Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
207/17.1GCCLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: NULIDADE DA SENTENÇA
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
RESISTÊNCIA E COACÇÃO SOBRE FUNCIONÁRIO CONVOLADO PARA OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA
Data do Acordão: 03/18/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DAS CALDAS DA RAINHA – J2
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 358.º, N.ºS 1 E 3, E 379.º, N.º 1, AL. B), DO CPP; ARTS. 347.º, 143.º, N.ºS 1 E 2, 145.º, N.º 1, AL. A), E N.º 2, E 132.º, N.º 2, AL. L), DO CP
Sumário: Padece da nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, al. b), do CPP, a sentença que, sem cumprimento do disposto no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do mesmo diploma, altera a qualificação jurídica dos factos, “convolando” o crime de resistência e coação sobre funcionário (artigo 347.º do CP), imputado ao arguido na acusação, para o crime de ofensa à integridade física qualificada p. p pelos arts. 143.º n.ºs 1 e 2 e 145.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, com referência ao art. 132.º n.º 2, al. l), do CP.
Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

                                                                                                                                         

I. Relatório:                                                                                      

            1. No âmbito do processo comum (tribunal singular) n.º 207/17.1GCCLD que corre termos na Comarca de Leiria – Juízo Local Criminal das Caldas da Rainha, em 3/6/2019, foi proferida Sentença, cujo DISPOSITIVO é o seguinte:

“DECISÃO:

Pelo exposto, decido:

A. Absolver A. da prática, no dia 03.08.2017, de e em concurso real, de um crime de resistência e coacção a funcionário, p.p. pelo art. 347.º n.º 1 do Código Penal.

B. Condenar A., pela prática, em concurso efectivo e autoria material, no dia 03.08.2017, de um crime de ofensa à integridade física qualificada p.p pelos arts. 143.º n.ºs 1 e 2 e 145.º n.º 1, alínea a), e nº 2, com referência ao art. 132.º n.º 2, alínea l), todos do Código Penal, na pena de 3 (três) meses de prisão;

C. Condenar A., pela prática, em concurso efectivo e autoria material, no dia 03.08.2017, de um crime de ofensa à integridade física qualificada p.p pelos arts. 143.º n.ºs 1 e 2 e 145.º n.º 1, alínea a), e nº 2, com referência ao art. 132.º n.º 2, alínea l), todos do Código Penal, na pena de 4 (quatro) meses de prisão;

D. Em cúmulo jurídico, condenar A. pena única de 5 (cinco) meses de prisão, substituída por 150 (cento e cinquenta dias de multa à taxa diária de 5,00€ (cinco euros).

E. (…)”.

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2. Inconformado com a decisão, dela recorreu, em 2/9/2019, a arguida, extraindo da motivação as seguintes conclusões:     

1-Nos autos supra mencionados, foi a arguida, ora recorrente, acusada e julgada pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de um crime de ofensa à integridade física qualificada p.p. pelos arts. 143º nº1 e 2 e 145º nº 1, al. a), e nº 2, com referência ao artº 132º nº 2, al. l), todos do código penal, e de um crime de resistência e coacção a funcionário, p.p. pelo artigo 347º, nº 1 do Código Penal.

2-Por sentença de 03/06/19, foi condenada pela prática, em concurso efectivo e autoria material, de um crime de ofensa à integridade física qualificada na pena de 3 meses de prisão e de um crime de ofensa à integridade física qualificada na pena de 4 meses de prisão, em cúmulo jurídico foi condenada na pena única de 5 meses de prisão, substituída por 150 dias de multa à taxa diária de 5€.

3-É desta decisão que vem interposto o presente recurso, que se circunscreve às seguintes questões:

- Da nulidade da sentença;

- A eventual natureza de especial perversidade da conduta da arguida quantos aos crimes de ofensa à integridade física na pessoa dos ofendidos.

4-O Tribunal “a quo” alicerçou a sua convição no conjunto da prova produzida em audiência, nomeadamente no depoimento dos Militares da Guarda Nacional Republicana, ofendidos nos autos.

Da Nulidade da Sentença

5-Vinha a arguida acusada da prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada e um crime de resistência e coacção a funcionário.

6-Realizado o julgamento, o Tribunal “a quo” condenou a arguida pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada p.p pelos artºs 143º nº1 e 2 e 145º nº 1, alínea a), e nº 2, com referência ao artº 132º, nº 2, alínea l), todos do Código Penal.

7- O que consubstancia uma alteração da qualificação jurídica dos factos imputados.

8- Apesar de tal alteração ter ocorrido, a mesma não foi comunicada à arguida, nem dada a oportunidade de sobre ela se pronunciar, não tendo sido cumprido o disposto nos nºs 1 e 3 do artigo 358º do CPP, o que enferma de nulidade a sentença.

9- Pelo que a sentença é nula nos termos do artigo 379º, nº 1, al. b) do CPP, por violação do artigo 358º, nº 1 e 3 do CPP.

Sem Prescindir

- A eventual natureza de especial perversidade da conduta da arguida quantos aos crimes de ofensa à integridade física na pessoa dos ofendidos.

10-Entendeu o Tribunal “a quo”, realizado o julgamento, condenar a arguida pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada p.p pelos artºs 143º nº 1 e 2 e 145º nº 1, alínea a), e nº 2, com referência ao artº 132º, nº 2, alínea l), todos do Código Penal

11-Resulta, efetivamente, dos factos provados que a arguida agrediu os Militares da Guarda Nacional Republicana, que os mesmos se encontravam devidamente fardados e se faziam transportar em veículo automóvel caracterizado como pertencendo à Guarda Nacional Republicana.

12-Resulta também que os Senhores Guardas se dirigiram à arguida e lhe solicitaram que se identificasse o que esta recusou. Perante a recusa solicitaram que lhes mostrasse o interior da mochila, o que também recusou, de seguida deram ordem de revista.

13- Tal atuação dos Senhores Militares da GNR, com o devido respeito, carece de previsão legal, com efeito, só faz sentido pedir a identificação de uma pessoa nos termos do nº1 do artº 250º do C.P.P..

14-Atento o que resulta dos factos provados e da motivação da douta sentença, com o devido respeito, não nos parece que a arguida se enquadrasse na categoria de suspeita tal como definido no nº 1 do artº 250º do CPP, mais, também não resulta que tenham procedido nos termos impostos pelo nº 2 do mesmo dispositivo, nomeadamente no que toca a comunicar à arguida as circunstâncias que fundamentavam a obrigação de se identificar.

15-E muito menos era legitimo fazer uma revista à arguida, a qual só faz sentido no quadro da previsão do artº 174º, nº 5 e 251º do CPP.

16-O que implica que a actuação dos Senhores Militares da Guarda Nacional Republicana, em nosso entendimento, com o devido respeito, constituiu uso ilegal da força, na medida em que não tinham fundamento para usar da força, para algemar e revistar a arguida.

17-Foi neste quadro que a arguida se terá insurgido contra os Senhores Militares e os terá alegadamente agredido.

18- Com efeito, a actuação da arguida não revela uma especial censurabilidade. A culpa com que terá actuado, considerando toda a factualidade apurada, não é, para o crime em causa, uma culpa agravada, que não se enquadra num juízo de censurabilidade.

19-O facto da ofensa ser perpetrada contra militares da GNR, não significa uma verificação automática da qualificativa da conduta da arguida mas antes deriva da verificação de um tipo de culpa agravado.

20-As circunstancias em que os factos ocorreram e a factualidade provada não permitem concluir que a actuação da arguida demonstre um especial desprezo para com as funções exercidas pelos ofendidos e, consequentemente revelem uma especial censurabilidade ou perversidade, para que tal acontecesse, teria que se concluir da matéria de facto dada por provada que existiu uma especial baixeza da motivação da actuação da arguida ou um sentimento particularmente censurado pela ordem jurídica, ligados à particular qualidade das vitimas ou à função que elas desempenham.

21-Na verdade o único elemento “perturbador” é a qualidade dos ofendidos, mas este elemento de per si não é determinante, mas meramente indiciador da necessária e exigida especial censurabilidade ou perversidade, a situação em apreço não justiça nem suporta a qualificação do crime.

22-Resulta, assim, do texto da decisão recorrida que a prova produzida impunha solução diferente da alcançada pelo Tribunal.

23-E que a recorrente deveria ter sido absolvida da prática dos crimes de ofensa à integridade física qualificada p.p. pelos arts.143º, nº 1 e 2 e 145º, nº 1 alínea a), e n º2, com referência ao artº 132º, nº 2, alínea l), todos do C.P.

24- Ao não ter assim entendido, violou o Tribunal a quo o disposto nos artigos 71º, nº 1 e 2, 132º, nº 2, al. l) e 143º, nº 1 e 2 e 145º, nº 1 al) a) e nº 2.
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3. O recurso foi admitido, por despacho de 10/10/2019.

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            4. O Ministério Público, em 28/10/2019, respondeu ao recurso, defendendo a sua improcedência, concluindo do seguinte modo:

   1 - Quanto à primeira questão suscitada importa ter presente que a arguida foi acusada, além do mais, da prática de um crime de resistência e coacção a funcionário, previsto e punido pelo art.347º, nº 1, do Código Penal.

2 - Todavia, na sentença posta em crise entendeu-se não estar verificado o cometimento de um crime de resistência e coacção a funcionário, mas antes de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos arts.143º, nºs 1 e 2 e 145.º nº 1, alínea a), e nº 2, com referência ao art.132º, nº 2, alínea l), todos do Código Penal, com reporte à Guarda (…).

3 - Verifica-se, assim, a existência da divergência invocada no recurso entre a qualificação jurídica constante da acusação e a que figura na sentença proferida.

4 - É também inquestionável que os factos dados como provados na sentença recorrida foram todos alegados em sede de acusação, pelo que a divergência entre as qualificações jurídicas radica exclusivamente ao nível da aplicação e interpretação das normas de direito, não sendo resultado da prova de factos não articulados na acusação.

5 - Finalmente, verifica-se que a invocada alteração da qualificação jurídica não foi efectivamente comunicada ao arguido, nos termos e para os efeitos previstos no nºs1 e 3 do 358º do Código de Processo Penal.

6 - É certo que, “por princípio, estará ferida de nulidade a sentença que condene o arguido com base numa qualificação jurídica dos factos diversa da constante da acusação, sem que a modificação lhe tenha sido comunicada e lhe tenha sido dada a oportunidade de dela se defender”. Todavia, “a comunicação da alteração da qualificação jurídica não é obrigatória nos casos em que o tipo de crime pelo qual o arguido venha a ser condenado constitua um minus, quando comparado com aquele pelo qual foi acusado  - vide Acordão da Relação de Évora de 18/04/2017, proferido no processo nº72/15.3GBTMR.E1, disponível in www.dgsi.pt).

7 - No caso em apreço, o crime de resistência e coação é um mais em relação ao crime de ofensa à integridade física qualificada, porquanto se assume mais exigente que este na medida em que se exigiria ainda, para o seu preenchimento, que a arguida tivesse acuado – com reporte aos factos provados descritos sob os pontos 8 e 10 da sentença – “com intuito de se opor a que a ofendida praticasse acto compreendido nas suas funções de agente policial”, circunstância que é dada como não provada na sentença recorrida.

8 - Por outro lado, importa ter em atenção as molduras penais abstractas: enquanto o crime de resistência e coacção em causa é punível com pena de prisão de 1 a 5 anos de prisão, o crime de ofensa à integridade física qualificada é punível com pena de prisão de 1 mês a 4 anos. Ora, daqui resulta que também o crime de resistência e coação se assume com um mais, porque mais gravoso, quer no seu limite mínimo, quer no seu limite máximo.

9 - Assim, em nosso entendimento, o crime de ofensa à integridade física qualificado posto em causa constitui um minus em relação ao crime de resistência e coacção, porquanto, no presente caso, todos os elementos constitutivos desse crime estão abrangidos pela tipicidade deste último e estavam descritos na acusação.

10 - Nenhum reparo merece, portanto, o Tribunal a quo porquanto a sentença recorrida não padece da invocada nulidade por não terem sido postas em causa as garantias de defesa da arguida na medida em que o crime de ofensa à integridade física qualificada pela qual foi condenada se assume como um minus em relação ao crime de resistência e coacção pelo qual vinha acusada.

11 - Quanto à segunda questão colocada a qualificação decorrente do nº 2 do art.132º do Código Penal não é automática, isto é, não é pela verificação de alguma dessas circunstâncias (“exemplos-padrão”) que se impõe, sem mais, a qualificação do crime. Tal qualificação só deve ocorrer quando se deduza da sua verificação, em concreto, a especial censurabilidade ou perversidade.

12 - "A especial censurabilidade (…) prende-se com a atitude do agente relativamente a formas de cometimento do facto especialmente desvaliosas. A especial perversidade refere-se às condutas que reflectem no facto concreto as qualidades especialmente desvaliosas da personalidade do agente”vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 10/12/2008, proferido no processo nº220/07.7GCACB.C1, disponível em www.dgsi.pt.

13 - “A qualificativa da alínea l), do n.º 2, do art.º 132.º, encontra a sua razão de ser no facto de o agente praticar o facto contra pessoas integradas em certas classes (entidades públicas ou de serviço público).” Nesses casos, “Sendo a actuação por parte do arguido/recorrente, reveladora de uma agressão totalmente gratuita, enquanto tradutora de um especial desprezo por valores que devem ser bem caros a qualquer sociedade, como sejam o da ordem e autoridade, que com frequência vêm sendo colocados em causa nos tempos que correm, fazendo perigar os alicerces em que assenta uma franja da nossa organização social, não pode deixar de ser tida como reveladora de uma especial censura para os efeitos prevenidos nos art. 145.º, n.º1, al. a) e 132.º, n.º2, al. l) do Código Penal.”vide Acordão da Relação de Évora, de 17/09/2013, proferido no processo nº59/10.2GBAVD.E1, disponível in www.dgsi.pt.

14 - Igualmente a respeito de uma agressão a agentes de autoridade a qualificativa só estará preenchida se a agressão "puder ligar-se uma especial baixeza da motivação, ou um sentimento particularmente censurado pela ordem jurídica, ligados à particular qualidade da vitima ou à função que ela desempenhava” - vide Acordão do Supremo 'Tribunal de Justiça de 05/09/2017, proferido no processo 07P2294, disponível in www.dgsi.pt.

15 – No caso dos autos, dir-se-á, à semelhança dos fundamentos apresentados pelo Tribunal a quo, que se encontra preenchida a especial censurabilidade em ambas as ofensas à integridade física pelas quais a arguida foi condenada.

16 - Com efeito, e conforme se analisa na sentença posta em crise quanto ao crime de ofensa à integridade física qualificada respeitante à militar (…), a mesma “encontrava-se no exercício das suas funções públicas, e que a arguida actuou ciente de tal facto. Por outro lado, “encontrando-se a militar da GNR a realizar uma revista previamente consentida pela arguida, a actuação da arguida, aproveitando uma situação de desprotecção da própria militar, sem qualquer outra finalidade, afigura-se uma violência gratuita e revela um sentimento particularmente censurado pela ordem jurídica, ligados à particular qualidade da vítima ou à função que ela desempenha.

17 - De outra banda, e como se refere na sentença recorrida quanto ao crime de ofensa à integridade física qualificada respeitante ao militar (…): “(…) estando a arguida já sentada no veículo da GNR e, aproveitando que o ofendido (…) se encontrava a colocar-lhe o cinto de segurança, desferiu neste um número não concretamente apurado de pontapés que o atingiram nas pernas e desferiu ainda, com o joelho, um golpe que o atingiu na zona genital, em resultado dos quais o ofendido sentiu dores e mal-estar físico. E mais se provou que a arguida, agindo de modo livre, consciente e voluntário, quis atingir o ofendido na sua integridade física, o que logrou conseguir. Agiu, assim, com dolo directo nos termos do art. 14.º n.º1 do Cód. Proc. Penal.(…)Por outro lado, provado ficou que a arguida sabia que se dirigia a militar da GNR que se encontrava devidamente uniformizado e identificado, aproveitando igualmente um momento de desprotecção do mesmo – quando se encontrava a colocar-lhe o cinto de segurança – quis e conseguiu atingi-lo na sua integridade física através de outro acto de violência infundada e gratuita reveladora de um sentimento particularmente censurado pela ordem jurídica.”

18 - Em ambos os casos a actuação da arguida deve, portanto, ter-se por infundada e gratuita, reveladora de um sentimento particularmente censurado pela ordem jurídica, ligado à particular qualidade da vítima e à função que ela desempenha, mostram-se, assim, preenchidos, outrossim, os elementos objectivos e subjectivos da qualificativa prevista no art.145º, nº1, alínea a), do Código Penal.

19 - Consequentemente, deve ter-se por boa e verificada a qualificativa atribuída a ambos os crimes de ofensa à integridade física pelos quais a arguida foi condenada.

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5. Nesta Relação, o Digníssimo Procurador-Geral Adjunto, em 2/12/2019, emitiu douto parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.

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6. Cumpriu-se o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido exercido o direito de resposta.

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7. Colhidos os vistos, teve lugar a conferência, cumprindo apreciar e decidir.

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II. Decisão Recorrida:

           “(…).

         FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:

A - Factos Provados

1. No dia 3 de Agosto de 2017, cerca das 23 horas, a arguida encontrava-se na Estrada Nacional n.º 114, junto da Ponte de (…), (…), (…), quando foi abordada pelos militares da Guarda Nacional Republicana, Guarda (…) e Guarda (…), que se encontravam uniformizados e se faziam transportar em veículo automóvel caracterizado como pertencendo à Guarda Nacional Republicana, questionando-a se a mesma tinha perdido um casaco, que haviam encontrado na estrada.

2. Como a arguida, no momento da abordagem, se encontrava a sair de um canavial próximo da estrada, foi questionada pelos militares da Guarda Nacional Republicana, no motivo de ali se encontrar.

3. Foi ainda solicitado à arguida que se identificasse, o que esta recusou, dizendo aos militares “eu já te conheço, foda-se, eu não fiz nada de mal, vão atrás de outros, só filmes à americana”.

4. Como a arguida continuava a recusar a sua identificação, os militares da Guarda Nacional Republicana solicitaram que lhes fosse mostrado o interior da mochila que a arguida trazia consigo.

5. Acto contínuo, a arguida dirige-se aos militares da Guarda Nacional Republicana e disse-lhes “era só o que me faltava, caralho, foda-se, isso é para quê? O que vocês querem é lixar-me a vida; eu conheço bem os meus direitos e não são vocês que me vão obrigar, caralho o que querem, abusam isto não fica assim, cabrões de merda, é para isto que a Guarda serve, este país é uma merda”.

6. Perante o comportamento da arguida, os ofendidos deram novamente ordem à arguida que se colocasse em posição, a fim de ser revistada.

7. A arguida colocou as mãos no capot do veículo e afastou as pernas para que fosse revistada.

8. Porém, assim que a ofendida Guarda (…) iniciou a revista, a arguida voltou-se e arranhou a mão direita da ofendida, causando-lhe uma escoriação no terço médio da face anterior do antebraço direito, com 3 cmx0,5cm e uma escoriação na face posterior da mão direita, com 0,5cmx0,5cm, bem como dores.

9. Tais lesões foram causa de 4 dias de doença, com afectação da capacidade de trabalho geral.

10. Assim agindo, sabia a arguida que causava dores e lesões no corpo da ofendida (…), o que quis.

11. Mais sabia a arguida que a ofendida era militar da Guarda Nacional Republicana e se encontrava no exercício das respectivas funções, sabendo ainda que contra a mesma usava de violência física, o que quis e fez.

12. Perante o comportamento da arguida, a mesma foi algemada e colocada no interior do veículo automóvel, pelo ofendido Guarda (…).

13. A arguida já sentada no veículo, aproveitando que o ofendido (…) se encontrava a colocar-lhe o cinto de segurança, desferiu neste um número não concretamente apurado de pontapés que o atingiram nas pernas e desferiu ainda, com o joelho, um golpe que o atingiu na zona genital.

14. Em resultado da conduta da arguida, o ofendido (…) sofreu dores e mal-estar físico.

15. A arguida sabia que se dirigia a militar da Guarda Nacional Republicana que se encontrava devidamente uniformizado e identificado, querendo atingi-lo na sua integridade física, o que logrou conseguir.

16. A arguida agiu de modo livre, consciente e voluntário, bem sabendo da censurabilidade e punibilidade das suas condutas.

17. A arguida não tem antecedentes criminais.

B - Factos Não Provados

Com relevância para a decisão da causa, ficaram por provar os seguintes factos:

a. Nas circunstâncias descritas em 8 a 11), a arguida actuou com intuito de se opor a que a ofendida praticasse acto compreendido nas suas funções de agente policial.

C - Convicção do Tribunal

(…).

SUBSUNÇÃO DOS FACTOS ÀS NORMAS JURÍDICAS:

A - Enquadramento Jurídico dos Factos

(…).

B - Natureza e Medida da Pena

C - Custas

(…).

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III. Apreciação do Recurso:

O objecto de um recurso penal é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do C.P.P.

As questões a conhecer são as seguintes:

1. Saber se a sentença é nula, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do CPP, por violação do artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP.

2. Saber se a conduta da arguida se reveste de especial perversidade, quanto aos crimes de ofensa à integridade física na pessoa dos ofendidos.                                                                                                                ****

1 – Da nulidade da sentença, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do CPP, por violação do artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP:

 A arguida foi acusada de ter praticado, em autoria material, na forma consumada e em concurso real:

- um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143.º, n.ºs 1 e 2, e 145.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, com referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal [(na pessoa de…)];

- um crime de resistência a funcionário, p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 1, do Código Penal [na pessoa de (…)].

Efetuada a audiência de julgamento, veio a ser condenada pela prática, em concurso real, de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143.º, n.ºs 1 e 2, e 145.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, com referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal.

                                                                       ****

            A recorrente alega o seguinte:

            “Apesar de ter ocorrido uma alteração da qualificação jurídica dos factos imputados, tal alteração não foi comunicada à arguida, nem dada a oportunidade de sobre ela se pronunciar, não tendo, por isso, sido cumprido o disposto nos n.ºs 1 e 3, do artigo 358.º, do CPP, o que consubstancia uma nulidade.

            Pelo que a sentença é nula, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. b), do CPP, por violação do artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP.

                                                                       ****

            Está, portanto, em causa a convolação de um crime de resistência e coação para um crime de ofensa à integridade física qualificada, em que é ofendida a militar (…), da qual decorre uma divergência entre a qualificação jurídica constante da acusação e a que consta na sentença recorrida.

            É inequívoco que a referida alteração da qualificação jurídica não foi efetivamente comunicada à arguida, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do artigo 358.º, do CPP.

Está expresso, no artigo 358.º, n.º 1, do CPP, que, se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.

E, no seu n.º 2, que se ressalva do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.

Consagra-se, ainda, no seu n.º 3, que o disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.

Daqui decorre que à mera alteração da qualificação jurídica, embora não seja uma alteração de factos, substancial ou não substancial, é-lhe, porém, aplicado o regime da alteração não substancial dos factos.

Salvo o devido respeito pela posição assumida pelo Ministério Público, na resposta ao recurso, o nosso entendimento vai no sentido de que, em qualquer situação em que venha a ocorrer alteração da qualificação jurídica, fora da situação do n.º 2, do artigo 358.º, do CPP, já que é a lei a excecionar a mesma, terá que ter lugar, e sempre, a comunicação da alteração, em obediência ao citado n.º 3, do artigo 358.º, do CPP.

Com efeito, a lei visa garantir ao arguido que lhe seja dado conhecimento do exato conteúdo da incriminação e da precisa dimensão das consequentes respostas punitivas, dando-se assim expressão aos princípios da proteção global e completa dos direitos de defesa, como consagrados no n.º 1, do artigo 32.º, da CRP, pois só assim o arguido poderá preparar e organizar a sua defesa de forma adequada.

É que o arguido, por um lado, tem que se defender dos factos que lhe são imputados na acusação ou na pronúncia, e, por outro, tem que se defender ao nível do enquadramento jurídico em que aqueles são apresentados.

Por outras palavras, a defesa do arguido deve contemplar todas as expectativas admissíveis tanto relativamente aos factos a apreciar, como à qualificação jurídica dos factos, cujo direito de a discutir e dela discordar, tem de lhe ser assegurado, através do exercício pleno do contraditório.

As garantias do processo criminal, constitucionalmente asseguradas, devem ter efetivação concreta, consagrando-se no artigo 32.º, da CRP o seguinte:

«1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.

(…)

5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.

(…)».

No caso em apreço, a recorrente acabou por ser surpeendida pela condenação que consta da decisão ora em crise, ao ser condenada pela prática de um crime diferente daquele com que havia sido confrontada na acusação.

Deveria, pois, ter sido comunicada a respetiva alteração da qualificação jurídica dos factos.

Não agindo em conformidade com o exposto, cometeu o Tribunal a quo, portanto, a nulidade referida no art.º 379.º, n.º 1, al. b), do CPP.

Julgamos ser esta posição que aqui seguimos aquela que inequivocamente assegura o pleno exercício do direito de defesa do arguido em toda a sua extensão, de modo a proporcionar-lhe que se pronuncie sobre a nova qualificação existente na sentença condenatória que não tinha sido previamente comunicada - ver, neste sentido, Acórdão do TRC, de 22/2/2017, Processo n.º 19/16.0GAFIG.C1, relatado pelo Exmo. Senhor Desembargador Inácio Monteiro, in www.dgsi.pt.


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            Assim sendo, fica prejudicado o conhecimento da restante questão suscitada no recurso.

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              IV – DECISÃO:

            Pelo exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso interposto pela arguida, no que tange à nulidade invocada, e, em consequência, anular a sentença recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que, depois de ser dado cumprimento ao estatuído no artigo 358.º. nºs. 1 e 3, do CPP, nos termos sobreditos, venha a decidir em conformidade.

Sem custas.


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            (Texto processado em computador e integralmente revisto e assinado – artigo 94.º, n.ºs 2 e 3, do CPP).

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            Coimbra, 18 de março de 2020

José Eduardo Martins (relatora)

Maria José Nogueira (adjunta)