inconstitucional o artigo 66.º, do Decreto-Lei n.º 433/82, no segmento “não havendo lugar à redução a escrito”, se interpretada no sentido de que a prova não é gravada, no processo contra-ordenacional.
2) Saber se o facto provado n.º 9 deve ser considerado nulo.
3) Saber se há contradição entre os factos provados n.ºs 10, 11 e 12 e o facto não provado elencado sob a alínea b) e d) (e até f).
4) Saber se há uma correcta qualificação jurídica dos factos.
5) Saber se a execução da sanção principal pode ser suspensa.
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1) Da inconstitucionalidade do artigo 66.º, do Decreto-Lei n.º 433/82, no segmento “não havendo lugar à redução a escrito”, se interpretada no sentido de que a prova não é gravada, no processo contra-ordenacional:
Estamos perante uma questão que não suscita divergências de monta, ao nível da jurisprudência dos tribunais superiores.
Bem elucidativo disso é o Acórdão do TRG, de 3/5/2011, Processo n.º 6146/10.0TBBRG.G1, relatado pelo Exmo. Desembargador Fernando Chaves, in www.dgsi.pt, onde está condensada a respectiva posição, no qual pode ser lido o seguinte:
A recorrente suscita a inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 66.º e 75.º, n.º 1 do RGCO alegando que, ao impedirem o recurso da matéria de facto, violam o disposto no artigo 32.º, n.º 10 da Constituição da República Portuguesa. O artigo 66.º do RGCO estabelece que, salvo disposição legal em contrário, a audiência em 1ª instância obedece às normas relativas ao processamento das transgressões e contravenções, não havendo lugar à redução da prova a escrito. Por seu turno, o artigo 75.º, n.º 1 do RGCO, estatui que, se o contrário não resultar deste diploma, a 2ª instância apenas conhecerá de matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões. O Regime Geral das Contra-Ordenações prevê que a decisão de autoridade administrativa que aplica uma coima é susceptível de impugnação judicial (artigo 59.º, n.º 1), podendo recorrer-se para o Tribunal da Relação das decisões judiciais que apreciem aquela impugnação nos casos previstos nos nºs 1 e 2 do artigo 73.º do RGCO. Com este regime fica assegurado o direito à apreciação jurisdicional das decisões sancionatórias administrativas que apliquem coimas pela prática de contra-ordenações, e, nalguns casos, admite-se a existência de um duplo grau de jurisdição na reapreciação dessas decisões. Conforme referiu Eduardo Correia, “a contra-ordenação é um aliud que se diferencia qualitativamente do crime na medida em que o respectivo ilícito e as reacções que lhe cabem não são directamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal”( - Direito penal e de mera ordenação-social, no B.F.D.U.C., n.º XLIX (1973), pág. 268.). Na contra-ordenação o substracto da valoração jurídica não é constituído apenas pela conduta axiológico-socialmente neutra, sendo a proibição legal da mesma que lhe confere a qualificação de ilícita. Daí que a natureza puramente patrimonial da sanção que lhe é aplicável (a coima) se diferencia claramente, na sua essência e finalidades, das penas criminais, inclusive da multa. Esta variação do grau de vinculação aos princípios do direito criminal, e a autonomia do tipo de sanção previsto para as contra-ordenações, repercute-se a nível adjectivo, não se justificando que sejam aplicáveis ao processo contra-ordenacional duma forma global e cega todos os princípios que orientam o direito processual penal. A introdução do n.º 10 no artigo 32.º da C.R.P., efectuada pela revisão constitucional de 1989, quanto aos processos de contra-ordenação, e alargada, pela revisão de 1997, a quaisquer processos sancionatórios, ao visar assegurar os direitos de defesa e de audiência do arguido nos processos sancionatórios não penais, os quais, na versão originária da Constituição, apenas estavam expressamente assegurados aos arguidos em processos disciplinares no âmbito da função pública (artigo 270.º, n.º 3, correspondente ao actual artigo 269.º, n.º 3), denunciou o pensamento constitucional que os direitos consagrados para o processo penal não tinham uma aplicação directa aos demais processos sancionatórios, nomeadamente ao processo de contra-ordenação. Assim, o direito ao recurso actualmente consagrado no n.º 1 do artigo 32.º da C.R.P. (introduzido pela revisão de 1997), enquanto meio de defesa contra a prolação de decisões jurisdicionais injustas, assegurando-se ao arguido a possibilidade de as impugnar para um segundo grau de jurisdição, não tem aplicação directa ao processo de contra-ordenação. Conforme se sustentou no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 659/06, nos direitos constitucionais à audiência e à defesa, especialmente previstos para o processo de contra-ordenação e outros processos sancionatórios, no n.º 10 do artigo 32.º da C.R.P., não se pode incluir o direito a um duplo grau de apreciação jurisdicional( - Disponível em www.tribunalconstitucional.pt.). Esta norma exige apenas que o arguido nesses processos não-penais seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe sejam feitas, apresentando meios de prova, requerendo a realização de diligências com vista ao apuramento da verdade dos factos e alegando as suas razões. A não inclusão do direito ao recurso, no âmbito mais vasto do direito de defesa constante do n.º 10 do artigo 32.º da C.R.P. ressalta da diferença de redacção dos nºs 1 e 10, deste artigo, sendo que ambas foram alteradas pela revisão de 1997, e dos trabalhos preparatórios desta revisão, em que a proposta no sentido de assegurar ao arguido “nos processos disciplinares e demais processos sancionatórios…todas as garantias do processo criminal”, constante do artigo 32.º - B, do Projecto de Revisão Constitucional, n.º 4/VII, do PCP, foi rejeitada( - Vide o debate sobre esta matéria no D.A.R., II Série – RC, nº 20, de 12 de Setembro, de 1996, pág. 541-544, e I Série, nº 95, de 17 de Julho de 1997, pág. 3412 a 3466.). Aliás, como é sabido, constitui entendimento reiterado do Tribunal Constitucional que a Constituição não impõe o duplo grau de recurso em matéria de facto ( - Cfr., entre outros, os Acórdãos 73/2007, 386/2009 e 632/2009, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt.). Trata-se de jurisprudência constitucional consolidada, que se perfilha, não adiantando a recorrente, nem se vislumbrando, argumentos, fundamentos ou circunstâncias que não tenham já sido anteriormente ponderadas. Tem, por isso, de se concluir que as normas contidas nos artigos 66.º e 75.º, n.º 1 do RGCO não violam os direitos de audiência e defesa constantes do artigo 32.º, n.º 10 da Constituição. Improcede, portanto, a arguida inconstitucionalidade.
Não vemos razão para divergir da citada orientação, tanto mais que é aquela que este TRC acompanha - ver recente Acórdão de 25/1/2012, Processo, n.º 1511/10.5TBTNV.C1, relatado pela Exma. Desembargadora Maria José Nogueira, in www.dgsi.pt.
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2) e 3) Da nulidade do facto provado n.º 9 e da contradição entre os factos provados n.ºs 10, 11 e 12 e o facto não provado elencado sob a alínea b) e d) (e até f):
O recorrente coloca em causa determinada matéria de facto.
Nos termos do artigo 75.º, n.º1, do DL n.º 433/82, de 27/10, nos processos de contra-ordenação, a segunda instância apenas conhece, regra geral, da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões. Isto é, este Tribunal funcionará, no caso, como tribunal de revista. Todavia, de harmonia com o disposto no artigo 410º, n.º 1, do CPP, ex vi do artigo 74.º, n.º 4, do mesmo RGCO, “sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida”, razão pela qual poderá este Tribunal conhecer oficiosamente os vícios enumerados nas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410º, mas tão só quando os mesmos resultem do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum.
De facto, tem-se entendido que neste tipo de processo é admissível a revista alargada (da matéria de facto) decorrente da aplicação do regime do artigo 410.º do CPP. Estabelece o artigo 410.º, n.º 2, do CPP, que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova. Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente. A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito. A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada. Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, justamente aquele que é invocado no recurso, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes). Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74). Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.
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Pois bem, o recorrente começa por alegar, na sua motivação:
Cremos existir ainda insuficiência de matéria provada para condenar o arguido e – diremos até – a matéria provada deverá ser no sentido de o absolver, quer porque os factos são claros e não foram ponderados pelo Tribunal tendo em conta as regras da experiência e o texto da decisão recorrida.
De seguida, após fazer apelo a depoimentos prestados por certas testemunhas em audiência de julgamento, acrescenta:
O que pede o recorrente é que, julgando em conformidade às regras da experiência, possa esta Relação alterar matéria provada e não provada, o que é ainda possível nesta Relação, na medida em que com isso o que está a fazer é aplicar as regras da livre apreciação da prova, conjugando documentos, incluindo depoimentos do arguido e das testemunhas (perante autoridade administrativa) e tendo em conta a fundamentação da sentença.”
E, na sequência do exposto, conclui:
Assim, desde logo, tal raciocínio implicará que o facto dado como provado sob o n.º 9, por ser mera conclusão jurídica, deve ser considerado nulo, padecendo a sentença, desde logo, dessa nulidade.
Depois, as regras da experiência aconselham certamente a conjugar os documentos e os depoimentos das testemunhas e a concluir por contradição existente entre os factos 10, 11 e 12 com o facto dado como não provado elencado sob a alínea b e d (e até f).
Mas essa contradição em nada afecta a aplicação legal que a relação deve efectuar, no sentido de concluir o que as testemunhas disseram nos autos e perante autoridade administrativa, depoimentos esses que podem e devem ser analisados para verificar que as decisões são injustas.
O processo perante a autoridade administrativa não é um inquérito criminal em que o Juiz esteja impedido de ler o que consta da defesa.
Tudo o que acaba de ser exposto veio a ter reflexo nos números 3 a 7 das conclusões constantes do recurso.
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Salvo o devido respeito, o recorrente, apesar de se referir a “insuficiência de matéria provada para condenar o arguido” e a “contradição existente entre factos”, está, de alguma forma, a sair do âmbito que cabe no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, e a pretender fazer uma impugnação “ampla” da matéria de facto, quando apela ao que as testemunhas, em determinado momento, disseram, pois está a colocar em causa a matéria de facto através de elementos exteriores ao próprio teor da decisão recorrida, ou seja, está a posicionar-se ao nível já de um erro de julgamento, cuja análise teria que partir de uma apreciação concreta da prova, o que está vedado por lei, como já sabemos. Enfatize-se que, a propósito dos poderes de cognição deste Tribunal da Relação, o recurso interposto pelo recorrente está limitado, por imperativo legal, a matéria de direito.
Daí que esteja legalmente vedado a este Tribunal de 2.º instância a sindicância da matéria de facto que o tribunal a quo deu como provada e não provada.
Dito isto, há que focar a atenção naquilo que cabe apreciar, nos termos do citado artigo 410.º, n.º 2, do CPP.
Ora, não podemos deixar de afirmar que a alegação do recorrente é vaga, quando se refere aos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e da contradição entre certos factos.
Em que consiste a insuficiência e a contradição alegadas?
Em boa verdade, nada é concretizado pelo recorrente.
Assim sendo, e à míngua da respectiva concretização, resta apenas dizer que, analisada a motivação da sentença recorrida, bem como os factos dados como provados, não vislumbramos a existência de qualquer um dos vícios referidos no n.º 2 do artigo 410.º, do CPP.
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4) Da qualificação jurídica dos factos:
O recorrente entende, em síntese, que não há ilicitude no simples uso ou depósito de materiais de construção, porque o legislador não os tipificou em si como perigosos, sendo certo que se exige para o preenchimento do tipo de contra-ordenação em causa nos autos que se prove e conclua que os resíduos em causa contêm substâncias perigosas.
A sentença recorrida, quanto a esta matéria, não merece qualquer reparo.
Relembre-se o seu teor, naquilo que, para agora, é mais importante:
Nos termos do disposto no art. 3º, al. x) do D.L. 178/2006, de 5 de Setembro, «Resíduo de construção e demolição» é o resíduo proveniente de obras de construção, reconstrução, ampliação, alteração, conservação e demolição e da derrocada de edificações.
O conceito de resíduo inclui ainda: toda a substância, matéria ou produto de que o detentor tem obrigação de se desfazer (alíneas u) e xvi).
Dispõe, por seu turno, o art. 3º D.L. 46/2008, de 12 de Março, que “1- A gestão dos RCD é da responsabilidade de todos os intervenientes no seu ciclo de vida, desde o produto original até ao resíduo produzido, na medida da respectiva intervenção no mesmo, nos termos do disposto no presente decreto -lei.
2 - Exceptuam-se do disposto no número anterior os RCD produzidos em obras particulares isentas de licença e não submetidas a comunicação prévia, cuja gestão cabe à entidade responsável pela gestão de resíduos urbanos.
3 - Em caso de impossibilidade de determinação do produtor do resíduo, a responsabilidade pela respectiva gestão recai sobre o seu detentor.
4 - A responsabilidade das entidades referidas nos números anteriores extingue -se pela transmissão dos resíduos a operador licenciado de gestão de resíduos ou pela sua transferência, nos termos da lei, para as entidades responsáveis por sistemas de gestão de fluxos de resíduos.”
O art. 18º nº 1 do Decreto-Lei nº 46/2008, de 12 de Março, estipula que é contra-ordenação muito grave o abandono e a descarga de resíduos de construção e demolição em local não licenciado ou autorizado para o efeito.
Por sua vez, define o seu supra citado art. 3º als. a) e g) como:
- abandono: a renúncia ao controlo d
e resíduo sem qualquer benefício determinado, impedindo a sua gestão;
- descarga: como a operação de deposição de resíduos;
Ora, tijolo e cerâmica proveniente de obras de construção civil, face às normas citadas, integram, sem qualquer margem para dúvidas, e contrariamente ao sustentado pelo recorrente, o conceito jurídico de resíduo para efeitos da aplicação do disposto do 18º nº 1 do Decreto-Lei nº 46/2008, de 12 de Março e do Decreto-Lei nº 178/2006, de 05 de Setembro.
Assim, o recorrente não tem razão quando diz que aqueles materiais não são resíduos.
Dúvidas também não se nos colocam, em face dos factos que resultaram provados, que o recorrente abanou e descarregou aqueles resíduos em terreno da sua propriedade, não os tendo afectado a nenhum dos fins lícitos previstos na lei.
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O que interessa, no caso presente, é a circunstância dos resíduos existentes – e nenhuma dúvida pode haver quanto a estarmos na presença de resíduos - estarem espalhados, a céu aberto, em local impróprio, independentemente de serem perigosos ou não.
O teor do aludido artigo 18.º é o seguinte:
“1 - Constitui contra-ordenação ambiental muito grave o abandono e a descarga de RCD em local não licenciado ou autorizado para o efeito. 2 - Constitui contra-ordenação ambiental grave: a) O incumprimento do dever de assegurar a gestão de RCD, a quem, nos termos do previsto no artigo 3.º, caiba essa responsabilidade, com excepção dos casos previstos no n.º 1; b) O não cumprimento da obrigação de assegurar, na obra ou em local afecto à mesma, a triagem de RCD ou o seu encaminhamento para operador de gestão licenciado, em violação do disposto no artigo 8.º, na alínea c) do n.º 3 do artigo 10.º ou na alínea c) do artigo 11.º; c) A realização de operações de triagem e fragmentação de RCD em instalações que não observem os requisitos técnicos a que estão obrigadas nos termos do n.º 3 do artigo 8.º; d) A deposição de RCD em aterro em violação do disposto no artigo 9.º; e) A não elaboração do plano de prevenção e gestão de RCD, nos termos do artigo 10.º; f) A inexistência na obra de um sistema de acondicionamento em violação do disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 10.º ou na alínea b) do artigo 11.º; g) A manutenção de RCD no local da obra após a sua conclusão ou a manutenção de RCD perigosos na obra por prazo superior a três meses, em violação do disposto na alínea d) do n.º 3 do artigo 10.º ou na alínea d) do artigo 11.º; h) O incumprimento das regras sobre transporte de RCD, a que se refere o artigo 12.º; i) O não envio de certificado de recepção dos RCD em violação do disposto no artigo 16.º 3 - Constitui contra-ordenação ambiental leve: a) A alteração do plano de prevenção e gestão de RCD em violação do disposto no n.º 4 do artigo 10.º; b) A não disponibilização do plano de prevenção e gestão de RCD nos termos definidos no n.º 5 do artigo 10.º; c) Não efectuar o registo de dados de RCD ou não manter o registo de dados de RCD conjuntamente com o livro de obra nos termos da alínea f) do artigo 11.º 4 - A tentativa e a negligência são puníveis. 5 - Pode ser objecto de publicidade, nos termos do disposto no artigo 38.º da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, a condenação pela prática de infracções muito graves previstas no n.º 1, bem como de infracções graves previstas no n.º 2, quando a medida concreta da coima aplicada ultrapasse metade do montante máximo da coima abstractamente aplicável. 6 - A decisão de condenação pela prática das contra-ordenações previstas no presente artigo é comunicada ao Instituto da Construção e do Imobiliário, I. P., quando aplicada a empresários em nome individual ou sociedades comerciais que exerçam a actividade da construção.”
Como resulta da letra da lei, o n.º 1 do mencionado artigo não distingue entre resíduos perigosos e não perigosos, diferença que surge apenas na alínea g), do n.º 2, a propósito da manutenção de RCD no local da obra.
Logo, são inócuas, salvo o devido respeito, as considerações feitas sobre a falta de perigosidade de tijolos e cerâmica.
Dispõe o art.º 18.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 46/2008, de 12 de Março, que o abandono e a descarga de resíduos de construção e demolição em local não licenciado ou autorizado para o efeito, constitui contra-ordenação ambiental muito grave, sendo puníveis a negligência e a tentativa (n.º 4). Por seu turno, o art.º 22.º, deste diploma legal remete, subsidiariamente, para o Decreto-Lei n.º 178/2006, de 05 de Setembro, o qual, no seu art.º 3.º als. a), g) e x), define: - abandono: como a renúncia ao controlo de resíduo sem qualquer benefício determinado, impedindo a sua gestão; - descarga: como a operação de deposição de resíduos; e - resíduo de construção e demolição: como o resíduo proveniente de obras de construção, reconstrução, ampliação, alteração, conservação, demolição e derrocada de edificações. O conceito de resíduo inclui ainda: toda a substância, matéria ou produto de que o detentor tem obrigação de se desfazer (alíneas u) e xvi). Tijolo, pedra, areia, cimento, contentores e sacos de entulho proveniente de obras de construção civil, face às normas citadas, integram, pois, o conceito jurídico de resíduo para efeitos da aplicação do disposto do 18.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 46/2008, de 12 de Março e do Decreto-Lei n.º 178/2006, de 05 de Setembro. Assim, o recorrente não tem razão quando diz que os materiais em causa nos presentes autos não são resíduos. – ver, neste sentido, Acórdão do TRL, de 3/12/2009, Processo n.º 690/09.9TBSSB.L1-9, relatado pelo Exmo. Desembargador Moisés Silva.
Assim sendo, independentemente do destino a dar a tais materiais, o que é certo é que os mesmos estavam espalhados a céu aberto, havia já algum tempo, em desrespeito pelo respectivo regime legal, ao nível do seu acondicionamento e aos prazos para reutilização em obra, isto é, “a possível utilização futura e eventual dos referidos resíduos não retira a necessidade de obtenção de licença para o local de descarga”, como referido na decisão administrativa (fls. 46).
Por conseguinte, nada existe nos autos que afaste a ilicitude.
Relativamente à culpa do arguido, também ela está presente, pois, mesmo aceitando a circunstância de a falta de reutilização lhe ser alheia (dificuldades no início da nova obra, por falta de dinheiro), tal não levaria a que fosse consentida uma absoluta inércia da sua parte, relativamente ao depósito do material ora em causa no local fotografado nos autos, sob pena de ele lá permanecer, eventualmente, para sempre, o que seria, no mínimo, bizarro. Sempre, estaria o recorrente a providenciar pelo seu acondicionamento, enquanto se mantivesse a situação.
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5) Da suspensão da execução da sanção principal:
No que tange à última questão suscitada pelo recorrente, defende este que mal andou a sentença recorrida, ao entender que só a sanção acessória poderia ser suspensa na sua execução, adiantando que «o julgador leu na norma o que ela não contém: refere a mesma que a autoridade administrativa que procedeu à aplicação da sanção pode suspender, total ou parcialmente, a sua execução. Não só não contém isso como contém o inverso: a expressão “total ou parcialmente” tem o significado de admitir a suspensão da sanção principal e das acessórias.»
Vejamos.
O artigo 39.º, da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, diploma que aprovou a Lei-Quadro das Contra-Ordenações Ambientais, a propósito da suspensão da sanção, estabelece o seguinte: “1 - A autoridade administrativa que procedeu à aplicação da sanção pode suspender, total ou parcialmente, a sua execução. 2 - A suspensão pode ficar condicionada ao cumprimento de certas obrigações, designadamente as consideradas necessárias para a regularização de situações ilegais, à reparação de danos ou à prevenção de perigos para a saúde, segurança das pessoas e bens e ambiente. 3 - O tempo de suspensão da sanção é fixado entre um e três anos, contando-se o seu início a partir da data em que se esgotar o prazo da impugnação judicial da decisão condenatória. 4 - Decorrido o tempo de suspensão sem que o arguido tenha praticado qualquer contra-ordenação ambiental, e sem que tenha violado as obrigações que lhe hajam sido impostas, fica a condenação sem efeito, procedendo-se, no caso contrário, à execução da sanção aplicada.”
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Coloca-se, liminarmente, a questão de saber se o poder concedido à entidade administrativa no n.º 1 do citado artigo é extensivo ao tribunal (de 1.ª instância ou da relação) quando lhe cabe decidir o processo, por via dos recursos interpostos.
Com efeito, na previsão do artigo 39.º, da Lei n.º 50/2006, encontramos uma limitação expressa da norma ao poder da autoridade administrativa para proceder à aplicação da suspensão da sanção, o que bem se compreende em função dos específicos fins do regime aplicável às contra-ordenações ambientais.
Assim sendo, entendemos que a suspensão da execução da coima, no regime aplicável às contra-ordenações ambientais, apenas pode ser decidida pela autoridade administrativa.
De qualquer modo, admitindo a hipótese de diversa solução, não existiriam fundamentos para a suspensão da coima imposta ao arguido. O legislador vem entendendo, de há anos a esta parte, que o ambiente é um bem essencial à vida comunitária, tendo-o erigido à condição de valor constitucionalmente consagrado. Efectivamente, de acordo com o disposto no artigo 66.º, n.º 1, da CRP, «todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado».
Todavia, a suspensão da execução da coima nunca deveria ser decretada – mesmo em caso de conclusão do tribunal por um prognóstico favorável (à luz de eventuais considerações exclusivas de prevenção especial positiva), se a ela se opusessem finalidades de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico.
Embora não se mostrasse fácil, à luz das exigências contidas na prevenção a nível geral, o justo equilíbrio entre a aplicação de uma coima e o juízo positivo sobre a suficiência da advertência contida na suspensão da execução, afigura-se-nos que a prática da contra-ordenação apresenta contornos de gravidade, donde se concluiria pela insuficiência da pena de substituição no cumprimento das exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico.
Dizendo de outro modo: tendo em conta o caso concreto (atente-se que a defesa do ambiente passa, também, por uma componente estética), as elevadas exigências em termos de prevenção geral não suportariam, sem afectação, a aplicação da suspensão da coima.
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IV. Decisão: Desta sorte, e pelos fundamentos expostos, decidem os Juízes da 5ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
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José Eduardo Martins (Relator)
Maria José Nogueira