Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
728/14.8TBFIG-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: INSOLVÊNCIA
VERIFICAÇÃO ULTERIOR DE CRÉDITO
FORMA DE PROCESSO
CONTRATO PROMESSA
RECUSA DE CUMPRIMENTO
DIREITO DE RETENÇÃO
CONSUMIDOR
Data do Acordão: 01/12/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - INST. CENTRAL - SEC.COMÉRCIO - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 102, 146 CIRE, 410, 442, 755 Nº1 F) CC
Sumário: 1.Se a A. reclama o reconhecimento de um seu crédito ulterior e sua graduação como crédito garantido por direito de retenção, num processo de insolvência, e utiliza, para tal efeito a acção prevista no art. 146º do CIRE utilizou a forma processual adequada, pelo que não existe erro na forma do processo; ademais o erro na forma do processo só pode ser arguido até à contestação (arts. 193º, nº 1, e 198º, nº 1, do NCPC), o que a ora recorrente não fez, não podendo fazê-lo em recurso.

2. Não cabe aos tribunais de recurso conhecer de questões novas (o chamado ius novarum), mas apenas reapreciar a decisão do tribunal a quo, com vista a confirmá-la ou revogá-la.

3. A promessa respeitante à celebração de contrato para o qual a lei exija documento, quer autêntico, quer particular, basta-se formalmente com a existência de documento escrito (art. 410º, nº 2, do CC).

4. No caso de promessa respeitante à celebração de contrato oneroso de transmissão de direito real sobre edifício, ou fracção autónoma dele, tal documento deve conter o reconhecimento presencial das assinaturas do promitente ou promitentes e a certificação, pela entidade que realiza aquele reconhecimento, da existência da respectiva licença de utilização ou de construção; contudo, o contraente que promete transmitir o direito só pode invocar a omissão destes requisitos quando a mesma tenha sido culposamente causada pela outra parte, o que não acontece se o promitente vendedor, no caso representado pelo administrador da insolvência, não tiver alegado que a falta de tais formalidades legais se deveu a conduta culposa do promitente- comprador.

5. Dispondo o art. 102º, nº 1, do CIRE, que em qualquer contrato bilateral em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento, dele decorre com clareza, até pela sua epígrafe “negócios não cumpridos” ou da epígrafe da do capítulo V em que se insere “negócios em curso”, que só se aplica quando o contrato não está totalmente cumprido ou definitivamente não cumprido, pois nesta última situação não se aplicaria tal normativo; essa a razão porque num contrato promessa não totalmente cumprido nem definitivamente incumprido passa para tal administrador a lógica opção de cumprir ou recusar o cumprimento do contrato.

6. Da letra da lei – art.102º, nº 2, do CIRE - resulta que a fixação de um prazo para o administrador da insolvência cumprir ou recusar o cumprimento de um contrato depende da iniciativa do outro contraente, não determinando a lei nenhuma forma especial obrigatória para tal interpelação ao administrador, podendo por isso ser judicial ou extrajudicial.

7. Optando a A. pela interpelação por via judicial, a partir do momento em que a massa insolvente é citada, foi-lhe dado conhecimento da pretensão da A. formulada na p.i. - de o administrador cumprir o contrato se assim o entendesse - (art. 219º, nº 1, do NCPC), produzindo tal interpelação efeitos a partir daí (art. 259º, nº 2, do NCPC), designadamente tornando estáveis os elementos essenciais da causa, como o pedido e a causa de pedir (arts. 564º, b) e 260º do mesmo código), o que quer dizer que a massa insolvente/administrador de insolvência foi interpelada para tomar uma decisão sobre o cumprimento do aludido contrato ou recusa do seu cumprimento;

8. Existe recusa de cumprimento por parte do administrador da insolvência, em cumprir um determinado contrato promessa, se o outro contraente o interpela judicialmente para tomar a sua opção e o mesmo na contestação da acção apresentada pela insolvente, por si representada, concluiu tal articulado requerendo que os pedidos da A., outra contraente, sejam julgados improcedentes, o que equivale, muito claramente, a uma declaração tácita (art. 217º, nº 1, do CC) por parte de tal administrador de que recusava o cumprimento do aludido contrato promessa.

9. Se a A. é uma promitente-compradora, consumidora, que celebrou um contrato-promessa com eficácia meramente obrigacional, que sinalizou o mesmo, que recebeu a tradição do imóvel prometido vender, contrato esse que não chegou a ser cumprido por parte do insolvente e que também não obteve o cumprimento do administrador da insolvência (AI), goza a mesma do direito de retenção, estatuído no art. 755º, nº 1, f), do CC, pelo seu crédito derivado do incumprimento de tal contrato, em estrita consonância com o entendimento firmado AUJ nº 4/14, em DR, 1ª série, de 19.5.2014.

Decisão Texto Integral:

I – Relatório

1. Por apenso aos autos de insolvência de C (…), T (…) residente em Coimbra, instaurou acção de verificação ulterior de créditos contra a massa insolvente, credores e devedor.

Alega, no essencial, que em Janeiro de 2012 celebrou com o insolvente contrato promessa para aquisição de uma moradia sita em Coimbra, pelo preço global de 310.000 €, cuja escritura pública de compra e venda deveria ser marcada pelo insolvente no prazo de 20 meses. Que reside no imóvel desde a data da celebração do contrato promessa, que a título de sinal e por conta do preço final pagou ao insolvente, até Novembro de 2013, a quantia global de 155.000 €, e que o insolvente apesar de interpelado para o fazer, nunca marcou a escritura pública de compra e venda.

Pediu o cumprimento do contrato promessa, caso o administrador de insolvência assim o entenda, ou não acontecendo isso o reconhecimento do seu crédito no montante global de 310.000 € (dobro do sinal) e sua graduação como crédito garantido por direito de retenção.

Só a massa insolvente contestou, invocando a nulidade do contrato promessa celebrado por falta de reconhecimento presencial das assinaturas dos promitentes, de certificação da respectiva licença de utilização ou construção e da forma do contrato prometido. Afirmou, ainda, desconhecer a factualidade alegada pela autora referente aos pagamentos efectuados, tradição do imóvel e interpelação para marcação da escritura pública. Concluiu, requerendo que os pedidos da A. sejam julgados improcedentes, ou assim não se entendendo que o crédito a reconhecer seja graduado como comum.

*

A final foi proferida sentença que julgou procedente a acção e, consequentemente:

1º julgou verificado o crédito reclamado por T (…), no montante de 310.000 €;

2º reconheceu que T (…) beneficia de direito de retenção sobre o imóvel sito na rua das Romeiras(…) em Coimbra, até pagamento daquele crédito;

3º sobre o produto da venda deste imóvel, graduou o crédito de T (…), no montante de 310.000 €, com preferência sobre os demais que não beneficiem de garantia ou privilégio especial e dos créditos hipotecários;

*

2. A R. Massa Insolvente interpôs recurso, tendo formulado as seguintes conclusões:

(…)

3. A A. contra-alegou, concluindo como segue:

(…)

II - Factos provados

Em 10 de janeiro de 2012, autora e insolvente subscreveram o documento intitulado de Contrato Promessa de Compra e Venda junto de fls. 11 a 13 cujos dizeres dou por integralmente reproduzidos, do qual consta, designadamente:

Primeiro outorgante e promitente vendedor: C (…)

E

Segunda outorgante e promitente compradora: T (…)

(…);

Entre os outorgantes é celebrado, livremente e de comum acordo, o presente contrato promessa de compra e venda que vai reger-se de acordo com as seguintes cláusulas;

Primeira: O primeiro outorgante é proprietário e legítimo possuidor do prédio sito em ( ...), nº 9, a que corresponde uma casa de habitação composta por cave, r/c, 1º andar e logradouro, descrita na 1ª Conservatória do Registo Predial de Coimbra, freguesia de ( ...) sob o nº 5126/19990323 e inscrito na matriz predial urbana da mesma freguesia sob o nº 12282;

Segunda: O primeiro outorgante promete vender à segunda outorgante e esta promete comprar-lhe o prédio descrito na cláusula anterior;

Terceira: O preço a pagar pela segunda outorgante ao primeiro outorgante pela venda do prédio objeto do presente contrato é de €310.000,00;

Quarta: O preço referido no artigo anterior será pago da seguinte forma:

1. A quantia de €30.000,00 a título de sinal, quantia esta a entregar nesta data e da qual o primeiro outorgante dá quitação com a assinatura do presente contrato;

2. A segunda outorgante compromete-se ainda a título de reforço de sinal a entregar ao primeiro outorgante até à data da escritura a quantia de €125.000,00, a qual será paga através de reforços de sinal, mensais, de valor igual ou superior a €5.000,00;

3. O remanescente do preço, que totaliza a quantia de €155.000,00 será pago pela segunda outorgante ao primeiro outorgante no dia e com a realização da escritura pública de compra e venda ora prometida;

Quinta: O primeiro outorgante entregará na presente data à segunda outorgante as chaves do imóvel prometido vender, a qual desde já toma posse do mesmo, podendo em seu nome requerer tudo quanto se mostre necessário à sua utilização, designadamente, contador de água, eletricidade, gás e tudo o demais necessário ao seu pleno gozo e fruição;

Sexta: A escritura pública será realizada no prazo máximo de 20 meses após a assinatura do presente contrato;

Sétima: A marcação da escritura pública de compra e venda ficará a cargo do primeiro outorgante, o qual comunicará à segunda outorgante, com pelo menos 15 dias de antecedência, o local, dia e hora da celebração da referida escritura;

Oitava: A moradia objeto do presente contrato é prometida vender devoluta de pessoas e bens, livre de quaisquer ónus ou encargos, limitações ou responsabilidades, nomeadamente, hipotecas ou penhoras no ato da outorga da respetiva escritura;

(…);

Décima terceira: Ambos os outorgantes declaram prescindir do reconhecimento presencial e certificação notarial previstos no artº 410º, nº 3 do Código Civil, não se devendo a sua falta a qualquer culpa das partes (…);

Na data da subscrição do acordo referido em 1º, a autora entregou ao insolvente C (…), a título de sinal, a quantia de €30.000,00;

Por conta do preço indicado no acordo referido em 1º, a autora efetuou os seguintes pagamentos ao réu insolvente C (…):

- em 8 de março de 2012, €7.000,00 em numerário;

- em 4 de maio de 2012, €6.000,00 em numerário;

- em 6 de junho de 2012, €7.000,00 em numerário;

- em 4 de agosto de 2012, €5.000,00 mediante transferência bancária;

- em 28 de agosto de 2012, €5.000,00 mediante transferência bancária;

- em 8 de outubro de 2012, €6.000,00 mediante transferência bancária;

- em 28 de novembro de 2012, €5.000,00 mediante cheque bancário;

- em 6 de dezembro de 2012, €12.000,00 mediante cheque bancário;

- em 2 de janeiro de 2013, €10.000,00 mediante transferência bancária;

- em 7 de fevereiro de 2013, €7.000,00 em numerário;

- em 4 de março de 2013, €5.000,00 mediante transferência bancária;

- em 10 de abril de 2013, €7.000,00 em numerário;

- em 25 de maio de 2013, 7.000,00 mediante transferência bancária;

- em 14 de junho de 2013, €8.000,00 mediante transferência bancária;

- em 23 de julho de 2013, €7.000,00 mediante transferência bancária;

- em 9 de agosto de 2013, €6.000,00 mediante transferência bancária;

- em 9 de setembro de 2013, €5.000,00 mediante transferência bancária;

- em 7 de outubro de 2013, €5.000,00 mediante transferência bancária;

- em 12 de novembro de 2013, €5.000,00 mediante transferência bancária;

Depois do último dos pagamentos discriminados em 3º, a autora contatou, por diversas vezes, o réu insolvente C (…) solicitando-lhe a marcação da escritura pública de compra e venda do imóvel identificado em 1º;

O réu insolvente C (…) nunca procedeu à marcação da escritura de compra e venda do imóvel identificado em 1º;

Na data da subscrição do acordo referido em 1º, o réu insolvente C (…) entregou as chaves do imóvel à autora;

Na sequência da entrega referida em 6º, a autora procedeu à aquisição de mobílias e outros objetos de decoração que aí colocou, a fim de passar a residir no imóvel;

A autora passou a ocupar o imóvel identificado em 1º, como sua residência permanente. desde o início do ano de 2012;

É no imóvel identificado em 1º que a autora pernoita e toma as suas refeições

10º É no imóvel identificado em 1º que a autora recebe a correspondência a si dirigida;

11º É no imóvel identificado em 1º que a autora recebe a família e amigos e com eles convive;

12º A autora efetua todas as operações de limpeza e conservação do imóvel identificado em 1º;

13º O contador de água referente ao imóvel identificado em 1º encontra-se em nome da autora, que paga diretamente à empresa Águas de Coimbra a água por si consumida no imóvel;

14º O contador de eletricidade referente ao imóvel identificado em 1º encontra-se em nome da autora, que paga diretamente à EDP a eletricidade por si consumida no imóvel;

15º Os serviços de telecomunicações (telefone fixo e televisão) referentes ao imóvel identificado em 1º encontram-se em nome da autora, que paga diretamente à PT Comunicações e à Meo os respetivos consumos;

16º A autora paga o Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) referente ao imóvel identificado em 1º;

17º Sob o imóvel identificado em 1º incidem registos de duas hipotecas voluntárias a favor do Barclays Bank para garantia dos montantes máximos de €344.074,35 e €21.791,58;

18º C (…) foi declarado insolvente por sentença proferida em 1 de abril de 2014;

III - Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 639º, nº 1, e 635º, nº 4, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Alteração da matéria de facto (?)

- Improcedência da acção (macro questão que se divide em várias sub-questões abaixo enunciadas em 3.)

 

2. Embora a recorrente comece por dizer, no requerimento de apresentação de recurso, que recorre da matéria de facto, não é isso que acontece nos termos legais.

Efectivamente quando se impugna a matéria de facto, tem de observar-se os ditames do art. 640º, nº 1, a) a c), e nº 2, a), do NCPC, sob pena de rejeição.

Ou seja, de tal dispositivo verifica-se que a lei exige 5 requisitos:

i) Que o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

ii) Qual o sentido correcto da resposta, que na óptica do recorrente, se impunha fosse dado a tais pontos;

iii) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa;

iv) E por que razão assim seria, com análise critica criteriosa;

v) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de facultativa transcrição dos excertos relevantes.

Ora, das suas alegações de recurso – corpo e conclusões - verifica-se que o recorrente, não cumpriu, desde logo, o 1º dos indicados requisitos legais, pois não indicou, em lado algum, quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados. Nem, por arrastamento, cumpriu o 2º dos indicados requisitos, pois, também, não especificou, em lado algum, qual a resposta que se impunha fosse dada a tais pontos de facto. Acresce que, igualmente, não satisfez o 5º requisito legal, pois não indicou, em lado algum, com exactidão as passagens da gravação em que estaria fundada a sua impugnação (?), baseada num depoimento de parte e dois depoimentos testemunhais de que transcreveu pequenos excertos, apesar de, face à gravação efectuada (vide as respectivas actas a fls. 172/178), haver identificação precisa e separada de tais depoimentos. Não bastando indicar o início e termo da gravação no sistema digital como o fez e ainda por cima apenas em relação a um dos depoimentos, o de uma testemunha. Assim como é irrelevante a transcrição dos depoimentos por ser meramente facultativa. 

Assim, face ao não cumprimento do referido ónus legal, a impugnação da matéria de facto (?) não procede.

3. Na sentença recorrida escreveu-se que:

O cumprimento do contrato-promessa, que consiste na celebração do contrato prometido, é regido pelas normas gerais respeitantes ao cumprimento das obrigações.

De igual modo, o incumprimento do contrato-promessa, que derive da recusa da celebração do contrato prometido, encontra-se sujeito ao regime geral do não cumprimento das obrigações.

Contudo, existindo sinal, a resolução do contrato-promessa apresenta um desvio relevante em relação ao regime geral: nos contratos-promessa sinalizados a indemnização não se apura de acordo com as regras gerais da responsabilidade civil, sendo antes predeterminada nos termos do artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil.

Determina este este preceito legal que:

- se quem constituiu o sinal deixar de cumprir por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente o direito de fazer sua a coisa entregue;

- se o não cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele a faculdade de exigir o dobro do que prestou ou, se houve tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, o seu valor, o do direito a transmitir ou a constituir sobre ela, determinado objetivamente, à data do não cumprimento do contrato promessa, com dedução do preço convencionado, devendo ainda ser-lhe restituído o sinal e a parte do preço que tenha pago;

Havendo lugar à perda do sinal (se o não cumprimento é imputável ao tradens do sinal) ou à sua restituição em dobro (se o incumprimento é imputável ao accipiens), e na ausência de estipulação em contrário, não haverá lugar a qualquer outra indemnização (art.º 442.º, n.º 4, do Código Civil).

(…)

De acordo com o art.º 441.º do Código Civil, no contrato-promessa de compra e venda presume-se que tem caráter de sinal toda a quantia entregue, no momento da celebração do contrato ou em momento posterior, pelo promitente-comprador ao promitente vendedor, ainda que a título de antecipação ou de princípio de pagamento.

Quando haja sinal, presumido ou convencionado, a coisa entregue deve ser imputada na prestação devida (prestação futura, emergente do contrato definitivo, no caso do contrato-promessa), ou restituída quando a imputação não for possível (art.º 442.º, n.º 1, do CC).

Havendo tradição da coisa objeto do contrato prometido, a lei confere ainda ao promitente-comprador in bonis uma tutela particularmente importante do seu crédito: o direito de retenção.

Estabelece, neste sentido, o art.º 755.º, n.º 1, al. f), do Código Civil, que goza do direito de retenção o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte nos termos do artigo 442.º.

O direito de retenção corresponde ao direito conferido ao credor, que se encontra na posse de certa coisa pertencente ao devedor de, não só recusar a entrega dela enquanto o devedor não cumprir, mas também de executar a coisa e se pagar à custa do valor dela, com preferência sobre os demais credores (vide, neste sentido, Antunes Varela, Das Obrigações em geral, Almedina, vol. II, 7.ª edição, pág. 579).

Constituem requisitos do direito de retenção do promitente-comprador a tradição da coisa objeto imediato do contrato definitivo prometido, o incumprimento definitivo do contrato-promessa pelo promitente vendedor e a titularidade por parte do promitentecomprador de um direito de crédito emergente desse incumprimento (vide, neste sentido, entre outros, os acórdãos da RP de 26.02.1013, proc. n.º 10752/11,7TBVNG e da RC de 15.01.2013, proc. n.º 511/10.0TBSEI-E).

(…)

No caso vertente, provou-se que insolvente e autora celebraram contrato promessa de compra e venda relativo ao prédio urbano sito na Rua das Romeiras, nº 9, na Casa Branca, em Coimbra, nos termos do qual o insolvente prometeu vender, e a autora prometeu comprar-lhe, o mencionado prédio, pelo preço de €310.000,00.

A autora já entregou ao insolvente a quantia de €155.000,00, presumindo-se que esta entrega reveste a natureza de sinal.

Por fim, verifica-se que, na sequência da celebração deste contrato promessa, ocorreu não apenas a tradição simbólica do imóvel objeto do contrato promessa, através da entrega das respetivas chaves, mas inclusivamente a sua tradição material, com efetiva apreensão por parte da autora.

Regista-se, a este respeito, que a partir do momento em que recebeu as chaves do imóvel a autora:

- procedeu à aquisição de mobílias e outros objetos de decoração que aí colocou, a fim de aí passar a residir;

- passou a ocupar o imóvel como sua residência permanente desde o início do ano de 2012;

- passou a pernoitar e tomar as suas refeições no imóvel;

- passou a receber no imóvel a correspondência a si dirigida;

- passou a receber no imóvel a família e amigos;

- passou a conviver com a família e amigos no imóvel;

- passou a efetuar todas as operações de limpeza e conservação do imóvel;

- celebrou contratos para fornecimento de água, eletricidade e serviços de

telecomunicações no imóvel;

- passou a pagar os fornecimentos de água, eletricidade e serviços de telecomunicações registados no imóvel;

- passou a pagar o Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) referente ao imóvel;

Sustenta o administrador da insolvência que o contrato promessa em causa é nulo, por falta de reconhecimento das assinaturas dos intervenientes, de certificação da respetiva licença de utilização ou construção e da forma do contrato prometido.

É certo que, de acordo com o disposto no art.º 410º, nº 3 do Código Civil, no caso de promessa respeitante à celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício, ou fração autónoma dele, já construído, em construção ou a construir, o documento que corporiza as declarações das partes deve conter o reconhecimento presencial das assinaturas do promitente ou promitentes e a certificação, pela entidade que realiza aquele reconhecimento, da existência da respetiva licença de utilização ou de construção.

Contudo, de acordo com a parte final deste normativo, o contraente que promete transmitir ou constituir o direito, só pode invocar a omissão destes requisitos quando a mesma tenha sido culposamente causada pela outra parte.

Ou seja, a inobservância daqueles requisitos de forma -reconhecimento presencial das assinaturas e certificação pelo notário da existência de licença de utilização ou de construçãodetermina a invalidade do negócio, embora sujeita a um regime especial, que permite qualificar a invalidade como uma nulidade atípica ou mista: trata-se de nulidade invocável a todo o tempo, em princípio, apenas pelo promitente-comprador, podendo sê-lo pelo promitente vendedor apenas quando a omissão tenha sido culposamente causada pelo promitente- comprador, mas não sendo invocável por terceiros, nem de conhecimento oficioso pelo tribunal (vide, neste sentido, João Calvão da Silva, Sinal e Contrato Promessa, 12ª edição, Almedina, pp. 69 a 81).

Ora, representando o administrador da insolvência, para efeitos patrimoniais, o promitente vendedor (artº 81º, nº 4 do CIRE), só poderia invocar a falta do reconhecimento das assinaturas ou da certificação da existência de licença de utilização ou de construção, se esta falta tivesse sido culposamente causada pela autora, o que não foi alegado.

Assim sendo, irreleva para efeitos de validade do contrato, a omissão dos requisitos previstos no art.º 410º, nº 3 do Código Civil.

De resto, também não se vislumbra a ocorrência de qualquer outro vício formal de que enferme o contrato promessa e que o fira de nulidade, uma vez que o contrato promessa consta de documento, assinado por ambas as partes, nos termos permitidos pelo art.º 410º, nº 2 do CC, não exigindo a lei a sua celebração por escritura pública ou documento particular autenticado conforme alegado pelo administrador da insolvência.

Em suma, o contrato promessa em apreço nos autos não enferma de qualquer vício formal gerador de nulidade.

Provado que o contrato definitivo não chegou a ser celebrado, vejamos pois se a autora tem direito ao recebimento dos valores entregues, presumidamente, a título de sinal em dobro, por aplicação do regime estabelecido no art.º 442º, nº 2 do CC, e se o seu crédito beneficia do direito do direito de retenção previsto no artº 755º, al. f) do CC.

Em causa está um crédito emergente de contrato promessa de compra e venda celebrado entre a autora, na qualidade de promitente compradora, e o insolvente, na qualidade de promitente vendedor, que não havia sido integralmente cumprido por qualquer das partes à data da declaração da insolvência.

Trata-se, pois, de negócio em curso à data da declaração da insolvência (art.º 102.º, n.º 1, do CIRE), sendo ainda de salientar que o contrato promessa em causa não está dotado de eficácia real.

As questões associadas aos efeitos da recusa do cumprimento do contrato promessa em curso por parte do administrador de insolvência, nos termos do n.º 1 do artigo 102º do CIRE, têm sido objeto de acesa controvérsia doutrinária e jurisprudencial.

Questiona-se, particularmente, a existência (ou inexistência) do direito de retenção do promitente-comprador em caso de recusa de cumprimento de contrato promessa ainda não integralmente cumprido à data da declaração da insolvência.

(…)

Acompanhando a divisão da doutrina, a nossa jurisprudência foi assumindo, igualmente, posições divergentes sobre a questão do regime aplicável ao contrato promessa de compra e venda sinalizado em que tenha havido lugar à tradição da coisa, inclinando-se alguns sectores para a aplicação do regime do art.º 442.º do Código Civil, e consequente concessão do direito de retenção (neste sentido, entre outros, os acórdãos do STJ de 12.01.2010, proc. n.º 1336/06.2TBBCL e de 20.05.2010, proc. n.º 1336/06.2TBBCL e do TRC de 15.01.2013, proc. n.º 511/10.TB, todos acessíveis em www.dgsi.pt.), e outros para o afastamento do dito regime (como sucedeu com os Acs. do STJ de 14.06.2011, proc. n.º 6132/08, do TRP de 13.12.2012, proc. n.º 1092/10.0TBLSB e do TRC de 6.11.2012, proc. n.º 729/09.8T2AVR, acessíveis no mesmo sítio).

Sucede que chamado recentemente a fixar jurisprudência sobre a matéria, o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de fixação de jurisprudência proferido em 20 de março de 2014 (AUJ nº 4/2014), considerou que não existem razões para afastar do âmbito da insolvência a aplicação aos contratos promessa sinalizados, com traditio e eficácia meramente obrigacional, do regime estabelecido no art.º 442.º do Código Civil, e que, consequentemente, se deveria reconhecer ao promitente-comprador in bonis o direito de retenção sobre a coisa objeto do contrato prometido.

Incidindo o recurso exclusivamente sobre a questão da natureza do direito do promitente-comprador, fixou o Supremo a seguinte jurisprudência: No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755.º n.º 1 alínea f) do Código Civil.

Na sua fundamentação o referido acórdão de fixação de jurisprudência pronuncia-se sobre várias questões: a sujeição do contrato-promessa meramente obrigacional, com tradição da coisa, ao disposto no artº 106, nº 2 do CIRE; o direito do promitente-comprador a uma indemnização e qual o regime deste crédito; a existência de um direito de retenção e qual o seu âmbito subjetivo;

Quanto à primeira questão, o AUJ defende que o artº 106º do CIRE não regula as consequências da declaração de insolvência, com tradição da coisa.

Perante tal omissão, defende o acórdão o recurso ao lugar paralelo que resulta da conjugação dos artºs 106º, nº 2 e 104º, nº 1, pois as razões determinantes do que ali vem exposto quanto ao que lá se regula (compra e venda a prestações) são idênticas às que aqui estão em causa. Subjacente a esta tomada de posição está a forte expetativa que a traditio criou no promitente-comprador quanto à solidez do vínculo.

Em consequência, e agora quanto à segunda questão, o incumprimento do contrato-promessa pelo administrador da insolvência enquadra-se no regime art.º 442º, nº 2 do CC, pois existe uma imputabilidade reflexa, uma vez que o comportamento do insolvente esteve na origem do processo insolvencial. Para além disso, a presunção de culpa prevista no artº 799º, nº 1 do CC, também não foi afastada pelo devedor insolvente.

Por último, quanto à terceira questão, o crédito indemnizatório do promitente-comprador que seja consumidor, e que beneficie da traditio da coisa, é tutelado pelo disposto no artº 755º, nº 1, al. f) do CC.

Esta uniformização mereceu a concordância genérica de Fernando de Gravato Morais, que traz à colação o conceito de imputabilidade (entendida cum granum salis) reflexa do incumprimento do contrato promessa por parte do promitente vendedor insolvente, pois, em última análise, foi este que deu causa ou motivou a declarada situação de insolvência (Da tutela do retentor-consumidor em face da insolvência do promitente-vendedor, Cadernos de Direito Privado, nº 46, abr.-jun. 2014, pp. 54 e 55).

No caso vertente, a autora, promitente compradora, é consumidora.

O administrador da insolvência recusou o cumprimento do contrato promessa o que legitima, como se deixou referido, que se endosse ao próprio insolvente, em termos de imputabilidade reflexa (entendida esta cum granum salis, no sentido de dar causa ou motivar), o incumprimento do contrato em causa.

E provou-se a traditio do imóvel exigida para que se constitua o direito de retenção previsto no art.º 755.º, n.º 1, al. f) do CC.

Por conseguinte, assiste à autora o peticionado direito de crédito de €310.000,00 sobre a insolvência, correspondente ao dobro do valor do sinal entregue, o qual se encontra garantido por direito de retenção incidente sobre o imóvel objeto do contrato prometido”.

Acompanhamos integralmente a fundamentação jurídica exposta na decisão recorrida que transcrevemos em relação aos vários aspectos abrangidos. E em relação ao aspecto nuclear o caso concreto, que os presentes autos nos traz, ajusta-se como uma luva ao firmado no AUJ referido. Na verdade, a A. é uma promitente-compradora, consumidora, que celebrou um contrato-promessa com eficácia meramente obrigacional, que sinalizou o mesmo, que recebeu a tradição do imóvel prometido vender, contrato esse que não chegou a ser cumprido por parte do insolvente e que também não obteve o cumprimento do administrador da insolvência (AI), gozando a mesma A. do direito de retenção pelo seu crédito derivado do incumprimento de tal contrato.

A recorrente levanta, contudo, vários (5) obstáculos a tal entendimento, mas sem razão, adiantamo-lo já. Vejamos, então, ponto por ponto, e por ordem sequencial lógica.

3.1. Diz a recorrente que o fundamento da acção extravasa o disposto no art. 146º do CIRE, pois não se está a tratar da reclamação de um crédito mas sim da verificação do cumprimento ou não de um contrato promessa, sendo que após a resolução, caso fosse favorável é que a A. poderia intentar uma verificação ulterior de créditos a fim de ver o seu crédito graduado, pelo que a R. deveria ter sido absolvida do pedido/instância (conclusões de recurso 55ª a 57ª). Esta alegação pouco clara coloca 3 interrogações.

- Se a recorrente quer afirmar que houve erro na forma do processo, está enganada. Efectivamente, como resulta do relatório supra e respectiva p.i., a A. reclamou o reconhecimento do seu crédito no montante global de 310.000 € (dobro do sinal) e sua graduação como crédito garantido por direito de retenção.

Ora, decorre do art. 146º do CIRE que findo o prazo facultado para a reclamação de créditos no âmbito do processo de insolvência, é possível ainda reconhecer outros créditos, de modo a serem atendidos no processo, por meio de acção proposta contra a massa insolvente, os credores e o devedor. Esta acção, de verificação ulterior, destina-se ao reconhecimento de créditos de natureza patrimonial, que não hajam sido reclamados no tempo normal da reclamação de créditos, nos termos do art. 128º do CIRE. Portanto, se a A. pretende reclamar um seu crédito ulterior no âmbito do processo de insolvência utilizou a forma processual adequada, pelo que nunca existiria qualquer erro.

Ademais o erro na forma do processo só pode ser arguido até à contestação (arts. 193º, nº 1, e 198º, nº 1, do NCPC), o que a ora recorrente não fez, não podendo, agora, em recurso fazê-lo.

- Se a apelante pretende afirmar que a A. não reclamou um crédito está errada, pois é inequívoco que isso aconteceu, como acabámos de salientar.

- Se a recorrente quer defender que a A, tinha previamente de intentar uma acção declarativa para verificação do cumprimento ou não do contrato promessa, e consequente resolução, e caso fosse favorável é que poderia intentar uma verificação ulterior de créditos a fim de ver o seu crédito graduado, tal argumentação não pode ser acolhida por se tratar de uma questão nova.

Efectivamente, a apelante devia ter, no momento próprio, invocado tal questão, isto é quando apresentou a sua contestação, de modo a poder ser conhecida pelo tribunal a quo o que não fez. Por isso, sibi imputet.

Não pode é fazê-lo, agora, em recurso. Na verdade, como é de todos sabido, e já foi dito e redito, infindavelmente, quer pela doutrina quer pela jurisprudência, os recursos ordinários são, entre nós, recursos de reponderação e não de reexame, visto que o tribunal superior não é chamado a apreciar de novo a acção e a julgá-la, como se fosse pela primeira vez, indo antes controlar a correcção da decisão, proferida pelo tribunal recorrido, face aos elementos averiguados por este último. Não cabe, pois, aos tribunais de recurso conhecer de questões novas (o chamado ius novarum) – art. 627º do NCPC -, mas apenas reapreciar a decisão do tribunal a quo, com vista a confirmá-la ou revogá-la (vide L. Freitas, CPC Anotado, Vol. 3º, T. I, 2ª Ed., nota 5. ao art. 676º, pág. 7/8, e jurisprudência aí mencionada).

Tratando-se, por isso, de uma questão nova, não pode, agora, ser conhecida em fase de recurso.

Improcede, pois, este ponto do recurso.

3.2. Afirma a recorrente que o contrato promessa celebrado é nulo por falta de forma (conclusão 19º). Esta alegação, mais uma vez, pouco concreta coloca 2 interrogações, mas ambas foram respondidas na decisão recorrida.

- Se a recorrente quer significar que não foi observada nenhuma forma na celebração do contrato só por desatenção o pode afirmar. Bastaria atentar no art. 410º, nº 2, do CC, que inclusivamente transcreve, e no facto provado 1. O contrato-promessa foi reduzido a escrito.

- Se a apelante quer demonstrar que não foram observadas as formalidades prescritas no art. 410º, nº 3, do CC, que transcreveu, basta lembrar-lhe, como se referiu na sentença em recurso, que o contraente que promete transmitir ou constituir o direito, no caso o insolvente, só pode invocar a omissão dessas formalidades quando a mesma tenha sido culposamente causada pela outra parte. Ora, representando o administrador da insolvência, para efeitos patrimoniais, o promitente vendedor só poderia invocar a falta do reconhecimento das assinaturas ou da certificação da existência de licença de utilização ou de construção, se esta falta tivesse sido culposamente causada pela A., o que não foi alegado na sua contestação.

E, acrescentamos, nós, mesmo que o tivesse sido estava votada tal alegação ao insucesso, pois a apelante parece que não quis atentar à cláusula 13ª do contrato promessa (facto 1.) na qual os contraentes declaram prescindir desses aludidos requisitos legais, mais exarando que a sua falta não se deve a qualquer culpa das partes.   

Assim sendo, não releva para efeitos de validade do contrato, a omissão dos requisitos previstos no art. 410º, nº 3 do CC.

Não procede este ponto do recurso.      

3.3. Diz a recorrente que o não cumprimento definitivo do contrato promessa não é imputável ao insolvente, pelo que a decisão encontrada é ilegal face ao nosso ordenamento jurídico. Duas observações são devidas a tal argumentação.

Em primeiro lugar constata-se que o contrato promessa foi celebrado em Janeiro de 2012 e a escritura pública seria realizada no prazo máximo de 20 meses, isto é até Setembro de 2013, competindo a obrigação de marcação da escritura ao insolvente, devendo até à data da escritura a A. promitente compradora entregar, como reforço do sinal inicial de 30.000 € a quantia de 125.000 €, liquidando-se o remanescente do preço no dia da escritura (facto provado 1.). Ora em Setembro de 2013 nem a escritura foi marcada pelo insolvente nem a A. entregou os referidos 125.000 €, mas somente 115.000 €. (factos 3. e 5.). Apesar de haver um incumprimento simples ou moratório de ambas as partes, o incumprimento definitivo, nas suas diversas modalidades, não ocorreu, porque a prestação devida pelo promitente vendedor era possível jurídica e materialmente, não houve declaração expressa ou comportamento concludente do insolvente de não cumprimento de tal contrato, inexistiu qualquer interpelação admonitória para transformar a mora em incumprimento definitivo, o prazo marcado para a realização da escritura não era fixo ou absoluto. E as partes contratantes mantiveram interesse no contrato, pois a A. em Outubro e Novembro de 2013 entregou os restantes 10.000 € em falta o que o insolvente aceitou (facto 3.). Foi então o insolvente interpelado expressamente para marcar a escritura pública de compra e venda, pela A. promitente compradora (facto 4.), por ser sua essa obrigação contratual, interpelação extrajudicial para cumprir, nos termos do art. 805º, nº 1, do CC, que pode ser feita por qualquer meio, designadamente de modo verbal (art. 217º, nº 1, do CC) – vide neste sentido A. Varela, CC Anotado, Vol. II, 2ª Ed., nota 1. Ao artigo 805º, pág.56. Contudo nunca marcou tal escritura (facto 5.). Mantendo-se, pois em mora. Estavam as coisas neste pé, sem mais desenvolvimentos, e portanto sem haver total cumprimento ou incumprimento definitivo do contrato quando o promitente-comprador foi declarado insolvente.     

A partir deste momento entrou em funcionamento o art. 102º, nº 1, do CIRE, que dispõe que sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, em qualquer contrato bilateral em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento. É, pois claro, até pela sua epígrafe “negócios não cumpridos” ou da epígrafe da do capítulo V em que se insere “negócios em curso”, que só se aplica quando o contrato não está totalmente cumprido ou definitivamente não cumprido, pois nesta última situação não se aplicaria tal normativo. Eis a razão porque no caso dos autos, contrato promessa não totalmente cumprido nem definitivamente incumprido passa para o AI a lógica opção de cumprir ou recusar o cumprimento do contrato.

Desta sorte, a objecção levantada pela recorrente não tem razão de ser.

Por outro lado, como se sublinhou na decisão recorrida, estribada fielmente no ponto 2.2.4, 6º parágrafo, da fundamentação do citado AUJ (no DR, 1ª série, de 19.5.2014) o promitente-comprador goza do direito a uma indemnização e um correlativo direito de retenção porque a recusa do cumprimento do contrato-promessa pelo AI se enquadra no regime do citado art. 442º, nº 2 do CC, pois existe uma imputabilidade reflexa, uma vez que o comportamento do insolvente esteve na origem do processo de insolvência, para além de a presunção de culpa prevista no art. 799º, nº 1 do CC, também não ter sido afastada pelo devedor insolvente.

AUJ esse que pela sua força persuasiva deve ser seguido pelos tribunais e não descapitalizado à primeira oportunidade, e pouco tempo depois da sua emissão, como a recorrente parece querer fazer.   

Improcede este ponto do recurso.

3.4. Afirma a recorrente que o AI não foi interpelado para declarar se queria cumprir o contrato promessa ou recusá-lo.

Recordemos mais uma vez o pedido da A., constante do relatório supra e da p.i. A A. pediu, em primeiro lugar, o cumprimento do contrato promessa, caso o administrador de insolvência assim o entenda. Como se assinalou, resulta do citado art. 102º, nº 1, do CIRE, que em qualquer contrato bilateral em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento. E no nº 2 estatui-se que a outra parte pode, contudo, fixar um prazo razoável ao administrador da insolvência para este exercer a sua opção, findo o qual se considera que recusa o cumprimento.

Este preceito reconhece ao outro contraente, para não ficar indefinidamente dependente da actuação do AI, o direito de lhe fixar um prazo razoável, cominatório, para ele exercer a sua opção. Da letra da lei resulta que a fixação desse prazo depende da iniciativa do outro contraente. Se o AI nada declarar, dentro do prazo fixado, a lei considera haver recusa de cumprimento, daqui decorrendo a necessidade de o AI declarar, antes do fim de tal prazo, a sua opção pelo cumprimento do contrato, se assim o entender.

A lei não determina nenhuma forma especial obrigatória para tal interpelação ao AI, podendo por isso ser judicial ou extrajudicial. Na nossa situação a A. optou pela interpelação por via judicial, nada se vendo em contrário para tal escolha. Assim, a partir do momento em que a apelante foi citada, foi-lhe dado conhecimento da pretensão da A. (art. 219º, nº 1, do NCPC), produzindo tal interpelação efeitos a partir daí (art. 259º, nº 2, do NCPC), designadamente tornando estáveis os elementos essenciais da causa, como o pedido e a causa de pedir (arts. 564º, b) e 260º do mesmo código). De maneira que a partir da citação bem sabia a recorrente o que a A. pretendia, e como foi citada para contestar em 30 dias (cfr. fls. 18) bem sabia que tinha que se pronunciar até ao fim desse prazo. O que quer dizer que a recorrente foi interpelada e bem interpelada para tomar uma decisão sobre o cumprimento do aludido contrato ou recusar o seu cumprimento.

Não procede este ponto do recurso.

3.5. Defende a recorrente que inexiste recusa de cumprimento por parte do AI. Existe e é inequívoca.

Relembremos, mais uma vez, que a recorrente, através do seu AI, contestou a acção, nos termos referidos no relatório supra, e concluiu tal articulado requerendo que os pedidos da A. sejam julgados improcedentes. O que equivale, muito claramente, a uma declaração tácita (art. 217º, nº 1, do CC) por parte do AI de que recusava o cumprimento do aludido contrato-promessa.

3.6. Em resumo, visto que a situação que os autos configuram se enquadra por inteiro na jurisprudência do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 4/2014, antes citado, não procede esta parte do recurso da apelante.          

4. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) Quando se impugna a matéria de facto, tem de observar-se os ditames do art. 640º, nº 1, a) a c), e nº 2, a), do NCPC, designadamente a especificação dos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados e a decisão que o recorrente entende dever ser proferida sobre tais pontos de facto, sob pena de rejeição do recurso nessa parte;

ii) Se a A. reclama o reconhecimento de um seu crédito ulterior e sua graduação como crédito garantido por direito de retenção, num processo de insolvência, e utiliza, para tal efeito a acção prevista no art. 146º do CIRE utilizou a forma processual adequada, pelo que não existe erro na forma do processo; ademais o erro na forma do processo só pode ser arguido até à contestação (arts. 193º, nº 1, e 198º, nº 1, do NCPC), o que a ora recorrente não fez, não podendo fazê-lo em recurso;

iii) Não cabe aos tribunais de recurso conhecer de questões novas (o chamado ius novarum), mas apenas reapreciar a decisão do tribunal a quo, com vista a confirmá-la ou revogá-la;

iv) A promessa respeitante à celebração de contrato para o qual a lei exija documento, quer autêntico, quer particular, basta-se formalmente com a existência de documento escrito (art. 410º, nº 2, do CC);

v) No caso de promessa respeitante à celebração de contrato oneroso de transmissão de direito real sobre edifício, ou fracção autónoma dele, tal documento deve conter o reconhecimento presencial das assinaturas do promitente ou promitentes e a certificação, pela entidade que realiza aquele reconhecimento, da existência da respectiva licença de utilização ou de construção; contudo, o contraente que promete transmitir o direito só pode invocar a omissão destes requisitos quando a mesma tenha sido culposamente causada pela outra parte, o que não acontece se o promitente vendedor, no caso representado pelo administrador da insolvência, não tiver alegado que a falta de tais formalidades legais se deveu a conduta culposa do promitente- comprador;

vi) Dispondo o art. 102º, nº 1, do CIRE, que em qualquer contrato bilateral em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento, dele decorre com clareza, até pela sua epígrafe “negócios não cumpridos” ou da epígrafe da do capítulo V em que se insere “negócios em curso”, que só se aplica quando o contrato não está totalmente cumprido ou definitivamente não cumprido, pois nesta última situação não se aplicaria tal normativo; essa a razão porque num contrato promessa não totalmente cumprido nem definitivamente incumprido passa para tal administrador a lógica opção de cumprir ou recusar o cumprimento do contrato;

vii) Da letra da lei – art.102º, nº 2, do CIRE - resulta que a fixação de um prazo para o administrador da insolvência cumprir ou recusar o cumprimento de um contrato depende da iniciativa do outro contraente, não determinando a lei nenhuma forma especial obrigatória para tal interpelação ao administrador, podendo por isso ser judicial ou extrajudicial;

viii) Optando a A. pela interpelação por via judicial, a partir do momento em que a massa insolvente é citada, foi-lhe dado conhecimento da pretensão da A. formulada na p.i. - de o administrador cumprir o contrato se assim o entendesse - (art. 219º, nº 1, do NCPC), produzindo tal interpelação efeitos a partir daí (art. 259º, nº 2, do NCPC), designadamente tornando estáveis os elementos essenciais da causa, como o pedido e a causa de pedir (arts. 564º, b) e 260º do mesmo código), o que quer dizer que a massa insolvente/administrador de insolvência foi interpelada para tomar uma decisão sobre o cumprimento do aludido contrato ou recusa do seu cumprimento;

ix) Existe recusa de cumprimento por parte do administrador da insolvência, em cumprir um determinado contrato promessa, se o outro contraente o interpela judicialmente para tomar a sua opção e o mesmo na contestação da acção apresentada pela insolvente, por si representada, concluiu tal articulado requerendo que os pedidos da A., outra contraente, sejam julgados improcedentes, o que equivale, muito claramente, a uma declaração tácita (art. 217º, nº 1, do CC) por parte de tal administrador de que recusava o cumprimento do aludido contrato promessa.

x) Se a A. é uma promitente-compradora, consumidora, que celebrou um contrato-promessa com eficácia meramente obrigacional, que sinalizou o mesmo, que recebeu a tradição do imóvel prometido vender, contrato esse que não chegou a ser cumprido por parte do insolvente e que também não obteve o cumprimento do administrador da insolvência (AI), goza a mesma do direito de retenção, estatuído no art. 755º, nº 1, f), do CC, pelo seu crédito derivado do incumprimento de tal contrato, em estrita consonância com o entendimento firmado AUJ nº 4/14, em DR, 1ª série, de 19.5.2014.

IV - Decisão

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

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Custas pela recorrente.

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  Coimbra, 12.1.2016

  Moreira do Carmo ( Relator )

  Fonte Ramos

Maria João Areias