Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
686/10.8TBCNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO
PRIVAÇÃO DO USO
Data do Acordão: 05/15/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CANTANHEDE 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTS.483, 562, 563, 566, 1305 CC
Sumário: 1. A privação do uso de uma coisa pode constituir um ilícito gerador da obrigação de indemnizar, uma vez que impede o seu dono do exercício dos direitos inerentes à propriedade, i. é, de usar, fruir e dispor do bem conforme a previsão do art.º 1305º, do Código Civil.

2. Não é suficiente, todavia, a simples privação do uso da coisa, tornando-se necessário que o lesado alegue e prove a frustração do propósito real – concreto e efectivo – de proceder à sua utilização.

3. Quando a privação do uso recaia sobre um veículo automóvel, danificado num acidente de viação, bastará que resulte dos autos que o seu proprietário o usaria normalmente para que possa exigir-se do lesante uma indemnização a esse título, sem necessidade de provar directa e concretamente prejuízos efectivos.

4. A avaliação do dano em causa, se outro critério não puder ser adoptado, será determinada pela equidade, dentro dos limites do que for provado, nos termos estabelecidos no art.º 566º, n.º 3, do Código Civil.

5. Se o bem danificado sair da esfera patrimonial do lesado, a partir de então, o valor consubstanciado na sua utilização deixa de estar na disponibilidade deste.

Decisão Texto Integral:             Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. E (…) intentou, no Tribunal Judicial de Cantanhede, a presente acção declarativa, sob a forma de processo sumário, contra Companhia de Seguros B (...) S. A., pedindo que a mesma seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 22 271,69, os respectivos juros moratórios desde a citação até efectivo pagamento e o acréscimo de 5 % nos termos do n.º 4 do art.º 829º-A, do Código Civil (CC), a título de indemnização pelos danos patrimoniais decorrentes de um acidente de viação ocorrido a 15.7.2007 e no qual intervieram os motociclos com as matrículas ...ZX e ...AB, o primeiro pertença do A. e conduzido por um seu irmão, cabendo ao condutor do segundo, segurado na demandada, a total responsabilidade pela sua produção.

Alegou ainda, nomeadamente, que, por força do embate, o veículo ZX ficou inapto para circular e que, entre outros danos, sofreu a privação de uso de veículo, sendo-lhe devida, a esse título, uma indemnização de € 16 350 correspondente ao período de 16.7.2007 até à data da propositura da acção (10.7.2010), e que rejeitou a reparação proposta pela Ré porque a mesma compreendia a inclusão de uma panela de escape de qualidade inferior à que o motociclo ZX apresentava antes do acidente.

A Ré contestou impugnando os factos alegados pelo A. e considerou que o caso devia ser julgado em função da prova a produzir.

Foi proferido despacho saneador e seleccionou-se, sem reparo, a matéria de facto (assente e controvertida).

Realizada a audiência de discussão e julgamento e decidida a matéria de facto, o tribunal recorrido julgou a acção procedente, por provada e, em consequência, condenou a Ré a pagar ao A., a título de indemnização, as quantias de € 5 425,59 (cinco mil, quatrocentos e vinte e cinco euros e cinquenta e nove cêntimos) pela reparação do motociclo ZX, € 496,10 (quatrocentos e noventa e seis euros e dez cêntimos) pelo parqueamento do motociclo ZX no “Stand” pelo período que o mesmo aí esteve a aguardar reparação e € 16 350 (dezasseis mil, trezentos e cinquenta euros) pela privação do uso do mesmo motociclo, bem como os peticionados juros moratórios.

Inconformada, a Ré interpôs recurso de apelação formulando as conclusões que assim vão sintetizadas:

1ª – Não resulta provado que o recorrido tenha sofrido qualquer prejuízo atinente a um eventual aluguer ou sequer que tenha alugado um veículo de substituição, prejuízo que lhe cabia provar e que aparentemente não teve.

2ª – Tendo sempre presente que o apelado nunca alugou qualquer viatura durante o período de imobilização do ZX, deverá o Tribunal ad quem, no mínimo, reduzir essa quantia para metade.

3ª – Atendendo à Lei do Seguro Obrigatório e ao teor da carta da apelante datada de 21.12.2007, esta apenas poderá ser responsabilizada pelo pagamento ao recorrido, a título de privação do uso do ZX, do prejuízo sofrido relativo ao período compreendido entre a data do sinistro e 24.12.2007 (terceiro dia posterior à “notificação” enviada pela apelante ao apelado).

4ª – Da sentença recorrida decorre também que o apelado apenas “…pontualmente, peticionou boleias nas suas necessárias deslocações para afazeres pessoais e profissionais…”, donde se conclui que a recorrente nunca poderá ser condenada a pagar-lhe uma indemnização relativa a um período ininterrupto.

5ª – Da leitura da certidão emitida pela Conservatória dos Registos Comercial e de Automóveis de Coimbra, junta aos autos em 08.3.2011 pelo recorrido, resulta por um lado que o ZX, à data do sinistro, era propriedade do recorrido e, por outro lado, que este veículo foi vendido pelo apelado, pelo menos, em 15.12.2008, a (…) sendo que este segundo facto foi ignorado pelo Tribunal a quo.

6ª – Pelo menos a partir de 15.12.2008, o recorrido não poderia ter tido qualquer prejuízo a título de privação do uso (do ZX), pelo que, pelo menos neste ponto, se impõe a revogação da sentença recorrida.

7ª – Verificou-se comportamento desleal do recorrido, que não obstante saber que já não era o proprietário do ZX desde Dezembro de 2008 veio, no articulado inicial apresentado em 10.7.2010, reclamar um prejuízo que sabia que não tinha (nem poderia ter) sofrido…, o que deveria ter sido apreciado pelo Mm.º Juiz, nomeadamente no que diz respeito à condenação do recorrido, pelo menos em multa, como litigante de má fé.

8ª – A sentença recorrida violou, entre outros, o preceituado nos art.ºs 562º, 563º, 564º e 566º, do CC, e 266º-A e 456º, do Código de Processo Civil (CPC).

O A. respondeu à alegação de recurso pugnando pela confirmação da sentença.

            Atento o referido acervo conclusivo [delimitativo do objecto do recurso - art.ºs 684º, n.º 3 e 685º-A, n.ºs 1 e 3, do CPC, na redacção conferida pelo DL n.º 303/07, de 24.8], importa saber: se e em que medida é indemnizável a privação do uso do motociclo ZX; se é de atender a ora invocada litigância de má fé, para efeitos de condenação em multa.


*

II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

            a) No dia 15.7.2007, pelas 16:50 horas, ao km 27,088, da Auto-Estrada denominada “A14” entre Coimbra e Figueira da Foz, conduzia (…) o motociclo com a matrícula ...ZX no sentido Coimbra/Figueira da Foz, quando, subitamente, o condutor do motociclo com a matrícula ...AB foi embater frontalmente na traseira daquele veículo que não pôde esquivar-se ao embate. (A)

b) A via no local é de traço recto, com duas faixas de rodagem no sentido de marcha do veículo ZX e duas no sentido inverso, existindo no meio da via, separando os dois sentidos de marcha, uma zona de separador central. (B)

c) Aquando do embate o tempo estava bom e seco. (C)

d) O embate ocorreu à luz de pleno dia, havendo extensa visibilidade. (D)

e) O condutor do veículo AB galgou com a roda do seu veículo a traseira do motociclo ZX, batendo com a parte da frente do veículo por si conduzido na parte de trás do veículo ZX, tendo o embate ocorrido na faixa esquerda, no sentido de rodagem em que circulava este veículo. (E)

f) Por causa do embate, o condutor do veículo AB perdeu o seu controlo, tendo caído na faixa de rodagem por onde deslizou até embater nos prumos de suporte das barras do separador central enquanto que o motociclo deslizou descontrolado até embater nos prumos de suporte das barras laterais de protecção do lado direito onde ficou imobilizado em estado de destruição total. (F)

g) O condutor do motociclo AB conduzia no momento do embate com uma taxa de álcool de sangue de 0,41g/l. (1º)

h) Por força do embate o veículo ZX ficou inapto para circular. (I)

i) À data do embate o ZX estava praticamente novo, com 8 585 km percorridos e estava afecto às necessidades pessoais e profissionais do A.. (2º)

j) O motociclo ZX tinha um escape completo em titânio da própria marca “Susuki”, do modelo “GSXR 1000”, cujo valor comercial, no ano de 2006, era de € 2 939,08 a que acrescentaria o IVA à taxa de 21 %. (4º)

k) O valor da reparação do motociclo ZX fixa-se em € 4 483,96 a que acresce o IVA à taxa legal de 21 %, perfazendo o montante de € 5 425,59. (6º)

l) Por carta datada e de 21.12.2007, a Ré transmitiu ao gerente da oficina onde o motociclo se encontrava que se responsabilizava pela reparação do ZX e que desse início aos trabalhos de reparação, por sua conta. (16º)

m) Por carta datada de 21.12.2007, a Ré, reportando-se ao embate ocorrido no dia 15.7.2007, referente ao veículo ZX, declarou:

“De acordo com os elementos de que dispomos, cumpre-nos informar que nos encontramos a assumir a responsabilidade pela regularização dos danos decorrentes do presente sinistro.

Todavia, de acordo com a Lei do Seguro Obrigatório – Decreto-Lei n.º 522/85 – e embora o pagamento venha a ser assumido por esta seguradora, compete ao proprietário autorizar previamente a reparação, pelo que, caso ainda não o tenha feito, agradecemos que contacte a oficina nesse sentido.” (H)

n) Para completa reparação e entrega da mencionada viatura eram necessários três dias desde que estivessem em stock as peças necessárias à reparação. (resposta ao art.º 18º)

o) Após peritagem promovida pela Ré, esta considerou, atentos os danos no veículo, o valor de € 3 938,21 como o custo efectivo da reparação. (J)

p) O valor do conjunto das peças necessárias para a completa reparação do veículo ZX, acrescido da necessária mão-de-obra das diversas artes, ascendia ao montante global de € 3 938,21 (IVA incluído). (14º)  

 q) Tal montante corresponde a uma reparação com recurso à utilização de peças da marca, para o modelo e ano de fabrico do referido motociclo. (resposta ao art.º 15º)

r) O Autor rejeitou a reparação proposta pela Ré. (L)

s) A Ré fez uma avaliação do valor total da reparação do motociclo ZX com a inclusão de uma panela de escape de qualidade inferior à que o veículo apresentava antes do acidente. (resposta ao art.º 3º)

t) A Ré ignorou os alertas e posteriores reclamações do A. e sua procuradora, querendo reparar o veículo ZX com uma panela de escape cujo valor foi orçado em € 1 487,69, de qualidade inferior ao sistema de escape que o motociclo tinha. (5º)

u) O A. reclamou junto da Ré a disponibilização dum veículo (motociclo) de substituição. (resposta ao art.º 8º)

v) A Ré não disponibilizou ao A. um veículo de substituição nem lhe entregou qualquer quantia a título de indemnização. (M)

w) 15 €/dia constitui o valor referente ao custo de aluguer de um motociclo com as mesmas características do veículo ZX. (N)

x) O A. despendeu a quantia de € 496,10 com o parqueamento da viatura no “ S...” em Antanhol, Coimbra, devido ao período temporal que ali esteve parada a aguardar reparação. (7º)

y) O motociclo ZX era o único meio de transporte do A., fazendo dele um uso diário nas suas deslocações, designadamente Aveiro e Lisboa. (resposta ao art.º 9º)

z) Em consequência do embate o A. teve que socorrer-se de alguns amigos e familiares, a quem ficou a dever favores pois, pontualmente, peticionou boleias nas suas necessárias deslocações para afazeres pessoais e profissionais. (10º)

aa) Em consequência do embate o A. viu-se forçado a alterar a planificação do seu horário, levantando-se mais cedo e chegando a casa mais tarde do que acontecia antes do embate, com isso perdendo descanso. (resposta ao art.º 11º)

bb) Em consequência do embate o A. viu-se muitas vezes impedido, por estar desprovido do seu único meio de transporte, de realizar deslocações lúdicas, de visitar os seus familiares e de ir às aulas. (resposta ao art.º 12º)

cc) Em consequência do embate o A. sentiu revolta, angústia e perturbação. (resposta ao art.º 13º)

dd) Por intermédio da apólice n.º 0001445618 foi transferida para a Ré a responsabilidade pelos danos causados a terceiros emergentes da utilização do veículo AB. (G)

ee) À data do embate referido em II. 1. a), a propriedade do veículo ZX, marca “Suzuki”, encontrava-se registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Automóveis de Coimbra a favor do A. (cf. documento de fls. 83 e seguinte).

2. No caso vertente não se questiona a responsabilidade pela produção do sinistro e consequente reparação dos danos sobrevindos, tendo em conta a transferência da responsabilidade decorrente da circulação do motociclo AB consubstanciada no contrato de seguro celebrado com a demandada.

A principal questão subsistente prende-se com a problemática da indemnização pela privação do uso do motociclo ZX, a respeito da qual a jurisprudência não tem sido uniforme.

3. A obrigação de indemnizar tem como finalidade precípua a remoção do dano causado ao lesado.

Por isso, prescreve o art.º 562º, do CC, que quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.

O nosso legislador acolheu prioritariamente a via da reconstituição natural (art.º 566º, n.º 1, do CC) e, sempre que a indemnização é fixada em dinheiro, determina que se fixe por referência à medida da diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos (art.º 566º, n.º 2, do CC).

No caso de acidente de viação o responsável é obrigado a reparar o veículo danificado (o dano emergente – prejuízo causado), a não ser que tal reparação seja impossível ou se apure ser excessivamente onerosa (art. 566º, n.º 1 do C.C.).

Todavia, tal reconstituição natural (sendo possível e não excessivamente onerosa) poderá não se mostrar suficiente para reparar integralmente os danos sofridos pelo lesante – sejam danos emergentes, sejam lucros cessantes (art.º 564º, n.º 1, do CC).

Na verdade, no período em que o veículo está imobilizado até à integral reparação dos estragos sofridos, o lesado ficará privado de usar, fruir e gozar coisa de sua propriedade.

Esta privação do uso do veículo traduz uma lesão directa do direito de propriedade do lesado.

Vendo-se o lesado impossibilitado de fruir e gozar bem de sua propriedade, de retirar dele as utilidades que presidiram à sua aquisição, tem de afirmar-se a existência de uma lesão num direito absoluto (a primeira modalidade de ilicitude a que alude o art.º 483º, do CC), lesão essa cuja causa adequada é ainda o evento gerador da obrigação de indemnizar (o acidente de viação).

4. Relativamente à questão da ressarcibilidade autónoma do dano da privação do uso, uma perspectiva claramente minoritária tem entendido que a indemnização pela privação do uso de certo bem, designadamente um veículo automóvel, depende da prova do dano concreto, ou seja, da concretização e demonstração dos prejuízos decorrentes directamente da não utilização do bem [a mera privação do uso de um veículo automóvel resultante da sua paralisação em resultado de estrago em acidente de viação, sem repercussão negativa no património do lesado em termos de dano específico emergente ou cessante, é insusceptível de fundar a obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil], enquanto outros, maioritariamente, sustentam que a simples privação do uso, por si só, constitui um dano indemnizável, independentemente da utilização que se faça, ou não, do bem em causa durante o período da privação.

No desenvolvimento e afirmação desta segunda perspectiva, que se perfilha, considera-se que sempre será necessário provar o dano, mas não exactamente nos termos defendidos pela primeira teoria acima referida, pois que não haverá dúvidas sérias de que a privação injustificada do uso de uma coisa pelo respectivo titular, pode constituir um ilícito susceptível de gerar obrigação de indemnizar, uma vez que, na generalidade dos casos, impedirá o seu proprietário do exercício dos direitos inerentes à propriedade.

Estamos, pois, com aqueles que, partindo do princípio de que a privação do uso de uma coisa pode constituir um ilícito gerador da obri­gação de indemnizar - uma vez que impede o seu dono do exercício dos direitos inerentes à propriedade, isto é, de usar, fruir e dispor do bem nos termos genericamente consentidos pelo art.º 1305º, do CC -, consideram, no entanto, que a privação do uso é condição necessária, mas não suficiente, da existência de um dano corres­pondente a essa realidade de facto, porquanto “podem ...configurar-se situações da vida real em que o titular da coisa não tenha interesse algum em usá-la, não pretenda dela retirar as utilidades que aquele bem normalmente lhe podia proporcionar (o que até constitui uma faculdade inerente ao direito de propriedade), ou pura e sim­plesmente não usa a coisa; (…) se o titular se não aproveita das vantagens que o uso normal da coisa lhe proporcionaria, também não poderá falar-se de prejuízo ou dano decorrente da privação do uso, visto que, na circunstância, não existe uso, e, não havendo dano, não há, evidentemente, obrigação de indemnizar; (…) competindo ao lesado provar o dano ou prejuízo que quer ver ressarcido, não chega alegar e provar a privação da coisa, pura e simplesmente, mostrando-se ainda necessário, que o A. alegue e demonstre que pretendia usar a coisa, ou seja, que dela pretende retirar as utilidades (ou algumas delas) que a coisa normalmente lhe proporcionaria se não estivesse dela privado pela actuação ilícita do lesante; (…) quando a privação do uso recaia sobre um veículo automóvel danificado num acidente de viação, bastará que resulte dos autos que o seu proprietário o usaria normalmente (o que na gene­ralidade das situações concretas constituirá facto notório ou poderá resultar de presunções naturais a retirar da factualidade provada) para que possa exigir-se do lesante uma indemnização a esse título, sem necessidade de provar directa e concretamente prejuízos efectivos, como, por exemplo, que deixou de fazer esta ou aquela viagem de negócios ou de lazer, que teve de utilizar outros meios de transporte (táxi, transportes públicos, automóvel alugado, etc.) com o custo cor­respondente; (…) se puder ter-se por provado que o proprietário lesado utilizava na sua vida corrente e normal o veículo sinistrado, ficando privado desse uso ordinário em consequência dos danos sofridos pela viatura no aci­dente, provado está o prejuízo indemnizável durante o período de privação, ou, tratando-se de inutilização total, enquanto não for indemnizado da sua perda nos termos gerais. É neste contexto que dizemos que a privação do uso, constitui, por si, um prejuízo indemnizável”.[1]

Assim, para efeito de atribuição de indemnização pela privação do uso não será de exigir a prova de danos efectivos e concretos, mas a ressarcibilidade também não pode ser apreciada e resolvida em abstracto, aferida pela mera impossibilidade objectiva de utilização da coisa (independentemente de que a utilização tenha ou não lugar durante o período de privação), emergindo como critério de atribuição do direito à indemnização a demonstração no processo que, não fora a privação, o lesado usaria normalmente a coisa, vendo frustrado esse propósito - a simples verificação de que a impossibilidade de fruição de um bem próprio, em consequência de uma actuação ilícita de outrem, determina um corte temporal no legítimo direito de fruição; verificando-se uma lacuna de natureza patrimonial, correspondente à fatia de poderes de que o proprietário ficou privado, é com naturalidade que deve ser encarada a atribuição de uma compensação monetária, face à constatação de que o simples reconhecimento da ilegitimidade da privação e a condenação na restituição do bem são insuficientes para repor a situação do lesado no estado em que se encontraria caso não tivesse existido tal privação; se a privação do uso do bem durante um determinado período origina a perda das utilidades que o mesmo era susceptível de proporcionar e se tal perda não pode ser reparada mediante a forma natural de reconstituição, impõe-se que o responsável compense o lesado na medida equivalente; considerando que o direito de propriedade integra, como um dos seus elementos fundamentais, o poder de exclusiva fruição, e que isso envolve até o direito de não usar, a privação do uso reflecte o corte definitivo e irrecuperável de uma “fatia” desses, justificando-se, assim, o ressarcimento que supra a modificação negativa que a privação do uso determina na relação entre o lesado e o seu património.[2]

5. Na situação dos autos ficou provado, designadamente, que o acidente ocorreu a 15.7.2007; por força do embate o veículo ZX ficou inapto para circular; este veículo, praticamente novo, estava afecto às necessidades pessoais e profissionais do A.; pelas razões supra referidas, o A. recusou a reparação proposta pela Ré, em Dezembro de 2007; o A. reclamou junto da Ré a disponibilização dum veículo (motociclo) de substituição; a Ré não disponibilizou ao A. um veículo de substituição nem lhe entregou qualquer quantia a título de indemnização; 15 €/dia constitui o valor referente ao custo de aluguer de um motociclo com as mesmas características do veículo ZX; o motociclo ZX era o único meio de transporte do A., fazendo dele um uso diário nas suas deslocações; em consequência do embate o A. teve que socorrer-se de alguns amigos e familiares, pois, pontualmente, peticionou boleias nas suas necessárias deslocações para afazeres pessoais e profissionais; em consequência do embate o A. viu-se forçado a alterar a planificação do seu horário, levantando-se mais cedo e chegando a casa mais tarde do que acontecia anteriormente, com isso perdendo descanso, e viu-se muitas vezes impedido, por estar desprovido do seu único meio de transporte, de realizar deslocações lúdicas, de visitar os seus familiares e de ir às aulas; em consequência do embate o A. sentiu revolta, angústia e perturbação; à data do embate, a propriedade do veículo ZX encontrava-se registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Automóveis a favor do A. [cf., sobretudo, II. 1. alíneas a), h), i), s), t), u), v), w), y), z), aa), bb), cc) e ee), supra].

Resulta da mesma certidão da Conservatória dos Registos Comercial e de Automóveis, junta a fls. 83, nomeadamente, que, em 15.12.2008, a propriedade do aludido motociclo passou a estar registada a favor de CA... e, a partir de 23.10.2009, de (…) (melhor identificados a fls. 84).

A 1ª instância acolheu todo o pedido relativo ao dano da privação do veículo invocado pelo A. na petição inicial [indemnização de € 16 350 correspondente ao período de 16.7.2007 até à data da propositura da acção], e, como vimos, a Ré insurge-se contra o montante indemnizatório fixado, aduzindo, por um lado, alguns dos argumentos próprios da tese minoritária supra referida e, por outro lado, em diverso enquadramento, designadamente, a circunstância de o veículo ter sido entretanto alienado pelo A., pelo que não fará sentido a atribuição de qualquer valor a partir do momento dessa alienação.

Sem quebra do devido respeito por entendimento contrário e na falta de outros elementos [v. g., desconhece-se se e quando o A. adquiriu um novo veículo para as suas deslocações e quaisquer factos relativos às circunstâncias da dita alienação], pensamos que, quanto a este ponto, deverá ser atendida a posição da recorrente: a indemnização pela privação do uso do motociclo em questão apenas deverá compreender o período decorrido desde a data do acidente (15.7.2007) até à data do registo da sua alienação (15.12.2008).

Cabia à Ré proceder à reparação do veículo - que era possível -, na forma exigida pelo A., ficando responsável pelo ressarcimento dos danos inerentes à paralisação do veículo até que a reparação viesse a ter lugar; face ao impasse verificado quanto à forma de proceder à reparação, permaneceu a mesma responsável pelos danos decorrentes da não reparação, inclusive, o relativo à privação do uso do bem em causa.

Contudo, atendendo a que a autonomização da indemnização da privação do uso do veículo, pressupõe a existência do mesmo, a seguradora apenas deverá responder pelos danos causados no veículo e decorrentes da paralisação (privação do uso) até à comprovada data da sua alienação, pois, se é certo que é o lesante quem responde pelo agravamento dos danos derivados da demora da reparação do veículo, tendo o bem danificado saído da esfera patrimonial do A., o valor consubstanciado na sua utilização deixou igualmente de estar na sua disponibilidade.[3]

6. Na situação em análise há que reconhecer o direito do A. a uma indemnização pela privação do uso porque ficou provado que a recorrente não lhe facultou um veículo de substituição na sequência do sinistro e a existência do necessário nexo causal entre o facto lesivo (o acidente) e o dano (a privação do uso), tal como se encontra definido no art.º 563º, do CC, segundo o qual “a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”, sendo que o A. demonstrou que usava o motociclo sinistrado como se indica em II. 1. e 5, supra, importando, assim, indemnizar adequadamente aquela impossibilidade de usar a coisa por virtude da conduta ilícita do lesante, com a limitação temporal supra referida.

Quando, porém, a prova se resuma a factos como os acima indicados, tem-se entendido que o critério a seguir no cômputo da indemnização deve ser o estabelecido no art.º 566º, n.º 3, do CC, de harmonia com o qual “se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equita­tivamente dentro dos limites que tiver por provados”.

Daí que, em situações similares à dos autos, tenha vindo a ser adoptado o entendimento de que o prejuízo há-de ser ressarcido atribuindo-se ao lesado o valor correspondente ao custo do aluguer de um veículo do mesmo género e qualidade, sem prejuízo de se utilizarem critérios de equidade se outras circunstâncias concretas aconselharem valor diferente[4]; ou seja, é a figura da equidade que deve ser usada para se atingir a justa medida da indemnização, isto é, para que o lesado seja devidamente compensado pelos prejuízos que sofreu, sem que, contudo, tal se converta num injustificado enriquecimento à custa do agente.[5]

Atenta a factualidade apurada, afigura-se que se justificará atender ao valor diário do custo de aluguer de um motociclo com as mesmas características do veículo ZX e ao período decorrido entre a data do sinistro e a da sua comprovada alienação pelo A., encontrando-se, com estes factores, o montante de € 7 725 [(30 x 5 + 365) x € 15], que temos por equitativo e razoável para a indemnização pela dita privação de uso.

7. Não obstante ter sido notificada da junção do documento de fls. 83 em data anterior à da realização da audiência de discussão e julgamento, a Ré veio no recurso dizer que o A. teve um “comportamento desleal”, porquanto sabia que já não era o proprietário do ZX desde Dezembro de 2008 mas reclamou em juízo “um prejuízo”, decorrente da paralisação do veículo, que “sabia que não tinha (nem poderia ter) sofrido”, o que deveria ter sido apreciado pelo Mm.º Juiz “no que diz respeito à condenação do recorrido, pelo menos em multa, como litigante de má fé”.

Salvo o devido respeito, esta posição da Ré/recorrente já teve o acolhimento possível na diminuição do período a considerar para ressarcimento do dano de privação do uso, não existindo o menor fundamento para o mais requerido na apelação.

Na verdade, no plano adjectivo, verifica-se que a recorrente não formulou em 1ª instância qualquer pedido de condenação por litigância de má fé, a parte contrária não foi chamada a pronunciar-se sobre a matéria ou sequer a respeito do conteúdo do mencionado documento e o Tribunal recorrido acolheu o pedido deduzido na acção na sua totalidade, não vendo porventura motivo algum para se pronunciar quanto a eventual litigância de má fé.

Neste enquadramento processual e tendo presente o disposto n.º 3 do art.º 456º, do CPC – nos termos do qual “independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admitido recurso, em um grau, da decisão que condene por litigância de má fé” – este Tribunal encontra-se limitado no conhecimento da matéria, pois, além do mais, inexiste qualquer “decisão” que deva reapreciar e a recorrente não deduziu pedido de indemnização (art.ºs 456º, n.º 1 e 457º, do CPC)[6]

Ademais, visto o lado substantivo da problemática discutida nos autos, a configuração que lhe foi dada nos articulados e as soluções plausíveis da questão de direito[7], não poderemos deixar de afirmar que o vertido no articulado inicial, com a omissão dalguns dos factos constantes do dito documento de fls. 83 e seguinte, não traduz propriamente a “deslealdade” passível de censura nos termos e para os efeitos do art.º 456º, do CPC.

            Tanto basta para concluir pela insubsistência desta pretensão/posição da Ré.

8. São assim parcialmente atendíveis as “conclusões” da alegação de recurso, com a consequente alteração do decidido no tocante ao montante da indemnização pelo dano de privação do uso do motociclo.


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III. Pelo exposto, na parcial procedência da apelação, vai a Ré condenada a pagar ao A. a quantia de € 7 725 (sete mil setecentos e vinte e cinco euros) a título de indemnização pelo dano consistente na privação do uso do veículo ZX, revogando-se, nessa parte, a decisão recorrida, e mantendo-se no mais o decidido.

Custas da apelação e da acção, por A. e Ré, na proporção do decaimento.


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Fonte Ramos ( Relator )

Carlos Querido

Virgílio Mateus



[1] Cf., de entre vários, perfilhando o entendimento maioritário, os acórdãos do STJ de 29.11.2005, 09.12.2008-processo 08A3401, 12.01.2010-processo 314/06.6TBCSC.S1, 09.3.2010-processo 1247/07.4TJVNF.P1.S1, 16.3.2011-processo 3922/07.2TBVCT.G1.S1, 03.5.2011-processo 2618/08.06TBOVR.P1.S1, 28.9.2011-processo 2511/07.8TACSC.L2.S1, 15.11.2011-processo 6472/06.2TBSTB.E1.S1 e 10.01.2012-processo 189/04.0TBMAI.P1.S1, publicados, à excepção do primeiro, no “site” da dgsi [os dois primeiros publicados na CJ-STJ, XIII, 3, 151 e XVI, 3, 179, respectivamente].
    Na doutrina vide, nomeadamente, Júlio Gomes, in Cadernos de Direito Privado, n.º 3, páginas 52 e seguintes e A. Abrantes Geraldes, in Temas da Responsabilidade Civil, Vol. I, “Indemnização do Dano da Privação do Uso”.
   Relativamente àquela primeira corrente de entendimento (minoritária) cf., entre outros, os acórdãos do STJ de 04.10.2007-processo 07B1961, 30.10.2008-processo 08B2662 e 30.10.2008-processo 07B2131, publicados no “site” da dgsi.
[2] Cf. o acórdão da RL de 23.10.2007-processo 8457/2007-7, publicado no “site” da dgsi, relatado por A. Abrantes Geraldes.
[3] Cf., neste sentido, o acórdão do STJ de 04.11.2004-processo 04B2959, publicado no “site” da dgsi.
[4] Cf., de entre vários, os citados acórdãos do STJ de 09.12.2008-processo 08A3401 e 03.5.2011- processo 2618/08.06TBOVR.P1.
[5] Cf. o citado acórdão da RL.
[6] Cf., a propósito, a situação do acórdão do STJ de 29.4.2010-processo 46/10- OYFLSB, publicado no “site” da dgsi.
[7] Cf., nomeadamente, o propugnado nos seguintes arestos, já citados, do STJ: acórdãos de 04.11.2004-processo 04B2959 [cf., supra, ponto II. 5], 16.3.2011-processo 3922/07.2TBVCT.G1.S1 [no qual se afirma que a responsabilidade pelo dano correspondente à privação do uso do veículo “só termina com o pagamento integral do valor do veículo destruído no acidente”] e de 15.11.2011-processo 6472/06.2TBSTB.E1.S1 [ao defender-se que “só com a reparação ou com a indemnização cessará o dano, e, por isso, só nessa altura pode deixar de falar-se em privação do uso”].