Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1665/08.0TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: PEDIDO SUBSIDIÁRIO
Data do Acordão: 04/17/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE POMBAL – 1.º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 715.º DO CPC
Sumário: 1. Havendo pedido subsidiário, a procedência do pedido principal prejudica a apreciação do pedido subsidiário na primeira instância.
2. A apelação que julgue improcedente tal pedido principal deve apreciar o pedido subsidiário.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

A... e B..., ambas com residência habitual em França, intentaram a presente acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra C... e D... e esposa D..., a primeira residente em ..., Pombal, e os últimos com residência habitual em França, pedindo que a 1.ª R. seja condenada a restituir-lhe a quantia de € 120.000,00 e os 2.º e 3.ª RR. a quantia de € 13.000,00, ambas as quantias acrescidas de juros de mora à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

Alegaram para tal, no essencial, que o pai delas (das AA.), antes da sua morte, emprestou à 1.ª R. a quantia de € 120.000,00 e aos 2.º e 3.ª RR. a quantia de € 13.000,00, quantias essas que os mencionados Réus utilizaram em seu proveito, sendo que, apesar de terem ficado de as restituir, sem que tenha sido fixado prazo para o efeito, não o fizeram

Contestaram conjuntamente os RR., sustentando que a quantia de € 120.000,00, depositada na conta da 1.ª R., lhe foi dada de livre vontade pelo falecido, pois que com ele viveu cerca de sete anos como marido e mulher, tratando-o e prestando-lhe alimentos (até porque as AA. o abandonaram) e, no que diz respeito à quantia de € 13.000,00, depositada na conta dos 2.º e 3.ª RR., que a mesma corresponde a uma compensação que lhe foi entregue, também de livre vontade, por terem prestado serviços ao falecido. Concluíram, a final, pela total improcedência da acção.

Replicaram as AA., alegando que os factos invocados pelos RR. integram uma doação remuneratória, nula; e, para o caso de a mesma vir a ser considerada válida, a fim da mesma ser reduzida por inoficiosidade, aditaram um novo pedido. Assim, além do pedido inicialmente formulado, pedem, em via subsidiária, a condenação dos demandados a reconhecer que as referidas quantias lhes foram entregues pelo F... a título de doação.

Foi admitida a ampliação do pedido, proferido despacho saneador – que julgou a instância totalmente regular, estado em que se mantém – e organizada a matéria factual com interesse para a decisão da causa.

Instruído o processo e realizada a audiência, o Exmo. Juiz de Circulo proferiu sentença, em que concluiu do seguinte modo:

“ (…)

Nos termos expostos, na procedência da acção, decide-se, na afirmação da nulidade dos contratos celebrados:

1. Condenar a Ré, C ..., a restituir, à herança aberta por óbito de F ..., de que as Autoras A ... e B ... são herdeiras, a quantia de € 120.000 (cento e vinte mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento;

2. Condenar os Réus, D ...e cônjuge E ... , a restituírem, à herança aberta por óbito de F ..., de que as Autoras A ... e B ... são herdeiras, a quantia de € 13.000,00 (treze mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento;

(…)”

Inconformados com tal decisão, interpuseram os RR. recurso de apelação, de facto e de direito, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que julgue a acção totalmente improcedente.

As AA. não responderam.

Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*

II – “Reapreciação” da decisão de facto

Como “questão prévia” à enunciação dos factos provados, importa – atento o âmbito do presente recurso, delimitado pelas conclusões da alegação dos apelantes (art. 684º/3 e 685.º-A/1 do CPC) – analisar as questões a propósito da decisão de facto colocada a este Tribunal.

No caso vertente, os diversos depoimentos prestados em audiência, nos quais a 1ª instância se baseou para decidir a matéria de facto, foram gravados; constando, assim, do processo todos os elementos probatórios com que aquela instância se confrontou, quando decidiu a matéria de facto, e é possível modificar aquela decisão, se enfermar de erro de julgamento[1].

Faculdade – de modificar a decisão de facto – em cujo uso, costumamos “avisar”, é nosso dever ser contidos, cautelosos e prudentes, uma vez que existem elementos intraduzíveis e subtis, como a mímica e todo o processo de exteriorização e verbalização dos depoentes, não importados para a gravação, susceptíveis de influir, quase tanto como as suas palavras, no crédito a prestar-lhes.

O que, porém – importa salientar e precisar – não significa que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto apenas envolve a correcção de pontuais, concretos e excepcionais erros de julgamento; efectivamente, a Relação, quando aprecia as provas – e pode para tal atender a quaisquer elementos probatórios (cfr. art. 712.º/2 do CPC) – faz um novo julgamento da matéria de facto, vai à procura da sua própria convicção, assegura o duplo grau de jurisdição em relação à matéria de facto (ou seja, a actividade da Relação não se pode/deve circunscrever a um mero controlo formal da motivação efectuada na 1.ª Instância).

Efectuados tais prévios e “tabelares” esclarecimentos, debruçando-nos sobre as concretas questões – tendo presente as posições assumidas pelas partes nos articulados, analisados os documentos juntos aos autos e ouvido o registo, efectuado em CD, da sessão de julgamento – concluímos, antecipando desde já a solução, que assiste no essencial razão aos RR./apelantes; isto é, embora não se perfilhe grande parte da argumentação dos apelantes – designadamente, dos quesitos estarem “eivados de matéria de direito”, das respostas não darem plena observância ao art. 646.º/4 do CPC, da injustificada dispensa da audiência preliminar – concorda-se que as respostas dadas aos quesitos 2.º a 13.º não podem subsistir (maxime, as dos 2.º a 11.º) tal como estão.

Vejamos:

Só na aparência são 12 os factos colocados em crise; relevante e essencial, temos efectivamente apenas uma única questão de facto, representando tudo o resto facticidade meramente instrumental e explicativa/justificativa da questão de facto realmente essencial.

E a questão de facto, realmente essencial e decisiva, circunscreve-se a saber se as duas quantias – os € 120.000,00 e os € 13.000,00 referidas nas alíneas D) a H) – foram disponibilizados, a título de empréstimo, pelo pai das AA à 1.ª R e aos 2.º e 3.ª RR., respectivamente (sendo tudo o resto secundário, acessório e até irrelevante[2]).

Questão esta, essencial e decisiva, a que, como já antecipámos, respondemos, com o devido respeito, de modo diverso da 1.ª Instância.

Pelo seguinte:

1. Foi ouvida a R./apelante C ..., que, no seu depoimento, repetiu a versão, sobre as razões da disponibilização do dinheiro, dada na contestação.

2. Foram ouvidos as 6 testemunhas das AA./apeladas; todas residentes em ..., Albergaria-a-Velha.

A 1.ª, G... , sogro da A/apelada B ... e procurador de ambas as AA., afirmou que o falecido F ... lhe contou que “tinha emprestado um bocado de dinheiro a ela e um bocado ao genro”; não precisou a data em que o falecido lhe contou tais empréstimos e acrescentou que ele não lhe falou nos valores/montantes que tinha emprestado.

As 2.ª, 3.ª, 4.ª, 5.ª e 6.ª não disseram nada – rigorosamente nada – a propósito da referida questão essencial e decisiva; tendo afirmado nada saber sobre os dinheiros do falecido F ....

3. Foram ouvidos as 7 testemunhas dos RR./apelantes; as 5 primeiras familiares ou afins dos RR e as 2 últimas familiares do falecido F ....

Relataram de modo uniforme os problemas (mau relacionamento) do falecido F ... com as AA., que, segundo disseram, não tratavam dele, não queriam saber dele; razão pela qual o falecido F ... – que viveu nos últimos anos de vida em união de facto com a R/apelante C ... – não queria deixar nada às filhas e gastava/esbanjava tudo o que tinha.

Porém, a propósito da referida questão essencial e decisiva – sobre a razão da disponibilização do dinheiro – não revelaram ter qualquer conhecimento objectivo e directo.

Sintetizados os depoimentos, está ainda por dizer o mais relevante em termos de “julgamento da matéria de facto”; que, verdadeiramente, vem imediatamente a seguir, quando o juiz/tribunal aprecia, valora, harmoniza as provas e, a partir daí, faz a “reconstituição do passado”.

Tendo isto presente e indo ao fulcro da questão-de-facto dos autos/recurso, importa enfatizar que não é por uma testemunha referir um certo facto que o tribunal passa a ficar adstrito a incluir tal facto na sua “reconstituição do passado”.

A prova testemunhal, é sabido, é apreciada livremente pelo tribunal, o que significa que o tribunal não está vinculado, na sua apreciação, a quaisquer regras legais estritas.

É antes recorrendo a todas as circunstâncias envolventes, a todos os detalhes, munindo-se de todo o seu sentido crítico e analítico, fazendo uso de toda a sua perspicácia, argúcia e experiência, que o tribunal avalia o depoimento das testemunhas, só “validando” para a sua “reconstituição do passado” o que lhe possa/deva merecer valor e crédito.

É exactamente este o momento em que se situa a nossa divergência com o tribunal a quo.

Escreveu-se na motivação do despacho que decidiu a matéria de facto – “quanto à questão fundamental relacionada com a razão por que ocorreram os factos das alíneas D) a H) dos factos assentes” – que a convicção se baseou “no depoimento prestado pela testemunha G ... pois que, apesar de ser sogro da Autora B ..., depôs de forma objectiva e circunstanciada sobre os factos, evidenciando clara sinceridade, relatando o que lhe foi transmitido por aquele F ... em vida — pois que tinham uma relação muito chegada com o mesmo — dizendo-lhe que tinha emprestado dinheiro aos Réus, não lhe referindo no entanto quanto, sendo que mais tarde, já depois da morte, ao ter ido ter com a Ré e questionando-a sobre se o mesmo lhe tinha deixado alguma coisa, a mesma disse-lhe que não («eu sou uma pobre de Cristo, não me deu nada»), como disse também, ao ter sido questionada sobre o dinheiro daquele, a mesma disse-lhe «o dinheiro está para lá».”

Acrescentando-se, ainda, “que o mencionado depoimento da testemunha G ..., «parceiro» do falecido, não foi suficientemente abalado na sua consistência e credibilidade, pelo que, conjugado com o depósito efectivo dos valores dos cheques nas contas dos Réus, a referência dessa testemunha ao que ouviu da boca de F ... antes do seu falecimento — que lhe disse ter emprestado dinheiro aos Réus —, conjugado com o que lhe disse a própria Ré já depois do óbito — dizendo que nada lhe foi dado — como também com o facto de a mesma Ré nem sequer ter respondido à mesma testemunha quando mais tarde o mesmo a procurou para saber dos documentos do falecido — fechando-se mesmo em casa (facto confirmado também pela testemunha H... ) — criou convicção bastante para que se considerasse provado que ocorreu efectivamente o empréstimo aos Réus das quantias depositadas nas suas contas, daí (não) resultando ainda, porque afinal contrário a essa causa efectiva, que tivesse «dado» o mesmo, no todo ou em parte, aos mesmos Réus. Na verdade, quanto a esta pretensa doação de valores, as restantes testemunhas que depuseram em audiência (…), acabaram por não demonstrar um conhecimento suficientemente apurado sobre o facto fundamental de o mesmo ter ou não emprestado o dinheiro, o que é aplicável a qualquer dos Réus, não retirando desta forma sustentação à convicção criada, nos termos já mencionados, com base no depoimento da testemunha G ..., tanto mais que, por mero apelo às regras da experiência comum, não tendo o Tribunal razões para considerar que não se verificou o mencionado pela citada testemunha, daí resulta directamente que não existiria qualquer razão válida para a Ré, ao ser questionado como o foi por aquela testemunha, tivesse dito o que disse, negando que o falecido lhe tivesse dado o que quer que fosse, como não se compreende também o seu comportamento posterior, não lhe respondendo quando lhe perguntou pelos depoimentos e fechando-se mesmo em casa.”

É isto – esta “análise crítica das provas e fundamentos que foram decisivos para a convicção do tribunal” (cfr. art. 653.º/2, parte final, do CPC) – que não colhe a nossa concordância.

Em 1.º lugar, ouvido o depoimento do G ..., não conseguimos afirmar que o mesmo “depôs de forma objectiva e circunstanciada sobre os factos, evidenciando clara sinceridade”; com o que não estamos a ir ao ponto de dizer que depôs sem objectividade e fidelidade, mas tão só a dizer que não conseguimos conceder-lhe uma especial força persuasiva, que não conseguimos conferir ao seu depoimento um “atestado” de veracidade, autenticidade e sinceridade.

Não podemos ignorar que tal testemunha foi assaz vaga sobre a data da conversa com o falecido F ... e sobre os montantes emprestados (podendo até dizer-se que não está feita a ligação entre os empréstimos que o falecido lhe contou e os cheques constantes dos factos provados, isto é, os empréstimos podiam dizer respeito a outras e diversas quantias).

Em 2.º lugar, na apreciação do depoimento do G ... não se pode desprezar o seu interesse e empenho no que está em discussão nos autos.

Foi tal testemunha – na dupla veste de sogro duma das AA. e de procurador de ambas – que, uma semana após o decesso do F ..., procurou saber dos dinheiros do falecido, ocasião em que a R. C ... lhe deu respostas evasivas sobre os “dinheiros” do falecido; foi também tal testemunha que, dois meses após o decesso do falecido, escreveu à R. C ... uma carta com o mesmo objectivo (transcrita no facto 13 deste acórdão); e foi ainda tal testemunha que, antecipando o desfecho dos presentes autos, incluiu na relação de bens do falecido, que entregou na repartição de finanças, as quantias aqui em causa (cfr. respostas aos quesitos 16.º e 17.).

De certo modo e na prática, ao depor, ao ser ouvido como testemunha, fê-lo fundamentalmente, ainda e sempre, na mesma veste de procurador das AA/apeladas (agiu não só em nome do dominus – as AA. – mas também no seu interesse).

Em 3.º lugar, a circunstância da R. C ... se fechar em casa, não se querer encontrar com o procurador das AA., dar-lhe respostas evasivas e porventura pouco exactas – como a de dizer que “ele não me fez nada” – não permite fazer qualquer juízo seguro sobre a razão dos fluxos financeiros em causa.

Apenas permite concluir que ela não queria ser interpelada, que não queria dar esclarecimentos sobre fluxos financeiros do falecido a seu favor, todavia, este comportamento esquivo é identicamente típico quer da “hipótese” empréstimo quer da “hipótese” doação.

Em 4.º lugar, as regras da experiência comum – as presunções naturais ao caso atinentes – não apontam sequer, com o devido respeito, no sentido da “hipótese” empréstimo.

Está provado (cfr. resposta positiva ao quesito 18.º) que, nos últimos 7 anos de vida (entre os 65 e os 72 anos), o falecido F ... viveu em união de facto com a R. C ....

Quando duas pessoas vivem como marido e mulher, se uma delas emite cheques a favor da outra, não se pode a nosso ver dizer, em termos de normalidade, que há a presunção de facto do emitente do cheque estar a emprestar dinheiro ao beneficiário do cheque.

Quando muito[3] pode dizer-se que não há, em tal hipótese, uma causa que, em termos de normalidade, sobressaia e se destaque, o que significa – é o que se enfatiza e onde se pretende chegar – que as regras da experiência comum (as presunções naturais) não apontam no sentido da “hipótese” empréstimo.

Por outras palavras e em síntese, os fluxos financeiros operados pela emissão dos cheques e o seu posterior depósito na conta da 1.ª e dos 2.º RR. não autorizam, sem satisfatórias provas adicionais, a sua qualificação factual de empréstimos.

E é justamente aqui, neste ponto, fechando o raciocínio, que nós dizemos que o depoimento do G ... não constitui tal suficiente e satisfatória prova adicional.

Não estamos sequer a dizer que os fluxos financeiros tiveram esta ou aquela causa, diversa do empréstimo; apenas dizemos que, em face da prova produzida, não podemos afirmar positiva e peremptoriamente que foram empréstimos; apenas dizemos que não podemos resolver a questão de facto a favor do empréstimo com base numa conversa que uma testemunha diz que teve com o falecido, em que este lhe terá dito, em data desconhecida, que emprestou quantias não concretizadas aos RR. (tanto mais que, insiste-se, tal testemunha não é alguém indiferente e desapegado do desfecho dos autos, mas antes o sogro duma A. e o procurador/representante interessado de ambas as AA.).

E desta convicção, que acabámos de expor, irradiam, necessariamente, para os 12 quesitos colocados em crise pelos RR/apelantes, as seguintes respostas devidamente modificadas:

Quesitos 2.º a 11.º: Não provados;

Quesito 12.º: Provado apenas que, após o óbito de F ..., o G ..., procurador das AA., questionou a Ré C ... sobre o paradeiro do dinheiro de F ...;

Quesito 13.º: Provado apenas o que consta da resposta ao quesito 12°;

É quanto há a dizer e concluir sobre o recurso de facto, que assim procede nos termos que acabam de ser referidos e estabelecidos.


*

III – Fundamentação de Facto

Os factos com relevo – lógica e cronologicamente alinhados – são os seguintes:

1. No dia 10-12-2007, na freguesia e concelho de Pombal, faleceu F ..., no estado civil de viúvo, em consequência directa e necessária de lesões sofridas num atropelamento por viatura automóvel, quando caminhava sobre um passeio pedonal (alínea A), dos factos assentes, e resposta ao quesito 26.º);

2. Deixou como únicas e universais herdeiras as suas filhas A ... e B ..., as quais se encontram habilitadas por escritura pública denominada “habilitação” (alínea B), dos factos assentes);

3. O falecido F ... era o único titular da conta bancária com o nº 000 ..., na Caixa Geral de Depósitos, agência de Pombal (alínea C), dos factos assentes);

4. O falecido F ..., em vida, assinou o cheque nº 0960669260, datado de 07-10-2004, no montante de € 13.000,00, emitido sobre a referida conta bancária com o nº 000 ..., à ordem do demandado D ...(alínea D), dos factos assentes);

5. O cheque foi depositado em 26-10-2004, na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Pombal, e creditado em conta de que são titulares o demandado D ...e cônjuge (alínea E), dos factos assentes);

6. Em vida, o falecido F ... assinou também o cheque nº 9760649261, datado de 28-10-2004, no montante de € 120.000,00, emitido sobre a referida conta bancária com o nº 000 ..., à ordem da demandada C ... (alínea F), dos factos assentes);

7. O cheque foi depositado em 04-11-2004, na referida agência de Pombal da Caixa Geral de Depósitos, e creditado em conta de que é titular a demandada C ... (alínea G), dos factos assentes);

8. As quantias tituladas nos referidos cheques foram debitadas na referida conta nº 000 ... do falecido F ... e creditadas nas contas dos demandados onde foram depositadas (alínea H), dos factos assentes);

9. Os últimos anos de vida do pai das Autoras, F ..., foram passados com a ré C ... , com quem viveu em união de facto durante cerca de 7 anos. Durante esse período F ... e a Ré C ... ajudaram-se e cuidaram um do outro (respostas aos quesitos 18.º e 24.º);

10. Enquanto se manteve o referido, o F ... suportava parte não concretamente apurada das despesas domésticas (resposta ao quesito 29.º);

11. As Autoras não concordavam que o seu pai após a viuvez vivesse na companhia de outra mulher (resposta ao quesito 19.º);

12. Após o óbito de F ..., o G ..., procurador das AA., questionou a Ré C ... sobre o paradeiro do dinheiro de F ... (resposta ao quesito 12.º);

13. Em 08-02-2008, o referido G ..., com o fim de obter uma resposta escrita, remeteu para a demandada C ...uma carta registada com aviso de recepção, com o seguinte teor: “Na qualidade de mandatário de A ... e de B ..., filhas e herdeiras de F ..., falecido a 10-12-2007, solicito queira informar: quais os bens do referido F ... que se encontram em V/poder ou de algum familiar Vosso; se o referido F ... entregou ou transferiu para Vosso nome ou de algum Vosso familiar ou conta bancária quaisquer bens ou valores, nomeadamente dinheiros.

Por outro lado, no seguimento de solicitação verbal anterior, não atendida por Vª.Exª., informo agora por escrito que deverá entregar-me todos os documentos pessoais do referido F ... e todos os referentes aos bens deixados por ele. Todos os elementos que estou a solicitar, quer os referentes aos bens quer os documentos, são necessários à elaboração da relação de bens deixados por óbito do referido F ..., para entrega posterior no competente Serviço de Finanças pela referida A ..., na qualidade de cabeça de casal. Os referidos elementos são também necessário à posterior partilha dos bens”. A carta foi devolvida com a indicação de “não reclamada” (respostas aos quesitos 14.º e 15.º);

14. No seguimento do referido em “13”, a Ré não transmitiu a G ... onde se encontrava o dinheiro de F ..., nem lhe entregou qualquer documentação. Apesar desse facto, aquele participou o óbito do falecido e os bens por esse deixados junto da Repartição de Finanças de Santo Tirso. Nessa participação foram declarados os valores aqui reclamados, os titulados pelos cheques referidos em “4” e “6” (respostas aos quesitos 16.º e 17.º);

15. F ... conduzia o seu veículo automóvel e desenvolvia outras actividades não concretamente apuradas (resposta ao quesito 27.º);

16. F ... recebia, referente a reforma, valores não concretamente apurados, mas de pelo menos € 368,26 mensais (resposta ao quesito 28.º).


*


IV – Fundamentação de Direito

Na origem dos autos e do recurso estão mútuos que, segundo as AA/apeladas, o pai destas fez à 1.ª R e aos 2.º e 3.ª RR..

Mútuo que, na noção legal oferecida pelo art. 1142º do CC, é “o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade”.

Ou seja, para se estar perante tal contrato, tem o empréstimo da coisa fungível de ser feito com o objectivo de atribuir tão só o uso da coisa, a qual deverá ser restituída em género, qualidade e quantidade.

Assim, a mera deslocação de dinheiro do património de uma pessoa para o património de outra pessoa não equivale nem integra, só por si, um contrato de mútuo; a mera emissão/entrega dum cheque e o seu depósito na conta bancária daquele que é demandado, sem que se conheça a causa de tal emissão/entrega, não configura só por si um empréstimo; uma deslocação patrimonial, um fluxo financeiro entre patrimónios, pode ter as mais variadas, insuspeitas e desinteressadas causas[4].

Por outras palavras, não havendo mútuo – por, como é o caso, não se haver provado que a coisa foi proporcionada com a obrigação de ser restituída – também não se pode/deve concluir que, então, a deslocação foi gratuita e por espírito de liberalidade e que estamos perante uma doação (cfr. 940.º do CC) ou, quando muito, que a deslocação patrimonial foi sem causa conhecida, sendo subsumível ao instituto do enriquecimento sem causa.

Efectivamente, para que haja doação, além da gratuitidade da prestação, é necessário que se prove o animus donandi do seu autor; por outro lado, para que haja obrigação de restituir, nos termos do art. 473.º, n.º 1, do CC, é necessário que o enriquecimento, contra o qual se reage, careça de causa justificativa (ou porque nunca a tenha tido ou porque, tendo-a inicialmente, entretanto a perdeu), porém, a falta de causa justificativa para a deslocação patrimonial terá que ser alegada por quem pede a restituição do indevido; e depois provada, de harmonia com o princípio geral do art. 342.º do CC[5].

Vem isto também a propósito do pedido subsidiário que, a nosso ver e com o devido respeito, não podia/devia ter sido admitido; o que, agora, não tendo as AA. ampliado o âmbito do recurso (cfr. 684.º-A do CPC), poderá colocar uma “dificuldade” às AA./apeladas.

Como é evidente – em face das respostas negativas e restritivas dadas na 1.º Instância aos quesitos 20.º e ss e das respostas negativas ora dadas aos quesitos 2.º a 11.º – não temos entre os factos provados a que cumpre aplicar o direito uma causa/motivo/razão para a emissão dos 2 cheques, para a deslocação patrimonial que os mesmos operaram.

Assim sendo, não temos como qualificar juridicamente o ocorrido – nem como mútuo, nem como doação (nem sequer como uma situação de enriquecimento sem causa) – o que conduz directa e imediatamente à improcedência quer do pedido principal quer do pedido subsidiário.

Pedido subsidiário que, como já referimos, ou não tem causa de pedir ou, caso contrário, a admitir-se que tem causa de pedir, está em contradição substancial com a primitiva causa de pedir.

A questão é a seguinte:

Não é possível, a nosso ver, num caso como o presente, alegar factualmente, num mesmo articulado, que a deslocação patrimonial teve como causa um mútuo (a disponibilização do dinheiro com a obrigação de o restituir) e, simultaneamente, que a deslocação patrimonial teve como causa uma doação (a disponibilização gratuita e com animus donandi do dinheiro) ou, mesmo e ainda, que careceu de todo em todo de qualquer causa justificativa (isto é, não é possível alegar factualmente uma coisa e o seu oposto).

Não foi isto, bem o sabemos, que as AA/apeladas fizeram na PI; mas, chegadas à réplica, depois de impugnarem o que os RR. haviam alegado na contestação – “não é verdade o alegado nos artigos 9.º, 10.º, 11.º, 12.º e 13.º da contestação, o que vai impugnado” (cfr. art. 5.º da réplica) – concluíram aditando um pedido subsidiário, com a causa doação, fundando-o exclusivamente na factualidade invocada pelos RR., que, insiste-se, haviam impugnado rotundamente.

Em síntese, as AA/apeladas, negando a causa “doação”, continuando a bater-se pela causa “empréstimo”, lograram formular – e que lhes fosse admitido – um pedido subsidiário baseado na causa “doação”.

É justamente por isto que dizemos que o pedido subsidiário ou não tem causa de pedir (por esta ser constituída por factos exclusivamente alegados pelos RR.[6]) ou, caso contrário, a admitir-se que tem, está em contradição com os factos que integram a primitiva e principal causa de pedir[7].

Terá sido também certamente por isto que as AA./apeladas não se lembraram, nesta instância recursiva, do pedido subsidiário que haviam logrado introduzir (e das consequências processuais que a sua introdução coloca); como nunca assumiram como sua a causa “doação”, nem se terão dado conta que, sendo concedida razão ao recurso dos RR., ficavam “sem nada”[8], não mantinham a causa “empréstimo” e continuavam sem a causa “doação”.

É que a “regra da substituição”, constante do art. 715.º do CPC, impõe que, procedente a apelação, se aprecie o pedido subsidiário – que ficou prejudicado na 1.ª Instância em virtude da procedência do pedido principal.

Ora, como já referimos, em face do que se provou – ou, mais exactamente, do que não se provou – também não temos factos que permitam qualificar o ocorrido como doação; o que conduz, como também já referimos, à improcedência do pedido subsidiário.

A solução processual estava ao alcance das AA/apeladas, no já referido art. 684.º-A/2 do CPC; podiam as AA/apeladas ter “impugnado a decisão proferida sobre pontos determinados de facto, não impugnados pelo recorrente, prevenindo a hipótese de procedência das questões por este suscitadas”; podiam ter impugnado as respostas dadas aos quesitos 20.º a 25.º, tendo em vista permitir, para o caso da procedência do recurso, que os factos respeitantes à doação pudessem passar a ficar provados.

Como o não fizeram – não se podendo ampliar oficiosamente o objecto do recurso – resta-nos, muito singelamente, dizer/repetir que não foi feita a prova positiva da “causa” da entrega do dinheiro, o que significa que as AA./apeladas não provaram como o art. 342.º/1 do CC lhes impõe quer a relação jurídica de mútuo quer a relação jurídica de doação.

Procede pois a apelação, cumprindo julgar improcedentes os pedidos principal e subsidiário.


*

V - Decisão
Pelo exposto, decide-se:
Julgar procedente a apelação interposta e, consequentemente, revoga-se a sentença que se substitui pela absolvição de todos os RR. quer do pedido principal quer do pedido subsidiário.
Custas, em ambas as instâncias, pelas AA/apeladas.
*

Barateiro Martins (Relator)

Arlindo Oliveira

Emídio Santos



[1] Cfr. Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 2000, pág. 154 e António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II Volume, 1997, pág. 254.

[2] Embora, evidentemente, a resposta à questão de facto essencial transporte/implique, no seu caminho, as respostas à facticidade meramente instrumental.

[3] Na verdade, quando o emitente é viúvo e tem um mau relacionamento com as suas duas filhas, a hipótese empréstimo nem sequer se apresenta como a mais normal.
[4] Pode, v. g., ter como causa tanto uma doação, como o pagamento do preço/retribuição num qualquer contrato oneroso típico ou atípico, como pode até, inclusivamente, não ter qualquer causa.

[5] Cfr., v. g. Ac. STJ de 23/11/2011, in CJ, Tomo III, pág. 133, em que se decidiu que “a falta de causa da atribuição patrimonial tem que ser alegada e provada por quem pede a restituição do indevido; alegação e prova que não se bastam com a não existência duma causa para a atribuição, sendo necessário alegar e fazer a prova positiva da falta de causa para a atribuição (uma vez que, in dúbio, deve considerar-se que a deslocação patrimonial verificada teve causa justificativa)”.
[6] O que acabamos de dizer está materialmente reflectido na própria base instrutória, com os sinais - *- que o Ex.mo Juiz colocou a separar a proveniência dos quesitos que formulou (e os quesitos 18.º a 25.º, em que se inclui a causa doação, têm origem na contestação).

[7] Há situações, bem o sabemos, em que a subsidiariedade da causa de pedir e do pedido afastam a contradição; terão que ser, porém, situações em que as versões factuais das causas de pedir não são totalmente incompatíveis entre si. Vendo as coisas dinamicamente, a “funcionar”, é caso para perguntar: Se a parte puder alegar ao mesmo tempo os factos da causa empréstimo e da causa doação, como é que, depois, em julgamento, vai produzir prova? Pode ouvir pessoas para provar o empréstimo e infirmar a doação e a seguir pode fazer o contrário?

[8] Regista-se aqui que a solução processual da ineptidão (art. 193.º do CPC) está ultrapassada, uma vez que desta nulidade já não se pode conhecer oficiosamente (cfr. 206.º/2 do CPC).