Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
432/12.1TATNV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
NATUREZA DA INFRACÇÃO
ELEMENTO CONSTITUTIVO
CRIME QUALIFICADO
FALSAS DECLARAÇÕES
FURTO
CHEQUE
Data do Acordão: 11/19/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TORRES NOVAS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ALTERADA OFICIOSAMENTE
Legislação Nacional: ART. 256.º DO CP
Sumário: 1 - O crime de falsificação de documento é um crime comum, de perigo abstracto e de mera actividade, que tutela o bem jurídico segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório (cfr. Helena Moniz, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, pág. 680).

2 - Tem como elementos constitutivos do respectivo tipo:

[Tipo objectivo]

- Que o agente, a) fabrique ou elabore documento falso, b) falsifique ou altere documento, c) abuse da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento, d) faça constar falsamente de documento facto juridicamente relevante, e) use documento falsificado ou contrafeito, f) por qualquer meio, faculte ou detenha documento falsificado ou contrafeito;

[Tipo subjectivo]

- O dolo genérico, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade;

- O dolo específico, a intenção de causar prejuízo a terceiro, de obter para si ou outra para pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime.

3 - No nº 3 do art. 256.º do C. Penal pune-se a falsificação, além de outros documentos, de cheque ou outro documento comercial transmissível por endosso.

4 - In casu, embora estejam envolvidos três cheques, o que é inquestionável é que o documento do qual o recorrente fez constar falsamente um facto juridicamente relevante é um mero documento particular consubstanciado na declaração de extravio de cheques, denominada “comunicação de cliente”.

5 - Portanto, não se trata de um cheque ou de documento comercial transmissível por endosso e por isso, não é subsumível à previsão daquele n.º 3.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

 

I. RELATÓRIO

            No 2º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Torres Novas, mediante despacho de pronúncia, foi submetido a julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, o arguido A... , com os demais sinais nos autos, a quem era imputada a prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nºs 1, d) e 3 do C. Penal.

            A assistente E..., SA, deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, com vista à sua condenação no pagamento da quantia de € 312.779,62, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde 29 de Março de 2012 e até integral pagamento.

            Por sentença de 6 de Março de 2014, foi o arguido condenado, pela prática do imputado crime, na pena de 300 dias de multa à taxa diária de € 8, perfazendo a multa global de € 2.400.

Mais foi condenado o arguido condenado no pagamento à assistente da quantia de € 162.779,62, acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, desde a notificação do pedido de indemnização e até integral pagamento.


*

            Inconformado com a decisão recorreu o arguido, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

            I. Vem este recurso interposto da douta sentença proferida pelo Tribunal "a quo", que: condenou o arguido pela prática, em co-autoria material, na forma consumada de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256º, n.º 1 al. d) e n.º e do Código Penal, na pena de 300 (trezentos) dias de multa à taxa diária de € 8,00 o que perfaz o valor global de € 2.400,00: e que condenou A... a pagar a E..., SA a quantia de € 162,779,62. acrescida de juros de mora à taxa de 4% ao ano, a contar da data da notificação do pedido civil e até integral pagamento,

II. A convicção do Tribunal foi alicerçada de forma primordial no recurso à prova indirecta ou indiciária.

III, Os factos 11) a 16) dados como provados. que consubstanciariam de per si os requisitos objectivos e subjectivos do tipo legal em apreço. têm na sua génese o recurso a uma prova indiciária não fundamentada.

Em rigor,

IV. A prática do crime de falsificação de documento consubstancia-se na emissão de um cheque, sobre o qual, após a sua entrega ao respectivo beneficiário, o seu emitente comunica ao banco sacado que tal cheque havia sido extraviado.

V. Sabendo que tal extravio não é verdadeiro, assim causando àquele beneficiário do cheque um prejuízo ao passo que o emitente obtém para si um benefício ilegítimo.

VI. O douto Tribunal a quo considerou. mediante insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e, por outra via, mediante erro notório na apreciação da prova. nos termos e para os efeitos do artigo 410º n.º 1 e n.º 2 al. a) e c) do C.P.P. que o arguido tinha conhecimento de não ter havido extravio dos cheques emitidos à Assistente.

VII. Não obstante ter participado esse mesmo furto junto da P.S.P. de Torres Novas, sobre um computador portátil, uma pasta com diversos documentos e dois livros de cheques.

VIII. Não obstante ter dado indicação à instituição bancária desses mesmos factos, incluindo os dois livros de cheques.

IX. Mercê de recurso a mera prova indiciária, o douto Tribunal a quo considerou que o arguido tinha conhecimento de não ter havido extravio dos cheques emitidos à Assistente.

X. Considerou o douto Tribunal a quo, que o arguido havia sido vítima de furto de diversos bens do interior do seu veículo automóvel, no dia 27 de Março de 2012, excepto dos dois livros de cheques.

XI. Constando dos autos, e devidamente referenciados na douta sentença recorrida, os meios de prova directa que sustentam a existência de furto dos bens o interior do veículo automóvel do arguido, daí deve subsumir-se a subtracção também dos livros de cheques.

XII. Esses meios de prova directa foram preteridos pelo douto Tribunal a quo!

XIII. A sentença ora recorrida padece de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e, por outra via, padece de erro notório na apreciação da prova, nos termos e para os efeitos do artigo 410º n.º 1 e n.º 2 al. a) e c) do C.P.P.

XIV. Não obstante a prova directa produzida documentalmente – mediante a junção aos autos do auto de notícia e mediante dos depoimentos de testemunhas F..., proprietário do restaurante, em cujo parque de estacionamento ocorreu o furto; G..., empregado do restaurante; H... e I... agentes da PSP e da junção aos autos da participação e de inquérito – entendeu o douto Tribunal a quo que, o extravio declarado pelo arguido não é verdadeiro. (As declarações encontram-se gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, testemunha F... dia 19/2/2014 a partir de 14h44m; testemunha G... dia 19/2/2014 a partir de 15h06m: testemunha H... dia 26/2/2014 a partir de 15h07m: testemunha I... dia 26/2/2014 a partir de 15h33m).

XV. O recurso à prova indiciária não pode afastar a prova direta produzida nos autos: provado ficou que o arguido foi vítima de furto, com subtração de todo o recheio do interior do seu veículo automóvel.

XVI. Ditam as mesmas regras da prática citadas na douta sentença recorrida. que, na maioria. senão na totalidade. dos casos de furto do recheio de um veículo, onde se encontrem cheques, que estes são também subtraídos, pelo seu valor no "mercado".

XVII. No caso sub iudice, da prova direta resultou a existência de furto do recheio do veículo do arguido e das regras da experiência resulta que, nos casos de furto, o agente que pratica a subtração do recheio de um veículo, dá primazia ao furto de cheques.

XVIII. No caso em apreço, o recurso à prova indiciária é desnecessário, face à prova direta e inequívoca da existência de furto dos cheques. a par dos demais bens existentes no carro.

XIX. Tendo ficado provado, por prova direta, a existência de furto, não poderia o douto Tribunal a quo ter decidido como decidiu ser falsa a declaração do arguido de extravio dos cheques.

XX. A pluralidade de indícios da existência de um furto e critérios lógicos do discernimento humano, em casos de furtos de automóveis, conduziriam a resultado diferente na aplicação da prova indiciária aos presentes autos!

XXI. Conduz necessariamente à conclusão lógico-racional de que tendo o carro do arguido sido objecto de furto, daí foram também retirados os livros de cheques.

XXII. Das declarações da testemunha J... resultou claramente que o arguido guardava sempre consigo os livros de cheques, por inexistir cofre na empresa.(As declarações encontram-se gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, testemunha J... dia 19/2/2014 a partir de 17h05m.)

Todavia, e ao invés,

XXIII. A douta sentença ora recorrida, apesar de referir que o arguido nunca deixava os cheques nas instalações da empresa, não pondera tal prova como facto determinante de que os cheques no dia e à hora do furto estavam no interior da viatura.

Ao invés,

XXIV. A douta sentença recorrida apenas referencia que a dita testemunha J... mencionou ser a própria que preenchia os cheques e que os mesmos eram posteriormente assinados pelo arguido.

XXV. Facto esse de onde não se pode retirar que os ditos livros de cheques não se encontrassem no interior da viatura do arguido à hora do furto.

XXVI. Não se pode, em violação do Princípio da Imediação da Prova e do Princípio do In Dubio Pro Reo, querer alcançar uma qualquer verdade e reputá-la como verdade material.

XXVII. Também nesta vertente se verifica erro notório na apreciação da prova, nos termos do artigo 410º n.º 2 al. c) do C.P.P.

XXVIII. Também da análise do depoimento da testemunha J... vertida na sentença ora recorrida, não resulta uma verdadeira fundamentação do recurso à prova indiciária para sustentar as ilações da Mma Juiz a quo.

XXIX. Ao invés, alegadamente sob a égide da prova indiciária, resulta a conclusão de que o arguido tinha perfeita consciência de que os cheques emitidos a favor da Assistente não se encontravam entre os cheques que haviam sido subtraídos. com base na possibilidade que o mesmo tinha ao declarar o extravio dos livros de cheques excluir determinados cheques.

XXX. As regras da experiência ditam que, uma vítima de furto apressa-se a declarar o extravio de cheques contidos em livros furtados.

XXXI. Da prova produzida em sede de audiência, bem como da prova documental junta aos autos, resulta de evidência a existência de um furto do interior do veículo do arguido.

XXXII. Resulta também que os cheques da sociedade nunca permaneciam na sede da empresa.

XXXIII. Salvo melhor entendimento, in casu, a prova indirecta deverá ser afastada, por desnecessária!

Porquanto,

XXXIV. Havia sido produzida prova direta suficiente, para determinar que não houve falsidade na declaração do arguido de que os cheques haviam sido extraviados naquela noite de Março!

XXXV. Minime, deveria ter-se suscitado a dúvida no douto Tribunal a quo.

XXXVI. No caso sub iudice, foi produzida prova direta suficiente de que o arguido não prestou uma falsa declaração: os cheques foram furtados do interior do seu veículo.

XXXVII. Constata-se a manifesta violação do Princípio da Imediação da Prova e do vertido no artigo 32º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, optando por uma espécie de prova indiciária, atentatória dos direitos de defesa do arguido e do Princípio da Descoberta da Verdade Material.

XXXVIII. Padece a sentença ora recorrida de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e, por outra via, padece de erro notório na apreciação da prova, nos termos e para os efeitos do artigo 410º n.º 1 e n.º 2 al. a) e c) do C.P.P.

XXXIX. Erro notório na apreciação da prova, colhida em sede de audiência, erro esse tendente para a decisão de condenar o arguido pela prática do crime de falsificação de documento.

XL. Quanto à apreciação da prova levada a cabo dir-se-á que o douto Tribunal a quo considerou como provado que, o arguido teve intervenção na factualidade em apreço, com base apenas em provas de consistência duvidosa e na violação clara dos Princípios do In Dubio Pro Reo e da Imediação da Prova.

XLI. A condenação parcial do Arguido/ Demandado, ora Recorrente no pedido de indemnização civil formulado nos autos foi alicerçada na consideração de que o mesmo havia prestado falsa declaração sobre o extravio dos cheques e que, o arguido havia sido sócio e gerente da sociedade " L..., LDA".

XLII. As testemunhas B... e D... referenciam que os cheques entregues pelo arguido, o foram para pagamento de material encomendado pelo arguido na qualidade de gerente da " L..., LDA".

XLIII. O material encomendado encontrar-se-ia em dívida pela sociedade comercial " L..., LDA".

XLIV. Ficou provado, por prova documental junta aos autos, bem como pela prova produzida em sede de audiência que o vidro do carro do Recorrente foi partido e do interior foram retirados os dois livros de cheques do Santander Totta, entre outros objectos.

XLV. A responsável pelo pagamento dos cheques, reitera-se é a " L..., LDA". pessoa colectiva. com personalidade e capacidade jurídica.

XLVI. O Recorrente deixou de ser sócio e gerente da " L..., LDA". em 13/4/2012, cfr certidão comercial permanente junta aos autos.

XLVII. O valor remanescente de € 162.779.62 venceu-se em data posterior à cessão de quotas e renúncia à gerência por parte do arguido.

Para além de,

XLVIII. A condenação do Recorrente no pagamento parcial do pedido de indemnização civil não ter na sua génese prova direta para a imputação do facto ao agente.

Certo é também que,

XLIX. Mantendo-se a condenação do arguido no pagamento parcial do pedido de indemnização civil formulado, tal condenação conduzirá ao enriquecimento sem causa da Demandante.

Pelo exposto e pelo mais que for doutamente suprido, deve conceder-se provimento ao presente recurso, e em consequência revogar-se a sentença recorrida e ordenar-se a sua substituição por outra que considere os motivos expostos.

Assim decidindo farão V.ªs Ex.ªs a costumada, JUSTIÇA!


*

            Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

            1. Da motivação e das conclusões apresentadas pelo recorrente não resultam observados os requisitos para a impugnação da decisão recorrida quanto à matéria de facto;

2. A apreciação da matéria de facto não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1.ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado. não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar.

3. No caso em apreço não haverá lugar reformulação das conclusões uma vez que, constituindo o texto da motivação limite absoluto que não pode ser extravasado nas conclusões e sendo estas, logicamente, um resumo dos fundamentos porque se pede o provimento do recurso, há que concluir que o que não constar das motivações stricto sensu, não pode constar das conclusões.

4. Mesmo que assim se não entenda, sempre se dirá que bem andou o tribunal a quo ao apreciar a prova de forma perspicaz e atenta, explicitando de forma bem clara as razões que o levaram a atribuir credibilidade a alguns depoimentos em detrimento de outros ou das declarações do próprio arguido, prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento, estando justificada e devidamente fundamentada a necessidade de recorrer a uma pluralidade de elementos indiciários para chegar à conclusão a que chegou.

5. Da sentença não resulta qualquer insuficiência da matéria de facto considerada provada para a decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, nem tão pouco que o tribunal tenha deixado de indagar factos com relevância para a boa decisão da causa.

6. No que concerne ao erro notório da apreciação da prova, da leitura de toda a matéria de facto provada e da sua fundamentação, não conseguimos vislumbrar a existência de qualquer erro, tendo os factos considerados provados pelo Tribunal a quo resultado de uma correcta apreciação e valoração crítica do conjunto da prova, designadamente a produzida em audiência.

7. Na fundamentação de tal convicção estão suficientemente demonstradas as razões que levaram o Tribunal a considerar provados os factos assentes, designadamente os que são questionados pelo recorrente e que implicam a responsabilização criminal deste quando comunicou falsamente ao banco sacado que os cheques activos dos últimos livros de cheques emitidos em nome da sociedade " L... Lda". na qual era gerente, lhe haviam sido subtraídos.

Termos em que, decidindo pela manutenção da douta sentença recorrida, nos seus exactos termos e fundamentos, farão V. Exas., como sempre, JUSTIÇA!


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            Respondeu também ao recurso a assistente, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

            1.ª Os factos 11 a 16 dados como provados, foram extraídos dos factos objectivos provados, que tendo em conta as regras da experiência comum e com base em presunção natural, permitem de forma segura inferir tal factualidade, conjugado com os provas indirectos ou indiciários produzidos que permitem com segurança estribar o convicção do tribunal no decisão destes pontos de facto, sendo portanto, devidamente fundamentados, ao contrário do alegado pelo Arguido.

2.ª Os factos foram dados como provados porquanto o Tribunal entendeu que os declarações do arguido foram falsas, já que os cheques foram assinados pelo próprio arguido e tinham um valor avultado, demonstrando o conhecimento que o arguido tinha da data de vencimento dos cheques e da sua consequente apresentação a pagamento.

3.ª Ficou demonstrado que o arguido não ressalvou a validade dos cheques emitidos a favor da Assistente no momento em que comunicou à instituição bancária a sua intenção de revogar os cheques contidos nos dois livros de cheques que alegadamente lhe tinham sido subtraídos, tendo o arguido tal possibilidade.

                4.ª Ficou ainda provado que o Arguido não tentou contactar o Assistente paro o alertar paro o revogação dos cheques e furtou-se aos contactos dos funcionários do mesmo nos dias seguintes ao da apresentação do primeiro cheque o pagamento, apenas tendo contactado pessoalmente com os representantes desta quando tal lhe foi exigido poro o prossecução dos trabalho numa obra em curso do seu interesse, o que demonstra que o Arguido bem sabia que tinha declarado o extravio de cheques que não haviam sido extraviados.

5.ª A falta de consistência e de credibilidade dos declarações prestados pelo arguido, reforço a demonstração de que o mesmo pretendeu encobrir o prática do crime em causa, sendo que o comportamento do Arguido não se coaduno com o vivência e experiência de vida do mesmo como gerente comercial experiente que demonstrou ser.

6.ª Invoca ainda o Tribunal que mesmo tendo o furto ocorrido no antevéspera do apresentação do primeiro cheque o pagamento e tendo o Arguido ficado transtornado com esse imprevisto. não existe qualquer justificação para que o arguido, com a sua experiência de vida e profissional, não tivesse recuperado rapidamente a sua compostura e adoptado as providências necessárias paro evitar prejudicar terceiro, o que não fez.

7.ª O próprio Arguido invocou ter um especial cuidado a guardar os livros de cheques por já tido o desagradável experiência de subtracção dos mesmos no passado.

8.ª Com todos estes elementos ao seu dispor, o Tribunal a quo, entendeu, e bem, concluir pela consciência da falsidade da declaração contida no documento que o Arguido dirigiu à instituição bancária.

9.ª Não faz qualquer sentido que o Tribunal devesse ter concluído, como entende o Arguido, que a declaração de extravio que emitiu junto da entidade bancária, pelo menos com referência aos cheques passados a favor da Assistente, não fosse falsa.

10.ª O Arguido fundamenta todo o seu recurso no facto de ter sido dado como provado que a sua viatura automóvel foi alvo de roubo e que foram subtraídos objectos que se encontravam no seu interior e que por isso foram também subtraídos os livros de cheques a que se reportam os cheques entregues a Assistente.

11.ª Ainda que tivesse sido dado como provado que os livros de cheques haviam sido furtados da viatura do Arguido, em nada contende com a falsidade ela declaração de extravio dos cheques entregues à Autora, uma vez que o Arguido bem sabia que os mesmos não haviam sido extraviados.

12.ª A sentença não padece, assim, de insuficiência da matéria de facto provada, nem tão pouco, de erro notório na apreciação da prova, tendo sido ainda totalmente observados os princípios de in dubio pro reo e da imediação da prova.

13.ª Sendo criminalmente responsável pelo crime em causa, é também civilmente responsável pela sua conduta perante a Assistente.

14.ª O facto de o Recorrente ter deixado de ser sócio e gerente da " L..., Lda.", em 13.04.2012, não contende com a procedência do pedido de indemnização civil deduzido pela Assistente.

15.ª Ficou provado que nessa data o Arguido transmitiu a N..., residente em Casablanca, Marrocos, as quotas de que era titular na " L..., Lda." (facto provado 19).

16.ª Ficou também provado que este N... transferiu a sede da " L..., Lda", para a Rua (...), em Leiria, onde a mesma nunca foi conhecida nem laborou e, menos de um mês depois, a 04.05.2012, transmitiu as quotas de que era titular paro O..., residente em (...), Abrantes, não sendo conhecido o paradeiro deste último (factos provados 20 e 21).

17.ª Do que se pode retirar que tais transmissões tiveram também como fim obstar ao pagamento dos valores em dívida titulados pelos cheques em causa.

18.ª A invocação da própria sentença que o Arguido faz no ponto 84 dos suas alegações traduzem-se é uma mero deturpação do que aí é referido, já tal trecho confirma o pagamento pelo arguido de parte dos valores titulados pelos cheques em causa e nada mais.

19.ª Confirmando-se assim a responsabilidade, também civil do Arguido.

Nestes termos e nos mais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá o recurso interposto pelo Arguido ser julgado totalmente improcedente e a sentença recorrida ser confirmada na íntegra.


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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer onde aderiu aos fundamentos da contramotivação do Ministério Público no que concerne à matéria de facto e discordou da qualificação jurídica feita, por contrariar o AUJ 9/2013, o que determinaria a alteração da qualificação do crime para simples, e a consequente diminuição da pena, que quantificou em 150 dias de multa, e concluiu pelo não provimento do recurso e pela propugnada alteração da qualificação jurídica.

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            Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

 


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Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir são:

- A existência dos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova;

- A incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto e a violação do princípio in dubio pro reo;

- A inexistência dos pressupostos da responsabilidade civil.

Haverá ainda que conhecer da questão da qualificação dos factos, face ao Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 9/2013 (DR I, de 24 de Abril de 2013), tal como foi suscitada pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto, sendo certo que a qualificação jurídica é de conhecimento oficioso (cfr. Acs. do STJ de 25 de Fevereiro de 2009, proc. nº 09P0097, in www.dgsi.pt).


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            Para a resolução destas questões importa ter presente o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim:

A) Nela foram considerados provados os seguintes factos:

“ (…).

1) A... foi sócio gerente da sociedade comercial por quotas denominada “ L..., Ld.ª.” até 2 de Abril de 2012, data em que renunciou à gerência.

                2) À data, a “ L..., Ld.ª” tinha a sua sede na Estrada (...), Torres Novas.

                3) A 7 de Outubro de 2011, no âmbito da sua actividade comercial, a “ L..., Ld.ª” celebrou um acordo com a “ E..., S.A.”, nos termos do qual esta última acordou fornecer àquela sistemas de caixilharia daquela para duas obras que esta tinha em curso, devendo a mesma proceder ao pagamento da mercadoria fornecida nos 90 (noventa) dias seguintes ao último dia do mês a que o fornecimento dissesse respeito.

4) Assim, no cumprimento do referido acordo comercial, a “ L..., Ld.ª” foi solicitando diverso material à “ E..., S.A.”, e esta forneceu-o, emitindo as correspondentes facturas.

5) Para pagamento das facturas vencidas até ao dia 30 de Abril de 2012, que totalizavam a quantia de € 312.779,62 (trezentos e doze mil setecentos e setenta e nove euros e sessenta e dois cêntimos), A..., na qualidade de gerente da “ L..., Ld.ª” assinou e entregou em mão a colaboradores da “ E..., S.A.”, em dia não apurado do mês de Fevereiro de 2012, os seguintes cheques:

5.1 O cheque nº 6700001430, no valor de € 54.585,60 (cinquenta e quatro mil quinhentos e oitenta e cinco euros e sessenta cêntimos), com data de emissão e 29 de Março de 2012, sacado sobre a conta nº (...) de que a L..., Ld.ª” é titular no Banco Santander Totta, Sucursal de Torres Novas;

5.2 O cheque nº 3900001487, no valor de € 72.687,03 (setenta e dois mil seiscentos e oitenta e sete euros e três cêntimos), com data de emissão de 17 de Maio de 2012, sacado sobre a conta supra referida; e

5.3 O cheque nº 6700001527, no valor de € 185.506,99 (cento e oitenta e cinco mil quinhentos e seis euros e noventa e nove cêntimos), com data de emissão de 17 de Maio de 2012, sacado sobre a conta supra referida.

                6) No dia em que A... entregou estes cheques à “ E..., S.A.”, esta entregou-lhe uma fotocópia dos mesmos.

7) No dia 28 de Março de 2012, na véspera do vencimento do primeiro cheque atrás referido, A..., na qualidade de gerente da “ L..., Ld.ª”, dirigiu-se à agência de Torres Novas do banco sacado e comunicou, por escrito que subscreveu, que os cheques activos dos últimos livros de cheques emitidos em nome desta sociedade tinham sido furtados, tendo em vista obstar ao pagamento dos cheques supra referidos nos pontos 5.1 a 5.3.

8) O cheque indicado no ponto 5.1 que antecede foi apresentado a pagamento no a Março de 2012, tendo sido devolvido na compensação o de Portugal com mesmo valor indicação de “cheque revogado por justa causa – extravio”, conforme declaração aposta no verso do cheque.

9) Perante tal devolução, a “ E..., S.A.”, apresentou os outros dois cheques a pagamento, tendo os mesmos sido devolvidos na compensação do Banco e Portugal com indicação de “Nulo – cheque revogado por justa causa – furto”, conforme declaração aposta no verso dos cheques.

10) Em consequência da devolução dos cheques, a “ E..., S.A.”, não foi paga das quantias neles tituladas, somente tendo-lhe sido posteriormente entregue a quantia referida em 22).

11) A... agiu de forma livre, deliberada e consciente.

12) A... previu e quis dar instruções ao banco sacado para a revogação de todos os cheques dos últimos dois livros de cheques que haviam sido emitidos em nome da “ L..., Ld.ª”, comunicando-lhe que os mesmos haviam sido furtados sem excluir os cheques supra descritos que o próprio havia colocado em circulação, e que, ao efectuar semelhante comunicação ao banco sacado estava a impedir, como impediu, o pagamento das quantias tituladas pelos cheques que havia colocado em circulação e entregue à “ E..., S.A.”.

13) Bem sabia A... que a razão invocada junto do banco sacado para a revogação dos cheques, na parte em que abrangia os cheques supra descritos nos pontos 5.1 a 5.3, não correspondia à verdade, porquanto sabia que a “ E..., S.A.” era a legítima dona e detentora desses cheques em virtude dele próprio s ter entregue para pagamento da mercadoria adquirida pela “ L..., Ld.ª”, sua representada, à aquela.

14) Com a descrita conduta, previu e quis A... impedir, como impediu, o pagamento pelo banco sacado das quantias tituladas nos cheques supra referidos, com o propósito de alcançar um benefício indevido para a sua representada.

15) Ao agir como descrito, A... causou uma diminuição patrimonial à “ E..., S.A.”, pelo menos, em valor igual ao do montante total dos três cheques.

16) Agiu A... ciente de que a sua conduta era proibida e punida por lei.

17) No dia 27 de Março de 2012, quando o veículo automóvel de A... se encontrava estacionado na Rua do Caldeirão, em Torres Novas, um indivíduo cuja identidade não se logrou apurar partiu o vidro do mesmo e retirou do seu interior uma pasta contendo documentos e um computador portátil.

18) Nesta sequência, A... apresentou, na mesma data, queixa na Polícia de Segurança Pública de Torres Novas, contra indivíduos desconhecidos, reportando o furto de um computador portátil e de dois livros de cheques do Banco Santander Totta, S.A., do interior do seu veículo automóvel, queixa essa que deu origem ao inquérito 129/12.2PATNV, já arquivado. 

19) No dia 13 de Abril de 2012, A... transmitiu a N..., residente em Casablanca, Marrocos, as quotas de que era titular na “ L..., Ld.ª”, tendo tal facto sido levado a registo.

20) N... transferiu a sede da “ L..., Ld.ª”, para a Rua (...), em Leiria, onde a mesma nunca foi conhecida nem laborou e, menos de um mês depois, a 4 de Maio de 2012, transmitiu as quotas de que era titular para O..., residente em (...), Abrantes.

21) Não é conhecido o paradeiro de O....

22) A... entregou a “ E..., S.A.”, para pagamento parcial das quantias tituladas nos documentos descritos em 5, os seguintes cheques:

22.1 O cheque nº 8800000662, no valor de € 75.000,00 (setenta e cinco mil euros), com data de emissão e 30 de Maio de 2012, sacado sobre a conta nº 382726840021 de que A... é titular no Banco Santander Totta, Sucursal de Torres Novas; e

22.2 O cheque nº 8800000663, no valor de € 75.000,00 (setenta e cinco mil euros), com data de emissão e 30 de Maio de 2012, sacado sobre a conta nº 382726840021 de que A... é titular no Banco Santander Totta, Sucursal de Torres Novas.

23) Os cheques indicados no ponto 22 que antecede foram apresentados a pagamento, tendo, nessa sequência, a “ E..., S.A.”, recebido o valor global de € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros).

24) Na sequência dos fornecimentos realizados no âmbito da mencionada relação comercial, a “ L..., Ld.ª” não procedeu ao pagamento à “ E..., S.A.”, das facturas vencidas até ao dia 30 de Abril de 2012, que totalizavam a quantia de € 312.779,62 (trezentos e doze mil setecentos e setenta e nove euros e sessenta e dois cêntimos), bem como das facturas vencidas até 31 de Maio de 2012 e até 30 de Junho de 2012, o que totaliza um valor global ainda em dívida de, pelo menos, € 417.866,14 (quatrocentos e dezassete mil oitocentos e oitenta e seis euros e catorze cêntimos).

25) A... vive com a ex-cônjuge em comunhão de mesa, leito e habitação e com os três filhos comuns, com 17, 12 e 3 anos de idade.

26) A... é gerente de uma empresa de construção civil, comercialização, transformação e aplicação de caixilharia de alumínio e ferro, auferindo um rendimento médio mensal no valor de € 740,00 (setecentos e quarenta euros).

27) A... manifesta um funcionamento organizado nos diferentes domínios e não apresenta dificuldades ao nível do pensamento consequencial, da resolução de problemas e da avaliação das consequências dos seus comportamentos nos outros e para si próprio.

28) A... desenvolve uma relação positiva com os seus familiares, amigos e vizinhos.

29) A... tem o 12.º ano de escolaridade.

30) A... não tem antecedentes criminais.

(…)”.

B) Nela foram considerados não provados os seguintes factos:

            “ (…).

            I) No circunstancialismo descrito em 17) foram subtraídos dois livros de cheques.

II) Aquando da entrega dos cheques descritos em 22) A... e “ E..., S.A.”, acordaram que a entrega da quantia de € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros) visava o pagamentos dos fornecimentos descritos nas facturas vencidas até 31 de Maio de 2012 e até 30 de Junho de 2012.

            (…)”.

            C) Dela consta a seguinte motivação de facto:

            “ (…).

            O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica do conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, concretamente as declarações do arguido, a prova testemunhal e documental produzida e examinada em audiência.

O critério de valoração da prova é o da livre apreciação, segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, de acordo com o disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.

A factualidade provada em 1), 2), 19), 20) e 21) resulta inequivocamente da análise da certidão permanente junta a fls. 19 a 27, cujo teor foi integralmente corroborado pelas declarações do arguido, e das certidões negativas reproduzidas a fls. 172 e 178.            A factualidade provada em 3) a 10) alicerçou-se na ponderação do conteúdo do acordo comercial de fls. 29, das facturas de fls. 29 a 60, do extracto de conta corrente de fls. 199 e 200, das imagens de cheque de fls. 84 a 89, da ficha de assinaturas de fls. 100, da comunicação de cliente de fls. 101, da declaração de fls. 102 e das fotocópias certificadas de cheques de fls. 224 a 235 , cuja autenticidade e veracidade de conteúdo não foram por qualquer modo postas em causa, mas sobretudo foram integralmente corroboradas pelas declarações do arguido e pelo depoimento das testemunhas B..., C... e D..., funcionários da “ E..., S.A.”. Estas testemunhas, a despeito da mencionada relação profissional, prestaram um depoimento espontâneo, convincente, circunstanciados e congruente com a versão do arguido a propósito das vicissitudes da relação comercial mantida entre as duas sociedades comerciais, do circunstancialismo subjacente à emissão dos três cheques descritos no facto provado 5) e, bem assim, da falta de pagamento dos mesmos e motivos fundamentantes.

Os factos subjectivos provados em 11) a 16), porque insusceptíveis de prova directa, dada a sua natureza, extraem-se dos factos objectivos provados, que, tendo em conta as regras da experiência comum e com base em presunção natural, permitem de forma segura inferir tal factualidade, conjugados com as provas indirectas ou indiciárias produzidas que permitem com segurança estribar a convicção do tribunal na decisão destes pontos de facto.

Assim, não obstante se afigure serem falsas as explicações aventadas pelo arguido para a sua motivação no momento em que realizou a declaração escrita de revogação dos cheques em apreço com fundamento na sua ilícita subtração, não existe, atenta a natureza desta factualidade, qualquer elemento objectivo que ateste a sua actuação dolosa, o que, aliado à circunstância do mesmo ter negado a prática dos factos subjectivos, conduz à ausência de qualquer prova directa destes factos essenciais.

No entanto, além das provas directas existem as denominadas provas indirectas ou indiciárias, na terminologia dos nossos vizinhos espanhóis, as quais devem ser usadas com cautela, a fim de evitar erros judiciários com consequências tanto mais devastadoras quanto maior for a gravidade dos factos objecto de julgamento.

A utilização deste tipo de provas exige, em primeiro lugar e em regra, uma pluralidade de elementos indiciários, em segundo lugar, que tais elementos sejam concordantes e, em terceiro lugar, que tais indícios sejam inequívocos, ou seja, que, tendo em conta uma observação de acordo com as regras da experiência, tais indícios afastem, para além de toda a dúvida razoável, a possibilidade dos factos se terem passado de modo diverso daquele para que apontam aqueles indícios probatórios (neste sentido, vide La Mínima Actividad Probatória en el Proceso Penal, J.M. Bosh Editor, 1997, M. Miranda Estrampes, págs. 231).

Vejamos então quais as provas indirectas ou indiciárias consideradas.

O primeiro elemento indiciário relevante reside na circunstância dos cheques terem sido assinados pelo próprio arguido e de os mesmos terem um valor avultado, o que põe em evidência o conhecimento que o arguido tinha da data de vencimento dos cheques e da sua consequente apresentação a pagamento. Saliente-se que testemunha J..., que prestava serviços para a “ L..., Ld.ª” e, no exercício das suas funções, preencheu os cheques em apreço (que depois foram assinados e entregues à assistente pelo arguido) confirmou de forma natural, objectiva e verosímil que o arguido tinha perfeita consciência da emissão de cheques pós-datados na vigência da relação contratual entre as sociedades e, sobretudo, que os cheques em apreço destacavam-se dos demais cheques pós-datados emitidos pelo arguido, na qualidade de gerente, pelo seu elevado valor face aos demais (neste contexto, a testemunha afirmou categoricamente que não era recorrente a emissão de cheques, como sucedeu in casu, no valor de mais de €180.000,00 (cento e oitenta mil euros).

O segundo elemento indiciário a ponderar prende-se com o facto do arguido não ter ressalvado a validade dos cheques emitidos a favor da assistente no momento em que comunicou à instituição bancária a sua intenção de revogar os cheques contidos nos dois livros de cheques que alegadamente lhe tinham sido subtraídos – apesar de ter perfeita consciência de que os cheques emitidos a favor da assistente não se encontravam entre os que alegadamente foram subtraídos naquela ocasião –, o que corrobora a intenção do arguido de frustrar o pagamento dos mesmos. Este facto – que resulta sobejamente demonstrado da prova documental produzida a fls. 101, mas também do depoimento da testemunha P..., sub-gerente da agência de Torres Novas do Banco Santander Totta, S.A., que explicou com rigor e espontaneidade o modo como foi realizada a operação de revogação daqueles cheques e a possibilidade que o arguido tinha de ressalvar a validade dos cheques emitidos a favor da assistente, que nunca manifestou intenção de fazer – abala decisivamente a versão do arguido na medida em que não se afigura minimamente plausível que o mesmo, na qualidade de gerente comercial, não revelasse preocupação em não adoptar as providências adequadas a não prejudicar a integridade das relações comerciais em curso.

O terceiro elemento indiciário a considerar respeita ao facto do arguido não ter contactado a assistente para a alertar para a revogação dos cheques e se ter mesmo furtado aos contactos dos funcionários da mesma nos dias seguintes ao da apresentação do primeiro cheque a pagamento, somente tendo contactado pessoalmente com os representantes desta quando tal lhe foi exigido para a prossecução dos trabalhos numa obra em curso do seu interesse – tal como resulta ostensivamente do depoimento sincero, honesto, convincente e manifestamente credível da testemunha B..., que realizou estas tentativas de contacto e privou pessoalmente com o arguido pessoalmente. Neste contexto, cumpre ainda destacar o depoimento da testemunha M..., funcionária da “ L..., Ld.ª”, que confirmou que os funcionários da assistente tentaram contactar o arguido, ligando para as instalações daquela sociedade, e que esta lhe transmitiu os recados. Por último, importa salientar que as declarações do arguido mostram-se contraditórias e incongruentes neste ponto na medida em que a alegada subtracção do seu telemóvel (que, contudo, não foi referenciada na queixa crime que apresentou – cfr. auto de denúncia de fls. 332) não justifica a falta de contacto com a assistente, que podia ser realizado com muita facilidade a partir dos telefones disponíveis nas instalações da sociedade, os quais foram utilizados precisamente para as tentativas de contacto frustradas realizadas pelos funcionários da assistente.

O quarto elemento indiciário consiste na falta de consistência e de credibilidade das declarações prestadas pelo arguido, o que reforça a ideia de que o mesmo pretende encobrir a prática do crime em apreço. Efectivamente, o comportamento invocado pelo arguido não se coaduna com a vivência e experiência de vida do mesmo como gerente comercial.

Na verdade, o arguido revelou ser um gerente comercial experiente e conhecedor dos cuidados a tomar nas suas relações comerciais, designadamente o cuidado de não deixar sem supervisão cheques em branco e de guardá-los em local seguro, o cuidado de não revogar cheques emitidos com data posterior sem avisar o cliente, o cuidado de se manter contactável por forma a garantir a boa execução dos contratos comerciais e, sobretudo, o cuidado de tomar a iniciativa de reparar imediatamente as suas faltas, evitando a quebra de confiança das partes e o recurso à via judicial, o que não fez.

Acresce que, mesmo tendo o furto ocorrido na antevéspera da apresentação do primeiro cheque a pagamento e tendo o arguido ficado transtornado com esse imprevisto, não existe qualquer justificação para que o arguido, com a sua experiência de vida e profissional, não tivesse recuperado rapidamente a sua compostura e adoptado as providências necessárias para evitar prejudicar terceiros, o que não fez.

Aliás, o próprio arguido reconheceu que trazia sempre os cheques consigo de molde a evitar a subtracção dos mesmos uma vez que já tinha tido idêntica desagradável experiência no passado (nunca arriscando deixá-los nas instalações da sociedade), pelo que não se percebe o motivo que levou o arguido a, contraditoriamente, deixar os livros de cheques alegadamente assinados no seu veículo automóvel – sendo certo que a testemunha J..., pelo contrário, asseverou que preenchia todos os cheques da sociedade e que o arguido somente os assinava depois do preenchimento.

É precisamente por ter sido invocado pelo arguido um especial cuidado a guardar os livros de cheques que se nos afigura manifestamente inverosímil a possibilidade dos mesmos terem sido subtraídos naquela ocasião (daí ter sido dado como não provada a factualidade vertida em I).

De qualquer modo, ainda que os livros de cheques tivessem sido efectivamente furtados, tal não obsta, reforce-se, à conclusão no sentido da falsidade da declaração contida no documento que o arguido dirigiu à instituição bancária na medida em que, com toda a segurança, o arguido sabia que, contrariamente ao que declarou, os cheques emitidos a favor da assistente que foram posteriormente apresentados a pagamento não se encontravam entre os que lhe foram alegadamente subtraídos.

De igual modo, lançando mão das regras da experiência comum, não se afigura plausível que o arguido, na qualidade de gerente e de único sócio, não tivesse acesso a toda a documentação da sociedade (designadamente ao registo da emissão dos cheques em apreço) durante o período de ausência da funcionária J... (aliás, mera prestadora de serviços) por motivo de férias. Mas ainda que tal correspondesse efectivamente à verdade, dificilmente se compreende que o arguido, perante o sucedido, não tivesse contactado a assistente para se certificar se, de facto, se impunha regularizar algum pagamento e ainda menos se compreende que o mesmo tenha omitido à entidade bancária que, para além dos cheques contidos nos livros alegadamente furtados, existiam outros em circulação emitidos em data anterior a favor da assistente.

Os elementos indiciários supra enunciados permitem de forma conjugada, pela sua pluralidade, concordância e inequivocidade, fundamentar a convicção do tribunal manifestada, sobejamente suportada pela factualidade objectiva demonstrada.

A factualidade provada em 17) e 18) resulta da concatenação do auto de denúncia de fls. 332 com as declarações do arguido e o depoimento das testemunhas F..., proprietário do estabelecimento de restauração situado das proximidades do local do crime, G..., empregado de mesa do mesmo estabelecimento, H..., agente da Polícia de Segurança Pública, e I..., agente da Polícia de Segurança Pública, os quais estiveram no local e puderam verificar pessoalmente os vestígios da subtracção denunciada pelo arguido (designadamente o vidro do veículo partido).

A factualidade provada em 22) a 24) baseou-se na análise das facturas de fls. 61 a 83, dos cheques reproduzidos a fls. 161 e 162, dos recibos de fls. 197 e 198 e do extracto de conta corrente de fls. 199 e 200, documentos que se nos afiguram ser manifestamente idóneos e que foram integralmente comprovados pelas declarações do arguido e pelo depoimento das testemunhas B..., que participou no momento da entrega dos cheques e confirmou o bom pagamento dos mesmos. Acresce que, esta testemunha confirmou que não foi celebrado qualquer acordo entre o arguido e a assistente quanto às facturas em concreto cuja liquidação era visada com aquele pagamento, somente tendo esta sociedade tomado a iniciativa de o imputar ao pagamento das outras quantias em dívida resultantes da conta-corrente. Assim, e uma vez que o arguido realizou tal pagamento no momento em que já não tinham qualquer relação com a “ L..., Ld.ª” e com recurso a rendimentos próprios, não pode deixar de se concluir que o mesmo visava liquidar em parte a quantia titulada nos cheques em apreço (daí que tenha sido dada como não privada a factualidade vertida em II).

A factualidade provada em 25) a 29), respeitante à situação pessoal do arguido, alicerçou-se na análise do relatório social de fls. 360 e ss, cujo teor foi corroborado pelas declarações prestadas pelo mesmo.

A ausência de antecedentes criminais do arguido, factualidade provada em 30), resulta do teor do Certificado de Registo Criminal junto a fls. 322.

(…)”.

D) Dela consta a seguinte qualificação jurídica dos factos:

            “ (…).

            1. Em conformidade com o disposto no artigo 256º, n.º 1, do Código Penal, “comete o crime de falsificação de documento quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de alcançar para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de facilitar, executar ou encobrir outro crime:

 a) Fabricar ou elaborar documento, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo;

b) Falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram;

c) Abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento;

d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante;

e) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores; ou

f) Por qualquer meio, facultar ou detiver documento falsificado ou contrafeito”.

Sendo a conduta punida na forma agravada, nos termos do n.º 3, do mesmo preceito, se tais factos “disserem respeito a documento autêntico ou com igual força, a testamento cerrado, a vale do correio, a letra de câmbio, a cheque ou outro documento comercial transmissível por endosso, ou qualquer outro título de crédito não compreendido no artigo 267.º”.

A densificação de que cada uma das modalidades de acção típica em presença não dispensa a caracterização do bem jurídico protegido pela norma: trata-se do valor da “segurança e confiança no tráfico jurídico, especialmente no tráfico probatório, no que respeita à prova documental” (Schönke/Schröder, citados por Figueiredo Dias e Costa Andrade, inO legislador português de 1982 optou pela descriminalização do crime patrimonial de simulação”, CJ, ano VIII – 1983, T. III, p. 23; no mesmo sentido, vide Helena Moniz, inO Crime de falsificação de documentos”, 1993, pág. 47 e ss), enquanto condição essencial ao desenvolvimento do homem social e historicamente situado e, neste sentido, de preservação da comunidade existencial nas contemporâneas formas de organização e de inter-acção social.

A “segurança e a credibilidade dos documentos e notações técnicas no tráfico jurídico”, surge, deste modo, segundo a generalidade dos autores, como o bem jurídico tutelado pelo tipo legal incriminador (cfr. Helena Moniz, Crime de Falsificação de Documentos e Enrique Bacigalupo “Estudios sobre la Parte especial del Derecho Penal”, pág 416).

É certo que, para alguns autores, aquele crime assumiria uma a natureza pluriofensiva com duplicação do bem protegido em que coexistiriam a confiança e a segurança das relações jurídicas e, numa outra perspectiva, os interesses específicos que encontram uma garantia na genuinidade e veracidade do documento como meio de prova da situação juridicamente relevante. Porém, importa precisar que as normas sobre a falsificação tutelam a fé pública como instrumental da garantia da situação jurídica compreendida no concreto uso do acto. Sobre este ponto de vista elevar a função documental a bem autónomo supra individual equivale a realizar uma tutela antecipada dos concretos interesses individuais ameaçados com o acto ilícito. Igualmente é exacto que, em consequência da centralização sobre a fé pública como bem nuclear e objecto de tutela penal directa e imediata, os interesses singulares lesados com o uso do documento falsificado são protegidos por via mediata como objecto último de tutela

A tese da pluriofensividade colide, em última análise, com a objecção de que nem sempre é possível individualizar os concretos interesses garantidos pelo documento.

Assumindo aquela segurança e credibilidade como bem jurídico a proteger dir-se-á, como refere Helena Moniz, in Código Penal Conimbricense, Tomo II, pág 607, que não é toda a segurança no tráfico jurídico que se pretende proteger mas apenas a relacionada com os documentos. Assim, acentua-se as duas funções que o documento pode ter: função de perpetuação que todo o documento tem em relação a uma declaração humana e função de garantia, pois cada autor do documento tem a garantia de que as suas palavras não serão desvirtuadas e apresentar-se-ão tal qual como ele, num certo momento e local, as expôs. Por igual forma se pronunciam Munoz Conde Munoz Conde (Derecho Penal Especial, pág 625) e Enrique Bacigalupo (. cit.) quando acentuam as três funções atribuíveis ao documento : a função de perpetuação referente á manutenção da declaração de vontade num suporte capaz de a fixar no tempo e torna-la cognoscível de pessoas distintas do emissor; a função probatória que permite demonstrar processualmente a existência de uma declaração de vontade do seu emissor e a função de garantia pela qual se garante a imputação do declarado ao autor da declaração.

A noção de documento consubstanciada no artigo 255.º do Código Penal sofreu a influência de uma evolução e acaba por nos dar um conceito de documento com todas as características que permitem assegurar as funções de perpetuação; probatória e de garantia que são exigidas ao documento enquanto objecto material do crime falsificação de documentos. Documento, para efeitos de direito penal, não é material que corporiza a declaração, mas a própria declaração independentemente do material em que está corporizada; e declaração enquanto representação de um pensamento humano (função de perpetuação). O que permite integrar na noção de documento não só o documento autêntico ou autenticado, direito civil, que têm força probatória plena, mas qualquer outro – escrito, isto em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico – que integre declaração idónea a provar um facto juridicamente relevante (quer tal destino lhe seja dado desde o início – documentos intencionais – quer posteriormente – documentos ocasionais).

Trata-se de uma noção bastante mais ampla do que a inscrita no âmbito do direito civil, e que permite já considerar como documento as declarações inscritas através de qualquer novo meio técnico de gravação, ponto é que se trate de uma declaração idónea a provar facto juridicamente relevante (função probatória) e que permita reconhecer o emitente (função de garantia).

Documento é, pois, a declaração de um pensamento humano que deverá ser corporizada num objecto que possa constituir meio de prova; só assim, compreendendo que o crime de falsificação de documentos proteja o espaço bem jurídico que é a segurança e credibilidade no tráfico jurídico-probatório. Não é relevante que se trate de um documento intencional – que abrange todos os documentos que são criados com o objectivo constituírem um meio de prova num processo – ou se trate de um documento ocasional – documentos que representam uma determinada declaração de vontade, mas que, no momento da sua produção ou elaboração não foram criados com intenção de servirem como meio de prova, embora tal destino lhes viesse a ser dado posteriormente (no âmbito dos documentos intencionais distingue-se entre documentos dispositivos – que contêm uma declaração de vontade, enquanto declaração contratual no sentido de formar, extinguir ou modificar alguma relação jurídica, sendo documentos constitutivos, modificativos ou extintivos de direitos – e documentos testemunhais – cujo conteúdo resume-se ao testemunho de algum facto (cfr. Helena Moniz obra citada, pág 678).

De acordo com a factualidade dada como provada é essa a situação existente no caso vertente, o que, nos termos descritos, faz incorrer a conduta do arguido no referido ilícito. A reforçar o entendimento preconizado, refira-se que o Supremo Tribunal de Justiça uniformizou jurisprudência precisamente neste sentido no acórdão n.º 9/2013, em que estabeleceu que “o sacador de um cheque que nele apuser data posterior à da emissão, e em que ulterior escrito assinado, requisitar ao banco sacado o seu não pagamento, invocado falsos extravio, subtracção ou desaparecimento, com intenção de obter o resultado pretendido preenche com esse escrito o tipo de crime de falsificação de documento”, previsto na actual alínea d) do n.º 1 do artigo 256.º do Código Penal (cfr. Diário da República, 1.ª Série, n.º 80, publicado em 24 de Abril de 2013).

Deste modo, fácil é de compreender que o que constitui a falsificação de documento não é a falsificação do documento que incorpora uma declaração, mas a falsificação da declaração, enquanto documento.

Tendo em conta a distinção que se faz entre crimes de perigo e crimes de dano, interessa saber se o crime de falsificação de documentos é um crime de dano ou de perigo.

Ora, está-se perante um crime de dano quando o tipo legal de crime é preenchido com a lesão de um bem jurídico, ou seja, a consumação depende da efectiva lesão do bem jurídico. Diferentemente, está-se perante um crime de perigo quando o preenchimento do tipo legal se basta com um pôr em perigo o bem jurídico, sem todavia se verificar uma verdadeira lesão, basta que o bem jurídico seja colocado em perigo para se consumar (o perigo corresponde à possibilidade de dano).

Atendendo a esta distinção, o crime de falsificação de documentos é considerado um crime de perigo na medida em que a lei, na incriminação deste tipo de condutas, abstrai da existência de uma lesão efectiva dos interesses ou bens jurídicos que com ela se visa tutelar, contentando-se, com a colocação desses interesses em perigo. A lesão efectiva que com este crime se visa tutelar apenas se verifica quando o documento falso é apresentado, quando ele é colocado em circulação. O simples facto de falsificar um documento já é, em si mesmo, punido pois tal conduta torna possível uma futura lesão dos valores jurídico-penalmente relevantes protegidos para este tipo legal, independentemente do agente o utilizar ou o colocar no tráfico jurídico (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, anotação ao art.º 256º do CP, pag. 681). Basta que se considere a nível abstracto que a falsificação daquele documento é uma conduta possível de lesão do bem jurídico criminal aqui protegido. Basta que exista uma probabilidade de lesão da confiança e segurança, que toda a sociedade deposita nos documentos, e por conseguinte no tráfico jurídico. Logo, existe uma antecipação da tutela do bem jurídico, uma punição do âmbito pré-delitual.

Daí se entender tratar-se de um crime formal ou de mera actividade, dado que não é necessária a produção de qualquer resultado.

Contudo atendendo a que o crime de falsificação de documento exige uma certa actividade por parte do agente, no sentido de fabricar, modificar ou alterar o documento, é necessária uma modificação do mundo exterior, modificação do documento, modificação esta que ocorre aquando da criação do documento ou posteriormente, a doutrina considera ainda que se trata de um crime material de resultado, ou seja um “crime formal ou de mera actividade considerado o resultado final que se pretende evitar (violação da segurança no tráfico jurídico em virtude da colocação neste do documento falso), mas um crime material considerado o facto (modificação exterior) que o põe em perigo” (cfr. Eduardo Correia, citado em Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, anotação ao art.º 256º do CP, pag. 682).

Concluindo, quanto ao tipo objectivo do ilícito, o documento constitui o objecto da acção. É sobre o documento que incidirá a conduta do agente, bastando o acto da falsificação para a sua consumação, comportando diversas modalidades de conduta, a saber fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo, falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram, abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento, fazer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto jurídico relevante, usar documento falsificado nos moldes descritos ou, por qualquer meio, facultar ou deter documento falsificado ou contrafeito.

Relativamente ao elemento subjectivo do tipo de ilícito em causa, e tendo em conta que o conceito de dolo que nos é fornecido pelo artigo 14.º do Código Penal, o crime de falsificação de documentos é um crime doloso, não sendo punível a título de negligência.

Para além deste elemento subjectivo, o dolo, a lei exige uma particular intenção de praticar o crime: a intenção de causar prejuízo a outrem ou ao Estado, ou de alcançar para si ou para terceiro um benefício ilegítimo (crime intencional). Deste modo, só é punível pelo crime de falsificação de documentos o agente que agiu com aquele específico dolo; é o que a doutrina chama de dolo específico ou delito intencional. O dolo específico, como a própria designação indica, exige, para além da intenção de realização de um crime, uma particular intenção aquando da sua realização – o agente tem de ter procedido, tendo em vista um certo fim.

O elemento intelectual do dolo implica um conhecimento da ilicitude do facto, um conhecimento dos elementos constitutivos da infracção, dos elementos objectivos de um tipo de crime. Tal elemento intelectual envolve o conhecimento dos elementos descritivos e normativos do facto típico. Constituindo o documento um elemento normativo do tipo, apenas se exige que o agente tenha sobre ele o conhecimento normal de um leigo de acordo com as regras gerais, não sendo necessário o conhecimento da noção jurídica, maxime, da noção jurídica penal.

No caso vertente, resulta demonstrado que o arguido fez constar da comunicação escrita que dirigiu à instituição bancária uma informação juridicamente relevante e falsa – a subtracção ilegítima dos cheques emitidos à ordem da assistente e entregues à mesma pelo próprio arguido em data anterior à da verificação do furto – nos moldes da previsão do artigo 256º, n.º 1, alínea d), do Código Penal.

Acresce que, resulta demonstrado o outro elemento objectivo que compõe o tipo legal de crime em apreço – a intenção de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime – na medida em que resulta cabalmente comprovado que o arguido agiu com a intenção de, desde logo, esquivar a sociedade “ L..., Ld.ª”, do pagamento das dívidas emergentes dos fornecimentos realizados pela assistente.

Por fim, cumpre salientar que no caso de estar em causa título de crédito à ordem, susceptível de circulação fiduciária através de sucessivos endossos, compreende-se que careça de gozar de credibilidade no seu teor, para que garanta a segurança e a confiança do tráfego jurídico como meio de pagamento.

Essa protecção é-lhe, de resto, especialmente dispensada através da agravação prevista no n.º 3 do tipo legal em referência.

                Verificando-se, assim, o preenchimento dos pressupostos objectivos e subjectivos do referido crime, praticou o arguido um crime de falsificação de documento por que vem pronunciado.

2. Nos termos do artigo 26.º do código Penal, “é punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução”.

Atenta a factualidade provada, afigura-se que a responsabilidade do arguido pela prática do crime em causa lhe deve ser imputada a título de autoria material.

3. Refira-se ainda que nenhum dos factos provados tem a virtualidade de integrar qualquer causa de justificação da ilicitude ou de exclusão da culpa do arguido, sem prejuízo de serem considerados no momento da determinação concreta da medida da pena a aplicar ao mesmo.

4. Face ao exposto, o arguido praticou, como autor material e na forma consumada, um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.ºs 1, alínea d), e 3 do Código Penal.

(…)”.

E) E a seguinte fundamentação quanto ao pedido de indemnização civil:

“ (…).

A demandante pede a condenação de A... no pagamento àquela da quantia de € 312.779,62 (trezentos e doze mil setecentos e setenta e nove euros e sessenta e dois cêntimos), acrescida dos respectivos juros de mora à taxa legal a contar desde 29 de Março de 2012 até efectivo e integral pagamento.

1. De acordo com o disposto no artigo 71.º do Código de Processo Penal e em conformidade com o princípio da adesão que aí se consagra, deve o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime ser deduzido no âmbito do processo penal em que se aprecia a responsabilidade criminal emergente da infracção cometida.

                Tomou, deste modo, o legislador em consideração a “natureza tendencialmente absorvente do facto que dá causa às duas acções”, bem como o interesse social subjacente à reparação dos prejuízos eventualmente verificados pelo agente da infracção que lhes deu causa (cfr. Eduardo Correia, in Direito Criminal, pág.541).

                Daí que, como logicamente decorre do sentido das considerações supra expostas e que estão na base da opção pelo sistema consagrado, o pedido de indemnização civil deduzido em processo penal haja de ser sempre fundado na prática de um crime.

O que, desde logo, significa que o facto constitutivo da sentença condenatória em matéria de responsabilidade civil se há-de poder incluir no âmbito do facto criminoso que ao arguido é imputado, de tal forma que, se não existirem ou simplesmente não se provarem os pressupostos da punição penal, a condenação em indemnização civil possa ainda subsistir sustentada na verificação dos pressupostos da ilicitude civil permitida pela apreciação da realidade factual em causa.

Neste sentido, e de acordo com o disposto no artigo 129.º do Código Penal, “a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil”.

As pretensões dos lesados fundam-se no instituto da responsabilidade civil.

O artigo 483.º, n.º1, do Código Civil consagra a regra basilar em matéria de responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, dispondo que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.

Deste modo, os pressupostos da obrigação de indemnizar com base em facto ilícito são os seguintes: o facto humano controlável ou dominável pela vontade, a ilicitude do facto (nas modalidades de violação de direitos subjectivos ou de disposições legais destinadas a tutelar interesses alheios), o nexo de imputação do facto ao agente (que coenvolve a imputabilidade e a culpa), o dano e o nexo causal entre o facto e o dano.

No caso presente, refira-se que a verificação do primeiro pressuposto da responsabilidade civil é, face à factualidade provada, indubitável, pois a acção praticada pelo demandado A... constitui sem dúvida um facto humano dominável pela vontade.

No que tange à ilicitude do facto, afigura-se que esta emerge da violação do direito de propriedade da demandante e da violação da norma legal que incrimina o crime de falsificação de documento.

                No que respeita à culpa, que deve ser apreciada, em abstracto, de acordo com o critério da conduta que o “bonnus pater familiae” adoptaria no caso concreto, consagrado no n.º2, do artigo 487.º do Código Civil, já se concluiu, em sede de apreciação criminal, que o demandado agiu com culpa efectiva, sendo o dolo directo.

                 O pressuposto do dano traduz-se, no caso dos autos, nos danos patrimoniais emergentes da conduta do demandado: os prejuízos directos consubstanciados na quantia monetária subtraída, correspondente ao valor dos cheques cujo pagamento foi omitido.

À luz da teoria da causalidade negativa, consagrada no artigo 563.º do Código Civil, o nexo causal entre o facto e o dano no caso da responsabilidade civil por facto ilícito existe sempre que a conduta se não possa considerar de todo em todo indiferente para a verificação do dano, tendo-o provocado só por causa das circunstâncias excepcionais, anormais e extraordinárias ou anómalas (neste sentido, Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Almedina, pág. 862). No caso dos autos, afigura-se manifesto que os danos antes enunciados resultaram de forma necessária da conduta do demandado A....

Nesta conformidade, encontrando-se genericamente preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil no que respeita ao pedido civil formulado nestes autos, o demandado A... constituiu-se na obrigação de indemnizar os danos emergentes da sua conduta.

2. A obrigação de indemnizar os danos acabados de referir tem como finalidade precípua a remoção do dano causado ao lesado; por isso, o artigo 562.º do Código Civil prescreve que “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”.

Efectivamente, o nosso legislador acolheu prioritariamente a via da reconstituição natural – a directa remoção do dano real à custa do responsável –, visto ser esse o meio mais eficaz de garantir o interesse capital da integridade das pessoas, dos bens ou dos direitos sobre estes.

Nem sempre, porém, o recurso à restitutio in integrum permite resolver satisfatoriamente a questão da reparação do dano, havendo casos em que a mesma não é sequer possível, a par de outros em que ela não é meio bastante para alcançar o fim da reparação ou não é o meio idóneo para tal, devendo a indemnização ser fixada em dinheiro.

Por sua vez, a indemnização pecuniária deve medir-se pela diferença entre a situação (real) em que o facto deixou o lesado e a situação (hipotética) em que ele se encontraria sem o dano sofrido. O artigo 566.º, n.º 2, do Código Civil, aceita esta teoria da diferença e define, com toda a precisão, os seus dois termos: “a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que deve ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos”.

No caso sub judice, a pretensão formulada pelos demandantes reporta-se somente a danos patrimoniais por si sofridos.

                Neste contexto, e uma vez que se logrou apurar o valor do três cheques cujo pagamento foi omitido, equivalente a € 312.779,62 (trezentos e doze mil setecentos e setenta e nove euros e sessenta e dois cêntimos), deveria ser este o quantum indemnizatório fixado.

Sucede que, da prova produzida resultou que o demandado, após a devolução dos cheques, procedeu ao pagamento voluntário de parte da quantia monetária neles titulada, concretamente pagou a quantia de € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros). Donde facilmente se conclui que o demandado só deverá ser condenado a proceder ao pagamento do remanescente, concretamente de € 162.779,62 (cento e sessenta e dois mil setecentos e setenta e nove euros e sessenta e dois cêntimos).

Com efeito, não obstante tenha resultado sobejamente demonstrado que o valor da dívida da “ L..., Ld.ª”, à demandante é largamente superior ao valor titulado nos cheques em apreço, descritos no facto provado 21), não existe qualquer fundamento para responsabilizar o demandado pelo pagamento da mesma, nem para imputar o pagamento voluntário realizado pelo mesmo à satisfação das demais quantias devidas pela sociedade uma vez que no momento em que foi realizado este pagamento o mesmo já não tinha qualquer relação pessoal ou profissional com a demandada – tendo, aliás, este pagamento voluntário sido realizado à custa dos rendimentos pessoais do demandado.

Ponderadas todas as referidas circunstâncias, afigura-se adequada, num juízo de equidade e ponderação global, fixar a indemnização devida à demandada em € 162.779,62 (cento e sessenta e dois mil setecentos e setenta e nove euros e sessenta e dois cêntimos).

3. A demandante peticionou ainda a condenação do demandado no pagamento de juros vencidos e vincendos calculados sobre tal quantia até integral pagamento.

Os juros devidos são por via de regra os juros legais (cfr. artigo 806.º, n.º 2, do Código Civil), cuja taxa supletiva a Portaria n.º 291/03, de 8 de Abril, fixou em 4 %.

Na senda da jurisprudência fixada no Acórdão n.º 4/2002, publicado no Diário da República n.º 146, Iª Série, de 27 de Junho de 2002, entende-se que no caso dos montantes indemnizatórios fixados por referência a valores actuais os juros de mora contam-se desde a data desta decisão e até efectivo e integral pagamento, sendo os demais contados a partir da data da notificação do pedido civil.

Com efeito, tratando-se de obrigação pecuniária, a lei presume, juris et de jure, que há sempre danos em consequência da mora, estabelecendo-se que a indemnização corresponde aos juros legais (cfr. artigo 806.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil).

                O artigo 805.º, n.º 1, do Código Civil dispõe que "o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir".

                Porém, o n.º 2 do mesmo preceito, na sua alínea a), estabelece que, independentemente de interpelação, há mora do devedor se a obrigação tiver prazo certo.            

                Ora, no caso sub judice, a obrigação do arguido emergente da sua responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos não tinha prazo certo, pelo que os juros de mora respectivos, liquidados quando da dedução do pedido civil, terão vencimento à taxa legal de referência mencionada a partir da data da notificação do pedido civil.

4. Ao abrigo do disposto no artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, a decisão que julgue a acção condenará em custas a parte vencida, na proporção em que o for, pelo que os demandantes e o demandado serão responsáveis pelo pagamento das custas, em face do seu decaimento.

(…)”.


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Da existência dos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova

1. Alega o recorrente – conclusões VI, XIII, XXVII, XXXVIII XXXIX – que a sentença em crise padece de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova, nos termos do art. 410º, nº 2, a) e c) do C. Processo Penal, ao que parece, se bem entendemos a argumentação, porque o tribunal a quo formou a sua convicção, no que respeita à prova do tipo subjectivo do crime pelo qual foi condenado e à não prova da subtracção dos livros de cheques, com base em prova indiciária, quando os autos contém prova directa desta subtracção, seja prova documental, seja prova testemunhal, que foi desconsiderada.

Vejamos se lhe assiste ou não razão.

A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação do prova, previstos no nº 2, do art. 410º do C. Processo Penal, são vícios intrínsecos da decisão, respeitam à sua estrutura interna. Por isso, a lei exige que a sua demonstração resulte do respectivo texto por si só, ou em conjugação com as regras da experiência comum, não sendo admissível tal demonstração com recurso a elementos alheios à decisão, ainda que constem do processo.

Aqui, na designada revista alargada, o tribunal ad quem não conhece da matéria de facto – no sentido da reapreciação da prova, nos termos regulados no art. 412º do C. Processo Penal – mas apenas detecta os vícios que a sentença, por si só e nos seus termos, evidencia e, não podendo saná-los, reenvia o processo para novo julgamento. 

            Existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a factualidade provada não permite, por exiguidade, a decisão de direito ou seja, quando a conclusão [decisão de direito] ultrapassa as respectivas premissas [decisão de facto]. Dizendo de outra forma, ocorre o vício quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito adoptada porque o tribunal, desrespeitando o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, não investigou toda a matéria de facto contida no objecto do processo relevante para a decisão, e cujo apuramento conduziria à solução legal (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, pág. 69).

E existe erro notório na apreciação da prova quando o tribunal a valoriza contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª, Edição, pág. 341). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, ob. cit., pág. 74).

Balizados os vícios invocados, cumpre desde já dizer que a sentença recorrida deles não enferma, como também se não descortina a existência de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão. Explicando.

1.1. Relativamente à insuficiência para a decisão da matéria de facto provada o que o recorrente efectivamente pretende com a argumentação apresentada é demonstrar que a prova indiciária de que se serviu o tribunal é insuficiente para fundamentar a decisão de facto proferida designadamente, no que respeita aos pontos 7 e 11 a 16, face à prova directa produzida.

Apesar de ser recorrente esta argumentação, a verdade é que a pretendida insuficiência dos meios de prova produzidos para suportarem a decisão de facto proferida é questão distinta e logicamente anterior ao vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Com efeito, no vício, a matéria de facto provada é insuficiente para sustentar a decisão de direito, enquanto ali, a prova produzida é que não suporta a decisão de facto.

 

Nos autos, a matéria de facto provada preenche o tipo objectivo e subjectivo do crime de falsificação de documento, e não se mostra provada matéria de facto caracterizadora de qualquer causa de justificação, pelo que não enferma a sentença do imputado vício.

1.2. No que respeita ao erro notório na apreciação da prova o recorrente afirma a sua existência sem qualquer especificação das respectivas razões, tudo se reconduzindo à problemática da prova indicaria, face à prova directa, documental e testemunhal produzida – remetendo para a gravação da audiência –, designadamente, a circunstância de se ter considerado provado o furto de bens do interior da sua viatura, e de não se ter considerado provado, apesar dos termos da denúncia feita, que nesse furto se incluíam os dois livros de cheques cujo extravio foi comunicado ao banco.

Significa isto que o recorrente pretende demonstrar o invocado erro notório através do que as testemunhas disseram em audiência de julgamento, não se atendo, nesta medida, ao texto da decisão recorrida e à sua conjugação com as regras da experiência comum.

Por outro lado, não vemos, nem o recorrente o afirma, que o tribunal a quo tenha valorado um qualquer meio de prova com desrespeito por critério legal estabelecido.  

Na verdade, o que o recorrente faz, ao invocar o vício, é discordar da decisão sobre a matéria de facto proferida, por entender que ela resulta de erros cometidos na apreciação da prova. Tal discordância, evidentemente, legítima, prende-se apenas com um eventual erro de julgamento, de que trataremos adiante, erro este que nada tem a ver com o vício do erro notório na apreciação da prova, pela simples razão de que não reúne as características exigidas para a sua qualificação como notório.

Em conclusão, não enferma a sentença do imputado vício.


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Da incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto e da violação do princípio in dubio pro reo

2. Alega o recorrente – conclusões II, III, VII a XII, XIV a XXVI, XXVIII a XXXVI – segundo cremos, e como já referimos, que a convicção do tribunal, quanto aos pontos 11 a 16 dos factos provados foi alcançada com recurso a prova indiciária designadamente, no que concerne ao seu conhecimento de não ter havido extravio dos cheques emitidos à assistente, isto apesar de ter considerado provado o furto de diversos bens do seu automóvel, mas já não, o furto dos dois livros de cheques, quando foram juntos aos autos, o auto de notícia e a participação do furto que, conjugados com os depoimentos das testemunhas F..., G..., H... e I..., o comprovam, acrescendo que do depoimento da testemunha J... resulta que o recorrente guardava sempre os livros de cheques consigo, não os deixando na empresa, documentos e depoimentos que foram desconsiderados indevidamente e com violação do princípio da imediação da prova, já que são suficientemente demonstrativos de que não houve falsidade de declaração de extravio dos cheques.     

Já no corpo da motivação o recorrente parece alargar a impugnação da matéria de facto ao ponto 7 dos factos provados, pelo menos, no segmento «(…) tendo em vista obstar ao pagamento dos cheques (…)», e ao ponto I dos factos não provados, mantendo, no essencial, a argumentação e indicação probatória supra referidas.  

O recurso da matéria de facto ou a impugnação ampla da matéria de facto, regulada essencialmente no art. 412º do C. Processo Penal, impõe ao recorrente a observância do ónus de uma tripla especificação, a saber: a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; a especificação das provas que devem ser renovadas [esta, nos termos do art. 430º, nº 1 do C. Processo Penal, apenas quando se verificarem os vícios da sentença e existam razões para crer que a renovação permitirá evitar o reenvio]. Acresce, relativamente às concretas provas, que quando estas tenham sido gravadas, as duas últimas especificações devem ser feitas por referência ao consignado na acta, com a concreta indicação das passagens em que se funda a impugnação.

Compete assim ao recorrente indicar com precisão onde entende ter sido cometido o erro e depois, indicar os meios que inequivocamente o demonstram, pois a modificação da decisão de facto só pode dar-se se e quando as provas por si especificadas impuserem decisão diversa da recorrida, não bastando para este efeito, que apenas permitam decisão diversa.

           

Como se disse, o recorrente impugnou especificadamente os pontos 7 e 11 a 16 dos factos provados e o ponto I dos factos não provados.

 

Já a especificação probatória suscita dificuldades.

Podendo considerar-se que o recorrente indicou como específicos meios de prova, impositores de diversa decisão, o auto de denúncia de fls. 332 e os depoimentos das cinco testemunhas supra identificadas, o que não fez, nem nas conclusões, nem no corpo da motivação, foi a legalmente imposta indicação das concretas passagens das provas gravadas em que funda a impugnação (art. 412º, nº 4 do C. Processo Penal). Com efeito, relativamente às testemunhas F..., G..., H... e I... limitou-se a assinalar o dia e o tempo da gravação correspondente ao início do respectivo depoimento, o que, manifestamente, não constitui a indicação de uma qualquer concreta passagem. E se, quanto à testemunha J..., para além das mesmas indicações, acrescentou o que entendeu resultar claramente do depoimento, certo é que esta avaliação pessoal também não corresponde à indicação das concretas passagens de onde ela, eventualmente, resultou.

Sucede que o legislador desenhou o recurso da matéria de facto como um remédio para os erros de julgamento cometidos, de forma a que a intervenção do tribunal ad quem, na sua correcção, seja cirurgicamente orientada para as patologias arguidas, e não, como um novo julgamento onde analisa e valora criticamente, agora pela via da audição do registo magnético das declarações prestadas em audiência, toda a prova produzida e valorada pela 1ª instância.

Por isso, ao ter omitido, quanto à prova por declarações que especificou, as concretas passagens dos depoimentos em que funda a impugnação da matéria de facto, o recorrente impossibilitou o conhecimento do recurso.

Não obstante, dirigindo-se a impugnação aos factos atinentes ao dolo e à, alegadamente, indevida valoração da prova indiciária, sempre diremos o que segue.

3. O recorrente foi condenado pela prática de um crime de falsificação de documento, previsto no art. 256º, nº 1, d) do C. Penal [a questão da qualificação será adiante conhecida].

Estamos perante um crime comum, de perigo abstracto e de mera actividade, que tutela o bem jurídico segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório (cfr. Helena Moniz, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, pág. 680) e tem como elementos constitutivos do respectivo tipo:

[Tipo objectivo] 

            - Que o agente, a) fabrique ou elabore documento falso, b) falsifique ou altere documento, c) abuse da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento, d) faça constar falsamente de documento facto juridicamente relevante, e) use documento falsificado ou contrafeito, f) por qualquer meio, faculte ou detenha documento falsificado ou contrafeito;

[Tipo subjectivo]

            - O dolo genérico, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade;

            - O dolo específico, a intenção de causar prejuízo a terceiro, de obter para si ou outra para pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime.

            In casu, a acção típica – face aos factos provados – traduziu-se em o recorrente, no dia 28 de Março de 2012, na qualidade de gerente da L..., Lda., se ter dirigido à agência de Torres Novas do Banco Santander Totta, onde comunicou por escrito o furto de três cheques, por si sacados, naquela qualidade, sobre uma conta da referida sociedade, emitidos e entregues em Fevereiro de 2012 à sua beneficiária, a assistente, com datas de 29 de Março de 20102, o primeiro, e 17 de Maio de 2012, os restantes, nos montantes de € 54.585,60, € 72.687,03 e € 185.506,99, respectivamente, cheques que, apresentados a pagamento, por causa daquela comunicação, foram devolvidos com a menção de ‘revogado por justa causa – extravio’ ou ‘revogado por justa causa – furto’, querendo o recorrente, ao assim actuar, impedir o pagamento dos cheques por si sacados e entregues à assistente e alcançar para a sua representada um benefício indevido, sabendo que a razão invocada não correspondia à verdade e que causava um prejuízo à assistente de montante igual ao somatório dos valores apostos nos cheques, e sabendo ainda que a sua conduta era proibida e punida por lei.

            Os factos provados sindicados pelo recorrente têm o seguinte teor:

- [7] No dia 28 de Março de 2012, na véspera do vencimento do primeiro cheque atrás referido, A..., na qualidade de gerente da “ L..., Ld.ª”, dirigiu-se à agência de Torres Novas do banco sacado e comunicou, por escrito que subscreveu, que os cheques activos dos últimos livros de cheques emitidos em nome desta sociedade tinham sido furtados, tendo em vista obstar ao pagamento dos cheques supra referidos nos pontos 5.1 a 5.3;

- [11] A... agiu de forma livre, deliberada e consciente;

- [12] A... previu e quis dar instruções ao banco sacado para a revogação de todos os cheques dos últimos dois livros de cheques que haviam sido emitidos em nome da “ L..., Ld.ª”, comunicando-lhe que os mesmos haviam sido furtados sem excluir os cheques supra descritos que o próprio havia colocado em circulação, e que, ao efectuar semelhante comunicação ao banco sacado estava a impedir, como impediu, o pagamento das quantias tituladas pelos cheques que havia colocado em circulação e entregue à “ E..., S.A.”;

- [13] Bem sabia A... que a razão invocada junto do banco sacado para a revogação dos cheques, na parte em que abrangia os cheques supra descritos nos pontos 5.1 a 5.3, não correspondia à verdade, porquanto sabia que a “ E..., S.A.” era a legítima dona e detentora desses cheques em virtude dele próprio s ter entregue para pagamento da mercadoria adquirida pela “ L..., Ld.ª”, sua representada, à aquela;

- [14] Com a descrita conduta, previu e quis A... impedir, como impediu, o pagamento pelo banco sacado das quantias tituladas nos cheques supra referidos, com o propósito de alcançar um benefício indevido para a sua representada;

- [15] Ao agir como descrito, A... causou uma diminuição patrimonial à “ E..., S.A.”, pelo menos, em valor igual ao do montante total dos três cheques;

- [16] Agiu A... ciente de que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Relativamente ao ponto 7, como se pode ler na motivação de facto da sentença, a deslocação do recorrente à agência bancária e a comunicação escrita por si feita da subtracção dos dois livros de cheques, onde se incluíam os três cheques emitidos a favor da assistente resultou provada, quer pelas declarações do recorrente, quer pelo depoimento da testemunha P..., sub-gerente da agência bancária, quer pelo documento de fls. 101 com o título, ‘Comunicação de cliente’, datado de 28 de Março de 2012. 

Assim, cremos que nesta concreta parte, o ponto não é impugnado, apenas o sendo no segmento que o recorrente sublinhou ou seja, no segmento, «(…) tendo em vista obstar ao pagamento dos cheques (…)», já que a expressão utilizada  – ‘tendo em vista’ – significa um propósito, uma intenção, remetendo-nos por isso, para o dolo.

E que ao dolo, genérico e específico, do tipo em questão, se referem os demais pontos provados impugnados, não restam dúvidas.    

O dolo, enquanto facto da vida interior do agente, é um facto subjectivo não directamente apreensível por terceiro, razão pela qual a sua demonstração probatória, quando não exista confissão, não pode ser feita directamente, designadamente, através de prova testemunhal. A prova do dolo, nestes casos, só pode ser feita por inferência isto é, terá que resultar da conjugação da prova de factos objectivos, em especial, dos que integram o tipo objectivo de ilícito, com as regras de normalidade e da experiência comum.

Ora, as regras da experiência são definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto sub judice, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade (Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, II, pág. 30) ou, dito de forma mais simples, são regras que exprimem o que sucede na generalidade dos casos isto é, são regras extraídas de casos semelhantes (cfr. Ac. do STJ de 7 de Abril de 2011, proc. nº 936/08.0JAPRT.S1, in www.dgsi.pt).   

Porém, o recorrente insurge-se contra do uso feito da prova indiciária pelo tribunal a quo, alegando, no essencial, que a existência de prova directa sobre os factos de tal era impeditivo.

Vejamos.

4. Contrariamente ao que parece supor o recorrente, a prova indiciária ou a prova por presunções não é uma prova menor ou secundária. Bem pelo contrário, superado há muito o sistema de prova legal, a prova indiciária é hoje o centro de gravidade de toda a teoria da prova pois, a não ser que de qualquer meio de prova directa resulte para o julgador a plena convicção da prova do facto, nos demais casos, é sempre aplicada uma qualquer espécie de presunção mediante a valoração conjunta dos diversos meios de prova, até se alcançar a convicção sobre o facto (cfr. Climent Durán, La Prueba Penal, 2ª Edición Tomo I, pág. 865).

Simplificadamente, podemos dizer que a prova indiciária parte do facto base ou indício, que é o facto certo e provado por meios prova directa, susceptível de revelar um facto desconhecido, com ele relacionado. Ao facto base junta-se o juízo de indução, a regra da lógica, da experiência ou da ciência, que permite a presunção isto é, a conclusão do silogismo em que a premissa menor é o facto base, a premissa maior é o juízo de indução e a conclusão é a presunção ou seja, a prova do facto presumido. A inferência realizada deve apoiar-se numa regra geral e constante e permite passar do estado de ignorância sobre a existência de um facto para a certeza, ultrapassando o estado de dúvida e probabilidade (Santos Cabral, Prova indiciária e as novas forma de criminalidade, in Revista Julgar, 17, pág. 22).    

Assim, a prova indiciária ou por presunção é a prova de um facto, através da prova de outro ou de outros factos com aquele logicamente relacionados, segundo critérios de experiência, e não contraditados por outras provas, de modo que a prova deste ou destes factos determina a prova daquele outro (cfr. Climent Durán, ob. cit., pág. 869).

Devendo reconhecer-se que na prova indiciária a subjectividade do julgador surge mais vincadamente do que nas provas directas, tendencialmente mais objectivas, há também que dizer que no processo penal, deduzir ou inferir não é sinónimo de conjecturar, supor, ou suspeitar. Por isso, o direito constitucional à presunção de inocência, assegurado pelo art. 32º, nº 2 da Constituição da República, não constitui obstáculo a que a convicção do juiz, em processo penal, possa fundar-se em prova indiciária.

Nestes termos, são requisitos da prova indiciária, para que se tenha por observado aquele direito constitucional:

- Que os indícios ou factos base sejam múltiplos, o que não quer dizer que a existência de um único indício afaste a prova indiciária, tudo dependendo das circunstâncias do caso concreto;

- Que os indícios ou factos base estejam plenamente provados, no sentido de a sua prova resultar de meios de prova directa;

- Que os indícios ou factos base sejam periféricos ou concomitantes ou seja, estejam em relação directa [uma origem e existência conjunta] com o facto presumido;

- Que os indícios ou factos base sejam inter-relacionados e convergentes.

A tudo isto acresce a racionalidade do juízo de inferência, que por isso não pode ser arbitrário nem absurdo, antes assente em regras da lógica e da experiência, e a exigência de explicitação pelo tribunal dos fundamentos da prova dos indícios – factos base – e da sua conexão com o facto presumido, o que passa, necessariamente, pela ponderação da argumentação do arguido designadamente, da análise da contraprova eventualmente apresentada e produzida, isto é, pela ponderação e valoração probatória do que pode designar-se por contra-indícios ou contra-presunções o que vale dizer, a valoração dos outros ‘factos indício’ que abalem, face às regras da experiência, os ‘factos indício’ culpabilizadores do arguido (cfr. Climent Durán, ob. cit., pág. 905 e ss., e Santos Cabral, ob. cit., pág. 29 e ss). 

Pois bem.

Foi precisamente este o procedimento seguido pela Mma. Juíza a quo para fundar a sua convicção quanto aos pontos de facto indicados. Com efeito, face à ausência de confissão do recorrente, a Mma. Juíza, para considerar provados os factos subjectivos contidos nos pontos 11 a 16 alinhou em distintos aspectos de facto, que designou por ‘provas indirectas ou indiciárias’ – e que valem, naturalmente, para o segmento com a mesma natureza, vertido no ponto 7 – a saber, em síntese:

i) A circunstância de o recorrente ter sacado e entregue os cheques à assistente, sendo que todos tinham valor elevado, valor pouco normal na actividade por si desenvolvida [como foi afirmado pela testemunha J..., prestadora de serviços da empresa do recorrente, titular da conta sacada], o que determinou que o recorrente tivesse conhecimento das datas apostas nos cheques e não pudesse ignorar que seriam, com toda a certeza, apresentados a pagamento;

ii) A circunstância de, não obstante os conhecimentos do recorrente referidos supra isto é, que tinha sacado os cheques e os tinha entregue à assistente, com determinadas datas neles apostos, quando comunicou ao banco a intenção de revogar os cheques contidos nos dois livros que declarou terem-lhe sido furtados, não ressalvou os que havia entregue à assistente [como podia ter feito, como foi afirmado pela testemunha P..., sub-gerente da agência bancária sacada], não podendo, obviamente, ignorar que tais cheques não haviam sido subtraídos;      

iii) A circunstância de o recorrente não ter informado a assistente da revogação dos cheques e de ter evitado contactos com ela, o que só veio a suceder quando a assistente o exigiu sob pena de não prosseguirem os trabalhos numa obra do interesse do recorrente;

iv) Finalmente, a circunstância de o recorrente reconhecer que trazia sempre consigo os cheques, para evitar a sua eventual sua subtracção, situação que já antes lhe havia acontecido, não os deixando nas instalações da empresa, não se coadunar com a manifesta falta de cuidado traduzida na conduta de os deixar, assinados, no interior do automóvel [nem com o depoimento da testemunha J... que afirmou que o recorrente apenas assinava os cheques depois de estes terem sido por si, testemunha, preenchidos].

E de tudo isto inferiu a Mma. Juíza, brevitatis causa, que o recorrente, ao participar o furto dos cheques, incluindo os que sabia não terem sido subtraídos, mas entregues à assistente, quis evitar o seu pagamento destes, o que conseguiu, sabendo que a sociedade que geria iria deste modo obter um benefício a que não tinha direito, e que a assistente iria sofre um prejuízo correspondente ao valor titulado pelos cheques, emitidos que foram, em razão dos contratos que celebrara com a sociedade.

Os factos-base referidos em i) a iii) reúnem os requisitos supra enunciados, já que estão inequivocamente provados e são plurais, concomitantes e convergentes. Por outro lado, a Mma. Juíza a quo deixou plasmado na motivação de facto da sentença o raciocínio por si seguido na formulação do juízo de indução e consequente prova dos factos presumidos, raciocínio que se nos afigura absolutamente lógico e conforme as regras da experiência.

Já quanto ao facto-base vertido em iv) cremos que ele não tem, verdadeiramente, tal natureza, antes traduzindo um juízo da Mma. Juíza sobre alguns dos contra-indícios invocados pelo recorrente, além de outros igualmente invocados. Atentemos agora neles.

a) Para demonstrar que o tribunal recorrido não poderia ter considerado provado, com base em prova indiciária, que tinha conhecimento de não ter havido extravio dos cheques emitidos à assistente, alegou o recorrente que participou um furto de um computador portátil e de uma pasta contendo documentos e dois livros de cheques à PSP de Torres Novas, que indicou ao banco estes factos, incluindo os dois livros de cheques, que o auto de notícia e os depoimentos das testemunhas F..., G..., H... e I... apontam no sentido do furto, e que o tribunal, preterindo toda esta prova directa, considerou provado o furto, mas entendeu que foi falsa a declaração de extravio dos dois livros de cheques. E como se vê, com esta questão se prende a decisão de facto na parte em que teve por objecto o facto não provado I, também impugnado pelo recorrente, com o seguinte teor: «No circunstancialismo descrito em 17 foram subtraídos dois livros de cheques.».

Como é evidente, auto de denúncia de fls. 332 apenas prova que pelas 23h19m do dia 27 de Março de 2012 o recorrente compareceu na Esquadra de Torres Novas da PSP, onde apresentou queixa por um furto que disse ter ocorrido entre as 22h30m e as 22h15m do mesmo dia, ocorrido na Rua do Caldeirão, em Torres Novas, que teve por objecto uma pasta preta para transporte de computador, contendo no seu interior um computador e dois livros de cheques da conta do Banco Santander Totta de que é titular a empresa L..., objectos estes que se encontravam no interior do veículo de matrícula HX (...). Não prova, porém, sem mais, em primeiro lugar, que o furto tenha ocorrido, e em segundo lugar, admitindo-se que um furto ocorreu, que tenha tido por objecto todos os bens indicados designadamente, os livros de cheques.

  Embora o tribunal ad quem a tal não estivesse obrigado, ouviu o registo dos depoimentos prestados em audiência pelas testemunhas supra referidas. Sendo manifesta a oposição entre o depoimento de F..., por um lado, e dos demais, por outro, quanto à hora em que ocorreram os factos – para aquele, ao almoço, para os restantes, à noite – todos os depoimentos coincidiram em que o veículo do arguido se encontrava estacionado nas proximidades do restaurante e marisqueira Aquário, e tinha o vidro do lado do pendura partido, estando os fragmentos espalhados quer no interior, quer no exterior da viatura. Coincidiram ainda quanto ao desconhecimento do que havia sido subtraído do veículo, apenas tendo as testemunhas F... e G... afirmado que o arguido dizia ter-lhe sido furtada uma pasta de computador e o computador, enquanto a testemunha I..., agente da PSP, tendo referido estes elementos e ainda a subtracção de livros de cheques, esclareceu que o seu conhecimento advinha de ter lido recentemente o expediente ou seja, o auto de denúncia.

Já a testemunha J..., cujo depoimento o recorrente invocou para demonstrar que guardava sempre consigo os cheques por inexistir cofre na empresa, afirmou efectivamente que por razões de segurança e dado inexistir cofre nas instalações da empresa, o recorrente andava sempre com os cheques. Também afirmou a testemunha que o recorrente se fazia acompanhar regularmente da pasta com o computador portátil, que os módulos de cheque eram por si, depoente, preenchidos de acordo com as instruções recebidas do recorrente que só depois os assinava, o que sucedeu com os três cheques entregues à assistente, que na data de vencimento do primeiro destes cheques a conta tinha saldo para o pagamento pois, estando de férias nessa semana, não deixou qualquer informação sobre o assunto, que no seu período de férias era fácil, designadamente para no recorrente ou a colega da depoente, encontrar os documentos relativos aos cheques entregues à assistente como as fotocópias dos cheques, por si tiradas, e que desconhecia a razão pela qual, tendo a conta provisão, após a declaração de extravio dos cheques, o recorrente não procedeu à imediata regularização do primeiro cheque vencido [note-se que, contrariamente ao que se lê na motivação de facto, certamente por mero lapso, quem afirmou não ser comum a emissão de cheques no montante de € 180.000 pela empresa L..., foi a testemunha M..., então trabalhadora da empresa, na área de compras e gestão de obras, cujo registo de depoimento foi também integralmente ouvido pelo tribunal da relação].         

Aqui chegados, deve aceitar-se, face à prova referida, que o recorrente foi efectivamente vítima de um furto de objectos praticado no veículo que então utilizava. Isto, não porque alguém tenha presenciado o furto, mas porque quatro testemunhas, sendo duas agentes da autoridade, afirmaram, concordantemente, que o veículo apresentava o vidro dianteiro do lado direito partido, estando os respectivos fragmentos caídos quer no seu interior, quer no exterior, o que indicia o facto ocorreu no local onde se encontrava a viatura estacionada, a pequena distância do restaurante onde o recorrente jantava. Daí que o tribunal recorrido tenha levado ao ponto 17 dos factos provados o furto.

Questão distinta é já a de saber se no conjunto dos objectos subtraídos devem ou não incluir-se os dois livros de cheques mencionados pelo recorrente na participação.

Como se disse, a prova testemunhal não abarcou os concretos objectos subtraídos. Porém, as referências indirectas feitas pelas testemunhas são concordantes pois que F..., G... e H... afirmaram ter o recorrente, no próprio momento, dito que lhe haviam subtraído a pasta e o computador, enquanto a testemunha I... acrescentou a subtracção dos livros de cheques, para logo esclarecer que se recordava porque tinha lido o expediente ou seja, o auto de denúncia, sendo certo que neste constam os livros de cheques como subtraídos.    

Acresce que os cuidados tidos pelo recorrente com os livros de cheques, para evitar a sua subtracção, ao ponto de nunca os deixar nas instalações da empresa, como foi afirmado pela testemunha J... [e confirmado pela testemunha M....], são claramente incompatíveis com o manifesto descuido em que se traduziria o ‘esquecimento’ dos livros de cheques, juntamente com um computador portátil, à noite, dentro do veículo estacionado na via pública, fora do ângulo de visão de quem se encontrava no interior do restaurante onde jantava. E tudo isto quando, no dia seguinte, o primeiro dos cheques emitidos pelo recorrente e entregues á assistente, poderia ser apresentado a pagamento. Note-se, aliás, que não é pelo facto de os cheques nunca serem deixados pelo recorrente nas instalações da empresa, que se pode inferir que então, à hora do furto, teriam que estar no interior da viatura.

Por outro lado, contrariamente ao também pretendido pelo recorrente, não existe qualquer regra da lógica ou da experiência comum que permita concluir que, provado o furto do interior do veículo, que a subtracção dos cheques também teria ocorrido. Assim seria, se fosse considerado provado que os livros de cheques de encontravam efectivamente no interior do veículo antes de ter ocorrido o furto, mas o que o tribunal a quo entendeu é que tal não se provou. Por isso, não tendo sido considerado provado que os livros de cheques se encontravam no interior do veículo, não poderia ser, logicamente, considerado provado que de lá tinham sido subtraídos, razão pela qual, consta esta factualidade do ponto I dos factos não provados. Não se diga, portanto, como faz o recorrente, que as regras da experiência comum ditam que a vítima de furto se apressa a declarar o extravio dos cheques contidos em livros furtados, precisamente porque a regra é inaplicável ao caso concreto.  

Refira-se, para terminar este ponto, que esta última problemática é meramente secundária, pois que, tendo o recorrente emitido os três cheques entregues à assistente, e sendo o valor do terceiro incomum para a normalidade da empresa, como foi afirmado pela testemunha M..., não só a declaração do seu extravio feita pelo recorrente ao banco sacado – ao comunicar o furto dos livros de cheques sem ressalvar os três cheques entregues à assistente, como podia ter feito – é objectivamente falsa, como o recorrente não podia deixar de conhecer essa falsidade. 

Em conclusão, a contraprova do recorrente é insusceptível de abalar, de acordo com as regras da experiência, o valor probatório dos factos indício reveladores da sua culpa, sem que ocorra qualquer violação do princípio da investigação, que o recorrente não especifica, ou qualquer violação do princípio da imediação da prova, na medida em que na audiência de julgamento foi escrupulosamente observado o disposto no art. 355º, nº 1 do C. Processo Penal.

b) Alega ainda o recorrente que foi considerado provado que pretendeu obter para si um benefício ilegítimo na qualidade de gerente da sociedade L..., quando resulta dos autos que já não era gerente dessa sociedade e sofreu um prejuízo de € 150.000 ao suportar o pagamento pessoal desta quantia à assistente.

Começaremos por dizer não ser exacto que tenha resultado provada a sua intenção de alcançar para si um benefício ilegítimo pois o que se considerou provado no ponto 14 dos factos provados foi coisa diferente, a saber, «(…) o propósito de alcançar um benefício indevido para a sua representada.» ou seja, a intenção de obter para a sociedade um benefício a que sabia não ter ela direito.

Depois, tendo a declaração de extravio subscrita pelo recorrente sido apresentada no banco sacado a 28 de Março de 2012 [conforme ponto 7 dos factos provados], e tendo o recorrente exercido funções de gerente na L... até 2 de Abril de 2012, data da sua renúncia [conforme ponto 1 dos factos provados], é evidente que quando agiu com aquele específico propósito, ainda exercia o referido cargo social.

Finalmente, embora esteja provado que o recorrente entregou à assistente para pagamento parcial de algumas facturas de fornecimentos por esta feitos, dois cheques sacados sobre uma sua conta pessoal, no montante de € 75.000 cada um que, apresentados a pagamento, foram pagos [conforme pontos 22 e 23 dos factos provados], não se pode concluir que o recorrente teve um qualquer prejuízo, pela simples e decisiva razão de se desconhecerem as razões que estão por trás da emissão e entrega destes dois cheques.

Em suma, também aqui a contraprova do recorrente não abala, de acordo com as regras da experiência, o valor probatório dos factos indício reveladores da sua culpa.

5. Em síntese conclusiva do que fica dito, não merece censura a utilização da prova indicaria feita pelo tribunal a quo, nos precisos termos que constam da sentença recorrida, no que respeita aos factos provados atinentes ao dolo do crime de falsificação de documento, dada a prova, pluralidade, concomitância e convergência dos factos base e a existência de um juízo lógico e racional de inferência dos factos presumidos.

            6. Quanto à violação da presunção de inocência e do princípio in dubio pro reo, invocada nas conclusões XXVI e XXXVII e sem maiores desenvolvimentos no corpo da motivação, cumpre dizer que não assiste razão ao recorrente.

            Vejamos.

O princípio invocado pelo recorrente, mera decorrência do princípio da presunção de inocência (art. 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa), dá resposta à questão processual da dúvida sobre o facto, impondo ao julgador que o non liquet da prova seja resolvido a favor do arguido.

Produzida a prova, se no espírito do juiz subsiste um estado de incerteza, objectiva, razoável e intransponível, sobre a verificação, ou não, de determinado facto ou complexo factual, impõe-se uma decisão favorável ao arguido. Se, pelo contrário, a incerteza não existe, se a convicção do julgador foi alcançada para além de toda a dúvida razoável, não há lugar à aplicação do princípio.
Na fase do recurso, a detecção da violação do pro reo passa pela sua notoriedade, face aos termos da decisão isto é, deve resultar inequivocamente do texto da decisão que o juiz, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto desfavorável ao agente, o considerou provado ou, inversamente, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto favorável ao agente, o considerou não provado.
A dúvida relevante de que cuidamos, não é a dúvida que o recorrente entende que deveria ter permanecido no espírito do julgador após a produção da prova, mas antes e apenas a dúvida que este não logrou ultrapassar.

Lida a sentença recorrida e, muito particularmente, a sua motivação de facto, dela não resulta que a Mma. Juíza a quo tenha permanecido na dúvida quanto a qualquer dos factos que considerou na sentença, sendo certo que dela, motivação de facto, resulta exposto com meridiana clareza todo o processo lógico que conduziu à certeza sobre os factos integradores do objecto do processo.

Em conclusão, não se mostra violado o in dubio pro reo nem, por via dele, violada a presunção de inocência constitucionalmente consagrada.
Assim, considera-se definitivamente fixada a matéria de facto, nos exactos termos em que o foi pela 1ª instância.


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            Da qualificação jurídica dos factos

7. O recorrente foi condenado pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nºs 1, d) e 3 do C. Penal por, em síntese, no dia 28 de Março de 2012, na qualidade de gerente da L..., Lda., se ter dirigido à agência de Torres Novas do Banco Santander Totta, e comunicado por escrito o furto, além de outros, de três cheques, por si sacados, naquela qualidade, sobre uma conta da referida sociedade, emitidos e entregues em Fevereiro de 2012 à sua beneficiária, a assistente, com datas de 29 de Março de 20102, o primeiro, e 17 de Maio de 2012, os restantes, cheques que, apresentados a pagamento, por causa daquela comunicação, foram devolvidos com a menção de “revogado por justa causa – extravio’ ou ‘revogado por justa causa – furto”, querendo ao assim actuar, impedir o pagamento de tais cheques, por si sacados e entregues à assistente, e alcançar para a sua representada um benefício indevido, sabendo que a razão invocada não correspondia à verdade e que lhe causava um prejuízo de montante igual ao somatório dos valores apostos nos cheques, e sabendo ainda que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Dando aqui por reproduzido o que no ponto 3 que antecede se deixou dito quanto aos elementos constitutivos do tipo do crime de falsificação de documento, dúvidas não subsistem quanto a os factos supra sintetizados os preencherem.

 Mas no que respeita à qualificação do crime, a sentença recorrida limitou-se, singelamente, a referir que, «(…) cumpre salientar que no caso de estar em causa título de crédito à ordem, susceptível de circulação fiduciária através de sucessivos endossos, compreende-se que careça de gozar de credibilidade no seu teor, para que garanta a segurança e a confiança do tráfego jurídico como meio de pagamento. Essa protecção é-lhe, de resto, especialmente dispensada através da agravação prevista no n.º 3 do tipo legal em referência.». 

Se é certo que no nº 3 do art. 256ºº do C. Penal se pune a falsificação, além de outros documentos, de cheque ou outro documento comercial transmissível por endosso, e ainda que, in casu, estejam envolvidos três cheques, o que é inquestionável é que o documento do qual o recorrente fez constar falsamente um facto juridicamente relevante é um mero documento particular consubstanciado na declaração de extravio de cheques de fls. 101, denominada ‘comunicação de cliente’.

Não se trata, portanto, de um cheque ou de documento comercial transmissível por endosso e por isso, não é subsumível à previsão daquele nº 3. Este mesmo entendimento decorre do Acórdão nº 9/2013, aliás, citado na sentença recorrida, mas cuja jurisprudência não foi acatada, sem explicação da divergência.

Em conclusão, a provada conduta do recorrente preenche o tipo objectivo e subjectivo do crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nº 1, d) do C. Penal.     

8. A alteração da qualificação jurídica operada impõe a verificação da adequação da pena decretada pela 1ª instância que foi a de 300 dias de multa à taxa diária de € 8, tendo agora em conta a moldura abstracta decorrente do disposto no art. 47º, nº 1 do C. Penal [10 dias a 360 dias de multa].

Como se refere na sentença recorrida, o recorrente agiu com dolo intenso, revelador de elevada energia criminosa, é mediana a ilicitude do facto, mas foram graves as suas consequências, considerando a expressão dos prejuízos sofridos pela assistente, mesmo depois da redução operada pela conduta posterior daquele.

São elevadas as necessidades de prevenção geral mas não se fazem sentir as de prevenção especial.

O recorrente não tem antecedentes criminais, está socialmente inserido e efectuou a reparação parcial do dano.

Deste modo, sendo prevenção e culpa os critérios gerais a atender na fixação da medida concreta da pena (art. 40º, nºs 1 e 2, do C. Penal), reflectindo a primeira a necessidade comunitária da punição do caso concreto e constituindo a segunda, dirigida ao agente do crime, o limite às exigências de prevenção e portanto, o limite máximo da pena, e devendo a pena concreta resultar da medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos em cada caso isto é, da tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada – [prevenção geral positiva ou de integração] – temperada pela necessidade de prevenção especial de socialização, constituindo a culpa o limite inultrapassável da pena, ponderadas as circunstâncias previstas no art. 71º do C. Penal, consideramos a pena de 210 dias de multa proporcionada e plenamente suportada pela culpa do recorrente, mantendo-se o quantitativo diário fixado pela 1ª instância.


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            Da inexistência dos pressupostos da responsabilidade civil

            9. Alega o recorrente – conclusões XLI a XLIX – que a sua parcial condenação no pedido de indemnização civil formulado pela assistente pressupôs que prestou falsa declaração de extravio dos cheques na qualidade de sócio e gerente da sociedade L..., Lda., tendo as testemunhas B... e D... afirmado que tais cheques haviam sido entregues para pagamento de material encomendado por si [recorrente] naquela qualidade pelo que, quem está em dívida e é responsável pelo pagamento dos cheques é a referida sociedade, da qual deixou de ser sócio e gerente em 13 de Abril de 2012, sendo que o valor remanescente de € 162.779,62 se venceu posteriormente a esta data, traduzindo-se a sua condenação no enriquecimento sem causa da assistente.

            Vejamos.

A prática de um crime, para além de responsabilidade penal, pode ainda dar origem a responsabilidade civil, a uma indemnização de perdas e danos de natureza exclusivamente civil. Assim, dispõe o art. 129º do C. Penal que a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.

Como é sabido, o C. Processo Penal consagra o sistema de adesão obrigatória, dispondo no seu art. 71º, sob a epígrafe «Princípio de adesão», que, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.

O princípio tem como pressuposto que os danos sejam consequência do cometimento de um facto típico. Porém, a lei admite que, em caso de absolvição, e portanto, quando resulte não demonstrada a existência de crime, a sentença condene o arguido em indemnização civil, sempre que o pedido respectivo se revelar fundado (art. 377º, nº 1 do C. Processo Penal). Esta norma foi interpretada pelo Assento nº 7/99, de 17 de Junho (DR, I-A, de 3 de Agosto de 1999) no sentido de que no caso de absolvição do arguido, a sua condenação no pedido de indemnização civil só pode ter por fundamento a responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual.

10. São pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito (art. 483º, nº 1, do C. Civil), o facto, a ilicitude, a imputação subjectiva do facto ao agente, os danos, e o nexo de causalidade entre o facto e os danos.

A obrigação de indemnizar não abrange todos os danos verificados em seguida ao facto danoso, mas apenas os que se mostrem por ele produzidos.

Dispõe o art. 563º do C. Civil, aceitando a doutrina da causalidade adequada, que, a obrigação de indemnizar só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão

O ponto fulcral é pois colocado na probabilidade de não ter havido prejuízo se não fosse a lesão. Nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, não basta que o evento tenha produzido (naturalística ou mecanicamente) certo efeito para que este, do ponto de vista jurídico, se possa considerar causado ou provocado por ele; para tanto, é necessário que o ainda que o evento danoso seja uma causa provável, como quem diz, adequada desse efeito (C. Civil Anotado, Volume I, 4ª Edição, pág. 579). 

Neste juízo de probabilidade ou adequação abstracta devem ser consideradas não só as circunstâncias cognoscíveis, na data do facto, pelo bonus pater familiae, como também as circunstâncias efectivamente conhecidas do agente. Assim, uma condição deixará de ser causa adequada, tornando-se pois juridicamente indiferente, desde que seja irrelevante para a produção do dano segundo as regras da experiência, dada a sua natureza e atentas as circunstâncias conhecidas do agente, ou susceptíveis de ser conhecidas por uma pessoa normal, no momento da prática da acção (Inocêncio Galvão Teles, Direito das Obrigações, 6ª Edição, pág. 404 e ss.), considerando-se irrelevante quando a acção não é susceptível de agravar o risco de verificação do dano.          

Por outro lado, o nexo de causalidade entre o dano e o facto não tem que ser, necessariamente, directo ou imediato. Com efeito, existe ainda nexo de causalidade adequada quando o facto, em si mesmo, não provoque o dano, mas desencadeie um outro facto que directamente o produza (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. e loc. cit., e M. J. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 8ª Edição, pág. 700).

Posto isto.

11. Que os cheques sacados pelo recorrente, na qualidade de gerente da L..., Ld.ª, sobre a conta de que esta era titular no Banco Santander Totta, nos montantes de € 54.585,60, € 72.687,03 e € 185.506,99, e datas de emissão de 29 de Março, 17 de Maio e 17 de Maio de 2012, foram entregues à assistente, em Fevereiro de 2012, para pagamento de facturas vencidas até ao dia 30 de Abril de 2012, que totalizavam a quantia de € 312.779,62, não restam dúvidas, face ao ponto 5 dos factos provados da sentença.

Que nenhum desses cheques foi pago, apesar de apresentados a pagamento no banco sacado, resulta dos pontos 8 e 9 dos factos provados da sentença, tendo a devolução, com menção de extravio e/ou furto, ficado a dever-se à declaração de extravio por furto, feita pelo recorrente ao banco sacado, na véspera da data do vencimento do primeiro cheque, para obstar ao pagamento dos cheques, o que quis e conseguiu, sabendo não corresponder à verdade tal declaração, como resulta dos pontos 7 e 14 dos mesmos factos, já que as quantias por eles tituladas só vieram a ser parcialmente pagas, através da entrega pelo recorrente de dois cheques de € 75.000 cada um, com data de emissão de 30 de Maio de 2012 que, apresentados a pagamento, foram pagos, conforme pontos 22 e 23 dos factos provados.      

Contrariamente ao que parece pressupor o recorrente, o que está em causa no pedido civil deduzido não é um eventual incumprimento contratual da sociedade L..., Ld.ª para com a assistente, relativamente aos contratos de fornecimento entre ambas celebrado, mas antes a sua conduta dolosa traduzida na produção de uma declaração escrita falsa perante um banco, impediu a assistente de receber uma determinada importância em dinheiro, dentro de um determinado prazo – até 17 de Maio de 2012 – aqui radicando os danos por esta sofridos, conduta esta preenchedora de um determinado tipo de ilícito, o de falsificação de documento. 

Tal conduta foi praticada em 28 de Março de 2012, data em que o recorrente era ainda o legal representante da L..., Ld.ª, como resulta do ponto 1 dos factos provados, e caso ela não tivesse ocorrido, com toda a probabilidade a assistente teria recebido as quantias tituladas pelas cheques nas datas neles apostas. Existe pois, nexo de causalidade adequada entre a conduta do recorrente e o dano.

E se é certo que o recorrente procedeu à reparação parcial do dano causado, ao possibilitar à assistente o recebimento da quantia de € 150.000, em 30 de Maio de 2012. Mas a parte restante, no valor de € 162.779,62 não foi paga, nem por si, nem pela L..., Ld.ª, sendo por isso destituída de fundamento a invocação do enriquecimento sem causa quanto a este valor. E também o é a invocação da perda da qualidade de sócio daquela sociedade quando se ‘venceram’ os referidos € 162.779,62, pois o facto danoso é, como se viu, muito anterior.          

Em conclusão, tendo-se por verificados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, relativamente ao recorrente, não merece censura a sua condenação no pedido de indemnização civil, nos exactos termos em que o foi na sentença recorrida.


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            Improcedem assim, todas as conclusões do recurso.


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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em:

A) Negar provimento ao recurso.


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            B) Revogar a sentença recorrida na parte em que condenou o arguido A..., pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nºs 1, d) e 3 do C. Penal, na pena de 300 dias de multa à taxa diária de € 8.

            C) Condenar o arguido A..., pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nºs 1, d) do C. Penal, na pena de 210 (duzentos e dez) dias de multa à taxa diária de € 8 (oito euros), perfazendo a multa global de € 1.680 (mil seiscentos e oitenta euros).

            D) Confirmar, quanto ao mais, a sentença recorrida.


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            Custas pelo recorrente – uma vez que decaiu totalmente no recurso interposto, tendo a modificação operada na sentença recorrida decorrido de questão de conhecimento oficioso, por si não invocada – fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs. (arts. 513º, nº 1 do C. Processo Penal e 8º, nº 9 e tabela III do R. das Custas Processuais).

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Coimbra, 19 de Novembro de 2014


(Heitor Vasques Osório – relator)


(Fernando Chaves - adjunto)