Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
123/09.0GTVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ABÍLIO RAMALHO
Descritores: ACTO PROCESSUAL
CORREIO ELECTRÓNICO
CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
EXAME SANGUÍNEO
CONSENTIMENTO
Data do Acordão: 01/25/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 3º JUÍZO CRIMINAL DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 103.º, N.º 1, DO C. P. PENAL; 150.º, NS. 1 E 2, E 138.º-A, DO C. P. CIVIL, (NAS VERSÕES DECORRENTES DO DL N.º 303/2007, DE 24/08); E 1.º, AL. A), E 2.º, DA PORTARIA N.º 114/2008, DE 06/02, (REGULAMENTADORA DO CITADO ART.º 138.º-A, DO C. P. CIVIL, QUER NA REDACÇÃO ORIGINAL, QUER NA QUE SUCESSIVAMENTE LHE FOI INTRODUZIDA PELAS PORTARIAS NS. 457/2008, DE 20/06, 1538/2008, DE 30/12, 195-A/2010, DE 08/04, E 471/2010, DE 08/07), 153º Nº 8 E 156º Nº 2 DO CÓDIGO DA ESTRADA.
Sumário: 1.- Excluindo os atos processuais escritos que devam ser praticados no âmbito dos tribunais de execução de penas, é ilegal a utilização do correio-electrónico no âmbito do processo criminal e contraordenacional para apresentação a juízo de atos processuais escritos.

2. - Em momento algum a lei impõe ou exige que se formule um pedido expresso de consentimento de quem tem que sujeitar-se ao exame de recolha de sangue para aferição do grau de alcoolemia.

Decisão Texto Integral: I – INTRODUÇÃO

§ 1.º


1 – A..., (arguido, melhor id.º nos autos, máxime a fls. 21 e 83), notificado da sentença – documentada na peça de fls. 86/94 – que, na sequência de pertinente julgamento, o condenou à pena principal de 110 (cento e dez) dias de multa, à razão diária de € 5,00 (cinco euros), bem como à acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo período de 6 (seis) meses, a título punitivo dum crime de condução automóvel em estado de embriaguez, (p. e p. pelo art.º 292.º, n.º 1, do C. Penal), dela se manifestou inconformado em recurso documentado pelas peças juntas a fls. 99/104 e 105/110, pugnando pela pessoal absolvição, em razão de alegada ilegalidade da colheita sanguínea que, na sequência do pessoal transporte a unidade hospitalar para assistência clínica a ferimentos contraídos em acidente rodoviário (despiste) em que interveio, lhe terá sido (desautorizadamente) realizada, com vista à analítica indagação da presença de álcool – aliás confirmada (TAS de 3,14 g/l!) – e da condução automóvel sob a respectiva influência, como se observa do referente quadro-conclusivo:
«[…]
a) No hospital o arguido, sem que para o efeito tivesse sido informado ou sequer dado o seu consentimento, foi alvo de uma colheita de sangue para análise do álcool a fim de se determinar se o mesmo conduzia, ou não, no estado de influenciado pelo álcool.
b) O arguido, ora recorrente, deveria ter sido informado ou estar devidamente esclarecido do fim a que se destinava a recolha de sangue.
c) Existiu, assim, uma obtenção desleal do seu material biológico para além de ter sido omitido um procedimento essencial ao seu direito fundamental a um processo penal justo – o direito a saber que a recolha de sangue em causa era para efeitos de eventual responsabilização criminal e, assim, poder fazer valer o seu direito processual penal a não se auto-incriminar.
d) Para além destas apontadas razões surgem ainda as questões ligadas à (i)legalidade das provas obtidas por meios que de uma forma ou de outra violam quer a dignidade da pessoa humana, quer os princípios inerentes ao processo penal quer ainda aos direitos constitucionalmente consagrados, violando-se os artigos 25º, 32º n.º 8 da Constituição da República Portuguesa e 126º n.º 1 do Código de Processo Penal.
e) Assim, a douta sentença proferida pelo Tribunal "a quo", ao condenar, como condenou, o arguido pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, violou o artigo 292º n.º 1 do Código Penal;
f) Ao ser aplicado ao recorrente, a pena acessória de proibição de conduzir, foi violado o artigo 69º do C. Penal.
[…]»

2 – O Ministério Público pronunciou-se – em primeira instância e nesta Relação – pela insubsistência argumentativa e pela consequente improcedência recursória, (vide referentes peças processuais – de resposta e parecer – de fls. 113/115 e 123/125, nesta sede identicamente tidas por reproduzidas nos respectivos dizeres).


§ 2.º


Realizado o pertinente exame preliminar, em conformidade com o estatuído no n.º 6, al. b), do art.º 417.º do CPP, o desembargador-relator rejeitou o recurso, por concernente decisão-sumária (exarada a fls. 128/133), por extemporaneidade, em razão da ajuizada invalidade do meio utilizado para a manifestação da vontade/motivação recursória – correio-electrónico – em razão da própria (do relator) interpretação da dimensão normativa resultante da conjugação dos arts. 103.º, n.º 1, do C. P. Penal; 150.º, ns. 1 e 2, e 138.º-A, do C. P. Civil, (nas versões decorrentes do DL n.º 303/2007, de 24/08); e 1.º, al. a), e 2.º, da Portaria n.º 114/2008, de 06/02, (regulamentadora do citado art.º 138.º-A, do C. P. Civil, quer na redacção original, quer na que sucessivamente lhe foi introduzida pelas Portarias ns. 457/2008, de 20/06, 1538/2008, de 30/12, 195-A/2010, de 08/04, e 471/2010, de 08/07).

§ 3.º


Exercitando o direito conferido pelo n.º 8 do citado art.º 417.º do CPP, dela o id.º arguido/recorrente reclamou para a conferência, em peça processual (junta a fls. 136/140 e 143/147 – respectivamente, reprodução de ficheiro anexo a mensagem de correio-electrónico e correspondente original –, nesta sede identicamente tida por reproduzida nos respectivos dizeres) cuja substância essencialmente corporiza contraposição afirmativa da validade da utilização do correio-electrónico em processo criminal, por pretenso efeito da normatividade da Portaria n.º 642/2004 de 16/06, no que ao particular conspecto atine alegadamente não revogada pelo art.º 27.º da Portaria nº 114/2008 de 06/02, e sustentação da tempestiva apresentação directa – em mão – da peça recursória na própria secretaria judicial do tribunal recorrido.


II – APRECIAÇÃO DA RECLAMAÇÃO


1 – Em função da peremptória afirmação do recorrente/reclamante da oportuna apresentação pessoal/directa da peça recursória no tribunal recorrido, por impulso do ora relator foi, de facto, confirmada tal realidade, (cfr. fls. 154) – que os autos no imediato não revelavam –, razão pela qual se impõe o reconhecimento da insubsistência de fundamento ao operado juízo de extemporaneidade da manifestação recursória operado na questionada decisão-sumária, que, dessarte, nessa medida se revogará.

2 – Sempre se reiterará, contudo, o produzido juízo de actual ilegalidade da utilização do correio-electrónico no âmbito do processo criminal e contra-ordenacional para apresentação a juízo de actos processuais escritos, já que a Portaria n.º 642/2004 de 16/06, acto regulamentar do governo em que o reclamante se estriba para sustentar a validade de tal procedimento, foi, obviamente, no que tange ao processo civil e, logo, também ao criminal e contra-ordenacional – que a respectiva disciplina têm por subsidiária, (cfr. arts. 4.º do CPP e 41.º, n.º 1, do RGCO, aprovado pelo D.L. n.º 433/82, de 27/10) –, tacitamente revogada pelo acto legislativo traduzido no D.L. n.º 303/2007, de 24/08 – fonte normativa hierarquicamente superior ao regulamento do governo, seu mero complemento, a ele (decreto-lei) necessariamente subordinado e vinculado, de que a portaria (a citada ou outra) constitui subcategoria, (cfr. art.º 112.º, ns. 1, 6 e 7, da Constituição Nacional) –, que, sendo-lhe posterior, pela nova redacção dessarte introduzida (pelo respectivo art.º 1.º) aos arts. 150.º (mormente ns. 1 e 2) e 138.º-A (aditado pela Lei n.º 14/2006, de 26/04) do Código de Processo Civil, e pela consequente e integrada dimensão normativa daí decorrente, eliminou tal modo (correio-electrónico) de apresentação a juízo de actos processuais escritos, e, logo, por manifesta incompatibilidade, como é de palmar e incontornável apreensibilidade, a atinente disciplina por tal acto regulamentar postulada, (vide art.º 7.º, n.º 2, do Código Civil), que substituiu pela resultante e subsequentemente regulamentada pela Portaria n.º 114/2008, de 06/02, de cujo art.º 2.º (quer na versão original quer nas posteriores) claramente decorre a respectiva inaplicabilidade ao procedimento criminal e contra-ordenacional, como, aliás, o próprio recorrente-reclamante expressamente reconhece no ponto VIII da sua reclamação[1].


II – AVALIAÇÃO RECURSÓRIA


1 – Como emerge da economia da peça recursória, máxime da vertente conclusiva da respectiva motivação (supra transcrita), funda o id.º arguido-recorrente a sua tese de invalidade da valoração do relatório da análise sanguínea para pesquisa de alcoolemia – efectuada em unidade hospitalar para onde foi transportado na sequência de acidente rodoviário em que interveio – em pretensa nulidade de tal meio de obtenção probatória, alegadamente decorrente de desautorizada recolha de sangue para o efeito, supostamente inconsentida pela dimensão normativa integrada pelos preceitos ínsitos nos arts. 25.º e 32.º, n.º 8, da Constituição, e 126.º do Código de Processo Penal[2].

2 – Com o devido respeito, só por incúria ou má-fé processual se compreende que ainda temerariamente se teime em tal construção defensiva, em incauto menosprezo da vasta e bem-consolidada linha jurisprudencial já de há muito a propósito produzida quer pelo Tribunal Constitucional quer pelos diversos tribunais de segunda instância nacionais, mormente pelo deste tribunal da Relação de Coimbra, no sentido de que, do confronto entre os direitos individuais à incolumidade da integridade física e a protecção da segurança da circulação rodoviária e, reflexamente, da comum segurança das pessoas face ao trânsito de veículos, como a vida e/ou a integridade física – bens jurídicos protegidos, máxime, pelo tipo-de-ilícito de condução de veículo em estado de embriaguez (p. e p. pelo art.º 292.º do C. Penal) –, se deverá conceder natural prevalência a est’último interesse geral, em conformidade com a estatuição normativa do n.º 2 do art.º 18.º da Constituição[3], e, logo, ao reconhecimento da constitucionalidade do comando legal resultante da dimensão normativa decorrente da integrada interpretação do n.º 8 do art.º 153.º e do n.º 2 do art.º 156.º, ambos do Código da Estrada (CE), e dos ns. 3 do art.º 1.º, 1 do art.º 4.º e 1 do 5.º, todos da Lei n.º 18/2007, de 17/05[4], postulante da obrigatoriedade da recolha de sangue para pesquisa de alcoolemia a condutor ou peão interveniente em acidente de viação que, por efeito de sequelas físicas em tal evento contraídas, houvesse na sequência sido conduzido a estabelecimento oficial de saúde, independentemente do respectivo consentimento, e, por consequência, à validade legal da judicial valoração, máxime em sede de julgamento, do relatório resultante do próprio/adequado procedimento técnico-analítico, de que são exemplificativo exemplo os seguintes acórdãos:

2.1 – Do Tribunal Constitucional (em que se incluem também os reconhecedores da constitucionalidade orgânica das normas impositivas da sujeição à recolha sanguínea para pesquisa de alcoolemia a condutor/peão que, sendo interveniente em sinistro rodoviário, haja sido conduzido a estabelecimento oficial de saúde):

– Ns. 319/95, 479/2010, 485/2010, 15/2011, 16/2011, 28/2011, 47/2011, 48/2011, 397/2011 e 407/2011, disponíveis/consultáveis em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos;

2.2 – Deste Tribunal da Relação de Coimbra:

– De: 14/07/2010 (produzido no âmbito do proc. n.º 113/09.3GBCVL.C1)[5]; 10/11/2010 (produzido no âmbito do proc. n.º 35/09.8PTFIG.C1)[6]; 26/01/2011 (produzido no âmbito do proc. n.º 52/10.5GAANS.C1)[7]; 20/12/2011 (produzido no âmbito do proc. n.º 387/08.7GTLRA.C1)[8] e da mesma data, de 20/12/2011 (produzido no âmbito do proc. n.º 408/09.6GAMMV.C1)[9], disponíveis/consultáveis em http://www.dgsi.pt/jtrc;

2.3 – Do Tribunal da Relação do Porto:

– De: 20/10/2010 (produzido no âmbito do proc. n.º 1271/08.0PTPRT.P1)[10]; 18/05/2011 (produzido no âmbito do proc. n.º 438/08.5GCVNF.P1)[11] e de 19/10/2011 (produzido no âmbito do proc. n.º  294/10.3PTPRT.P1)[12], disponíveis/consultáveis em http://www.dgsi.pt/jtrp;

2.4 – Do Tribunal da Relação de Évora:

– De 11/10/2011 (produzido no âmbito do proc. n.º 101/09.0GBMMN.E1)[13], disponível/consultável em http://www.dgsi.pt/jtre.

Porque bastantemente de tal ilustrativo, tem-se por oportuno reproduzir a nuclearidade da fundamentação do referido acórdão de 20/12/2011, desta Relação de Coimbra, produzido em sede recursória do proc. n.º 408/09.6GAMMV.C1[14], incidente sobre similar problemática, cuja essencial juridicidade ora se reitera (com realces do ora relator):
«[…]
Validade do exame de detecção de álcool efectuado ao arguido:
Validade do exame:
O procedimento para a fiscalização da condução sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas está actualmente estabelecido no Código da Estrada aprovado pelo Decreto Lei nº 44/2005 de 23 de Fevereiro e pelo Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, estabelecido na Lei nº 18/2007 de 17 de Maio.
Daqueles diplomas decorre que em caso de fiscalização é obrigatório sujeitarem-se, a) os condutores, b) os peões, sempre que sejam intervenientes em acidentes de trânsito, c) as pessoas que se propuserem iniciar a condução.
O regime geral da fiscalização assenta na obrigatoriedade do sujeito passivo se sujeitar, por regra, a um exame de pesquisa de álcool no ar expirado, realizado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito, a que pode seguir-se um procedimento diferenciado relativo à contraprova.
Sublinhe-se que o método regra da determinação quantitativa da taxa de álcool é o teste no ar expirado, sendo que a análise de sangue só é efectuada quando não for possível realizar o teste em analisador quantitativo.
A detecção de álcool no sangue dos condutores através de análise sanguínea não constitui qualquer prova proibida pelos arts. 32º/8 da Constituição da República Portuguesa e pelo art.º 126º do Código de Processo Penal.
O art.º 156º do Código da Estrada ao regular a fiscalização da condução sob a influência de álcool prevê a realização de exames para a sua detecção, começando pelo uso dos alcoolímetros regularmente aprovados, passando à análise sanguínea e rematando com o exame médico.
Também no Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool aprovado pela Lei n.º 18/2007 de 17/5 se prevê que «A análise de sangue é efectuada quando não for possível realizar o teste em analisador quantitativo» (art. 1º/3).
Como é referido no Ac. desta Relação, proc. 230/08.7GCTND.C1, “Trata-se de prova pericial cuja utilização seriada a lei estabelece com minúcia, pelo que não é de utilização indiscriminada ou arbitrária”.
O arguido alega que a análise ao sangue constitui prova proibida, traduzindo-se numa agressão física à sua pessoa, por não se ter verificado o consentimento.
Mas carece de fundamento esta alegação já que nenhum direito é absoluto, mesmo os constitucionalmente consagrados, prevendo a Constituição que a lei pode restringir os direitos, liberdades e garantias … desde que tais restrições se limitem ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
E acrescenta o mesmo Ac., “Ora, a intervenção policial na sua função de fiscalização do trânsito é também uma acção de prevenção da prática de outras violações contra a liberdade, o património e vida e a integridade física quer do agente fiscalizado quer dos restantes utentes da estrada.
Daí a previsão legal e a possibilidade de fiscalização de qualquer condutor que opte pela condução na via pública”.
Embora a regra seja a liberdade e a restrição a excepção, esta também está constitucionalmente consagrada em obediência ao princípio da proporcionalidade na limitação recíproca dos direitos de cada um.
Relativamente a esta matéria e, porque a questão é a mesma, seguimos de perto o Ac. desta Relação, proc. 113/09.3GBCVL.C1.
“A obrigatoriedade geral pressupõe, assim, algumas especificidades no âmbito do procedimento da colheita de sangue, em função das circunstâncias em que o sujeito passivo se encontrar, nomeadamente existirem condições de saúde, clinicamente demonstradas, em que o exame não possa ser realizado ou quando após três tentativas sucessivas, o examinado não conseguir expelir ar em quantidade suficiente para a realização do teste em analisador quantitativo (cf. artigos 153º nº 8 do CE e 4º da Lei n.º 18/2007).
Daí que a lei estabelece que «se não for possível a realização de prova de álcool no ar expirado, o examinando deve ser submetido a colheita de sangue para análise ou se esta não for possível por razões médicas, em estabelecimento oficial de saúde» - (cf. artigos 153º nº 8 do CE).
Insere-se nestas situações o caso especifico dos exames efectuados a condutores ou peões que intervenham em acidentes de viação cujo estado de saúde não permita que sejam submetidos a exame de pesquisa de álcool no ar expirado (cf. 156º n.º 2 do CE).
Nestas situações, ou seja quando não for possível a realização de exame por ar expirado, através de um procedimento próprio, «o médico do estabelecimento oficial de saúde a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos deve proceder à colheita da amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool» (cf. 156º nº 2 do CE e 4º e 5º da Lei nº 18/2007).
As necessidades de prevenção que estão na origem deste regime são tão fortes que impõem, inclusive uma cominação criminal ao médico ou paramédico que, sem justa causa, se recusar a proceder às diligências previstas na lei para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool, ou de substâncias psicotrópicas, (é punido por crime de desobediência - cf. artigo 152º n.º 5 do CE.
Todo este regime está estabelecido no Código da Estrada e na Lei nº 18/2007 e é, por isso, conhecido pelos cidadãos, quer sejam condutores, quer sejam peões (que no caso, sejam intervenientes em acidentes de viação), quer sejam pessoas que se proponham iniciar a condução.
Importa sublinhar que o regime legal dá ao cidadão objecto de fiscalização a total liberdade de não querer efectuar o exame de pesquisa de álcool. Ainda aqui a liberdade individual, «de ir livre e conscientemente para o Inferno», na expressão de Figueiredo Dias, é absolutamente garantida.
Essa liberdade individual tem, no entanto, os seus custos. Ou seja, a recusa a submeter-se a exame implica a punição por crime de desobediência – artigo 152º nº 3 do CE.
É isso que exigem as razões de prevenção que estão na origem da fixação do regime da proibição de condução sob influência de álcool.
Recorde-se que sobre a relevância do exame de colheita de álcool o Tribunal Constitucional e a sua eventual colisão com outros direitos, já se pronunciou, no sentido de que «o exame para pesquisa de álcool (...), destinando-se, não apenas a recolher uma prova perecível, como também a impedir que um condutor, que está sob influência de álcool, conduza pondo em perigo, entre outros bens jurídicos, a vida e a integridade física próprias e as de outros, mostra-se necessário e adequado à salvaguarda destes bens jurídicos e ao fim da descoberta da verdade, visado pelo processo penal» (Ac. nº 319/95).
[…]
O que importa reter do que se vem dizendo é que o cidadão, desde que esteja em condições de o fazer, pode recusar-se sempre a submeter-se ao exame de detecção, assuma este a forma de colheita por ar expirado ou por exame ao sangue. Não há testes coercivos, nesta como noutras matérias.
Recusa que o cidadão terá que fazer perante a autoridade policial ou perante o médico, consoante as circunstâncias.
É evidente que o limite à recusa está na impossibilidade de ser prestada por virtude de razões de saúde (por exemplo, estado de inconsciência decorrente de um acidente de viação ou mesmo, decorrente de estado de inconsciência decorrente da própria quantidade de álcool que ingeriu).
Ora nesses casos, como se viu, a lei expressamente impõe que seja realizado através da colheita de sangue em estabelecimento oficial de saúde.
Não tendo sido manifestada qualquer recusa (podendo ou não ter sido, consoante os casos) então o que há a fazer é apenas e só efectuar a pesquisa.
É evidente que poderá a entidade fiscalizadora ou o médico que está perante o cidadão a quem tem que efectuar a colheita, deparar-se com circunstâncias que lhe permitam percepcionar que a vontade do cidadão era recusar-se a tal exame (veja-se o caso da existência de uma declaração escrita ou mesmo a existência de prova testemunhal absolutamente credível e actualizada que indique a vontade do cidadão a recusar-se a fazer, naquele momento, o exame).
Nessas situações – e só nessas – então deve suscitar-se a questão do consentimento do cidadão, nomeadamente o que fazer perante essa dúvida, sabido que não pode a ordem jurídica suportar a realização de «exames forçados» ou contra a vontade do titular do direito em causa”.
Após um acidente de viação em que interveio (despiste), o arguido, foi transportado ao Hospital para aí ser assistido (assim como o acompanhante no veículo).
Quando as autoridades chegaram ao local do acidente, já o arguido estava na ambulância para ser conduzido ao Hospital.
Examinada a amostra, verificou-se uma concentração de álcool etílico de 1,67 g/l.
O arguido suscita a questão de não ter sido pedido o seu consentimento ou autorização para se sujeitar ao exame.
O arguido em momento algum expressou qualquer vontade de recusa à realização do exame, nem existia previamente qualquer circunstância que permitisse concluir ser essa a sua vontade – recusar-se a submeter-se ao exame, com as consequências legais que isso implica.
O arguido não podia desconhecer o regime legal da proibição de condução sob o efeito de álcool nem o regime normativo (acima descrito) que leva à recolha de sangue, quando não é possível proceder à recolha pelo método de aspiração.
Em momento algum a lei impõe ou exige que se formule um pedido expresso de consentimento de quem tem que sujeitar-se ao exame de recolha de sangue para os efeitos referidos. Até porque, como se viu, o exame de sangue é a via excepcional para a recolha de prova admitida na lei para tal efeito, apenas admissível em casos expressamente tipificados, nomeadamente quando o estado de saúde não permite o exame por ar expirado ou esse exame não for possível (veja-se o artigo 153º nº 8 e 156 nº 2).
A exclusão liminar da admissibilidade de exames coercivos está, assim, assegurada pela simples oposição – recusa – do titular do interessado em sujeitar-se ao exame.
Não se foi, nesta matéria, para a exigência de um consentimento expresso para a recolha de exames.
Apenas uma palavra quanto à questão do consentimento e da sua relevância no regime penal, estabelecido nos artigos 38º e 39º do CP.
No caso do consentimento presumido, estabelece o artigo 39º n.º 2 do CP que «há consentimento presumido quando a situação em que o agente actua permite razoavelmente supor que o titular do interesse juridicamente protegido teria eficazmente consentido no facto, se conhecesse as circunstâncias em que este é praticado».
É doutrina pacífica que «o consentimento presumido assume sempre carácter subsidiário, no sentido de que só é legítima a sua invocação quando não for possível obter a manifestação expressa da vontade ou houver perigo sério na demora (cfr. a este propósito Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª edição, p. 490).
Se não existem motivos para pôr em dúvida séria a vontade real da pessoa que está em causa no sentido de não ser admissível a prática do acto médico então o acto é válido, por presumivelmente consentido.
Ora no caso dos autos, como se referiu, em momento algum se suscitou essa questão da vontade real do arguido em recusar ou não permitir o acto médico que possibilitou a concretização do exame.
Por outro lado, e estando o arguido capaz, física e mentalmente, como se alega no recurso, deveria o mesmo opor-se à recolha do sangue para a análise à detenção do álcool, se essa fosse a sua intenção.
Daí que não seja sequer de suscitar-se a questão do consentimento.
Em síntese, a recolha de sangue efectuada ao arguido não sofre de qualquer patologia processual sendo válida e nessa medida a prova produzida decorrente desse exame que demonstra que o arguido apresentava uma TAS de 1.67 g/l de álcool no sangue é uma prova válida.
Quer quanto ao exame através do ar expirado quer através da recolha de sangue, não é necessário consentimento expresso do arguido, para que o mesmo seja efectuado. No entanto pode haver recusa quer a um ou a outro desses exames, mas em tal circunstância, o arguido incorrerá em crime de desobediência.
A ser como o arguido pretende, necessidade de consentimento, como conciliar com a norma do art. 156 nº 4 do Código da Estrada, que estatui: “1 - Os condutores e os peões que intervenham em acidente de trânsito devem, sempre que o seu estado de saúde o permitir, ser submetidos a exame de pesquisa de álcool no ar expirado, nos termos do artigo 153.
2 - Quando não tiver sido possível a realização do exame referido no número anterior, o médico do estabelecimento oficial de saúde a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos deve proceder à colheita da amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool.
3 - Se o exame de pesquisa de álcool no sangue não puder ser feito, deve proceder-se a exame médico para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool.
4 - Os condutores e peões mortos devem também ser submetidos ao exame previsto no n.º 2”.
As autoridades, a quem competia verificar se o arguido estava em condições de ser submetido a pesquisa de álcool no ar expirado, concluíram por essa impossibilidade, por o arguido já estar na ambulância quando chegaram ao local do acidente, bem como na urgência do Hospital.
Assim que a pesquisa só poderia efectuar-se através do exame ao sangue, excepto se se tivesse verificado recusa por parte do arguido, o que não aconteceu.
Neste sentido, vem decidindo a jurisprudência.
Processo nº 90/08.8PTVIS.C1 do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, por nós relatado.
O Ac. desta Relação de 21-11-2007, proferido no processo 6/05.3PTVIS.C1 refere:
“1- A recolha de sangue para determinação do grau de alcoolemia não ofende nem viola o direito à integridade e à autodeterminação corporal. A extensão do conteúdo da análise, comprovação da existência de álcool no sangue, o fim a que destina, a fixação do resultado em quaisquer bases de dados, o fim preventivo que se pretende alcançar são alguns dos argumentos que poderiam ser aduzidos a favor desta tese.
2- A prova de colheita de sangue realizada nos termos e sob a alçada da lei estradal, ainda que sem consentimento do arguido, não viola nenhum preceito constitucional”.
O Ac. da Relação do Porto, de 20-10-2010, proferido no processo 1271/08.0PTPRT.P1 refere:
“A colheita de amostra de sangue ao arguido para realização do exame a que se refere o nº 2 do art. 156º do Código da Estrada, sem ele a haver expressamente autorizado, não gera nulidade da prova por esse meio obtida”.
[…]»

  Ora, como no caso em referência, nunca nas diversas fases deste processo se suscitou a questão da vontade real do arguido em recusar ou não permitir o acto médico que possibilitou a concretização do exame sanguíneo de pesquisa de alcoolemia, e de, consequentemente, optar pela sujeição a procedimento criminal tendente à pessoal punição por crime de desobediência.

Daí que, não lhe assistindo o direito potestativo a qualquer prévio pedido de autorização à recolha hematológica para tal finalidade na unidade hospitalar para onde a seu benefício foi conduzido para recebimento de assistência clínica a sequelas físicas aparentemente contraídas por efeito do sinistro para que activamente concorreu, nenhuma base de sustentação juridicamente válida ora se lhe reconheça.

Por conseguinte, por nenhuma nova razão plausível e juridicamente oponível a tal consolidada linha interpretativo-legal se alcançar, justificativa da concernente divergência, impor-se-á concluir pela manifesta improcedência do recurso e pela sua decorrente rejeição, [cfr. arts. 417.º, n.º 6, al. d) – aplicável por maioria de razão –, e 420.º, n.º 1, al. a) do C. P. Penal].


IV – DISPOSITIVO


Como assim – sem outras considerações, por inócuas –, o órgão colegial judicial reunido para o efeito em conferência neste Tribunal da Relação de Coimbra, delibera:

1 – Julgar, na medida supra apontada, (vide item 1 da parte II), a procedência da avalianda reclamação, e, consequentemente, julgando tempestiva a apresentação em juízo da manifestação e motivação recursória, revogar a afrontada decisão-sumária.

3 – Condenar o id.º recorrente A... ao pagamento da sanção pecuniária equivalente a 3 (três) UC, nos termos do n.º 3 do art.º 420 do C. P. Penal, a que acrescerá idêntico montante de 3 (três) UC, a título de taxa de justiça, pelo decaimento no recurso, (cfr., ainda, normativos 513.º, n.º 1, do CPP, e 8.º, n.º 5, do Regulamento das Custas Processuais).


***

Abílio Ramalho ( relator)

Luís Ramos


[1] «[…]
Do artigo 2° da Portaria 114/2008 (com as alterações introduzidas pelas Portarias nºs 457/2008, 1538/2008, 195-A/2010 e 471/2010) resulta, a contrario, que o sistema electrónico Citius não se aplica ao processo penal.
[…]»
[2]Artigo 25.º (Direito à integridade pessoal)
1 – A integridade moral e física das pessoas é inviolável.
2 – Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos.
***
Artigo 32.º (Garantias de processo criminal)
[…]
8 – São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.
[…]
***
Artigo 126.º (Métodos proibidos de prova)
1 – São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas.
2 – São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante:
a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos;
b) Perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação;
c) Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei;
d) Ameaça com medida legalmente inadmissível e, bem assim, com denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto;
e) Promessa de vantagem legalmente inadmissível.
3 – Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.
4 – Se o uso dos métodos de obtenção de provas previstos neste artigo constituir crime, podem aquelas ser utilizadas com o fim exclusivo de proceder contra os agentes do mesmo.
[3] Artigo 18.º (Força jurídica)
[…]
2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
[…]
[4] Código da Estrada:
Artigo 153.º (Fiscalização da condução sob influência de álcool)
[…]
8 - Se não for possível a realização de prova por pesquisa de álcool no ar expirado, o examinando deve ser submetido a colheita de sangue para análise ou, se esta não for possível por razões médicas, deve ser realizado exame médico, em estabelecimento oficial de saúde, para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool.
***
Artigo 156.º (Exames em caso de acidente)
1 – Os condutores e os peões que intervenham em acidente de trânsito devem, sempre que o seu estado de saúde o permitir, ser submetidos a exame de pesquisa de álcool no ar expirado, nos termos do artigo 153.º.
2 – Quando não tiver sido possível a realização do exame referido no número anterior, o médico do estabelecimento oficial de saúde a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos deve proceder à colheita da amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool.
[…]
***
Lei n.º 18/2007, de 17/05:
Artigo 1.º (Detecção e quantificação da taxa de álcool)
[…]
3 – A análise de sangue é efectuada quando não for possível realizar o teste em analisador quantitativo.
***
Artigo 4.º (Impossibilidade de realização do teste no ar expirado)
1 – Quando, após três tentativas sucessivas, o examinando não conseguir expelir ar em quantidade suficiente para a realização do teste em analisador quantitativo, ou quando as condições físicas em que se encontra não lhe permitam a realização daquele teste, é realizada análise de sangue.
2 – Nos casos referidos no número anterior, sempre que se mostre necessário, o agente da entidade fiscalizadora assegura o transporte do indivíduo ao estabelecimento da rede pública de saúde mais próximo para que lhe seja colhida uma amostra de sangue.
3 – A colheita referida no número anterior é sempre realizada nos estabelecimentos da rede pública de saúde que constem de lista a divulgar pelas administrações regionais de saúde ou, no caso das Regiões Autónomas, pelo respectivo Governo Regional.
Artigo 5.º (Colheita de sangue)
1 – A colheita de sangue é efectuada, no mais curto prazo possível, após o acto de fiscalização ou a ocorrência do acidente.
[…]


[5] Relatado pelo Ex.mo desembargador Mouraz Lopes.
[6] Relatado pelo Ex.mo desembargador Calvário Antunes.
[7] Relatado pelo Ex.mo desembargador Jorge Jacob.
[8] Relatado pelo Ex.mo desembargador José Eduardo Martins.
[9] Relatado pelo Ex.mo desembargador Jorge Dias.
[10] Relatado pela Ex.ma desembargadora Olga Maurício.
[11] Relatado pelo Ex.mo desembargador Artur Vargues.
[12] Relatado pelo Ex.mo desembargador Moisés Silva.
[13] Relatado pelo Ex.mo desembargador João Gomes de Sousa.
[14] Relatado pelo Ex.mo desembargador Jorge Dias.


2 – Rejeitar o recursopor manifesta improcedência.