Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
922/16.7T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: INVENTÁRIO
EMENDA À PARTILHA
ERRO DE FACTO
Data do Acordão: 04/04/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - VISEU - JL CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 1386, 1387 CPC
Sumário: 1.A sentença homologatória da partilha, transitada em julgado, põe termo ao inventário.

2.No caso, na falta de acordo, os interessados lesados com aquela, por erro ali ocorrido, com influência no pagamento das tornas, só têm ao seu alcance, para além do recurso extraordinário de revisão, a ação para a emenda da partilha.

Decisão Texto Integral:


Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

M (…), divorciada, instaurou ação contra N (…) divorciada, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de 12.949,79€, acrescida de 2.598,64€, a título de compensação e juros de mora desde a citação até integral cumprimento.

Para tanto, a Autora alega, em síntese:

A Ré foi casada com A (…), sob o regime de comunhão de bens adquiridos, casamento que foi dissolvido por sentença de divórcio que transitou em julgado no dia 19 de janeiro de 2001.

Em 20 de Agosto de 2002, faleceu M (…), mãe do A (…) tendo corrido no Tribunal de Viseu sob o nº 844/2002 o respetivo processo de inventário.

A referida M (...) deixou dois filhos: o A (…) (à data divorciado da Ré) e o AM( …), casado com M (…)

No âmbito desse processo, o cabeça de casal AM (…) identificou o A (…) como casado no regime de comunhão de adquiridos com a Ré.

No referido processo, ficou o interessado A (…) obrigado a pagar ao interessado A (…) a quantia de 25.899,57€ a título de tornas.

Em 18 de março de 2014, o A (…) transmitiu a totalidade do seu crédito de tornas à Autora.

Para cobrança desse valor, a Autora recorreu a ação executiva instaurada contra o referido AM (…), no âmbito da qual este deduziu embargos de executado invocando, para além do mais, que já havia pago à Ré, em 30 de junho de 2004, a quantia de 12.949,79 €, correspondente a metade do valor devido a título de tornas, em cumprimento de despacho proferido nos referidos autos de inventário.

Sabia a Ré que, à data do óbito da M (…) já não era casada com o interessado A (…), tendo aproveitado um lapso do Exmo. Mandatário do Cabeça de casal que a identificou como interessada, quando já não o era.

Sabia a Ré que não tinha qualquer direito à herança deixada por óbito da M (…) mesmo que o regime de casamento fosse o da comunhão.

Mesmo assim, não se coibiu ela de requerer o pagamento das tornas, no caso de metade do valor que o A (…) estava obrigado a pagar ao Afonso.

Desde 2004, ela é detentora ilegítima da quantia de 12.949,79€.

A Ré não deve beneficiar de um ato ilícito que voluntariamente praticou, devendo ser condenada na restituição de tudo de que ilicitamente se apropriou, incluindo os frutos inerentes ao rendimento do capital, rendimento que deverá considerar-se em montante equivalente ao valor dos juros de mora, por prazo mínimo de 5 anos.

Contestou a Ré, em síntese:

Foi casada com A (…) no regime de comunhão geral de bens.

A sentença do seu divórcio transitou em julgado em 29 de janeiro de 2001.

O processo de inventário encontra-se findo e aí não foi suscitada qualquer questão quanto à sua intervenção na qualidade de interessada, tendo sido nessa qualidade que recebeu as tornas que lhe eram devidas.

O interessado A(…) veio a requer emenda à partilha, com anulação de todos os atos praticados após as declarações do cabeça de casal, o que foi indeferido por decisão de 31 de março de 2006.

Não foi instaurada qualquer ação para a emenda à partilha.

A sentença homologatória do mapa de partilha no aludido inventário transitou em julgado muitos anos antes da outorga do documento de transmissão do crédito à Autora.

O interessado A (…) não poderia deixar de saber que apenas lhe cabiam tornas no montante de 12.949,79 € e não podia transmitir crédito de que não era titular.

Foi proferida decisão a julgar a ação improcedente, absolvendo a Ré N (…) do pedido.


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            Inconformada, a Autora recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

1ª - A Ré entrou na posse de um dinheiro que não lhe pertencia.

2ª- O erro derivado na consideração da Ré como interessada na Partilha em causa nos autos não foi suscetível de viciar a vontade das partes no processo de partilha.

3ª- Só o erro com influência no modo como decorreu a partilha é que poderá sustentar o pedido de emenda à partilha a deduzir na competente ação de emenda à partilha, o que não é o caso dos autos.

4ª - A ação de emenda da partilha não tem como função reapreciar a tramitação do inventário, há muito findo, relativamente a atos ou vicissitudes que não se relacionam diretamente com a partilha impugnada.

5ª Não deve a Ré beneficiar de um erro que ela própria cometeu, e intencionalmente, ao considerar-se casada no momento da morte da mãe do A (...) .

6ª Não ocorreu no processo de Inventário qualquer erro quanto à partilha dos bens ou número de herdeiros /interessados.

7ª Existe enriquecimento sem causa da A, à custa do empobrecimento do A (…) que era Herdeiro.

8ª A apreciação do Instituto do Enriquecimento sem causa, consequente à posse indevida dos 12.949,79€, é a solução Jurídica que a Douta decisão não considerou em violação do disposto no artº 608 nº 2.

Pretende-se assim terem sido violadas as normas previstas nos artigos 1386 e 1387 do CPC, bem como os artigos 473 e ss do CC. Termos em que e sempre com o Douto Suprimento de Vs.Exas se pugna pela procedência do presente Recurso, substituindo-se a Douta sentença em crise por outra que Ordene a restituição do valor indevidamente na posse da Ré.


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            Contra-alegou a Ré, defendendo a correção do decidido.

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            Questões a decidir:

           

É possível julgar o erro invocado, sendo necessária a ação de emenda à partilha?  O enriquecimento da Ré não tem causa?


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            Factos a considerar:

A. A Ré contraiu casamento com AM (…) no dia 7 de janeiro de 1962, sem escritura antenupcial, casamento que foi dissolvido por divórcio decretado por sentença de 19 de janeiro de 2001, transitada em julgado em 29 de janeiro de 2001.

B. Em 20 de agosto de 2002, faleceu M (…), tendo corrido termos no 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Viseu, sob o n.º 844/2002, o respetivo processo de inventário.

C. A referida M(…) deixou dois filhos: o referido A (…) (à data do óbito divorciado da Ré) e A (…), casado com M (…).

D. No âmbito do referido processo de inventário, o cargo de cabeça de casal foi desempenhado pelo referido A (…), o qual, ao prestar declarações, identificou o interessado A (…) como casado no regime de comunhão de adquiridos com a Ré N (…).

E. Por efeito das licitações que tiveram lugar em sede em conferência de interessados, realizada no âmbito do referido processo de inventário, o interessado A (…) e respetiva mulher ficou obrigado ao pagamento ao interessado A (…)e respetiva mulher (assim identificada no âmbito dos autos) a quantia de 25.899,57€ a título de tornas.

F. Na pendência do referido processo de inventário, A (…) não reclamou o pagamento das tornas, tendo vindo a transmitir o seu direito a tornas à Autora por declaração datada de 18 de março de 2014.

G. Por sua vez, a Ré, na qualidade de interessada, requereu o pagamento de tornas, concretamente, metade da referida quantia de 25.899,57 €, as quais lhe foram pagas em 30 de junho de 2014.

H. O referido processo de inventário já se encontra findo.

I. No âmbito da ação executiva n.º 4496/14.5T8VIS da Secção de Execução J1 da Instancia Central da Comarca de Viseu, em que a aqui Autora aí assume a posição de Exequente e A (…) a de Executado, este deduziu embargos de executado, invocando, para além do mais, que já havia pago à Ré a quantia de 12.949,79

€ a título de tornas a esta devidas, em cumprimento do judicialmente ordenado no âmbito do processo de inventário acima aludido. Na sequência, foi proferida, em 24 de junho de 2015, decisão que indeferiu liminarmente a pretensão da Exequente quanto à totalidade do valor reclamado, considerando-o reduzido à quantia de 12.949,79 euros, correspondente a metade do valor fixado a título de tornas naquele processo.

J. Por requerimento entrado em 15 de fevereiro de 2005, o interessado A (…) requereu, no âmbito do referido processo de inventário, emenda à partilha, o que foi indeferido por decisão de 31 de março de 2006 por não se encontrarem reunidos os pressupostos legais, concretamente, não haver acordo de todos os interessados.


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A Ré recebeu o valor em questão, a título de tornas, por força do decidido no referido processo de inventário.

Assim, o pedido da Autora esbarra no caso julgado.

E, ao contrário do defendido por esta, o enriquecimento da Ré tem uma causa, aquele processo de inventário.

A Autora invoca o erro derivado da consideração da Ré como interessada na partilha, quando, afinal, esta já não era casada com o herdeiro no momento da abertura da sucessão.

É possível julgar e decidir, agora e aqui, sobre este erro? Como superar a barreira do caso julgado?

Dispõe o artigo 1386º, n.º 1, do Código de Processo Civil (então aplicável) que “a partilha, ainda depois de passar em julgado a sentença, pode ser emendada no mesmo inventário por acordo de todos os interessados ou dos seus representantes, se tiver havido erro de facto na descrição ou qualificação dos bens ou qualquer outro erro susceptível de viciar a vontade das partes”.

            E o seu artigo 1387º, n.º 1: “Quando se verifique algum dos casos previstos no artigo anterior e os interessados não estejam de acordo quanto à emenda, pode esta ser pedida em acção proposta dentro de um ano, a contar do conhecimento do erro, contanto que este conhecimento seja posterior à sentença. 2 - A acção destinada a obter a emenda segue processo ordinário ou sumário, conforme o valor, e é dependência do processo de inventário.”

           

Neste particular, ensina Lopes Cardoso (Partilhas, vol.II, Almedina, 1990, páginas 545 e seguintes):

            “Em princípio a sentença homologatória da partilha, transitada em julgado, põe termo ao inventário. Pode suceder, porém, que a partilha tenha lesado os interessados; estes, para se ressarcirem dos prejuízos, que, porventura, sofreram por via disso, só têm ao seu alcance, para além do recurso extraordinário de revisão, três meios específicos:

            a) A emenda da partilha por acordo de todos eles;

            b) Na falta de tal acordo, a acção para a emenda da partilha proposta dentro de um ano a contar do conhecimento do erro;

            c) A ação para a anulação da partilha judicial.

            Será, portanto, inidóneo o meio processual visando o referenciado objectivo que se estruture nos princípios do enriquecimento sem causa”…

No mesmo sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça referido pela decisão recorrida (de 02.03.2011, no processo n.º 1-K/1996.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt).

Ao contrário do defendido pela Recorrente, o erro derivado da consideração da Ré como interessada na partilha viciou os juízos do cabeça de casal e do próprio tribunal, no que diz respeito ao direito dela a metade das tornas que eram devidas ao herdeiro Afonso.

E, de qualquer maneira, a noção de erro pensada pela lei tem um conteúdo mais alargado do que o limitado pela Recorrente.

Novamente, Lopes Cardoso, na citada obra, expressa que o “erro susceptível de viciar a vontade das partes é uma fórmula muito ampla, abrange uma generalidade de erros”...

No caso, no inventário em questão, porque a Ré foi considerada como casada com o herdeiro, no momento da abertura da sucessão, o que constitui um erro de facto, ela foi tida por interessada na partilha. O erro viciou o juízo de todos, as decisões tomadas e determinou o pagamento à mesma de parte do objeto a partilhar, na forma de tornas devidas.

            Sendo assim, sem prejuízo do recurso extraordinário de revisão, porque os interessados não estão de acordo com a emenda, esta só pode/deve ser pedida em ação proposta dentro de um ano, a contar do conhecimento do erro, contanto que este conhecimento seja posterior à sentença.

Enquanto não ocorrer a emenda à partilha, a posição da Ré está suportada no processo de inventário, com decisão transitada em julgado e, logo, o enriquecimento da mesma tem uma causa (judicial).

Assim, a presente ação não pode deixar de improceder, não merecendo censura a decisão recorrida.


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Decisão.

            Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

            Custas pela Recorrente.

            Coimbra, 2017-04-04

Fernando Monteiro ( Relator )

António Carvalho Matins

Carlos Moreira