Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1440/08.2TACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALCINA DA COSTA RIBEIRO
Descritores: PROVA POR RECONHECIMENTO
DEPOIMENTO
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
IDENTIFICAÇÃO
ARGUIDO
Data do Acordão: 09/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (VARA DE COMPETÊNCIA MISTA - 2.ª SECÇÃO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 147.º, 341.º, 346.º E 348.º, DO CPP
Sumário: I - O acto de reconhecimento não se confunde com o acto de declarações orais prestadas no âmbito do processo-crime.

II - No primeiro, apura-se a identificação do arguido, da pessoa que foi vista a praticar o ilícito, enquanto que no segundo, perante uma pessoa já identificada, a testemunha e/ou declarante aponta-a, identifica-a, como autora dos factos em discussão.

III - Assim, a prova por reconhecimento propriamente dita é autónoma, sujeita ao formalismo especial do art. 147.º e seguintes, do CPP, enquanto que a identificação realizada por uma testemunha e/ou declarante, no decurso da suas declarações, no decorrer da audiência de julgamento, integra depoimento oral, que obedece à regra geral da livre convicção e apreciação da prova.

Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

1 - A..., divorciada, nascida a 17 de Outubro de 1963, residente na Rua ... Lisboa, foi julgada pelo Colectivo da 2ª Vara de Competência Mista de Coimbra, que decidiu:

I – absolver a arguida A... da prática dos crimes de falsidade de testemunho e denúncia caluniosa por que vinha acusada.

II – condenar a arguida como autora de um crime de falsificação de documentos, previsto e punido pelos art. 255.º, a), c) e 256.º, n.º 1, a) e c) e 3 do Código Penal, com a redacção vigente à data da prática dos factos, na pena de três (3) anos de prisão;

 III – condenar a arguida como autora de um crime de burla qualificada previsto e punido pelos artigos 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 2, a) do Código Penal na pena de quatro (4) anos de prisão;

IV- procedendo ao cúmulo das penas referidas em II e III, condenar a arguida na pena única de cinco (5) anos e seis (6) meses de prisão.

V – julgar procedente o pedido de indemnização civil formulado por C... e, consequentemente, condenar a demandada A... a pagar-lhe:

- a quantia de noventa e oito mil quinhentos e vinte e um euros e vinte e oito cêntimos (€ 98.521,28) acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde 24 de Julho de 2006 até 5 de Julho de 2011 (data em que os reclamou no pedido de indemnização que formulou);

- a quantia de cinco mil cento e noventa e sete euros e setenta cêntimos (€ 5.197,70) a título de danos patrimoniais sofridos

- a quantia de cinco mil euros (€ 5.000) a título de danos não patrimoniais sofridos.

2 – Inconformada com a condenação, interpôs a arguida o presente recurso, formulando as conclusões que a seguir se sintetizam:

1ª – A investigação direccionou-se num só sentido, o da arguida, preterindo diligências que, a terem sido efectuadas, conduziriam a uma melhor e mais correcta apreciação dos factos e um resultado diferente da culpa da arguida.

2ª – A arguida não foi identificada pelas testemunhas da acusação, tendo-o sido apenas por fotografias de péssima qualidade.

3ª – As duas únicas testemunhas ouvidas e que alguma vez tiveram contacto com a pessoa que se fazia passar por C..., uma não conseguiu uma identificação objectiva pelas fotografias deixando dúvidas e outra, relevou ser parcial e influenciada pela autoridade policial.

4ª – Nos termos do nº 5 e 2 do art. 147º, do Código de Processo Penal, o reconhecimento por fotografia só é válido se efectuado, nos termos do nº 2, do mesmo preceito.

5ª – Sucede que o reconhecimento nos termos do nº 2 do mesmo artigo nunca foi feito tendo sido a arguida condenada pela simples identificação fotográfica através de registos de péssima qualidade.

6ª – A arguida não compareceu na audiência de julgamento, sendo a sua presença imprescindível para a descoberta da verdade material já que a sua identificação era necessária para que lhe fosse imputada objectivamente a prática dos crimes de que era acusada.

7ª – Verifica-se insuficiência da matéria de facto provada.

8ª – Na dúvida, impunha-se a absolvição da arguida em obediência ao princípio in dubio pro reo.

9ª – Sem conceder e a admitir-se a condenação da arguida, as penas parcelares aplicadas mostram-se exageradas, por não ter atendido às circunstâncias atenuantes que militam a favor da arguida, face ao grau da ilicitude e da culpa, à conduta da arguida, anterior e posterior aos factos, bem como às exigências de prevenção geral e especial.

10ª – O acerco atenuativo é superior ao agravativo, o que não foi tido em consideração pelo tribunal recorrido.

11ª – Sendo que a arguida nunca foi condenada por quaisquer crimes, nem antes nem depois dos factos e atento o lapso de tempo decorrido.

12ª – As penas parcelares devem situar-se próximas dos limites mínimos, ou seja, de 2 anos de prisão, pela prática de crime de falsificação de documentos e de três anos de prisão pela prática do crime de burla.

13ª – A medida da pena única nunca deve ser superior a 4 anos, sendo suspensa na sua execução.

3 – O Ministério Público, em primeira instância, respondeu à motivação do Recorrente, concluindo pela manutenção do Acórdão recorrido.

4 – Igualmente, o Digno Procurador-Geral-Adjunto, nesta Relação, defende a improcedência do Recurso.

5 – Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, nada obstando ao conhecimento de mérito do Recurso.

II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

1 – Factos Provados

A primeira instância deu como provados os seguintes factos:

«1.          Em circunstâncias não apuradas a arguida ficou na posse dos elementos de identificação de C..., melhor identificada a fls. 3, nomeadamente o nome completo, filiação, data de nascimento, residência, número de bilhete de identidade e número do cartão de contribuinte, bem como de cópias de alguns desses documentos.

2.            Na posse desses dados e documentos, a arguida, no dia 9 de Abril de 1996, deslocou-se à Conservatória do Registo Civil de Lisboa e, identificando-se com o nome ( C...) e as cópias dos referidos documentos, mas fornecendo para o efeito uma fotografia sua, requereu a renovação do bilhete de identidade da referida C..., apondo nessa documentação o nome da mesma, o que foi deferido.

3.            Assim, em 9 de Abril de 1996, os serviços competentes emitiram o bilhete de identidade n.º ... cuja cópia consta de fls. 223 referente a C... que a arguida recebeu e no qual se encontrava aposta a sua própria fotografia.

4.            A arguida passou a utilizar esse bilhete de identidade como sendo seu, não obstante estar bem consciente de que tal documento não era válido nem dele era a legítima titular.

5.            Em circunstâncias não apuradas, a arguida tomou conhecimento que no dia 27 de Agosto de 2003 faleceu D... e que a sua filha B... , identificada a fls. 334, tinha outorgado uma escritura de habilitação de herdeiros na qual se identificou como única herdeira da totalidade dos bens do falecido após o que apresentou esse documento na 2.ª Repartição de Finanças do Concelho de Coimbra.

6.            Todavia, para além dessa filha, o referido D... tinha uma outra filha de um anterior casamento - a C... -, cuja existência não seria do conhecimento da B...e, por isso, esta não lhe comunicara a morte do pai de ambas e a existência de bens a partilhar.

7.            Ao aperceber-se desta situação, sabendo que a referida C... residia há muitos anos em França, não costumava vir a Portugal e não tinha sabido da morte do pai, a arguida resolveu utilizar as cópias dos documentos que tinha em seu poder e que pertenciam à C... para se fazer passar por ela, utilizando ainda o supra mencionado bilhete de identidade n.º ....

8.            Assim, com vista a conseguir apropriar-se da parte da herança que caberia à C..., a arguida, no dia 2 de Setembro de 2004, deslocou-se ao escritório do Advogado Dr. E..., identificado a fls. 221, sito na Av. ..., em Aveiro, e, identificando-se com o nome da C..., solicitou os serviços daquele para requerer um inventário por morte de D..., tendo ainda informado o Sr. Dr. E... que a “sua” meia-irmã B...tinha omitido a sua existência ao apresentar-se como única herdeira do falecido e tinha-se apropriado da totalidade da herança do pai de ambas.

9.            O Sr. Dr. E..., convencido pela arguida que estava perante C..., tanto mais que lhe foi exibido o aludido bilhete de identidade n.º ... emitido em nome daquela, aceitou o mandato que lhe veio a ser conferido por procuração datada de 8 de Setembro de 2004, cuja cópia figura a fls. 12 e que aqui se reproduz para todos os efeitos legais, na qual a arguida apôs a assinatura da C... sem que esta a tivesse autorizado a tal, ali se identificando com o número de contribuinte daquela e com o bilhete de identidade que a arguida havia obtido em 09/04/1996, mencionando contudo que residia na Rua ..., em Algés, morada onde a arguida residia mas onde a C... nunca residiu.

10.          Nessa sequência o Sr. Dr. E..., mandatado pela arguida da forma descrita, no dia 18 de Novembro de 2004 instaurou nos Juízos Cíveis desta cidade de Coimbra processo de inventário a que coube o número 3614/04.6TJCBR, o qual foi distribuído ao 4.º Juízo Cível.

11.          Nesse requerimento foi indicada a C... como cabeça de casal em virtude de ser a filha mais velha do falecido D....

12.          No âmbito desse processo de inventário n.º 3614/04.6TJCBR do 4.º Juízo Cível de Coimbra, após nomeação como cabeça-de-casal da pessoa indicada, foi designado o dia 17 de Dezembro de 2004 para a cabeça-de-casal prestar declarações.

13.          A arguida compareceu nesse tribunal nessa data, e, perante a Sra. juiz titular do processo e na presença do Dr. E..., declarou que se chamava C... e era a filha mais velha do falecido D..., assumindo o compromisso de honra de bem desempenhar as funções de cabeça-de-casal nesse inventário.

14.          De forma idêntica, o Dr. E..., mandatado pela arguida da forma descrita, apresentou queixa no DIAP de Coimbra contra B... - tendo essa participação dado origem ao NUIPC 1586/04.6TACBR (apenso) - no âmbito da qual se denunciava a prática de falsas declarações praticadas pela referida B...quando outorgou a escritura de habilitação de herdeiros na qual se identificou como única herdeira da totalidade dos bens do falecido D... e quando a apresentou na 2.ª Repartição de Finanças do Concelho de Coimbra para assim ficar em poder de todo o acervo hereditário por óbito daquele.

15.          No desenrolar do aludido Inventário n.º 3614/04.6TJCBR, foi necessário juntar a esse processo nova procuração com poderes especiais a favor do Dr. E... a fim deste, em representação da sua mandante, ou seja, da arguida, poder licitar ou adjudicar bens, dar ou receber tornas, pelo que no dia 2 de Maio de 2006 a arguida mais uma vez compareceu no escritório daquele onde outorgou a procuração cuja cópia consta de fls. 11 e que aqui também se reproduz para todos os efeitos legais, na qual a arguida apôs novamente a assinatura da C... sem que esta a tivesse autorizado a tal, ali se identificando com o número de contribuinte daquela e com o bilhete de identidade que obteve em 09/04/1996, mencionando também que residia na Rua ..., em Algés.

16.          Tempos depois, a arguida decidiu abrir uma conta bancária em nome da C... para oportunamente indicar o respectivo número ao Sr. Dr. E... para o mesmo aí depositasse o dinheiro que viesse a ser atribuído à interessada C... no fim do dito inventário.

17.          Para tal, no dia 4 de Julho de 2006, a arguida dirigiu-se ao balcão da ... do "Banco ..., S.A." sito na ..., ..., Sesimbra, e, após se identificar pelo nome de C..., solicitou que nesse nome fosse aberta uma conta bancária, tendo para o efeito apresentado cópia do cartão de contribuinte da C... e o bilhete de identidade n.º ... cuja cópia consta de fls. 329 referente a C... mas agora com data de emissão de 9 de Abril de 1997 e validade até 9 de Abril de 2007, nele constando outra fotografia da arguida.

18.          No dia 6 de Julho de 2006 a arguida entregou ainda nessa instituição bancária a cópia junta a fls. 331 que se traduz numa declaração emitida pelo Consulado Geral de Portugal em Lyon pela qual o respectivo Cônsul-Geral atesta que C... reside e trabalha em França mas que, por motivos de saúde, regressa ao seu país de origem, Portugal, para a morada x... Lisboa, morada onde reside a mãe da arguida.

19.          O funcionário dessa instituição bancária, G... , identificado a fls. 269, convencido pela arguida que estava perante C..., permitiu que em nome desta fosse aberta a conta bancária n.º ... domiciliada naquela agência, tendo então a arguida, nesse dia 4 de Julho de 2006, assinado pelo seu próprio punho o nome da C... na ficha de assinaturas que para o efeito lhe foi facultada e que se encontra junta a fls. 328, ficando dessa forma a dispor dessa conta bancária relativamente à qual lhe foram entregues os correspondentes meios de movimentação.

20.          Entretanto, foi realizada conferência de interessados no inventário a que nos vimos referindo e, de seguida, elaborada a forma à partilha e o consequente mapa informativo cuja cópia consta de fls. 41 e onde se fez constar que o valor dos bens da herança totaliza o montante de € 197.042,56, tendo sido adjudicadas à interessada B...a totalidade das verbas nesse montante, pelo que ficou a mesma obrigada a dar tornas à C... no valor de € 98.521,28.

21.          Em cumprimento dessa obrigação a B...emitiu o cheque n.º 8 ... que movimenta a conta ... por si titulada no " ...., S.A.", no qual colocou a data de 24 de Julho de 2006, o valor de € 98.521,28 e no campo destinado ao beneficiário do mesmo inscreveu o nome " E...".

22.          Após, entregou esse cheque ao Sr. Dr. E..., o qual, de imediato emitiu o recibo de quitação cuja cópia consta de fls. 43.

23.          Nessa data, por ter sido acordado entre os mandatários das partes, o Dr. E... fez juntar ao NUIPC 1586/04.6TACBR que corria termos por este DIAP de Coimbra a declaração cuja cópia consta de fls. 9 e que aqui se reproduz na qual C... desiste da queixa que apresentou contra a sua meia-irmã e que deu origem a esse inquérito.

24.          Nessa declaração, uma vez mais, a arguida apôs a assinatura da C..., sem autorização desta, e a menção ao bilhete de identidade que obteve da forma já descrita em 09/04/1996.

25.          O referido inquérito veio a ser arquivado por despacho proferido a 06/09/2006 constante de fls. 103 desses autos de inquérito (apenso).

26.          No âmbito do mencionado processo de inventário foi, de seguida, elaborado o respectivo mapa da partilha cuja cópia consta de fls. 27 no qual se fez constar que B...pagou a quantia de € 98.521,28 à C..., razão pela qual veio a ser proferida sentença, já transitada em julgado, que homologou a partilha e adjudicou às herdeiras os respectivos quinhões, tal como se extrai da cópia junta a fls. 31.

27.          Ora, seguindo as instruções que lhe foram transmitidas pela arguida, o Sr. Dr. E... depositou na sua própria conta bancária o cheque n° 8 ..., no valor de € 98.521,2, que a B...lhe tinha entregue.

28.          Logo que disso tomou conhecimento, a arguida, utilizando o número 210897424 com a referência "AA....", no dia 4 de Julho de 2006 enviou o fax junto a fls. 227 ao Sr. Dr. E... no qual lhe comunicou para, com aquele dinheiro, se pagar dos seus honorários e depositar o restante na conta bancária n.º ... que a arguida tinha aberto no balcão da ... do "Banco ..., S. A." em nome de C....

29.          Assim, o Sr. Dr. E... reteve para si a quantia de € 14.500,00 para pagamento dos honorários e, no dia 31 de Julho de 2006, efectuou uma transferência bancária no valor de € 84.021,28 da sua conta no B.C.P. para aquela conta bancária cujo número a arguida lhe indicou.

30.          A arguida apossou-se, em seu exclusivo proveito, daquela quantia monetária que correspondia à parte da herança que coube a C... por óbito de seu pai e que só a esta pertencia.

31.          Durante o ano que se seguiu ao depósito daquele montante monetário na referida conta bancária a arguida efectuou levantamentos de numerário, emitiu cheques, fez pagamentos e transferências bancárias até esgotar em seu benefício a totalidade do saldo aí existente.

32.          Sempre que emitiu cheques dessa conta bancária, a arguida apôs nesses títulos de crédito a assinatura de C... sem que esta lhe tivesse dado autorização para o efeito, o que fez, nomeadamente, nas seguintes situações:

1)            cheque n.º ...4 que movimenta a conta bancária n.º ... titulada por C..., no qual a arguida apôs a assinatura da C..., inscreveu o montante de € 15.000,00 e a data de 16/06/2006, apresentando-o de seguida o pagamento;

2)            cheque n.º ...3 que movimenta a conta bancária n.º ... titulada por C..., no qual a arguida apôs a assinatura da C..., inscreveu o montante de € 9.835,50 e a data de 29/08/2006, apresentando-o de seguida a pagamento;

3)            cheque n.º ...6 que movimenta a conta bancária n.º ... titulada por C..., no qual a arguida apôs a assinatura da C..., inscreveu o montante de € 650,00 e a data de 04/09/2006, apresentando-o de seguida a pagamento;

4)            cheque n.º ...5 que movimenta a conta bancária n.º ... titulada por C..., no qual a arguida apôs a assinatura da C..., inscreveu o montante de € 2.240,00 e a data de 16/03/2007, apresentando-o de seguida a pagamento;

5)            cheque n.º ...2 que movimenta a conta bancária n.º ... titulada por C..., no qual a arguida apôs a assinatura da C..., inscreveu o montante de € 4.800,00 e a data de 20/05/2007, apresentando-o de seguida a pagamento.

33.          C... só tomou conhecimento que alguém se tinha feito passar por ela e tinha recebido a sua parte da herança por óbito de seu pai quando, no dia 3 de Outubro de 2008, foi notificada da contestação apresentada por B... no âmbito da acção de petição de herança que a C... tinha intentado contra a sua meia-irmã B...com o objectivo de lhe vir a ser atribuída a sua parte da referida herança, pois até essa data desconhecia que a B...tinha emitido e entregue o cheque no valor de € 98.521,28 correspondente às tornas que eram devidas à C....

34.          Ao utilizar o bilhete de identidade n.º ..., cuja cópia consta de fls. 223 referente a C... e no qual se encontrava aposta a fotografia da arguida, esta fê-lo como se todas as menções nele apostas correspondessem à verdade e tivesse sido solicitada a sua emissão pela sua verdadeira titular, bem sabendo que o respectivo conteúdo não correspondia à realidade, agindo a arguida, prevendo a possibilidade de esse documento ser aceite para os fins a que o destinou, conformando-se com tal possibilidade não obstante estar ciente de que assim colocava em crise a confiança e a credibilidade que um bilhete de identidade merece no tráfego jurídico probatório, actuando com o propósito de obter para si um benefício que de outra forma não obteria.

35.          Ao prestar as citadas declarações no âmbito do referido processo de inventário, a arguida actuou com o objectivo de convencer quer o Sr. Juiz titular desse processo, quer os restantes intervenientes processuais, de que as mesmas eram verdadeiras, sendo a actuação da arguida determinante e decisiva para a obtenção do resultado que almejava e efectivamente conseguiu.

36.          Ao escrever o nome completo da C... nas procurações que subscreveu em 08/09/2004 e 02/05/2006, na declaração de desistência de queixa que fez juntar ao NUIPC 1586/04.6TACBR que correu termos por este DIAP, nos impressos que lhe foram facultados pelo "Banco ..., S. A." para efeitos de abertura de conta bancária a fim de aí figurar como titular da mesma e nos cheques que emitiu, cujo conteúdo sabia não corresponder inteiramente à realidade, agiu a arguida, prevendo a possibilidade de aquelas pessoas e instituições aceitarem como válidas aquelas assinaturas e de, assim, lhe permitir instaurar processo de inventário por óbito de D..., de poder ser representada pelo Dr. E... no âmbito desse processo de inventário, de poder fazer cessar o referido inquérito criminal e de poder movimentar a referida conta bancária de forma a nunca lhe poderem ser assacadas eventuais responsabilidades visto não constar da mesma o seu verdadeiro nome, conformando-se com tal possibilidade, com o propósito de alcançar para si um benefício traduzido no recebimento da quantia de € 84.021,28 que, de outra forma, não lograria obter, e que reverteu totalmente em seu benefício.

37.          Em toda a descrita actuação a arguida teve como propósito fazer crer ao Sr. Dr. E... e à juiz titular do mencionado inventário, que a arguida era a C... e que, na qualidade de filha de D..., tinha direito ao seu quinhão hereditário, determinando-os, assim, a permitirem a disponibilização daquela quantia monetária que pretendia integrar no seu património, como efectivamente integrou.

38.          A arguida actuou livre e conscientemente, bem sabendo que praticava actos proibidos e punidos por lei penal.

39.          A arguida nunca antes foi condenada pela prática de qualquer infracção criminal.

40.          C... em Junho de 2008 veio a Portugal visitar a sua família, altura em que foi informada que o mesmo tinha falecido e que a sua meia-irmã B... tinha ficado com os bens.

41.          Dirigiu-se à 1.ª Repartição de Finanças de Coimbra para se informar sobre a declaração de óbito de seu pai e sobre os herdeiros que aí tinham sido declarados.

42.          Ao tomar conhecimento de que a sua irmã consanguínea B... tinha declarado nas finanças ser única herdeira, dirigiu-se ao escritório de advogada, informando-a da situação e contratando os seus serviços para repor a verdade sobre a sua condição de herdeira, tendo dado entrada na 1.ª Secção da Vara Mista de Coimbra o Processo a que foi atribuído o n.º 1129/08.2TBCBR, em Agosto de 2008,

43.          Tendo sido paga a taxa de justiça inicial no montante de € 302,40.

44.          Posteriormente a demandante recebeu, pela sua advogada a notícia de que, a sua irmã consanguínea contestara o pedido, juntado documentos probatórios de que já tinha havido, em seu nome uma acção de partilhas por morte de seu pai e que até um processo-crime tinha sido intentado em seu nome.

45.          Essa notícia deixou-a em estado de choque e completamente transtornada, abalada e com uma crise de ansiedade.

46.          A demandante juntou ao processo documentos para prova em como não tinha estado em Portugal nos anos em que foram intentados tais processos pois tinha tido um acidente de trabalho que obrigaram ao seu internamento em França.

47.          No processo de petição de herança que intentou, a demandante teve gastos com taxa de justiça, com certidões para instruir o processo (quer nas Finanças quer nas Conservatória de registo Civil), em honorários, em custa de parte e em custas processuais, em viagens de França para Portugal e dias de trabalho perdidos, em quantia não inferior a € 5197,70.

48.          Ao tomar conhecimento dos factos praticados pela arguida a demandante sofreu angústia e temor».

Como não provados,  julgou os seguintes factos:

«- que a arguida tivesse efectuado participação contra B...no âmbito do NUIPC 1586/04.6TACBR, com o propósito de que contra ela viesse a ser instaurado procedimento criminal;

- que a arguida soubesse que os factos que foram participados relativamente a B...não correspondiam à realidade;

- que a demandante tenha visto o seu nome no Banco de Portugal como devedora;

- que a arguida tenha usado o nome da demandante para pedir empréstimos e efectuar dívidas».

A convicção do tribunal assentou numa apreciação crítica e global de toda a prova produzida no seu conjunto, principalmente, no que atine aos factos dados como provados:

a)            nos documentos de fls. 11 a 34, 38 a 45, 64 a 147, 248 a 253, 255  a 266, 271 a 276, 327 a 331, 357 a 389, 396 a 400, 409 a 431, 447, 519 a 522, 528 a 549, 669 a 704;

b)            elementos constantes do inquérito apenso 1586/04.6TACBR, correspondente ao processo-crime que foi instaurado pelo mandatário constituído pela arguida contra B...;

c)            nas declarações da demandante C..., a qual, de forma manifestamente perturbada por toda a situação que lhe foi criada, relatou ao tribunal a forma como tomou conhecimento dos factos praticados e as consequências sofridas;

d)            nos depoimentos que se me afiguraram sérios e isentos das testemunhas

F... – inspector da P.J. que teve a investigação a seu cargo, tendo relatado as diligências a que procedeu;

E... – Narrou ao tribunal os termos em que, como advogado, foi abordado pela arguida (que identificou através de fotografias no processo) solicitando-lhe a prestação dos serviços, forma como a mesma se  identificou e documentos apresentados, subscrição das procurações, toda a tramitação dos processos de inventário e processo crime, montante recebido a título de “tornas” no processo de inventário, valor que reteve para pagamento de honorários e todas as circunstâncias posteriores que levaram à descoberta de que a sua cliente não era a pessoa que dizia ser;

 G... – funcionário do Banco ..., tendo o mesmo descrito o processo ligado à abertura de conta por parte da arguida;

H... -  Com conhecimento de que o seu irmão ( J...) há alguns anos atrás teve dificuldades financeiras, tendo solicitado um empréstimo a uma particular (tendo o montante respectivo sido depositado na sua conta através do cheque junto a fls. 425), que foi mediado pela arguida (cuja fotografia reconheceu) dizendo-se a mesma intermediária de uma outra pessoa;

J... - relatou que numa altura teve necessidade de recorrer a um empréstimo particular, tendo-lhe sido apresentada a arguida (que identificou por fotografias juntas aos autos) como pessoa que o podia ajudar. Esta acedeu a ajudá-lo, dizendo que o dinheiro iria ser emprestado por uma amiga de nome C.... Uma parte do empréstimo foi efectuado através do cheque junto a fls. 425, o qual foi depositado na conta do irmão.

e)            CRC de fls. 493.

Já quanto aos factos não provados a decisão decorre de não ter sido produzida prova consistente quanto aos mesmos, sendo que, no que atine às circunstâncias em que foi apresentada a queixa crime, não apenas dos documentos não resulta demonstrada qualquer intervenção pessoal da arguida, como do próprio depoimento da testemunha E... resulta que a instauração do mesmo foi da sua iniciativa, legitimamente convencido de que a participada actuara de forma a omitir a existência da “meia-irmã” C...».

III – QUESTÕES A DECIDIR

Em face das conclusões da Recorrente, o objecto deste recurso consiste em apreciar as seguintes questões:

-  insuficiência para a decisão da matéria de facto;

- validade do reconhecimento da arguida e  violação do principio in dubio pro reo;

- a dosimetria das penas parcelares;

- a dosimetria da pena única;

- as penas de substituição.

IV – APRECIAÇÃO DO RECURSO

1 - Insuficiência para a decisão da matéria de facto;

A Recorrente, depois de afirmar que:

- a investigação ignorou indícios e direccionou a investigação num único sentido, o da arguida, preterindo as diligências que, a terem sido efectuadas, conduziriam a uma melhor e mais correcta apreciação dos factos e a um resultado diferente da culpa da arguida, ora recorrente;

- a arguida não foi identificada pelas testemunhas de acusação, tendo-o sido apenas por fotografia de péssima qualidade,

- o reconhecimento da arguida não observou o disposto no nº2, ao art. 147º, do Código de Processo Penal, e 

- a presença da arguida era indispensável para o seu reconhecimento,

Conclui, que se «verifica a insuficiência para a decisão da matéria de facto».

Trata-se, assim, de insuficiência de prova para sustentar a decisão da matéria de facto e não da insuficiência da matéria de facto, a que alude o no art. 410º, nº 2, al. a), do Código de Processo Penal.

Esta existe, quando o tribunal não tiver considerado os factos relevantes para a decisão que foram alegados na acusação ou na defesa ou de que deles possa e deva conhecer, nos termos do artigo 358º, nº 1, do Código de Processo Penal.

A insuficiência da matéria de facto ocorre, quando a factualidade apurada é exígua para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não tenha investigado toda a matéria com interesse para a decisão.

Estamos perante a ausência de factos essenciais para apoiar a decisão de direito e não já a insuficiência de prova para sustentar as respostas positivas ou negativas que foram dadas aos factos que foram sujeitos a julgamento de facto.

In casu, nem a matéria de facto julgada pela primeira instância é insuficiente para a decisão final, nem a Recorrente indica quais os factos que são necessários e essenciais à decisão que deveriam ter sido apreciados e não o foram pelo tribunal recorrido.

O vício apontado ao Acórdão recorrido não se traduz na insuficiência da matéria de facto a que alude o art. 410º, nº 2, al. a) acima citado, mas sim na insuficiência dos meios probatórios para sustentar aquela decisão.

Improcede, assim, esta pretensão do Recorrente.

2A invalidade do reconhecimento da arguida

Defende a Recorrente que a decisão sindicada violou o disposto do art. 147º, nº 2, do Código de Processo Penal, porquanto as testemunhas que identificaram a pessoa que se fazia passar por C..., como sendo a arguida, nunca tiverem contacto pessoal com esta, baseando a sua identificação em fotografias de péssima qualidade.

Vejamos se assim é.

O reconhecimento de pessoas definido e regulado no art. 147º do Código de Processo Penal pressupõe a indefinição prévia do autor dos factos ilícitos.

 «Estamos perante a prova de reconhecimento quando não esteja identificado o agente do crime em relação a alguém previamente identificado, investigado e assumido como sujeito processual[1]».

Se o autor do crime é conhecido nos autos, vindo a ser identificado, no decorrer das declarações prestadas por uma testemunha e/ou declarante, como o autor do ilícito, não estamos perante a prova por reconhecimento, mas sim testemunhal ou declarações.

Aqui trata-se de um meio de prova «impropriamente designado por reconhecimento» que não passa de «uma atribuição dos factos expostos no depoimento da testemunha a certa pessoa ou pessoas» sujeito às regras da livre apreciação da prova e não à disciplina que regula o «reconhecimento propriamente dito[2]».

«Nada impede o Tribunal de “confrontar” uma testemunha com um determinado sujeito para aferir da consistência do juízo de imputação de factos quando não seja necessário proceder ao reconhecimento de uma pessoa, circunstância em que não haverá um autêntico reconhecimento, dissociado do relato da testemunha, e em que a individualização efectuada – não tem o valor de algo que não é: o de um reconhecimento da pessoa  do arguido como correspondendo ao retrato mnemónico gravado na memória da testemunha e de cuja equivalência o tribunal, dentro do processo de apreciação critica das provas, saia convencido. Diferente - (…) - é a situação processual que ocorre quando, pressuposta que seja a necessidade de reconhecimento da pessoa, tida  como possível autora dos factos, se coloca o identificante na posição de ter de precisar, entre várias pessoas colocadas anonimamente na sua presença, quem é que corresponde ao retrato mnemónico por ele retido[3]».   

 «A situação em que uma testemunha, ou vítima, é solicitada a confirmar o arguido presente como agente da infracção não se configura um acto processual consubstanciando o reconhecimento pessoal. Pelo contrário, tal confirmação da identidade de alguém que se encontra presente, e perfeitamente determinado, apenas poderá ser encarado como integrante do respectivo depoimento testemunhal.

Como refere Medina Seiça (…) o acto de reconhecimento visual de uma pessoa, implica uma reevocação de uma percepção ocular anterior, apresentando profundas similitudes com o processo mental próprio do depoimento testemunhal. Na verdade, ambos «têm de comum o fundo: as memórias empíricas» que, por meio da recordação podem emergir como informação disponível, sustentados, pois, na complexa actividade mnemónica, ambos os meios de prova são particularmente vulneráveis a múltiplos factores de distorção e engano que ocorrem ao longo de todo itinerário da cognição, da memorização e da evocação. Esta similitude, porém, não elimina as diferenças estruturais existentes entre as duas formas de percepção e recordação [4]».  

O acto de reconhecimento não se confunde, assim, com o acto de declarações orais prestadas no âmbito do processo-crime.

No primeiro, apura-se a identificação do arguido, da pessoa que foi vista a praticar o ilícito, enquanto que no segundo, perante uma pessoa já identificada, a testemunha e/ou declarante aponta-a, identifica-a, como autora dos factos em discussão.

São dois meios de prova diferentes, disciplinados de forma diferente.

A prova por reconhecimento propriamente dita é autónoma, sujeita ao formalismo especial do art. 147º e seguintes, do Código de Processo Penal, enquanto que a identificação realizada por uma testemunha e/ou declarante, no decorrer das suas declarações, integra o depoimento oral, que obedece à regra geral da livre convicção e apreciação da prova.

Neste sentido se tem pronunciado a jurisprudência maioritária, como por exemplo, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 30.10.2008, de 14.12.2010, da Relação do Porto de 11 de Junho de 2014.[5]

No caso concreto, não estamos perante um reconhecimento propriamente dito – o regulado e definido pelos art. 147º, do Código de Processo Penal -  mas ante testemunhas que não tiverem dúvidas em afirmar que privaram pessoalmente com  a arguida, que se faz passar por C..., utilizando os documentos de identificação desta.

A arguida estava devidamente identificada nos autos – foi interrogada e constituída como tal (fls. 278 e 279), prestou termo de identidade e residência (fls. 280), identificou-se com o bilhete de identidade junto a fls. 280 – que constitui uma segunda via do original e onde indicou como morada a ... -,  passou procuração a favor do Sr. Dr. L.... (fls. 316) e apresentou contestação.

Por outro lado, o funcionário do Banco ... – G... – bastou ver a fotografia nítida da arguida, para poder afirmar – 2:46M e 3.41M – que foi esta quem abriu a conta bancária em nome da C..., indo ao banco várias vezes, como também, a chegou a ver na rua.

Mais esclareceu que chegou a notar a mudança de visual da arguida, nomeadamente na cabeleira loira.

Também o Dr. E... esclareceu que a pessoa que o abordou e com ele tratou todos os assuntos relacionados com o inventário e que  recebeu o dinheiro das tornas, foi a arguida.

H... - que conheceu pessoalmente a arguida, através do seu irmão, J..., a quem ela emprestou dinheiro, tendo depositado o cheque do empréstimo na sua conta – identificou-a  como sendo a pessoa da fotografia.

J..., também, não teve dúvidas em afirmar que a pessoa que contactou para o ajudar, foi a arguida (apontando-a na fotografia) que lhe disse que o dinheiro que lhe iria emprestar era de uma amiga que se chamava C....

Foi a arguida quem emitiu a declaração de divida em nome da dita C....

Ou seja, como foram as testemunhas, que, no decorrer do seu depoimento em audiência, confirmaram  que a arguida –  a quem eram imputados os factos constantes na acusação -   foi a pessoa que com eles privou e se fez passar por C..., estamos perante uma prova testemunhal, que foi sujeita ao contraditório (art. 327º, nº 2, do Código de Processo Penal) e não um reconhecimento autónomo regulado pelo art. 147º, do Código de Processo Penal.

O tribunal recorrido não estava, assim, obrigado, a realizar, autonomamente, a prova por reconhecimento da arguida, ao abrigo do disposto no último preceito citado.

Conforme resulta da acta de audiência e julgamento, a inquirição das testemunhas que obedeceu a formalismo do art. 128º e seguintes do Código de Processo Penal, não enferma de qualquer irregularidade.

Desta feita, não estava o tribunal recorrido impedido de valorar, como valorou,  a identificação da arguida integrada na prova testemunhal, de acordo com o princípio da livre valoração da prova.

Acresce que, da decisão recorrida não resulta que o julgador se tenha debatido, no final do julgamento, com qualquer dúvida razoável e/ou insanável e que perante ela tenha decidido em desfavor da arguida ou, muito menos, que, perante a prova que foi produzida e examinada, essa dúvida devesse ter subsistido.

Ora, perante a inexistência dessa dúvida razoável, não faz sentido apelar-se à aplicação daquele princípio constitucional, inexistindo qualquer violação do princípio in dubio pro reo.

É assim, manifesta a falta de razão que, nesta parte assiste à Recorrente.

4 - Reapreciação da matéria de facto

Inexistindo qualquer nulidade, e não se verificando qualquer um dos vícios do art. 410º, do Código de Processo Penal, vejamos, agora, se esta Relação pode  reapreciar a decisão proferida sobre a matéria de facto.

 É que,

A recorrente afirma, a fls. 881, que este tribunal «pode, porque tem acesso exacto ao teor da prova produzida em audiência, pronunciar-se sobre a matéria de facto dada como provada pelo tribunal recorrido e que é alvo do presente recurso».

Pretende, assim, impugnar a decisão que julgou a matéria de facto, em primeira instância, nos termos e para os efeitos, do disposto no art. 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, muito embora, não faça qualquer referência expressa a este dispositivo legal.

Dispõe este preceito, quanto à forma a que deve obedecer a Motivação e Conclusões do Recurso, recai sobre o Recorrente, o ónus de especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.

Quando as provas tenham sido gravadas, como sucede no caso presente, as especificações mencionadas nas alienas b) e c) referidas, fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no art. 364º, nº 2, devendo o Recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.

É o que resulta do nº 4 do mencionado art. 412º.

No caso dos autos, nenhuma referência é feita, seja na Motivação e/ou nas Conclusões, à concretização dos pontos de fato que considera incorrectamente julgados, ou aos meios de prova que, para cada um imponham uma decisão diversa. Ou seja, não foi dado cumprimento ao que dispõe o nº 3, al. a) e b) do art. 412º citado.

E, assim, sendo, não há lugar ao convite de aperfeiçoamento a que alude o art. 417º, nº 3, do Código de Processo Penal, pois o aperfeiçoamento do recurso imporia a modificação do seu âmbito, nomeadamente, na Motivação, a que obsta o nº 4 do mesmo preceito e diploma, onde se lê:

«O aperfeiçoamento previsto no número anterior não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação».

Consequentemente, rejeita-se, o recurso quanto à decisão sobre a matéria de facto, nos termos e para efeitos, do disposto no art. 412º, nº 3, do Código de Processo Penal.

Mantém-se, assim, na íntegra, a factualidade da como provada na primeira instância.

5 - Dosimetria das penas parcelares

A arguida foi condenada pela prática de:

- um crime de falsificação de documentos previsto e punido pelos artigos 255º, al. a) e c) e 256º, nº1, al. a) e c) e nº 3 do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão;

- um crime de burla qualificada previsto e punido pelo art. 217º, nº1 e 218º, nº2, al. a), do  Código Penal na pena de 4 anos de prisão.

A escolha e medida da pena obedece a critérios legais, devidamente delineados nos art.s 70º a 74º do Código Penal.

Na determinação da pena, deve o julgador ponderar, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele, designadamente as elencadas nas diversas alíneas do nº 2, do art. 71º do Código Penal, a saber:

- As reportadas à execução do facto, desde o grau da ilicitude, o modo de execução, o grau de violação dos deveres impostos ao agente, intensidade da culpa sentimentos manifestados e fins determinantes da conduta [alíneas a), b) e c)];

- As relativas à personalidade do agente: as suas condições pessoais e situação económica, bem como a falta de preparação para manter uma conduta lícita manifestada no facto [alíneas d) e f)];

- As que respeitam à conduta do agente anterior e posterior ao facto [alínea e)].

A aplicação de uma pena tem como finalidade, di-lo o art. 40º do Código Penal, a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, sendo que em, caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa. 

Como se realça no Acórdão desta Relação de 4 de Maio de 2013 – www.dgsi.pt – citando, a Prof. Anabela Rodrigues e o Acórdão do STJ de 4.7.2006, «a prevenção geral radica, no significado que a “gravidade do facto” assume perante a comunidade, isto é, importa aferir do significado que a violação de determinados bens jurídicos penais tem para a comunidade e satisfazer as exigências de protecção desses bens na medida do necessário para assegurar a estabilização das expectativas da validade do direito ou, por outra forma, a consideração da prevenção geral procura dar “satisfação à necessidade comunitária de punição do caso concreto, tendo-se em conta de igual modo a premência da tutela dos respectivos bens jurídicos».

No caso dos autos,

Na determinação da medida concreta de cada uma das penas parcelares, ponderou o tribunal recorrido:

«O comportamento da arguida apresenta elevada ilicitude, sendo revelador de uma personalidade social gravemente desconforme, capaz de se aproveitar da ausência de alguém no estrangeiro para,  mediante uma estratégia insidiosa e elaborada (em momentos  chega a ser causadora de estupefacção, tal o requinte revelado na execução), se apossar, para além da identidade, de avultada quantia pecuniária, mostrando-se alheia aos problemas criados.

Ao longo do processo não vimos sinais de arrependimento, sentido de colaboração (nem sequer para efeito de realização do relatório social) ou manifestação séria no sentido de procurar eliminar ou diminuir as consequências dos factos ilícitos.

Como única circunstância favorável o não apresentar condenações em momento anterior.

Com estes elementos e ponderando ainda o número de ilícitos inseridos na unidade criminosa quanto ao crime de falsificação de documentos, mostra-se ajustado as penas»  de 3 e 4 anos de prisão, respectivamente para os crimes de falsificação e de burla qualificada.

Acolhemos estes argumentos, sendo certo que não foram colocados em crise pela Recorrente.

Com efeito, se a situação pessoal da arguida não foi tomada em conta, apenas se deve ausência de colaboração da arguida, nomeadamente, para a realização do relatório social.

Além de que a arguida não praticou qualquer acto no processo que indiciasse acto de arrependimento, ou vontade de minimizar ou reparar os danos que causou.

Não foi a ausência da arguida em julgamento que fundamentou a medida concreta da pena, mas sim o desconhecimento de circunstâncias atenuantes para além das que foram referenciadas no Acórdão recorrido.

A medida concreta de cada uma das penas parcelares aplicadas não merece, assim, qualquer censura.

  5 - Dosimetria da pena única de prisão

Resta, agora, determinar, se, no caso concreto e, em face dos factos provados, a pena de prisão aplicada à arguida obedece aos critérios do nº 1 do art. 77º do Código Penal, no quadro da moldura penal abstracta determinada pelos parâmetros nº 2 do mesmo preceito.

Em primeiro lugar, há que determinar, em função das penas parcelares aplicadas e do que dispõe o art. 77º, nº 2, qual a moldura penal que, em abstracto, se aplica ao caso concreto.

De acordo, com os critérios definidos no art. 77º, nº 2, a pena conjunta abstractamente aplicável à arguida situa-se entre os 3 e os 7 anos de prisão.

Dentro desta moldura penal, o quantum concreto da pena única há-de atender ao conjunto dos factos e à personalidade do agente. É o que decorre do art. 77º nº 1[6].

O sistema de punição do concurso de crimes, lê-se, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 13.9.2006, localizado no site da DGSI - www.dgsi.pt – sitio onde poderão ser visualizados os Arestos a indicar no futuro:

«rejeita  uma visão atomística da pluralidade de crimes e obriga a olhar para o conjunto – para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado da vida criminosa com a personalidade do seu agente».

 Quem julga, depois de apuradas as penas parcelares aplicáveis a cada um dos crimes em concurso,  «(…) há-de descer da ficção, da visão compartimentada que está na base da construção da moldura e atentar na unicidade do sujeito em julgamento. A perspectiva nova, conjunta, não apaga a pluralidade de ilícitos, antes a converte numa nova conexão de sentido. Adverte que o todo não equivale à mera soma das partes e repara, além disso, que os mesmos tipos legais de crime são passíveis de relações existenciais diversíssimas, a reclamar uma valoração que não se repete de caso para caso. A esse novo ilícito corresponderá uma nova culpa. Que continua a ser culpa pelos factos em relação. Afinal, a avaliação conjunta dos factos e da personalidade de que fala o CP[7]».

«A fixação da pena de cúmulo - meio judicial para encontrar ponderadamente a pena única adequada a responder simultaneamente às exigências de prevenção geral e especial - não constitui um re-sancionamento do agente depois das penas parcelares, mas realiza a finalidade de determinar a pena individualizada do conjunto num sistema diverso da acumulação e da exasperação, prevenindo a relativa incerteza decorrente da concretização da sanção concreta a cumprir apenas no âmbito da execução.

A aplicação e a interacção das regras do artigo 77º, nº 1, do Código Penal (avaliação em conjunto dos factos e da personalidade) convocam critérios de proporcionalidade material na fixação da pena única dentro da moldura do cúmulo, por vezes de grande amplitude; proporcionalidade e proibição de excesso em relação aos fins na equação entre a gravidade do ilícito global e a amplitude dos limites da moldura da pena conjunta».[8].

Ressaltando da factualidade conhecida:

- A gravidade dos factos praticados num curto espaço de tempo;

- O mecanismo engendrado para obtenção de proveitos económicos à custa da ofendida, através da usurpação de identidade e falsificação de documentos;

- Os valores do prejuízo;

- O tempo decorrido desde a data da prática dos factos;

-   A ausência de antecedentes criminais da arguida,

Somos a entender que a pena única de 5 anos e 6 meses de prisão aplicada pelo tribunal recorrido não merece qualquer censura.

A pena concretamente aplicada à arguida afasta a possibilidade de substituição da prisão por uma outra pena não detentiva de liberdade, o que prejudica o conhecimento da penúltima conclusão da recorrente.

Por tudo o exposto, julga-se não provido o recurso.

V – DECISÃO

Nestes termos, os Juízes desta Relação acordam julgar não provido o recurso interposto pela arguida, A....

Custas pela arguida, com taxa de justiça que se fixa em 4 UCS.

Notifique.

Coimbra, 10 de Setembro de 2014

Alcina da Costa Ribeiro (relatora)

Cacilda Sena (adjunta)


[1] Santos Cabral, Código de Processo Penal Comentado (2014), Henriques Gaspar,  Santos Cabral, Maia Costa, Oliveira Mendes, Pereira Madeira e Pires da Graça, pág. 614.
[2] Acórdão do Tribunal Constitucional nº 425/2005, proferido no processo nº 425/05.
[3] Acórdão do Tribunal Constitucional nº 425/2005, proferido no processo nº 425/05.
[4] Santos Cabral. Ob. citada, pág. 616.
[5] Acessíveis em www.dgsi.pt, local onde poderá ser encontrada a demais jurisprudência que vier a ser citada sem menção do contrário.

[6] «Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente». 
[7] Cristina Líbano Monteiro, A pena "unitária" do concurso de crimes», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 16, n.º 1, Janeiro-Março 2006, Coimbra Editora, p. 151 e ss.   
[8] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, no seu Acórdão de 17 de Abril de 2013 – www.dgsi.pt.dgsi.pt.