Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3089/07.8TALRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOURAZ LOPES
Descritores: NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
INDEMNIZAÇÃO
UNIÃO DE FACTO
Data do Acordão: 04/21/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 137º, 40º, 50º, 70ºE 71º DO CP E 495º,Nº3, 496º, Nº2, 562º A 566º DO CC
Sumário: 1A verificação de uma situação de negligência grosseira exige um comportamento do agente que ultrapassa claramente a simples falta de cuidado que segundo as circunstâncias está obrigado e que é capaz e, antes, evidencia uma conduta insensata, irreflectida e mesmo irresponsável no modo de agir.

2 De acordo com o princípio constitucional de ultima ratio que deve assumir a prisão, normativamente imposto no Código Penal, só deve ser aplicada uma pena de prisão quando a pena não privativa de liberdade não realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, e isto, independentemente do tipo de crime onde tal opção se constate.

3 A pena de multa não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição quando está em causa uma conduta praticada por um motorista profissional de veículos pesados que em excesso de velocidade não consegue fazer parar o seu veículo no espaço livre e visível à sua frente e com isso provoca a morte de um terceiro que circulava na mesma faixa de rodagem.

4.A pena de suspensão da execução da pena de prisão deve ser aplicada quando face ao circunstancialismo provado relativo à personalidade da arguida se evidenciar que as finalidades subjacentes à aplicação da pena não necessitam da efectivação da pena de prisão.

5.Em caso de concorrência de responsabilidades, por acidente de trabalho e viação, o devedor final é o terceiro responsável a título de acidente de viação e não o responsável a título de acidente de trabalho.

6. O direito à indemnização por danos patrimoniais futuros decorrentes do decesso do companheiro ou companheira de quem vive em união de facto, decorrente de uma obrigação natural, é independente da prova concreta da necessidade de alimentos.

7.Deve ser arbitrada indemnização por danos não patrimoniais à companheira pelo sofrimento e desgosto causados pela morte do seu companheiro com quem vivia em união de facto.

Decisão Texto Integral: I. RELATÓRIO.
No processo Comum singular n.º… foi o arguido D acusado da prática de um crime de homicídio por negligência p. e p. no art. 137º n 1 do Código Penal. No mesmo processo A. constituiu-se assistente e veio deduzir pedido de indemnização civil, requerendo a condenação de “S….Companhia de Seguros S.A.” na entrega da quantia de 442 788,53 Euros acrescida de juros de mora à taxa legal.

Efectuado o julgamento o tribunal decidiu:

1.Absolver D da prática de um crime de homicídio por negligência p. e p. no art. 137° n° 1 do C.P.;

2.Condenar D pela prática de um crime de homicídio por negligência grosseira p. e p. pelo art. 137 nº 1 e nº 2 do C. P., ocorrido a 30-…-2007, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses, suspensa a sua execução por idêntico período, sujeito a regime de prova;

3.Condenar a demandada a entregar às demandantes a quantia de 110 000 (cento e dez mil) Euros acrescida de juros de mora à taxa legal a contar da presente data;

4.Condenar a demandada a entregar às demandantes a quantia de 180 000 (cento e oitenta mil) Euros acrescida de juros de mora à taxa legal a contar da notificação até integral pagamento;

5.Condenar o arguido no pagamento das custas criminais, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC’s, e nos encargos, fixando-se m 1/4 daquela taxa de justiça a procuradoria e honorários;

6.Condenar as partes civis na proporção do decaimento.

Não se conformando com a decisão, o arguido e a Companhia de Seguros … SA vieram interpor recurso da mesma para este Tribunal, concluindo nas suas motivações nos seguintes termos:

a) Arguido:

1- O arguido foi acusado pelo crime de homicídio por negligência, previsto e punível pelo art.° 137°, n.° 1 do Código Penal. Entendeu o Tribunal a quo alterar a qualificação jurídica do crime que o arguido vinha acusado, imputando-lhe o crime de homicídio por negligência grosseira previsto e punível pelo art.° 137, n.° 1 e n.° 2 do Código Penal.

2- Face aos factos dados como provados na douta sentença, o recorrente aceita que os mesmos integram na violação do dever objectivo de cuidado, contudo não poderá concordar que tal violação foi cometida de forma grosseira.

3- Face à velocidade por si imprimida de 9OKmIh que era a permitida na via em que circulava e as marcas dos pneumáticos que deixou na via numa extensão de 39rn, entende o ora recorrente que todos estes factos não consubstanciam numa violação grosseira do dever de cuidado a que estava obrigado.

4- Ao demais, apesar de existir boa visibilidade, não poderia o arguido prever a que velocidade circulavam os veículos que seguiam à sua frente, dada a distância que os separava, apercebendo-se que a velocidade era reduzida à medida que se aproximou dos mesmos.

5- Atendendo às circunstâncias do acidente e à conduta do arguido, o mesmo violou o dever de cuidado a que estava obrigado mas não de urna forma totalmente desatenta, leviana ou não temerária, pois circulava a urna velocidade permitida para a via em causa, tentou imobilizar o veículo com uma relativa distância antes do embate e não tinha forma de efectuar qualquer manobra evasiva, pois circulavam outros veículos na mesma faixa de rodagem a ultrapassar.

6- Deveria o Tribunal a quo ter condenado o arguido pelo crime de homicídio por negligência, previsto e punível pelo art.° 137°, n.° 1 do Código Penal e não de homicídio por negligência grosseira.

7- Ao decidir o Tribunal a quo aplicar a pena de um 3 anos e seis meses de prisão, entende o recorrente ser tal pena excessiva e desproporcional, violando a aplicação do art.° 71°, n.°2 do C.P..

8- Atendendo ao circunstancialismo dos factos que originaram o acidente, à conduta e postura do arguido em sede de audiência e ao facto de não ter antecedentes criminais, deveria o Tribunal a quo condenar o arguido numa pena diversa da que aplicou.

9- Considerando que os factos integram a negligência grosseira, facto esse que prontamente discorda o recorrente, este considera como justa e adequada a pena de prisão de 2 anos, suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo.

10- Considerando que a qualificação jurídica dos factos integram o crime de homicídio por negligência, em conformidade com o art.° 71, n.° 2 do C.P., ser justa e adequada a pena de um ano e meio de prisão, suspensa a sua execução pelo mesmo período de tempo.».

B) Companhia de Seguros

DANOS FUTUROS.

1.

A demandante A não provou que carecia de alimentos, cfr. Art° 2020° do C.Civil Com efeito, na declaração de IRS junta pela mesma aos autos a fls..., consta que no ano dos factos (2007), a demandante declarou de rendimentos a verba de 12.549,08 € (Declaração Modelo 3, Anexo A), não existindo nesta mesma declaração no quadro 6 quaisquer declaração quanto aos rendimentos do falecido.

2.

Por outro lado, ficou provado que o acidente foi simultaneamente de trabalho e viação e que a seguradora encontra-se a liquidar as quantias de pensões por morte nos autos de acidentes de trabalho às demandantes.

3.

As demandantes optaram receber os danos futuros pela via do acidente de trabalho, nos termos do Ad° 31° da Lei 100/97 de 13/09. E, como as indemnizações por acidente simultaneamente de trabalho e viação não são cumuláveis, mas complementares, não podem as demandantes receber de ambos as responsáveis --- seguradoras --- igual indemnização, caso contrário a recorrente irá pagar em duplicado (às demandantes e à seguradora de acidente de trabalho).

4.

As demandantes poderiam, por mera hipótese, receber o valor que, relativamente ao salário do falecido --- em sede de acidentes de trabalho --- não estivesse a coberto.

5.

Mas, sucede que o facto provado inserto na ai. m) da douta sentença não pode ser dado como provado.

6.

Com efeito, só se poderá indicar o rendimento bruto do sujeito falecido (Sujeito Passivo A) que foi de 6.705,17 €, o que dará um salário mensal de 558,76 € (vejam-se as declarações da segurança social do falecido a fls..., que não foram impugnadas), ao qual se deverão deduzir os descontos em 20%, restando 447,00 €.

7.

O falecido necessitaria, para a satisfação das despesas pessoais, cerca de um terço do salário, isto é, 149,00 €, sobrariam 298,00 €.

8. Estando as demandantes a receber pensões de acidentes de trabalho no valor total de 312,12 €, ultrapassam, ainda, o salário do falecido, pelo que nada mais têm a receber em sede de danos futuros.

II - DIREITO À VIDA.

9.

Quanto ao valor atribuído nesta sede dir-se-á que é elevado, devendo, atenta a lei e a Jurisprudência, ser determinado por razões de equidade no valor de 50.000,00€.

III - DANOS NÃO PATRIMONIAIS DA VITIMA.

10.

Respeitosamente tais danos (10.000,00 €) não podem ser fixados, uma vez que nada foi provado a seu propósito.

IV - DANOS NÃO PATRIMONIAIS DA A.

11.

O valor fixado (20.000,00 €) é ilegal, por força do Art° 496°, n° 2 do Cód.

Civil:

“A norma excepcional do n°2° do art.496° C.Civ. não é aplicável ao denominado cônjuge de facto.” Ac. STJ de 11-07-2006 (Proc° 06B1835).

Ainda, Ac. do T.Constitucional n°210/2007 — 3 Secção — Proc° 778/06.

V) DIREITO:

Deste modo, foram, assim, violados, por manifesto erro de interpretação e aplicação os Art°s 3790, n° 1, ais. b) e c), 4100, n°2, ais. a, b e c) do Cód. Proc. Penal, Art°s 20200 e 570° do Cód. Civil e Art° 31° da Lei 100/97 de 13/09.

O Ministério Público, nas suas contra-alegações, no que respeita ao recurso do arguido, pronunciou-se pela improcedência do mesmo, entendendo no entanto no que respeita à medida concreta da pena que «não se nos repugnava que o mesmo fosse condenado em pena de prisão que rondasse os dois anos, sendo suspensa na sua execução»

As assistentes, nas suas contra-alegações manifestaram-se pela improcedência de ambos os recursos devendo a decisão ser mantida na íntegra.

O Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal da Relação manifestou-se pela procedência do recurso formulado pelo arguido alegando em síntese inexistir «matéria factual suficiente de que o arguido tenha cometido o crime de homicídio por negligência grosseira» sendo que isso tem que ter reflexo na medida concreta da pena. Nessa medida conclui que deve ser dado provimento ao recurso ou caso assim se não entenda, deve ser determinado o reenvio (parcial) do processo para novo julgamento.

II. FUNDAMENTAÇÂO

As questões a decidir:

Em face das conclusões e da motivação dos recorrentes são as seguintes as questões a decidir: I. Recurso do arguido: i) qualificação jurídica da factualidade provada como homicídio negligente simples ou grosseiro; ii) medida concreta da pena; II. Recurso da demandada: i) inexistência de danos futuros; ii) montante do valor atribuído ao direito à vida; iii) inexistência de danos não patrimoniais da vítima; iv) inexistência de danos não patrimoniais a A.

*

São os seguintes os factos PROVADOS sobre os quais importa decidir:

Da culpabilidade

a) No dia 30 de … de 2007, pelas 11.00h., o arguido conduzia o veículo com a matrícula ….-RD, pesado de mercadorias, pela Ai, no sentido sul/norte, e quando percorria o km 123,3 aproximou-se do veículo com a matrícula …-CP-12, ligeiro de mercadorias.

b) Nessa ocasião, o veículo …-CP-12 era conduzido por B a cerca de 50 km/h., como carro piloto, sinalizando a retaguarda de um transporte especial efectuado pelo conjunto formado pelos veículos …-DL-95, tractor, e E-…-BDZ, atrelado, que transportava uma viga de betão de cerca de 30 m..

c) Quando se encontrava a cerca de 50 m. do veículo ..-CP-12, o arguido deu-se conta que estava prestes a ir embater na parte traseira do aludido veículo pelo que travou, mas foi embater no aludido veículo, o qual foi projectado contra a viga de betão.

d) Em consequência do embate, B sofreu as lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas as quais foram causa necessária da sua morte.

e) No local, a via é de asfalto betuminoso, encontrava-se seca, possuía 7,60m. de largura e comportava duas faixas de trânsito no sentido sul/norte, conduzindo os referidos veículos na faixa da direita.

O No local, a via é inclinada, formando uma descida atento o sentido assinalado, e forma uma recta com visibilidade de cerca de 600m..

g) O arguido conduzia sem prestar a atenção devida aos veículos que seguiam à sua frente, imprimindo velocidade de cerca de 90 km!h..

h) O veículo por si conduzido deixou marcas de pneumáticos na via numa extensão de 39 m..

i) O arguido devia e podia ter previsto que com a sua conduta que sabia não lhe ser permitida, podia a vir causar a morte a qualquer pessoa, podendo ter adoptado conduta adequada a evitar a morte assinalada.

j) BI I nasceu a 8 de .. de 2005 e é filha de B e de A.

k) A e B viviam juntos e sob o mesmo tecto desde 17-..-2004, em harmonia, nutrindo ambos reciprocamente carinho e respeito, dando este dedicação e carinho a BI

1) Consta no assento de óbito de B a idade de 26 anos.

m) Era pessoa estimada, auferia mensalmente cerca de 788 Euros.

n) Tinha alegria em viver, trabalhador e era saudável.

o) Brincava com a sua filha.

p) BI sente a falta do pai B.

q) A morte de B foi um choque para a demandante A.

r) A obrigação de indemnização até ao montante de 615 000 Euros, decorrente da utilização do veículo …-RD estava transferida para a demandada, sob vencimento anual, com início a 28-12-2006, por acordo havido com M… S.A. titulado pela apólice n 9000287117.

s) A companhia de seguros “T” encontra-se a liquidar as quantias de pensões por morte nos autos de acidente de trabalho no montante de 187,27Eurosxl4 meses e 124,85Eurosxl4 meses a A e BI respectivamente.

Da determinação da sanção

t) O arguido não tem antecedentes criminais nem se mostra inscrita no registo individual de condutor a prática de qualquer infracção.

ii) O arguido aufere o subsídio de desemprego de 407 Euros, vive com a esposa, doméstica, e dois filhos estudantes de 13 e 18 anos.

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1.3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO

O Tribunal baseou a sua convicção na factualidade atinente à culpabilidade do arguido, e no que diz respeito à dinâmica do embate bem como à sua intervenção no facto:

-no documento de lis. 74 (disco de tacógrafo), bem como na leitura também realizada pela testemunha T, soldado da G.N.R., o qual em audiência veio esclarecer que a velocidade se situa entre 8OkmIh. e 100 km/h., tendo iniciado o percurso uma hora antes, retirando-se no que díz respeito ao referido documento que o mesmo se situa entre os referidos valores no ponto que corresponde a 90 km!h. conforme mecanograficamente se pode constatar.

-no documento de lis. 17 a 20 (“participação de acidente de viação”) elaborado pela testemunha Tiago Lopes, e que em audiência veio declarar que foi ao local quando o embate tinha ocorrido, procedeu a medições que exarou, bem como assinalou o estado do piso, marcas de travagem, e posição dos veículos.

-no depoimento de F, o qual conduzia o veículo que transportava a viga, que assinalou que o carro-piloto conduzido por B seguia atrás de si, assinalou que não viu o pesado conduzido pelo arguido na faixa esquerda, apercebe-se de fumo da travagem do pesado conduzido pelo arguido, acelera para dar espaço ao veículo-piloto logo atrás de si, e em cinco segundos acontece a colisão. Assinalou outrossim que o seu veículo e carro piloto continham pirilampos, e placas alusívas. Por último que eram vistos a mais de 500 m. e o percurso era em recta e em inclinação.

-nas declarações do arguido, o qual assinalou que conduzia o veículo pesado RD, com uma carga de paletes, vê os veículos da frente, sinalizados (referindo pirilampos), quando se prepara para ultrapassar, constata que não pode realizar tal manobra uma vez que vinham veículos na faixa esquerda, trava, vira à direita para desviar-se mas embate com a parte esquerda no veículo-piloto da frente, arrastando-o, entrando a viga dentro do carro-piloto. Explica que não podia guinar, pois caso assim fizesse capotava. Ora, estas declarações do arguido recebem credíbiidade uma vez que a testemunha F, o qual conduzia o veículo que transportava a viga, percepcionou que o veículo conduzido pelo arguido não foí à faixa esquerda e porque constatou outrossim que existiam veículos nessa faixa. A testemunha F revelou-se firme no seu depoimento, respondendo com naturalidade a todas as questões demonstrando coerência no seu discurso. Nó górdio probatório foi o seguinte ponto discursivo emitido pelo arguido e que não mereceu a credibilidade do Tribunal:

--o arguido declarou que a 100 m. avistou os veículos da frente, e mais adiante no seu discurso assinalou que a 150 m. travou, por fim assinalou que avistou a 150 m. e travou a 100 m.. Evidenciando algum nervosismo em audiência, algo que é perfeitamente humano e compreensível, nenhum destes valores têm apoio na restante prova e nas regras que estão acessíveis na Natureza ao ser humano, regras essas que, pela sua repetição no quotidiano (experiência, contacto empírico) ou pela sua clareza e evidência (contacto nouménico’) são admissíveis para julgar (art. lZ7 do C.P.P.). Ora, as marcas de travagem são de 39 m., conforme medição feita por testemunha já assinalada, por outro lado, como assinalou a testemunha F a visibilidade é superior a 500 m., por fim os veículos estavam sinalizados, conforme o próprio arguido e a testemunha F assinalaram, sendo que à hora em que conduzia o piso estava seco (logo não chovia) e daí que se retire que a visibifidade era máxima 600 m. e como se pode constatar dos docs. juntos a fis. 335, 336 e 337, mas mais: era uma recta em inclinação como afirma o arguido sabendo-se que a visibilidade de um veículo pesado é superior de um veículo ligeiro.

Ora, daqui se constata a completa falta de atenção do arguído.

Na verdade, o arguido já via os veículos da frente a 600 m., mesmo assim conduzia a cerca de 90 km/h., a via era inclinada e sabia que vinha carregado. Daqui se retira que o arguido conduzia a maior velocidade do que aquela que podia e devia concretamente conduzir, aínda para mais com o peso da carga que sabia transportar, não podendo guinar àquela velocidade como bem assinalou o arguido. Para além de que, como assumiu, por si passavam veículos na faixa esquerda, o que indicava que se desse conta em momento anterior à travagem que refere, o que seguramente não aconteceu. Só eficientemente trava a 39 m. Esta imagem retirada concretamente da velocidade que conduzia (dado objectivo), da colisão com veículo da frente (dado objectivo), e à visibilidade que existia (dado objectivo) impõe a consideração que se encontrava desatento e que era capaz de evitar o resultado pois via os veículos da frente sinalizados a cerca de 500 m., não podia passar para a faixa da esquerda, e mesmo tendo conduzido 10 000 km como assínalou e ter a carta de pesados há cerca de 18 meses, era capaz, pois o cálculo da distância para diminuir a velocidade com o peso que carregava era acessível como o é para um condutor atento. Mas algo mais se pode dizer quanto à desatenção. Assinalou a testemunha Francisco que, de forma credível como acima foi apontado, entre o veículo transportador da viga e o veículo piloto distavam 20m., ora a colisão fez arrastar em diante o carro-piloto de forma a que a viga entrasse no interior deste veículo. Ora, em travagem, os pneus a deitar fumo, e ainda por cima a colisão com a força capaz de arrastar o veículo da frente de forma a colidir com a viga, leva a concluir que foi a velocidade a que o arguido vinha que causou a colisão. Sendo a velocidade dominável pelo condutor, a gestão da mesma só a ele é imputável, e assim conclui-se, de igual forma, pela desatenção.

Os factos j) a t) dizem respeito ao pedido de indemnização civil.

O facto j) adveio do doc. de fis. 191 (cópia do assento de nascimento), o facto 1) adveio do doc. de Lis. 194 (cópia do assento de óbito), os factos k) a m advieram do teor do doc. de Lis. 192 emitido pelo Presidente da Junta de Freguesia de S. Estêvão, o qual foi analisado critícamente com os depoimentos de E, o qual assinalou que conhece o casal há cerca de 4 anos, sendo que há mais de 10 anos que conhecia B, viu a sua alegria pela vida, sendo dedicado à assistente e filha, e tendo assistido às brincadeiras entre este e a filha, e publicamente aparecia com a demandante A, sendo um “casal feliz” como declarou, não conhecendo doenças a B, demonstrando conhecer bem este assinalando como um “amigo a 100 De igual modo, atendeu-se ao depoimento de P e S as quais, conhecendo B há mais de 10 anos, conviviam com o mesmo. O facto p) adveio do facto de a testemunha P ter assinalado que a filha pergunta pelo pai. O facto q) advém da sua notoriedade. O facto r) advém do teor do doc. de Lis. 241 (apólice) e o facto s) adveio da informação constante a Lis. 256 emitida por companhia de seguros “T”. Relativamente ao rendimento atendi à nota de liquidação de i.r.s. a fis. 290, nela constando o rendimento global anual de 11 032,22 Euros, tendo dividido por 14.

Quanto à questão da determinação da sanção, teve ainda o Tribunal em consideração o certificado de registo criminal de folhas 210 e emitido a 16-12-2008, bem como r.i.c. a Lis. 297 e emitido a 26-1-2009, bem como a declaração do arguido, as quais prestadas de forma espontânea e isenta, me convenceram quanto à situação pessoal.

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Não obstante ter sido interposto após o recurso da demandada, conhece-se primeiramente do recurso do arguido tendo em conta que da sua procedência ou improcedência poderá resultar a inutilidade do conhecimento do recurso da parte civil.

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i) Qualificação jurídica da factualidade provada como homicídio negligente simples ou grosseiro.

A questão essencial em apreciação nos autos decorre da densificação interpretativa do que é o conceito de negligência grosseira, face à matéria de facto apurada no julgamento – que não foi posta em causa – e que o Tribunal, na sua decisão entendeu estar verificada, contrariamente à acusação formulada pelo Ministério Público, sustentada na prática pelo arguido de um crime p.p. pelo artigo 137º n.º 1 do C. Penal.

Para isso, correctamente, alertou o arguido da alteração da qualificação jurídica que pretendia fazer, ao abrigo do artigo 358º do CPP, nada tendo o arguido requerido nesse momento – cf. acta de fls. 338.

Sabida a distinção normativa entre o crime de homicídio por negligência simples e negligência grosseira, previstos nos artigos 137º n.º 1 e nº 2 do Código Penal, respectivamente é igualmente conhecida a ausência de conteúdo normativo do que separa uma e outra qualificação. Figueiredo Dias fala, a este propósito de que «não é seguro porém o que deva, em perspectiva dogmática, entender-se por negligência grosseira», acrescentado para uma tentativa de densificação da mesma distinção, que «a negligência grosseira constitui, em direito penal, um grau essencialmente aumentado ou expandido de negligência (cf. Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, p. 380). O mesmo autor sublinha que o «conceito implica urna especial intensificação da negligência não só ao nível da culpa, mas também do ilícito”, tornando-se, por isso, «indispensável que se esteja perante um comportamento particularmente perigoso e um resultado de verificação altamente provável à luz da conduta adoptada”. Mas, segundo o autor exige-se ainda e aqui certamente como um plus, ou seja uma outra (cumulativa) razão: «tem de se alcançar a prova autónoma de que o agente, não omitindo a conduta, revelou uma atitude particularmente censurável de leviandade ou de descuido perante o comando juridico-penal, plasmando no facto qualidades particularmente censuráveis de irresponsabilidade e insensatez» (ob. cit. p. 381). De igual modo, salientando este carácter superlativo do grau de culpa, Faria Costa refere «um alto e inqualificável teor de imprevisão (…) ou uma profunda ausência de cuidado elementar» (Direito Penal Especial, Coimbra, 2004, p. 94).

O que se pode retirar destas posições dogmáticas é que a verificação de uma situação de negligência grosseira exige, clara e objectivamente, um comportamento do agente que ultrapassa em muito a simples falta de cuidado, que segundo as circunstâncias está obrigado e que é capaz e, antes, evidencia uma conduta insensata, irreflectida e mesmo irresponsável no modo de agir.

Exemplos dessa situação encontramo-los no âmbito do exercício da condução, nos casos de demissão do condutor dos elementares deveres de precaução do exercício da condução, na condução temerária ou na condução efectuada de uma forma totalmente despreocupada de cuidados exigidos (veja-se, neste sentido o Ac, da R.E. de RE 19.11.91, CJ 1991 TV, p.260).

Sublinhe-se que na concretização e densificação do conceito devem, numa primeira fase afastar-se todas as questões relacionadas com as consequências do facto, que, por muito graves que possam ser, não devem condicionar uma interpretação objectiva do conceito.

O que se quer sublinhar, para o que interessa ao caso, é que há uma notória diferença entre o que é uma atitude negligente no exercício da condução do qual resulta a morte de um cidadão e uma atitude grosseiramente negligente do qual resulta a mesma morte de um cidadão que deve resultar do comportamento provado de que o condutor de uma forma leviana, irresponsável, irreflectida e sem levar em conta os mínimos princípios exigidos na actividade de condução, efectuava essa actividade.

A factualidade apurada em audiência, que não se discute, evidencia-nos com toda a clareza o comportamento do arguido no exercício da condução: o arguido conduzia o veículo pesado de mercadorias, pela A1, no sentido sul/norte (…) aproximou-se do veículo com a matrícula 35-CP-12, ligeiro de mercadorias (…) conduzido por B a cerca de 50 km/h, como carro piloto, sinalizando a retaguarda de um transporte especial efectuado pelo conjunto formado pelos veículos 99-DL-95, tractor, e E- -BDZ, atrelado, que transportava uma viga de betão de cerca de 30 m (..) e quando se encontrava a cerca de 50 m. do veículo -CP-12, o arguido deu-se conta que estava prestes a ir embater na parte traseira do aludido veículo pelo que travou, mas foi embater no aludido veículo, o qual foi projectado contra a viga de betão. Em consequência do embate, B sofreu as lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas as quais foram causa necessária da sua morte.No local, a via é de asfalto betuminoso, encontrava-se seca, possuía 7,60m. de largura e comportava duas faixas de trânsito no sentido sul/norte, conduzindo os referidos veículos na faixa da direita (…) é inclinada, formando uma descida atento o sentido assinalado, e forma uma recta com visibilidade de cerca de 600m.(…)O arguido conduzia sem prestar a atenção devida aos veículos que seguiam à sua frente, imprimindo velocidade de cerca de 90 km!h.

É certo, como bem se refere na decisão de primeira instância que «objectivamente o arguido não regula a velocidade de forma a não embater no veículo da frente» e a «sua falta de cuidado incrementou um risco, risco esse de matar ou ferir alguém». De igual modo não se questiona a bem fundada alusão na sentença de que «o cuidado a ter era acessível ao arguido , para tal bastava estar atento». Daí que sem qualquer dúvida o arguido ao conduzir da forma referida actuou claramente de uma forma negligente.

O que de todo está demonstrado é que o arguido tenha actuado de uma forma leviana, irresponsável, irreflectida e sem levar em conta os mínimos princípios exigidos na actividade de condução, exigências mínimas mas densificar o conceito de negligência grosseira estabelecido no artigo 137º nº 2 do CP.

É certo que os veículos circulavam numa recta com boa visilibilidade e o arguido tinha o dever de estar atento aos veículos que circulavam na mesma via. No entanto ficou demonstrado que o arguido, quando constatou o «obstáculo» (provavelmente tarde de mais) travou (a cerca de 50 metros) não evitando, no entanto o embate.

Ou seja, sendo a sua conduta claramente negligente, por conduzir em excesso de velocidade («na medida em que não adequou a velocidade de modo a, atenta as características da via e do veículo, à carga transportada (…) fazer parar o veículo no espaço vi´sivel à sua frente», de acordo com o artigo 24º n.º 1 do Código da Estrada) não pode, de todo, concluir-se por ser uma conduta grosseiramente negligente.

O plus exigido para que se evidencie uma conduta particularmente censurável do agente não se evidencia na conduta do arguido (diferente seria, por exemplo, a situação de o arguido nem sequer se ter apercebido no veículo que circulava à sua frente e ir nele embater sem efectuar qualquer travagem ou mudança de direcção).

Assim sendo importa dar razão ao recorrente e nessa medida decidir que a sua conduta, com base nos factos provados consubstancia um crime de homícidio negligente previsto e punível pelo artigo 137º n.º 1 do Código Penal.

ii) Da medida da pena

Tendo em conta a decisão proferida, a moldura penal do crime cometido a pena segundo o artigo 137º n.º 1 do C. Penal está normativamente estabelecida em pena de prisão até três anos ou pena de multa.

Estabelece o artigo 70º do C. Penal que que se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, ou seja, segundo o preceituado no art. 40 n.° 1 do mesmo diploma legal, garanta (..) a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

A prévia opção pelo tipo de pena, privativa ou não privativa de liberdade, que é dada ao Tribunal quando é confrontado com tipos penais que estabelecem essa alternativa não é uma opção arbitrária nem sujeita a critérios subjectivos do Tribunal.

Na concretização vinculativa do princípio constitucional de ultima ratio que deve assumir a prisão, normativamente imposto no Código Penal, só deve ser aplicada uma pena de prisão quando a pena não privativa de liberdade não realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Isto independentemente do tipo de crime onde tal opção se constate.

No caso em apreço estamos na presença de um crime de homícidio por negligência, de natureza rodoviária, cometido por um arguido que nunca cometeu qualquer crime nem qualquer infracção de natureza rodoviária.

A conhecida taxa criminológica de crimes de homicídio por negligência (ou outros crimes de natureza rodoviária com consequências trágicas) é no entanto uma condicionante que os Tribunais não podem deixar de omitir na apreciação e interpretação da lei penal, quando estão em causa comportamentos desta natureza. Não querendo nem podendo ultrapassar a lei o que é certo é que a realidade da criminalidade rodoviária é uma condicionante fortíssima em todo o processo de aplicação de penas efectuada pelos Tribunais neste domínio.

Não se trata de ir tão longe como alguma jurisprudência já tem ido, nomeadamente na defesa de penas curtas de prisão para alguns destes crimes (diz-se, no Ac. STJ de 6.12.2002, relator Pereira Madeira, in www.dgsi.pt que «também o Supremo Tribunal de Justiça aceita, como princípio de tratamento penal preventivo mais adequado ao desenfreado e cada vez mais alarmante desregramento em matéria de tráfico rodoviário, a necessidade premente, (…) de recurso às penas de prisão, ainda que por vezes de curta duração - short sharp shock».

Trata-se de sublinhar, como refere Anabela Rodrigues, que «a prisão – se cumprido o programa de alargamento de margens legais no âmbito das quais se pode recorrer a penas de substituição e se a tipologia destas penas, por sua vez, também for suficientemente ampla – deve ver a sua aplicação reduzida aos casos de cometimento de crimes mais graves, em que uma reacção através de outras formas de pena não poderia assegurar o efeito essencial de prevenção geral desejado», cf. «Sistema punitivo português. Principais alterações ao Código Penal Revisto», Sub Júdice, nº 11 p. 32.

E o crime de homicídio, mesmo cometido de forma negligente e sobretudo envolvendo actos ocorridos no âmbito rodoviário, revestem uma gravidade cuja dimensão é por toda a sociedade sublinhada.

O que se quer dizer é que esta constatação não pode deixar imunes os Tribunais mesmo no âmbito da escolha da pena, quando, como no caso do artigo 137º nº 1 são disponibilizadas penas alternativas à prisão.

Daí que se entenda que face à situação em causa nos autos em que a actuação culposa do arguido, embora não atingindo o grau de negligência grosseira não deixa de ter uma dimensão grave, imponha a conclusão que não se vê que a pena de multa, no caso realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Nomeadamente quando está em causa a dimensão de protecção de bens jurídicos como seja a vida quando postos em causa por actividades com um grau de risco como a actividade rodoviária por uma conduta praticada por um motorista profissional de veículos pesados que em excesso de velocidade não consegue fazer parar o seu veículo no espaço livre e visível à sua frente e com isso provoca a morte de um terceiro que circulava na mesma faixa de rodagem.

Quanto à medida concreta vale a pena sublinhar que esta operação jurídica assume-se como o cuore da actividade jurisdicional de um qualquer Tribunal. É aqui, na fixação concreta da medida de uma pena estabelecida no âmbito de uma moldura abstracta que se evidencia a arte e o engenho do juiz, obedecendo no entanto a um rigoroso cumprimento da Lei, seja das normas estabelecidas no Código Penal (artigos 40º, 70º e 71º) seja dos princípios constitucionais que se evidenciam como orientadores primários da interpretação jurídico penal.

Como se sabe é na culpa do agente e nas razões preventivas (gerais e especiais) que se encontram as guias fundamentais para fixar a pena devida em determinado caso, sendo que o Código penal estabelece um limite inequívoco e inultrapassável onde tem que assentar a medida da pena: a medida da culpa. É este o limite que nenhum razão de prevenção pode ultrapassar, de acordo com a imposição normativa estabelecida no artigo 40º n.º 2 do Código Penal. Não há pena sem culpa nem a pena pode, na sua dimensão concreta, ultrapassar a medida da culpa («limite inultrapassável», refere Gonçalves da Costa in «A Parte Geral no Projecto de Reforma do Código Penal Português», Revista Portuguesa de Ciência Criminal ano 3, Abril/Dezembro 1993, p. 330 e 333 e no mesmo sentido Margarida Silva Pereira in «Relatório e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos Liberdades e Garantias sobre a Proposta de Lei 92/VI» – que reviu o Código Penal, in Sub Judice, nº 11, p.11.)

É certo que nas finalidades da pena surge inequivocamente a necessidade de proteger bens jurídicos como elemento fundamental. O que impõe que na fixação da pena concreta se leve em consideração a dimensão da prevenção, geral e especial, como aliás decorre do artigo 71º n.º 1.

Prevenção que, no entanto, como vem sendo absolutamente assumido pela doutrina e jurisprudência de uma forma inequívoca, respeitando aliás a imposição legislativa, se assume como uma prevenção geral de integração.

E se este é o quadro geral sobre o qual assenta a referida «arte e engenho» de aplicar concretamente a pena (todas as penas, diga-se), no que respeita à pena de prisão dever referir-se que é inequívoca a assumpção legislativa (com suporte constitucional) de que a pena de prisão assume-se como ultima ratio no leque de penas aplicáveis.

Ora esta dimensão de ultima ratio tem implicações em todo o sistema penal tanto na escolha da pena, como na medida concreta, nomeadamente quando estão em causa a determinação do quantum da pena de prisão já escolhida como adequada, em função da culpa, ao agente. É essa imposição que decorre do artigo 70º.

Vista a dimensão teórica do problema importa atentar na situação dos autos.

E aqui temos, na concretização da estatuído no artigo 71º n.º 2 do C. Penal, para além de toda a dinâmica do acidente onde é visível o carácter ilícito da conduta do arguido assumir um carácter relativamente acentuado e o seu grau de culpa, os parcos factos provados relativamente à personalidade do arguido - O arguido não tem antecedentes criminais nem se mostra inscrita no registo individual de condutor a prática de qualquer infracção; O arguido aufere o subsídio de desemprego de 407 Euros, vive com a esposa, doméstica, e dois filhos estudantes de 13 e 18 anos – que permitem concluir por uma personalidade socialmente integrada. De igual modo há que atentar na própria afirmação do Tribunal da 1ª instância que relevou o facto de o arguido se ter mostrado colaborante – circunstância que também decorre da fundamentação da matéria de facto efectuada pelo Tribunal.

Assim sendo entende-se adequado cominar ao arguido uma pena de prisão de 1 ano e 9 meses de prisão, que no entanto, desde já se diga ser de «elementar justiça», como se refere, bem, na decisão de primeira instância ser de substituir por uma pena de prisão suspensa. Pelas razões que se referem naquela decisão, mas sobretudo pelas razões que subjazem à exigência de suspensão da pena de prisão se encontrarem claramente verificadas: a concretização de um juízo de prognose efectuado no sentido de apurar se face ao circunstancialismo provado relativo à personalidade da arguida é possível evidenciar-se que as finalidades subjacentes à aplicação da pena não necessitam da efectivação da pena de prisão.

E esse juízo é, no caso, positivo. O arguido é primário, está socialmente integrado, tem família a seu cargo e sendo motorista – conforme decorre da sua identificação – está actualmente numa situação difícil de desemprego.

Daí que se entenda ser de suspender a execução da pena de prisão por idêntico período.

II. Recurso da demandada.

i) Inexistência de danos futuros da demandante A
Duas questões são suscitadas pela recorrente a propósito desta matéria: em primeiro lugar o facto de, segundo o recorrente, a demandante A não ter direito a danos futuros porque não provou que carecia de alimentos. Em segundo lugar ter ficado provado que o acidente em causa ter sido simultaneamente um acidente de trabalho e de viação e existir já uma seguradora (Tranquilidade) que se «encontra a pagar as quantias de pensão por morte nos autos de acidente de trabalho no montante de 187,27€ x 14 meses a A e BI sendo as indemnizações cumuláveis.

Vejamos cada uma das questões.

No que respeita à primeira questão importa sublinhar, como se refere, bem, na decisão da primeira instância a demandante A vivia em união de facto com a vítima há mais de dois anos.

Não há, actualmente, dúvida de que assiste ao companheiro que sobrevive àquele com viveu em união de facto, o direito a ser ressarcido pela perda de alimentos, numa situação subssumível à de uma obrigação naturalcf. os Ac. da RE de 24/01/95, BMJ 443º, p. 461, STJ de 14/10/97, C.J. Ano V- T. III, 61 e da Relação de Coimbra de 18.10.2005 in www.dgsi.pt. Conforme de refere neste último aresto, «tornando-se patente a crescente preocupação do legislador de reconhecer vários efeitos à união de facto, mal seria que não se pudesse aceitar o direito do companheiro sobrevivente em caso de morte da vítima a ser indemnizado pela perda de alimentos que esta lhe prestava, numa situação subsumível à de uma obrigação natural. È que sendo certo que não gerando a união de facto uma obrigação alimentar durante a sua vigência, a verdade é que dela resulta para cada um dos seus membros, uma obrigação de contribuir para as despesas da família que constituiram, muito embora não fundamentada em título próprio».

Conforme vem sendo decidido pelo STJ, no entanto, «não são a necessidade da prestação alimentar e a sua medida - que reporta ao disposto nos arts. 2003º, nº1º, e 2004º, nº2º - que efectivamente balizam a indemnização do dano previsto no art. 495º, nº3º. O direito de indemnização atribuído aos lesados indirectos na hipótese prevenida nesse preceito tem, como qualquer outro, a medida estabelecida nos arts.562º ss (…). O quantum dessa indemnização deve, conforme arts.562º, 564º e 566º, repor a situação que existia no momento da lesão. Assim, e desde logo em vista dos arts.562º a 564º, em que se consagra a denominada teoria da diferença, o direito de indemnização de que são titulares as pessoas referidas no art.495º, nº3º, é, como, aliás, a própria letra desse preceito inculca independente da necessidade efectiva de alimentos. Como, nomeadamente, estipulado no art.563º, - e bem que a tal limitada, como determina o advérbio " só " omitido na transcrição que segue -, " a obrigação de indemnização (...) existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão ". Quer isto dizer que também aos lesados indirectos quer a lei que se atribua o que na realidade perderam : e vem isso, muito claramente, a ser tudo aquilo com que o lesado directo efectivamente os vinha beneficiando e provavelmente continuaria a beneficiar se não tivesse falecido. Com a morte do lesado directo ocorre efectiva perda patrimonial, em termos de previsíveis danos futuros, correspondente ao que o falecido vinha efectivamente prestando, ou, quando não assim, poderia eventualmente vir a prestar, à família. Não fora a lesão do direito à vida do lesado directo, os ora recorridos, lesados indirectos ( ou por reflexo ) com essa morte, podiam sempre contar, com toda a probabilidade, beneficiar no futuro da parte dos rendimentos daquele que o mesmo lhes vinha habitualmente atribuindo ou poderia eventualmente vir a atribuir-lhes. Os danos indemnizáveis ora em questão são, desde logo, constituídos por tudo quanto, independentemente do montante de alimentos eventualmente exigível, - e sem com tal, enfim, qualquer correlação -, o lesado directo efectivamente prestava, e com toda a probabilidade continuaria a prestar, à família, incluindo o cônjuge de facto, se fosse vivo» - cf. Ac STJ 11.07.2006 in www.dgsi.pt.

Ou seja o direito à indemnização por danos patrimoniais futuros decorrentes do decesso do companheiro ou companheira de quem vive em união de facto, decorrente de uma obrigação natural, é independente da prova concreta da necessidade de alimentos.

Tal jurisprudência obviamente que no caso em apreço tem a sua tradução directa.

Não tinha, por isso, a demandante, titular do direito à indemnização, nos termos do artigo 495º n.º 3 do Código Civil, que provar para efeitos de ressarcimento de danos futuros, que carecia de alimentos.

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Quanto à segunda questão relacionada com a dupla natureza de acidente de viação e de trabalho.

É efectivamente jurisprudência uniforme e pacifica que não são cumuláveis as indemnizações recebidas por acidente de trabalho que é simultaneamente de viação, sendo, ao contrário, complementares uma da outra quando decorram do mesmo facto (cf. por todos os Ac. STJ de 24.1.2002, Ac. RP 31.3.2004 ambos em Acidentes de Trabalho, Jurisprudência, coord. Luis Azevedo Mendes, Jorge Loureiro, Colectânea de Jurisprudência, Edições, 2009, pp 208 e 477 e Ac. STJ de 6.3.2007 in www.dgsi.pt.

Se assim não fosse, verificar-se-ia uma cumulação de indemnizações pelo mesmo dano, determinante de um locupletamento injusto. Nesse sentido a jurisprudência refere que «as duas indemnizações apenas se poderão complementar até ressarcimento integral do dano causado» (cf. Ac STJ de TJ de 6.3.2007, citado, in www.dgsi.pt .

É também jurisprudência pacífica que em caso de concorrência de responsabilidades (por acidente de trabalho e viação) o devedor final é o terceiro responsável a título de acidente de viação e não o responsável a título de acidente de trabalho (cf. Ac STJ 22 de Setembro de 2004 in Acidentes de Trabalho, Jurisprudência, cit, p. 483.

Ora no caso dos autos estamos em presença de uma situação em que o sinistro em causa consubstanciou efectivamente um caso de acidente de trabalho e acidente de viação. É no processo agora em apreciação que está a ser determinada a responsabilidade civil (para além da penal) do sinistro que, não sendo questionada após a decisão da primeira instância, se atribui à demandada S, Companhia de Seguros SA.

É esta entidade, por virtude do contrato de seguro efectuado, que assume a responsabilidade pelos danos decorrentes do sinistro. E assume efectivamente a responsabilidade em primeira linha por todos os danos que foram percepcionados e determinados decorrentes do acidente.

Questão diversa será o facto de a seguradora que assumiu a responsabilidade do acidente de trabalho, consubstanciada no montante da pensão já fixada, ter que desonerar-se do que assumiu, ainda antes de determinada a responsabilidade civil pelo acidente, o que só agora aconteceu. Nesse sentido também a jurisprudência tem vindo a afirmar e bem que os responsáveis pelo acidente de trabalho têm direito a suspender o pagamento de futuras pensões até ao montante da indemnização que em sede de acidente de viação ressarciu o dano patrimonial emergente (cf. Ac STJ 22.9.2004, citado). Mas esse é um procedimento que a entidade seguradora que foi responsável pelos danos laborais terá que efectuar em sede própria.

No caso, o Tribunal de primeira instância fixou os danos emergentes de uma forma legalmente sustentada e imputou-os a quem tinha a responsabilidade pelo seu pagamento – a Sagres, Companhia de Seguros SA.

Assim sendo não tem qualquer razão a recorrente.

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ii) Montante do valor atribuído ao direito à vida;

A recorrente insurge-se quanto ao valor fixado na primeira instância pelo direito à vida que entende ter sido fixado num montante elevado, propondo a sua fixação em 50 000,00 €.

A reparação monetária do dano não patrimonial decorrente do direito à vida é hoje normativamente assumida como um dos danos indemnizáveis em caso de morte, no âmbito das lesões decorrentes de acidentes de viação. É absolutamente inequívoco, nesse sentido, o artigo 2º da Portaria 377/2008 de 26 de Maio, actualizada pela Portaria n.º 679/2009 de 25 de Junho.

Na fixação do dano não patrimonial identificável como o direito à vida da vítima (ou noutra expressão, «o dano de morte»), há que ponderar que a natureza desta indemnização é mais compensatória do que verdadeiramente reparadora do dano não patrimonial decorrente da perda da vida, por si só insusceptível de avaliação pecuniária. Daí que as Portaria referidas levem em consideração a idade da vítima como valor de ponderação, numa grelha objectiva que pretende criar alguma guias na atribuição da indemnização devida, mas que não deixa de ser apenas indiciadora do montante da indemnização a arbitrar. Nesse sentido foram fixados os limites da idade das vítimas até aos 25 anos, entre 25 anos e 49 anos, entre 50 e 75 anos e mais de 75 anos – cf. anexo II das referidas Portarias citadas.

Tendo em conta a idade da vítima (26 anos) o valor fixado pela primeira instância (€ 60 000,00 euros) embora ligeiramente acima do que é referido pela Portaria em causa como valor indicativo para a indemnização daquele dano, é absolutamente razoável e está dentro dos parâmetros que a jurisprudência tem vindo a utilizar.

Sublinhe-se mais uma vez que os valores referidos naquelas Portarias não podem deixar de ser meramente indicativos e nunca como «tabela» fechada que deva ser cegamente seguida.

Nesse sentido nada há que alterar ao quantitativo fixado.

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iii) Inexistência de danos não patrimoniais da vítima;

Relativamente a este ponto da decisão vem a recorrente invocar que nada foi provado a seu propósito na sentença, sendo que o Tribunal fixou o montante indemnizatório devido por tais danos em € 10 000, 00 (dez mil euros).

Importa antes de mais esclarecer que o que está em causa neste domínio da indemnização é a dor sofrida pela própria vítima e que, conforme refere Sousa Diniz («Avaliação e Reparação do Dano patrimonial e não patrimonial», revista JULGAR, nº 9 Outubro Dezembro 2009 p. 37), é «cada vez maior consoante o tempo de sobrevivência».

No caso em apreço o que está em causa, nesta dimensão do ressarcimento dos danos causados por virtude da conduta ilícita e culposa do causador do evento é saber se existem danos não patrimoniais da vítima a ressarcir sabido que, conforme está demonstrado que quando circulava «a cerca de 50 m. do veículo 35-CP-12, o arguido deu-se conta que estava prestes a ir embater na parte traseira do aludido veículo pelo que travou, mas foi embater no aludido veículo, o qual foi projectado contra a viga de betão. Em consequência do embate, Bruno Miguel Lopes Grou sofreu as lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas as quais foram causa necessária da sua morte».

Sendo estes os factos provados na sentença importa referir que decorre também dos documentos juntos ao processo (fls 6 e 18) que a vítima «foi assistida por uma equipa do INEM e pelos Bombeiros Voluntários de Fátima, tendo sido transportada ao Hospital de Sto André de Leiria» e «chegou cadáver ao serviço de urgência no dia 30.10.07, às 12h09».

Ou seja não sendo possível determinar exactamente o momento da morte da vítima existe a prova de que a mesma ocorreu não muito tempo depois do embate.

Ora tais factos estando no processo deveriam ter sido levados em consideração pelo Tribunal para efeitos de consolidação do quantitativo indemnizatório.

Assim sendo verificando-se uma situação de insuficiência da matéria de facto, nesta parte da decisão, pode este Tribunal, oficiosamente, nos termos do artigo 410º n.º 2 e 431º alínea a) do CPP, acrescentar aos factos essa relevante matéria para dela extrair as conclusões jurídicas pertinentes.

Desta forma, relevando a factualidade em causa – a vítima «foi assistida por uma equipa do INEM e pelos Bombeiros Voluntários de Fátima, tendo sido transportada ao Hospital de Sto André de Leiria» e «chegou cadáver ao serviço de urgência no dia 30.10.07, às 12h09» - levando em consideração o valor estabelecido nas Portarias acima referidas quanto ao dano da própria vítima, apenas de uma forma indicativa, como se referiu entende-se que o valor a que o Tribunal de primeira instância chegou está relativamente inflacionado, em função de outras decisões jurisprudenciais recentes do STJ, nomeadamente o Ac de 13.01.2010 in www.dgsi.pt.

Nesse sentido, tendo em conta os critérios indiciários referidos e sobretudo o princípio da equidade em que deve sustentar-se a fixação da indemnização, entende-se como adequado fixar esse dano em € 5 000,00.

iv) Inexistência de danos não patrimoniais a A.

Segundo o recorrente, o valor fixado pelo Tribunal relativo ao dano não patrimonial da companheira da vítima, A (€ 20 000,00) é ilegal, porquanto a norma do artigo 496º n.º 2 do Código Civil, não se aplica ao cônjuge de facto.

Antes de mais há que sublinhar que está demonstrado na decisão que «A e B viviam juntos e sob o mesmo tecto desde 17-.2004, em harmonia, nutrindo ambos reciprocamente carinho e respeito dando este dedicação e carinho a BI (filha de ambos, nascida a 8….2005.

Importa por isso, atentar no quadro jurídico nacional respeitante à união de facto e às suas repercussões no domínio da atribuição de direitos ao companheiro sobrevivo, nomeadamente na Lei nº 7/2001 de 11 de Maio.

Como se sabe, no ordenamento jurídico nacional, não há uma equiparação entre a união de facto e o casamento como forma de união conjugal.

O legislador nacional tem sido claro em não equiparar as duas formas de união conjugal, nomeadamente nos seus efeitos patrimoniais, especificamente decorrentes da cessação da convivencialidade, seja através da morte de um dos elementos do casal seja através de outra forma de dissolução.

Não se questionando essa legitima opção legislativa importa no entanto, atentar na situação concreta dos danos não patrimoniais e do regime estabelecido na lei que afasta o companheiro de facto da titularidade dos danos não patrimoniais, nomeadamente os danos nãos patrimoniais decorrentes da morte da vítima, estabelecida pelo artigo 496º n.º 2 do CCivil.

A jurisprudência dos Tribunais Superiores, numa interpretação claramente formalista, tem sido praticamente unânime a entender que só o cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e os filhos ou outros descendentes têm direito, em primeira linha a esta indemnização. Em segunda linha, ou seja, na falta daqueles esse direito cabe aos pais ou outros descendentes. Finalmente, em terceira linha, não existindo nenhum dos outros, caberá aos irmãos ou sobrinhos que os representem, não dando cobertura jurisprudencial à eventualidade daquele que vive em união de facto ter esse direito (cf. entre vários, o Ac STJ 11.7.2006 in www.dgsi.pt e demais jurisprudência aí citada e Ac R. Coimbra de 8.10.2005, no mesmo local, com indicação das várias posições doutrinais existentes sobre a matéria).

As eventuais injustiças que decorrem dessa posição legalmente estabelecida (recorde-se que o direito se não é justo, não é direito!) têm sido várias vezes apreciadas pelo Tribunal Constitucional.

Antes de chamar a atenção para as razões da jurisprudência constitucional importa sublinhar que na escolha dos titulares com direito à compensação decorrente do dano de morte se atende não à ordem de sucessão «mas aos vínculos de afeição que se supõe existirem entre familiares» (cf. Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, XIII, Coimbra Editora, 1939, p. 423) ou na expressão de Capelo de Sousa na «presunção de afectos» correspondendo a seriação dos titulares a uma “ordem decrescente de proximidade comunitária e afectiva”, segundo Capelo de Sousa (cf. Lições de Direito das Sucessões, I, 3ª edição, Coimbra Editora, 1993, p. 300 e aprofundadamente Maria Manuel Veloso. «Danos não patrimoniais», Comemorações dos 35 anos do Código Civil, Coimbra Editora, p. 524.

Ou seja são efectivamente vínculos especiais de afecto com o falecido e não apenas razões formais de vinculação familiar que estão na origem da razão de ser da titularidade de tais danos.

Daí que não possa na interpretação da norma do artigo 496º n.º2 omitir-se toda a evolução social e normativa que as novas realidades familiares têm vindo a evidenciar sendo, por isso, como chama a tenção Maria Manuel Veloso, de «repensar à luz da protecção dos afectos se outros familiares ou outras pessoas próximas da vítima não terão também elas direito a indemnização»(ob. cit. p. 529)

O que suscita a questão da compatibilização constitucional da norma do artigo 496º nº 2 com os princípios constitucionais que tutelam as várias dimensões da família, como núcleo constitucionalmente protegido de relações sociais.

Em várias decisões em que foi chamado a pronunciar-se pela compatibilização constitucional da norma com os princípios constitucionais, aquele Tribunal pronunciou-se tanto pela constitucionalidade da solução (veja-se o Ac. 86/2007) como pela sua inconstitucionalidade, neste caso quando esteja em causa uma situação decorrente de homícidio doloso. Trata-se, neste último caso, da decisão proferida no Acórdão 275/2002, de 19.6.2002, em que o TC «julgou «inconstitucional, por violação do artigo 36º, n.º 1, da Constituição conjugado com o princípio da proporcionalidade, a norma do n.º 2 do artigo 496º do Código Civil, na parte em que, em caso de morte da vítima de um crime doloso, exclui a atribuição de um direito de "indemnização por danos não patrimoniais" pessoalmente sofridos pela pessoa que convivia com a vítima em situação de união de facto, estável e duradoura, em condições análogas às dos cônjuges».

Para fundamentar essa posição o TC em linhas gerais salienta e identifica, para além de uma violação do princípio da igualdade sustentada no facto de os padecimentos sofridos para quem convivia numa união estável e duradoura «não são, na verdade, nem qualitativa nem quantitativamente menos merecedores da tutela do direito por não existir um vínculo matrimonial», uma violação do princípio da protecção à família conjugado com o princípio da proporcionalidade da norma do artigo 496º n.º 2 do Código Civil.

Neste sentido o TC refere que «Na norma em questão [artigo 496º] trata-se, antes, de compensar um dano – e um dano normalmente de grande gravidade, consistente em sofrimentos e dores, cuja compensação "merece a tutela do direito", sendo "indemnizável" nos termos do regime geral do artigo 496º, n.º 1, do Código Civil. E trata-se de um dano que resulta de um evento que é evidentemente imprevisível (um homicídio doloso). Pelo que, mesmo dispensando outras considerações, não se afiguraria adequada e aceitável, à luz do reconhecimento constitucional de protecção também da família não fundada no casamento – e do próprio valor da dignidade humana –, a utilização do regime da "indemnização" pela dor e pelo sofrimento resultantes da morte para as pessoas que conviviam com a vítima em condições análogas às dos cônjuges, como instrumento para a prossecução de eventuais objectivos políticos de incentivo à família fundada no casamento. Nesta linha, cumpre anotar, por último, que, se já se não encontra justificação atendível para a desprotecção da família não fundada no casamento, que resultaria da proibição de consideração dos danos não patrimoniais sofridos pela pessoa que convivia em união estável e duradoura, em condições análogas às dos cônjuges, com a vítima de um homicídio doloso, menos ainda será divisável tal justificação no actual normativo, considerando o regime de protecção da união de facto actualmente em vigor, previsto na Lei n.º 7/2001. Na verdade, não se encontra justificação para se reconhecer a tais pessoas variados direitos (cfr. o artigo 3º do citado diploma), que podem ter como destinatários também particulares, mas limitar aos cônjuges a protecção que, em caso de morte, resulta da compensabilidade dos danos não patrimoniais pessoalmente sofridos – que se refere a danos de grande gravidade e pessoais, que por natureza revestem sempre uma dimensão individual e de incomensurabilidade.»

Importa notar que esta posição do TC tem sido objecto de sustentação para justificar a declaração de inconstitucionalidade da norma (496º n.º 2) também em casos de homicídio negligente, em alguns votos de vencido do TC (vejam-se os votos de vencido da Conselheira Fernanda Palma no Ac. 86/2007 e embora por outras razões o voto de vencido no mesmo acórdão do Conselheiro Mário Torres).

Não se vê, no entanto, que razões levam a não se encontrar «justificação atendível para a desprotecção da família não fundada no casamento, que resultaria da proibição de consideração dos danos não patrimoniais sofridos pela pessoa que convivia em união estável e duradoura, em condições análogas às dos cônjuges, com a vítima de um homicídio doloso», conforme se refere no Ac citado, e já não existir essa justificação se estiver em causa um homicídio negligente. As razões de protecção da família não fundada no casamento, constitucionalmente garantidas nos artigos 36º e 67º da CRP, nomeadamente a compensação pela sentimental loss são exactamente as mesmas, tenha havido uma causa dolosa ou uma causa negligente na morte do companheiro (ou companheira) de facto.

Não se vê, aliás, como pode garantir-se constitucionalmente o direito das próprias famílias decorrentes de uma união de facto (que obedece aos requisitos legais) à protecção da sociedade e do Estado, estabelecido no artigo 67º da CRP, quando se não dá a um dos seus membros o direito a ser ressarcido pelos danos não patrimoniais decorrentes da perda «máxima», decorrente da morte violenta (dolosa ou negligente) imputada a terceiro do outro dos seus membros. Morte que tem aliás como consequência a cessação jurídica da própria união de facto, por dissolução, conforme decorre do artigo 8º da Lei nº 7/2001 de 11 de Maio.

Tanto mais que no caso ficou efectivamente demonstrado que a «A e B viviam juntos e sob o mesmo tecto desde 17-10-2004, em harmonia, nutrindo ambos reciprocamente carinho e respeito, dando este dedicação e carinho a Beatriz Isabel Alberto Grou», filha do casal nascida em 2005, constituindo por isso uma família digna de respeito e protecção constitucional idêntica à de qualquer outra forma de conjugalidade.

Nesse sentido, seguindo a doutrina proferida no referido acórdão, não resta outra solução que não entender pela interpretação adequadamente constitucional da norma do artigo 496º n.º 2 do CC no sentido de aí integrar, como titular do direito à indemnização por morte do companheiro, aquele que com ele vivia em união de facto, quando da sua morte decorrente de um homicídio negligente.

Assim sendo e tendo em conta o que vem sendo argumentado, carece de razão a recorrente, sendo por isso correcta a decisão proferida que condenou a demandada a pagar uma indemnização por danos não patrimoniais à demandante Andreia Alberto decorrentes da morte do seu companheiro.

III Decisão

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo arguido e em consequência alterar a decisão recorrida, condenando-se o arguido como autor material de um crime um crime de homicídio negligente previsto e punível pelo artigo 137º n.º 1 do Código Penal, na pena de 1 ano e 9 meses de prisão meses, suspensa na sua execução por igual período de tempo.
Julga-se parcialmente procedente o recurso interposto pela Sagres, Companhia de Seguros, SA e em consequência altera-se a decisão recorrida: i) no que respeita à matéria de facto acrescentando-se à mesma que a vítima «foi assistida por uma equipa do INEM e pelos Bombeiros Voluntários de Fátima, tendo sido transportada ao Hospital de Sto André de Leiria» e «chegou cadáver ao serviço de urgência no dia 30.10.07, às 12h09; ii) na parte referente ao montante indemnizatório do direito à vida da vítima, da responsabilidade da demandada/recorrente, fixando-se o mesmo em € 5000,00 (cinco mil euros), reduzindo-se a indemnização global fixada na mesma quantia.
Notifique.
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (artigo 94º nº 2 CPP).

Coimbra, 21 de Abril de 2010

Mouraz Lopes


Félix de Almeida