Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
253/08.6TAVGS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GOMES DE SOUSA
Descritores: CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
Data do Acordão: 04/21/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VAGOS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS, 29º DA CRP,1º,69º, Nº3 DO CP E 500º DO CPP
Sumário: 1.O preceito que regula a execução da proibição de conduzir, não sanciona com o crime de desobediência a falta de entrega da carta de condução.
2.O legislador - artigos 69º, nº3 do CP e 500º, nº3 do CCP – previu expressamente para a falta de cumprimento da entrega voluntária da licença de condução, a sua apreensão.
3.A cominação com a prática de um crime de desobediência pela falta de entrega da licença de condução carece de suporte legal e contraria o princípio da legalidade
Decisão Texto Integral: A - Relatório:
No Tribunal Judicial da Comarca de Vagos correu termos o processo comum singular supra numerado no qual é arguido J solteiro, residente na Rua …. Vale de Cambra.

A final decidiu o tribunal absolver o arguido da prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo art.° 348.°, nº 1, al. a), do Código Penal.

Existe lapso na sentença quando absolve o arguido pela al. a) do artigo 348º, nº 1, quando é certo que o arguido havia sido acusado pela al. b). Aliás, toda a argumentação jurídica do tribunal de 1ª instância se ancora na al. b) do preceito.


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Inconformado com esta decisão recorreu o Digno Magistrado do MºPº da sentença proferida, peticionando que a mesma seja modificada com a consequente condenação do arguido, com as seguintes conclusões:

1) - O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido J imputando-lhe a prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348º, n.° 1, alínea b), do Código Penal, tendo o arguido sido julgado nos presentes autos e absolvido pelo crime pelo qual vinha acusado.

2) - Atenta a factualidade julgada como provada nestes autos, na sentença proferida nos autos de Processo Especial Sumário n."…/08.1 GATAVR, foi cominado com o crime de desobediência a falta da entrega da carta de condução pelo arguido, no prazo de dez dias após o trânsito, o qual ocorreu em 23/06/2008

3) - Com o trânsito em julgado da sentença dos autos de Processo Especial Sumário n…. /08.1GATAVR, consolidaram-se na Ordem Jurídica todos os efeitos penais dali decorrentes, nos termos do artigo 467°, nº 1, do Código de Processo Penal

4) - Não devia o Tribunal considerar não ser legítima nem emanar de autoridade competente aquela cominação com a prática de um crime de desobediência, nos termos do art. 348°, nº 1, alínea b), do Código Penal, pela falta de entrega da carta de condução no prazo de dez dias após o trânsito.

5) - Não será de efectuar uma interpretação minimalista do artigo 348º, nº 1, alínea b) do Código Penal, pois, caso contrário, estar-se-ia a esvaziar a norma nos casos em que a advertência é feita, como o foi na sentença condenatória proferida no Processo Especial Sumário nº…/08.1GATAVR, a fim de garantir o cumprimento da pena acessória por parte do arguido e, nessa medida, proteger a autonomia intencional do Estado de Direito.

6) - O crime de desobediência consumou-se com a omissão do acto determinado, consubstanciada, in casu, com a falta de entrega da carta de condução pelo arguido no prazo de dez dias após o trânsito.

7) - Se se entender que não é legítimo ao Tribunal cominar a falta de entrega da carta de condução com a prática do crime de desobediência, e se o arguido recusasse a entrega da carta perante a autoridade policial, nos termos do art. 500°, nº 3, do Código de Processo Penal, não haveria quaisquer consequências para o incumprimento.

8) - Com efeito, se o Tribunal não puder desde logo no acórdão condenatório cominar com a prática de crime a falta de entrega da carta de condução, também a autoridade policial, num segundo momento que viesse a ocorrer e na sequência do artigo 500°, nº 3, do Código de Processo Penal, não poderia cominar com tal crime a eventual e reiterada falta de entrega daquele documento por parte do arguido perante as autoridades policiais.

9) - A conduta do arguido de não entrega voluntária da carta e não se logrando proceder à apreensão daquele documento nos termos do artigo 500°, nº 3, do Código de Processo Penal, cominaria na ausência de quaisquer consequências para a recusa do arguido em cumprir a pena acessória a que está obrigado.

10) - A eventual recusa de o arguido cumprir com a pena acessória, traduzida na falta da entrega da carta de condução, parece-nos ser merecedora de suficiente dignidade a valorar em termos penais, pois, a assim não ser, equivaleria a admitir-se a possibilidade de deixar à consideração do arguido a decisão de cumprir ou não com tal pena acessória, ou de cumpri-la apenas quando entendesse.

11) - A cominação com o crime de desobediência obsta à pretensão do arguido que pretenda subtrair-se ao cumprimento da pena acessória em que foi condenado por acórdão e reforça a confiança da comunidade na validade da norma penal violada.

12) - Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida por violar o disposto nos artigo 9°, nº 1 a 3, do Código Civil, artigo 348°, nº 1, alínea b), do Código Penal, e o artigo 46/º, nº 1, do Código de Processo Penal e ser o arguido condenado pela prática do crime de desobediência simples por que vinha acusado.


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A Exmª Procuradora-geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso e pela sua rejeição.

Foi cumprido o disposto no artigo 417 n.º 2 do Código de Processo Penal e colhidos os vistos legais.


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B - Fundamentação:

B.1 – O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:

A) Por sentença proferida em 13…2008, no âmbito do processo sumário com o n." …/08.1GATAVR, e transitada em julgado em 23.06.2008, o arguido foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 7 meses de prisão, suspensa por um ano, com a condição de frequentar o programa STOP - responsabilidade e segurança, e na pena acessória de inibição de conduzir veículos a motor de qualquer categoria, por período de 9 meses.

B) Na própria sentença o arguido foi expressamente advertido de que ficava obrigado a, em 10 dias após o trânsito da decisão, entregar as suas licenças e carta de condução, caso fosse titular de ambas, na secretaria do tribunal ou em qualquer posto policial, sob pena de cometer um crime de desobediência.

C) O arguido foi pessoalmente notificado da sentença supra referida, tendo-lhe sido entregue cópia integral da mesma.

D) Não obstante a cominação efectuada no dito Acórdão, o arguido não entregou a sua carta de condução.

E) O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito conseguido de não cumprir a ordem que lhe havia sido dada e regularmente comunicada e cujo sentido e alcance percebera.

F) O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

G) O arguido foi condenado em 01….99, pelo Tribunal Judicial de S. João da Madeira, pelo crime de condução sob o efeito de álcool, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de 600$00, extinta pelo pagamento; em 28….01, pelo tribunal Judicial de Vale de Cambra, pelo crime de falsificação de documentos, na pena de 160 dias de multa, à taxa diária de 500$00, extinta pelo cumprimento; em 18….03, pelo Tribunal Judicial de Vale de Cambra, pelo crime de condução em estado de embriaguez, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 2,5€, extinta pelo pagamento; em 6….2004, pelo Tribunal Judicial de Vale de Cambra, pelo crime de condução em estado de embriaguez, na pena de 110 dias de multa, à taxa diária de 3,00€, extinta pelo cumprimento; em 13.05.08, pelo Tribunal Judicial de Vagos, pelo crime de condução em estado de embriaguez, na pena de 7 meses de prisão, suspensa por um ano, sujeito ao regime de prova, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, pelo período de 9 meses; em 26….08, pelo Tribunal Judicial de S. João da Madeira, pelo crime de condução em estado de embriaguez, na pena de 8 meses de prisão, suspensa por um ano, sujeita a frequentar uma adequada acção de formação estradal, ministrada pela Autoridade Nacional para a Segurança Rodoviária ou instituição congénere e na pena acessória de conduzir veículo com motor pelo prazo de 1 ano.


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Factos não provados:

Não houve factos relevantes para a decisão que tenham resultado não provados.


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O tribunal recorrido apresentou como motivação da decisão de facto os seguintes considerandos:

Para a formação da convicção quanto aos factos provados, o tribunal baseou-se nos documentos juntos aos autos, designadamente nas certidões de fls. 2 a 22 e 26 a 27

No que toca aos antecedentes criminais do arguido, baseou-se o Tribunal no C.R.C. de fls. 87 a 91.


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B.2 - Cumpre decidir.

A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (artigo 412º do Código de Processo Penal), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.

O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada – nº 3 do referido preceito.

Não se verifica qualquer das circunstâncias a que se refere o artigo 410º do Código Penal, nem a inobservância de requisito conducente a nulidade.


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B.3 – Nas suas motivações, o recorrente limita o objecto de recurso à inconformidade sobre o enquadramento jurídico dos factos provados: crime ou não crime, eis a questão.

A posição assumida pela Mmª Juíza do tribunal de Vagos ao absolver o arguido da prática, imputada, de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.°, nº 1, al. b), do Código Penal, corresponde à posição unânime desta 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra.

Mais propriamente, o acórdão desta Relação, relatado pelo Exmº Desembargador Esteves Marques, citado pela Exmª Procuradora-Geral Adjunta no seu douto parecer, expõe de forma certeira as razões de tal tomada de posição.

1.O preceito que regula a execução da proibição de conduzir, não sanciona com o crime de desobediência a falta de entrega da carta de condução.

2.Resulta claramente da norma (artigo 69º, nº3 do CP e 500º, nº3 do CCP) que o legislador previu expressamente para a falta de cumprimento da entrega voluntária da licença de condução, a sua apreensão.

3.Se o legislador prevê que a não entrega voluntária da carta de condução, tem como consequência a sua apreensão, parece-nos que a cominação da prática de um crime de desobediência para a conduta da sua não entrega, contraria manifestamente o sentido da norma

4 No caso em análise, se fosse intenção do legislador, cominar o crime de desobediência para a não entrega da carta de condução, tê-lo-ia dito expressamente.

5.Daí que se conclua que a cominação feita carece de suporte legal e, como tal bem andou o Mmº juiz ao não ter recebido a acusação, já que os factos descritos na acusação não integram o tipo legal da desobediência.

(Acórdão de 16-12-2009, proc. nº 82/08.7TAOBR.CI, in www.dgsi.pt)

O sumário transcrito resume bem das razões da inexistência do crime imputado.

Apenas acrescentaremos.

Se é evidente, como diz Cristina Líbano Monteiro - “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, Tomo III, pag. 354., que a al. b) do número 1 do artigo 348º do Código Penal é um clara violação do princípio da legalidade, a posição da Digna recorrente dá cobertura a uma visão e prática violadoras dos mais basilares princípios do Estado de Direito e, logo, da ordem constitucional portuguesa, com a agravante de permitir “homologar” condutas de funcionários – ao fim e ao cabo, a grande razão avançada para a existência da norma, o não deixar a administração desprotegida contra condutas dos cidadãos – de um Estado - Administração de raiz napoleónica e práticas, demasiadas vezes, historicamente prepotentes.

Por outro lado, a clamorosa violação do princípio da legalidade por parte de tal norma penal propícia aquilo que o princípio - com garantia constitucional - visa acautelar: o arbitrário de incriminações ao sabor das idiossincrasias de cada um que se sinta com legitimidade para criar a sua própria desobediência. Como ocorreu com o sr. Juiz da sentença fundamento que se sentiu autorizado a criar a sua própria norma penal, ao contrário de qualquer outro que se não sentisse tentado a vestir a pele de legislador.

Por último, as normas relevantes, o artigo 69º, nº 3 do Código Penal e o artigo 500º, nº 2 do Código de Processo Penal, esgotam a previsão legal da situação fáctica em presença, surgindo a “cominação funcional” de desobediência como uma excrescência funcionalmente desnecessária. Dito de outra forma, a ordem jurídica contém a previsão necessária para lidar com os factos expostos via apreensão do título.

Assim sendo, é o recurso improcedente.

C – Dispositivo

Por todo o exposto, a 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra acorda, em conferência, em negar provimento ao recurso.

Sem custas.

(elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).

Coimbra,

João Gomes de Sousa

Calvário Antunes