Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1277/04.8PBFIG-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: PENA DE SUBSTITUIÇÃO
REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DAS PENAS
TRIBUNAL DA CONDENAÇÃO
Data do Acordão: 05/20/2015
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: COIMBRA (INSTÂNCIA LOCAL CRIMINAL DA FIGUEIRA DA FOZ - J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: CONFLITO (NEGATIVO) DE COMPETÊNCIA
Decisão: ATRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIA
Legislação Nacional: ART. 44.º DO CP; ART. 1.º E SS. DO CÓDIGO DA EXECUÇÃO DAS PENAS E MEDIDAS PRIVATIVAS DA LIBERDADE
Sumário: I - A intervenção do TEP está materialmente circunscrita a actos relativos à execução de penas e medidas privativas da liberdade em estabelecimentos prisionais.

II - Em conformidade, o controlo/acompanhamento do regime de permanência na habitação cabe, não ao TEP, mas sim ao tribunal da condenação.

Decisão Texto Integral:
I. Relatório:

Nos autos de processo comum n.º 1277/04.PBFIG, a correr termos na Secção Criminal da Instância Local da Figueira da Foz (Comarca de Coimbra), o Sr. Juiz em exercício de funções na referida Instância Local suscitou a resolução de conflito de competência entre o próprio e o Sr. juiz do Tribunal de Execução das Penas de Coimbra, porquanto ambos se atribuem reciprocamente competência, negando a própria, para o controlo/acompanhamento do cumprimento do regime de permanência na habitação imposto ao condenado A....

Cumprido o disposto no artigo 36.º, n.º 1, do CPP, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer, no sentido de a competência para o fim acima indicado pertencer à Instância Local da Figueira da Foz; igual entendimento manifestou o Sr. Juiz do TEP.


*

II. Fundamentação:

A) Elementos relevantes:

1. Com data de 17-03-2015, o Sr. Juiz do TEP de Coimbra lavrou despacho deste teor (transcrição, parcial mas suficiente):

«(…).

Partilha-se do entendimento de que inexiste a possibilidade de eventual concessão de liberdade condicional à pena executada em regime de permanência na habitação.

(…).

Aliás, da letra da lei até decorre que são diferentes as entidades a quem cabe controlar a execução de cada uma das citadas penas: o cumprimento da pena de prisão efectiva é controlada pelo Tribunal de Execução de Penas, a prisão, a ser cumprida na habitação, deve ser acompanhada pelo tribunal da condenação.

(…).

Ora, tal significa que, tendo o recluso para cumprir uma pena a executar em regime de permanência na habitação, deverá o Tribunal da condenação diligenciar pela instalação dos meios técnicos de vigilância electrónica, nos termos do estatuído no art. 19.º da Lei 33/2010, de 2 de Setembro - sendo em tal momento que se inicia a pena em causa - tanto mais que, na decisão que concedeu a liberdade condicional, já se mostra fixada ao condenado determinada residência, de onde o mesmo se não pode ausentar por mais de 5 dias, sem prévia autorização do TEP.

(…)».

2. Em 26-03-2015, o mesmo Magistrado Judicial, complementando aquele despacho, exarou no processo o abaixo consignado:

«Como decorre da leitura da decisão de fls. 316 e seg., este Tribunal considera-se incompetente para acompanhar a execução da pena a executar em regime de permanência na habitação, na medida em que entende que o instituto da liberdade condicional não é aplicável àquele regime».

3. Por sua vez, o Sr. Juiz da Instância Local Criminal já individualizada proferiu, no dia 14-04-2015, o despacho que se passa a reproduzir:

«Declarou-se o Tribunal de Execução de Penas incompetente a fls. 542 para o acompanhamento da execução da pena a materializar em regime de permanência na habitação em virtude de se entender que o instituto da liberdade condicional não lhe é aplicável.

Sucede que também este Tribunal não se pode assumir como competente para tal labor. O que se afirma em função do disposto nos artigos 38.º, n.º 2, do Código de Execução de Penas e Medidas de Segurança, e 114.º, n.º 1, da Lei de Organização do Sistema Judiciário.

Note-se que tais preceitos deferem ao Tribunal de Execução de Penas a obrigação de acompanhar e fiscalizar a execução da pena ou medida privativa da liberdade e decidir da sua modificação, substituição e extinção. Importa, ademais, atentar que tal competência não se restringe à privação da liberdade materializada nos estabelecimentos prisionais ou destinados ao internamento de inimputáveis. É que o n.º 1 do artigo 114.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário ou o n.º 2 do artigo 138.º do Código de Execução das Penas e Medidas de Segurança - o qual, por se apresentar inscrito no Livro II de tal diploma, não acolhe a ressalva prevista no prévio artigo 1.º - não prevêem tal ressalva à competência do Tribunal de Execução de Penas.

Assim como tais preceitos não acolhem a ressalva que o despacho de fls. 542 pretende introduzir… . Não há, para tal efeito, qualquer fundamento legal ou teleológico susceptível de justificar o entendimento que o Tribunal de Execução de Penas apenas deverá cuidar da execução das sanções por reporte às quais se ache mobilizável o instituto da liberdade condicional.

(…).

Acresce que, com o devido respeito, sentimos algumas dificuldades na compreensão do critério que orienta o Tribunal de Execução de Penas na definição da sua competência. É que não nos parece que o mesmo possa radicar no carácter de pena de substituição do cumprimento da sanção em regime de permanência na habitação. A ser assim, não se lograria apreender como pode o mesmo Tribunal assumir-se como competente para a execução e fiscalização da prisão por dias livres - também ele pena de substituição - e não reclamar idêntica vocação para o cumprimento da pena de prisão em regime de permanência na habitação.

Tendemos, pois, a considerar que impende sobre o mesmo Tribunal a função de prover à execução e fiscalização integral - e, com isso, a correspondente articulação - de todas as diversas penas privativas de liberdade que o arguido deva cumprir. Afirmação que se acha, aliás, em completa consonância com a teleologia daquele Código de Execução de Penas.

(…).

Estes são, pois, os nossos argumentos para nos declararmos incompetentes para o acompanhamento da execução da sanção aplicada.

(…)».


*

B) Cumpre decidir:

O cerne do dissídio existente entre os dois Juízes conflituantes consiste em determinar que concreto tribunal detém competência (material) para o acompanhamento do regime de permanência imposto nos termos do artigo 44.º do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro: se o Tribunal da condenação ou, diversamente, o Tribunal de Execução das Penas.

Dispõe a referida norma, inserida no Capítulo II (“Penas”), do Título III (“Das consequências jurídicas do facto”), do Livro I (“Parte Geral”), do diploma acima indicado:,

«1 - Se o condenado consentir, podem ser executados em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, sempre que o tribunal concluir que esta forma de cumprimento realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição:

a) A pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano;

b) O remanescente não superior a um ano da pena de prisão efectiva que exceder o tempo de privação da liberdade a que o arguido esteve sujeito em regime de detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação.

2 - O limite máximo previsto no número anterior pode ser elevado para dois anos quando se verifiquem, à data da condenação, circunstâncias de natureza pessoal ou familiar do condenado que desaconselhem a privação da liberdade em estabelecimento prisional, nomeadamente:

a) Gravidez;

b) Idade inferior a 21 anos ou superior a 65 anos;

c) Doença ou deficiência graves;

d) Existência de menor a seu cargo;

e) Existência de familiar exclusivamente ao seu cuidado.

3 - (…);

4 - (…).»

O regime em causa, a par de outros institutos expressamente regulados no Código Penal - a título meramente exemplificativo, “substituição da pena de prisão” (art. 43.º); “prisão por dias livres” (art. 45.º), “regime de semidentenção” (art. 46.º), e “substituição da multa por trabalho” (art. 48.º) - e tal como os agora expressamente indicados, constitui uma autêntica pena de substituição (pelo menos em sentido impróprio) da pena de prisão. É o que decorre da letra do preceito legal acima citado, e da exposição de motivos da proposta de Lei n.º 98/X, que esteve na origem da Lei n.º 59/2007. Assim também o define, de forma unânime, ampla jurisprudência dos nossos tribunais superiores (inter alia, consultar os Acs. do Tribunal da Relação do Porto de 06-06-2012, proc. n.º 31/11.5PEPRT.P1, publicado em www.dgsi.pt, e de 19-05-2010, in Colectânea, tomo III, pág. 214), bem como a doutrina (cfr., v.g., Maria João Antunes, in Jornadas sobre a revisão do Código Penal, Revista do CEJ, pág. 8, Jorge Baptista Gonçalves, mesma obra, pág. 22/23, e António João Latas, O Novo Quadro Sancionatório das Pessoas Singulares, A Revisão do Sistema Penal de 2007, Justiça XXI, págs. 106/107.

A medida em análise,  consubstanciando uma alternativa ao cumprimento da prisão nos estabelecimentos prisionais, inscreve-se numa frente sistematizada de combate às penas de curta duração, de efeitos malévolos, bem conhecidos, para a reinserção social do delinquente, e consiste na permanência em habitação do arguido, com vigilância electrónica a executar nos termos definidos na Lei n.º 33/2010, de 2 de Setembro.

Assim definidas, brevitatis causa, a génese, natureza e finalidade da medida de permanência na habitação, cabe dar resposta pronta à questão que está colocada.

Está escrito no ponto 15 da Proposta de Lei n.º 252/X (Diário da Assembleia da República, Série II-A, n.º 279, de 05-03-2009), que esteve na origem da Lei, n.º 115/2009, de 12 de Outubro, aprovadora do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (doravante, apenas designado por CEPMPL):

«No plano processual e no que se refere à delimitação de competências entre o tribunal que aplicou a medida de efectiva privação da liberdade e o Tribunal de Execução das Penas, a presente proposta de lei atribui exclusivamente ao Tribunal de Execução das Penas a competência para acompanhar e fiscalizar a execução de medidas privativas da liberdade. Consequentemente, a intervenção do tribunal da condenação cessa com o trânsito em julgado da sentença que decretou o ingresso do agente do crime num estabelecimento prisional, a fim de cumprir medida privativa da liberdade.

Este um critério simples, inequívoco e operativo de delimitação de competências, que põe termo ao panorama, actualmente existente, de incerteza quanto à repartição de funções entre os dois tribunais e, até, de sobreposição prática das mesmas. Incerteza e sobreposição que em nada favorecem a eficácia do sistema.» (o sublinhado pertence ao subscritor do presente despacho).

Corporizando a intenção legislativa expressa neste texto, o CEPMPL compreende, em estrutura sistematizada e complementar, dois Livros, versando o Livro I, de índole eminentemente substantiva, sobre a “execução das penas e medidas privativas da liberdade”,  e o Livro II, de natureza processual, sobre o “processo perante o tribunal de execução das penas”.

O CEPMPL é completamente omisso na regulação da pena de substituição “regime de permanência na habitação” prevista no artigo 44.º do Código Penal.

Trata-se inequivocamente, não de uma incompletude da lei, mas sim de um “silêncio eloquente” do diploma, determinado por razões político-jurídicas, decorrentes de uma opção do legislador.

O alcance do desígnio legislativo está bem evidenciado logo no artigo 1.º, n.º 1, do  CEPMPL, onde consta: «O disposto no presente livro aplica-se à execução das penas privativas da liberdade nos estabelecimentos prisionais dependentes do Ministério da Justiça e nos estabelecimentos destinados ao internamento de inimputáveis», sendo que, em inúmeros normativos posteriores, está invariavelmente escrita a expressão “recluso”.

E a quem objecte que a citada disposição legal enuncia tão só o Livro I do diploma, repetimos o que já ficou dito; ambos os livros integrantes do CEPMPL formam um sistema unitário, projectado para um objectivo comum, qual seja, o de regular, substantiva e adjectivamente, a execução das penas e medidas privativas da liberdade nos estabelecimentos prisionais.

Sem necessidade de maiores considerações, dir-se-á, em síntese conclusiva:

- Os referenciados elementos interpretativos, de ordem literal e sistemática, projectam a teleologia das normas consideradas no sentido de a intervenção do TEP estar materialmente circunscrita a actos relativos à execução de penas e medidas privativas da liberdade em estabelecimentos prisionais;

- Em conformidade, o controlo/acompanhamento do regime de permanência na habitação cabe ao tribunal da condenação, no caso à Secção Criminal da Instância Local da Figueira da Foz (igual solução - quantos aos fundamentos, nada está dito - é defendida por Pinto de Albuquerque, em Comentário do Código Penal, Universidade Católica Portuguesa, anotação ao artigo 44.º, pág. 184).


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III. Dispositivo:

Posto o que precede, decidindo o presente conflito negativo, atribuo competência material para o fim acima referido à Secção Criminal da Instância Local da Figueira da Foz.

Sem tributação.

Cumpra-se o disposto no art. 36.º, n.º 3, do CPP.


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Coimbra, 20 de Maio de 2015

(Documento elaborado e integralmente revisto pelo signatário, Presidente da 5ª Secção - Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra)

(Alberto Mira)