Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4407/12.2TJCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
ACTO LÍCITO
ESCAVAÇÕES
CAUSALIDADE
Data do Acordão: 03/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JL CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.483, 563, 1348 CC
Sumário: 1. A responsabilidade civil que se configura no art.º 1348º, n.º 2 do CC, decorre da prática de actos lícitos, na justa medida em que as escavações levadas a efeito pelo proprietário do terreno vizinho cabem no feixe de direitos que emergem do direito de propriedade, nomeadamente de uso e fruição.

2. Para que se constitua uma situação de responsabilidade por facto lícito sempre haverá que demonstrar a ocorrência do facto, o dano/prejuízo na esfera jurídica de outrem e o nexo de causalidade entre o facto - in casu, abertura de poços, minas ou as escavações executadas - e o dano (cf. os art.º 483º, 563º e 1348º, n.º 2 do CC).

3. Nesta situação, a tutela jurídica é antecipada, impondo ao proprietário um dever de diligência acrescido na preparação e realização desses trabalhos; a noção de dano tem de ser mais abrangente de modo a englobar não só os desmoronamentos ou deslocações de terra decorrentes de tais actividades, mas também o perigo de tais consequências virem a surgir.

4. Para que um facto seja causa de um dano é necessário, primeiro, a existência de um facto concreto condicionante de um dano (nexo naturalístico) e, depois, que o concreto facto apurado seja, em abstracto e em geral, apropriado, adequado, para causar esse dano (nexo de adequação), sendo certo que esta segunda questão apenas se suscita uma vez apurada a existência, no plano naturalístico, daquele facto concreto.

Decisão Texto Integral:





            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. J (…) instaurou a presente acção sumária contra S (…)  e outros (1º Réus) e M (…) outros (2ºs Réus) pedindo a condenação dos Réus a pagarem-lhe a quantia de € 21 182,57, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais invocados na petição inicial (p. i.).

            Alegou, em síntese: é dono do prédio urbano aludido no art.º 1º da p. i., que do seu lado poente confronta com os prédios descritos nos art.ºs 9º e 10º da p. i., constituídos em propriedade horizontal (sendo os Réus donos das fracções autónomas que os integram), delimitados daquele por um muro, construído em 1983 por ocasião da edificação destes prédios; o A., no ano de 2001 e visando nivelar o seu prédio, elevou esse muro delimitador aumentando-o em altura cerca de 1,50 m, com blocos de cimento, reforçando a resistência do mesmo, o que fez com a autorização dos então administradores dos condomínios daqueles prédios que lhe asseveraram que o muro em causa podia ser elevado; em Junho/2012 o muro delimitador apresentava sinais de desabamento iminente, com o consequente risco de aluimento das terras do prédio do A. para o logradouro dos prédios com ele confinantes, por isso carecendo de ser demolido e substituído por novo muro de suporte de terras; recusando-se a administração do condomínio daqueles prédios seja a construir um novo muro de suporte, seja a comparticipar nas despesas da sua edificação, viu-se o A. obrigado a acautelar o desmoronamento iminente procedendo à execução de um muro de suporte do talude, com as características enunciadas no art.º 87º da p. i., cujo custo suportou; a iminência de desabamento foi causada pelo facto do muro, tendo as características próprias de um muro de vedação, não possuir aptidão para suportar as terras do talude aberto e criado com a construção dos prédios confinantes com o do A., e nunca ter sido objecto de vigilância, obras de reparação ou de conservação por parte dos Réus em ordem a evitar a sua ruína e desmoronamento que era previsível face àquelas características, cabendo aos Réus a obrigação de construir um novo muro de suporte de terras que obedecesse às legis artis.

            Os Réus contestaram, afirmando, designadamente, que a responsabilidade pela execução, e custeio, das referidas obras de reconstrução recai sobre o A. em virtude do alteamento que fez desse muro, sem autorização dos Réus, apesar de saber que o mesmo era exclusiva propriedade destes e apenas tinha características de um muro de suporte de terras, construindo sobre o mesmo novo muro em blocos de cimento, com 1,50 m de altura, e encostando até essa altura terras provenientes do nivelamento do seu prédio; atribuíram a degradação desse muro de suporte, e subsequente iminência de desmoronamento, à pressão e peso excessivos exercidos sobre ele em consequência desse aumento do volume de terras, de uma construção edificada nesse prédio e da infiltração de águas canalizadas nesse muro. Concluíram pela improcedência da acção.

            Foi dispensada a audiência prévia e proferido despacho saneador; identificou-se o objecto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.

            Realizada a audiência de julgamento, o tribunal a quo, por sentença de 30.7.2016, julgou a acção improcedente, absolvendo os Réus do pedido.

            Inconformado, o A. apelou formulando as seguintes conclusões:

            (…)

            Os Réus responderam à alegação de recurso concluindo pela sua improcedência.

            Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar e decidir se o A. tem direito à pretendida indemnização (caso se conclua que a iminência do dano/ruína de construção é imputável à actuação dos Réus).


*

            II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

            a) O A. é dono de um prédio urbano destinado a habitação sito na , x(...), Coimbra, com a área coberta de 180 m2 e logradouro de 955 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial (CRP) de Coimbra sob o n.º 212, da freguesia de x(...).

            b) Esse prédio confronta, do seu lado poente, com um prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito na y(...), x(...), Coimbra, destinado a habitação, composto de cave, rés-do-chão, 1º andar, sótão e logradouro comum, fracções A, B, C, D, E e F, descrito na 2ª CRP de Coimbra sob o n.º 3636, da mesma freguesia.

            c) E com um outro prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito na y(...) n.º 45, x(...), Coimbra, destinado a habitação, composto de cave, rés-do-chão, 1º andar, sótão e logradouro comum, fracções A, B, C, D, E e F, descrito na 2ª CRP de Coimbra sob o n.º 4071, da mesma freguesia.

            d) Situando-se parte do logradouro do prédio identificado em II. 1. a) num plano superior ao logradouro dos prédios identificados em II. 1. b) e c).

            e) Os prédios identificados em II. 1. b) e c) confrontam entre si no seu limite norte/sul.

            f) Os edifícios e garagens que compõem os prédios ditos em II. 1. b) e c) foram construídos em 1982/1983.

            g) Tendo, por ocasião da construção desses prédios, os seus anteriores donos construído, no sentido sul/norte, um muro a delimitar esses prédios do prédio identificado em II. 1. a), confinantes entre si no sentido nascente/poente.

            h) Esse muro tinha, então, as seguintes características:

            - Tinha 9,20 m de comprimento, ligado nos seus topos norte e sul à parede das garagens implantadas no logradouro do prédio identificado em II. 1. b), tendo 2,35 m de altura no seu ponto mais alto, junto à garagem a sul, e baixando de nível até á garagem a norte;

            - A parte inferior do dito muro tinha a configuração visível na fotografia de fls. 239, sendo composta de “rachão” maciçado com cimento em parte do seu comprimento;

            - A parte restante desse muro compunha-se de tijolo de 20 x 11, aplicado segundo a direcção contrária, tendo, por isso, o muro a espessura de 20 cm, a que acrescia a espessura do reboco (-/+ 2 cm);

            - O muro era provido de dois pilares compostos de quatro ferros, cujo diâmetro não foi possível precisar, com origem em lintel ou viga de apoio, também armada e com altura acima do solo, como se divisa na fotografia de fls. 240;

            - O que indicia a ligação a cota inferior à cota soleira não sendo possível determinar a profundidade;

            - E de três ferros, visíveis na fotografia de fls. 241, orientados segundo a direcção vertical, com a mesma origem daqueles dois pilares e localizados entre eles;

            - Era desprovido de drenos, buracos, canos ou “barbacãs” que permitissem a saída das águas pluviais que caiam nos prédios superiores.

            i) As enunciadas características do muro permitiam que suportasse as terras do talude criado com o movimento de terras e escavações efectuadas para implantar as garagens dos prédios identificados em II. 1. b) e c).

            j) Em 2001 o A. nivelou o prédio identificado em II. 1. a), para o deixar à cota que apresentava na sua confrontação nascente, elevando-o no local em que faz extrema com o logradouro e as garagens dos prédios identificados em II. 1. b) e c) e junto ao muro referido em II. 1. g) e h).

            k) Tendo, então, elevado esse muro, aumentando-o em altura cerca de 1,5 m com blocos de cimento de 0,30 x 0,50 m, para tanto tendo escavado o seu prédio junto à face interior do muro existente, construindo dois pilares, um no topo norte e outro no topo sul, e elevando os dois pilares intermédios já existentes, todos ficando com as dimensões de 0,30 x 0,30, ligados na sua base por uma viga de travação e encimados por uma cinta de betão e ferro, com os blocos de cimento de permeio sobrepondo-se estes sobre o muro já existente e sobre o terreno do A..

            l) O A. pediu e obteve autorização dos administradores do condomínio dos prédios identificados em II. 1. b) e c) para proceder à execução das obras de elevação do muro mencionado em II. 1. g) e h).

            m) Desde a sua construção em 1983 e até Junho/2012 nunca o aludido muro foi sujeito a obras de conservação ou de reparação.

            n) Em Junho/2012 o dito muro apresentava uma fissura longitudinal, em toda a sua extensão, despreendimento do seu reboco e apodrecimento dos materiais (tijolo) com que fora primitivamente construído, ameaçando ruir com o consequente risco de aluimento das terras do prédio do A. para o logradouro dos prédios identificados em II. 1. b) e c), com ele confinantes a poente, atingindo as garagens existentes no logradouro desse prédio.

            o) O A. e o condomínio dos prédios identificados em II. 1. b) e c), em face do estado de degradação desse muro, do risco do seu desmoronamento e prejuízos daí decorrentes, reconheceram a necessidade de intervenção nesse muro, tendo aquele condomínio declinado comparticipar nas obras necessárias à reparação desse muro a pretexto que a degradação do muro lhes não era imputável.

            p) O A., face à posição assumida pelo dito condomínio e visando acautelar o desmoronamento daquele muro, mandou construir um novo muro em betão em toda a extensão do muro que ruiu, com cerca de 9 m de comprimento e 3,5 m de altura, com tela de impermeabilização e “barbacãs” para escoamento de águas.

            q) Os trabalhos de demolição, remoção de entulho e construção do novo muro de suporte importaram em € 11 287, 17 (€ 9 225 + € 2 062,17), que o A. pagou.

            r) Esses trabalhos tornaram necessária a realização de obras no prédio do A. consistentes na reconstrução de novo muro de vedação, na reconstrução do sistema de drenagem de águas pluviais e substituição das canalizações de água.

            s) O custo de tais obras ascendeu à quantia de € 4 895,40 (€ 4 428 + € 467,40).

            2. E deu como não provado:

            a) O muro que delimitava os prédios mencionados em II. 1. b) e c) do prédio identificado em II. 1. a), tivesse, com referência ao período que decorreu entre a data da sua construção em 1982/1983 e a data da sua elevação pelo A. no ano de 2001 outras características para além das enunciadas em II. 1. h).

            b) O A., quando procedeu à nivelação do seu prédio em 2001, o tenha elevado junto ao muro aludido em II. 1. g) e h) em cerca de 50 a 60 cm.

            c) Os administradores dos prédios identificados em II. 1. b) e c), ao autorizarem a execução dos trabalhos de elevação do muro, tenham informado o A. que o dito muro fora construído todo ele com fundações, em betão, pedra e ferro.

            d) O A., quando elevou o muro em 2001, tenha encostado terras ao mesmo até à altura de 1,50 m.

            e) O A., na mesma ocasião, tenha construído um barracão ou dependência junto a ele e canalizou as águas provenientes desse barracão de encontro ao muro.

            3. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

            Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado (art.º 342º, n.º 1, do Código Civil[1]). A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita (n.º 2). Em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito (n.º 3).

            O proprietário ou possuidor de edifício ou outra obra que ruir, no todo ou em parte, por vício de construção ou defeito de conservação, responde pelos danos causados, salvo se provar que não houve culpa da sua parte ou que, mesmo com a diligência devida, se não teriam evitado os danos (art.º 492º, n.º 1, sob a epígrafe “danos causados por edifícios ou outras obras”). A pessoa obrigada, por lei ou negócio jurídico, a conservar o edifício ou obra responde, em lugar do proprietário ou possuidor, quando os danos forem devidos exclusivamente a defeito de conservação (n.º 2).

            Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua (art.º 493º, n.º 1).

            A obrigação de indemnizar só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão (art.º 563º).

            O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas (art.º 1305º).

            O proprietário tem a faculdade de abrir no seu prédio minas ou poços e fazer escavações, desde que não prive os prédios vizinhos do apoio necessário para evitar desmoronamentos ou deslocações de terra (art.º 1348º, n.º 1). Logo que venham a padecer danos com as obras feitas, os proprietários vizinhos serão indemnizados pelo autor delas, mesmo que tenham sido tomadas as precauções julgadas necessárias (n.º 2).

            A parede ou muro divisório entre dois edifícios presume-se comum em toda a sua altura, sendo os edifícios iguais, e até à altura do inferior, se o não forem (art.º 1371º, n.º 1, art.º com o título “presunção de compropriedade”). Os muros entre prédios rústicos, ou entre pátios e quintais de prédios urbanos, presumem-se igualmente comuns, não havendo sinal em contrário (n.º 2). São sinais que excluem a presunção de comunhão: a) A existência de espigão em ladeira só para um lado; b) Haver no muro, só de um lado, cachorros de pedra salientes encravados em toda a largura dele; c) Não estar o prédio contíguo igualmente murado pelos outros lados (n.º 3). No caso da alínea a) do número anterior, presume-se que o muro pertence ao prédio para cujo lado se inclina a ladeira; nos outros casos, àquele de cujo lado se encontrem as construções ou sinais mencionados (n.º 4). Se o muro sustentar em toda a sua largura qualquer construção que esteja só de um dos lados, presume-se do mesmo modo que ele pertence exclusivamente ao dono da construção (n.º 5).

            4. Vistos os principais normativos da lei civil substantiva a que se alude nos autos e/ou convocados para a dilucidação do caso em análise, vejamos agora os (principais) factos que relevam para o desfecho da lide:

            - Parte do logradouro do prédio do A./recorrente, identificado em II. 1. a), situa-se num plano superior ao logradouro dos prédios identificados em II. 1. b) e c);

            - Por ocasião da construção destes prédios e respectivas garagens, em 1982/1983, os seus anteriores donos edificaram, no sentido sul/norte, um muro a delimitar tais prédios do prédio identificado em II. 1. a), confinantes entre si no sentido nascente/poente, muro que tinha, então, entre outras, as seguintes características: 9,20 m de comprimento, ligado nos seus topos norte e sul à parede das garagens implantadas no logradouro do prédio identificado em II. 1. b), tendo 2,35 m de altura no seu ponto mais alto, junto à garagem a sul, e baixando de nível até á garagem a norte; a parte inferior do dito muro tinha a configuração visível na fotografia de fls. 239, sendo composta de “rachão” maciçado com cimento em parte do seu comprimento; a parte restante desse muro compunha-se de tijolo de 20 x 11, aplicado segundo a direcção contrária, tendo, por isso, o muro a espessura de 20 cm, a que acrescia a espessura do reboco (-/+ 2 cm); o muro era provido de dois pilares compostos de quatro ferros, cujo diâmetro não foi possível precisar, com origem em lintel ou viga de apoio, também armada e com altura acima do solo; era desprovido de drenos, buracos, canos ou “barbacãs” que permitissem a saída das águas pluviais que caiam nos prédios superiores;

            - As enunciadas características do muro permitiam que suportasse as terras do talude criado com o movimento de terras e escavações efectuadas para implantar as garagens dos prédios identificados em II. 1. b) e c);

            - Em 2001 o A. nivelou o prédio identificado em II. 1. a), para o deixar à cota que apresentava na sua confrontação nascente, elevando-o no local em que faz extrema com o logradouro e as garagens dos prédios identificados em II. 1. b) e c) e junto ao mencionado muro, tendo, então, elevado esse muro, aumentando-o em altura cerca de 1,5 m com blocos de cimento de 0,30 x 0,50 m, para tanto tendo escavado o seu prédio junto à face interior do muro existente, construindo dois pilares, um no topo norte e outro no topo sul, e elevando os dois pilares intermédios já existentes, todos ficando com as dimensões de 0,30 x 0,30 m, ligados na sua base por uma viga de travação e encimados por uma cinta de betão e ferro, com os blocos de cimento de permeio sobrepondo-se estes ao muro já existente e ao terreno do A.;

            - O A. pediu e obteve autorização dos administradores do condomínio dos prédios identificados em II. 1. b) e c) para proceder à execução das obras de elevação do muro;  

            - Desde a sua construção em 1983 e até Junho/2012 nunca o aludido muro foi sujeito a obras de conservação ou de reparação;

            - Em Junho/2012 o dito muro apresentava uma fissura longitudinal, em toda a sua extensão, despreendimento do seu reboco e apodrecimento dos materiais (tijolo) com que fora primitivamente construído, ameaçando ruir com o consequente risco de aluimento das terras do prédio do A. para o logradouro dos prédios identificados em II. 1. b) e c), atingindo as garagens existentes no logradouro desse prédio;

            - O A. e o condomínio dos prédios identificados em II. 1. b) e c), em face do estado de degradação desse muro, do risco do seu desmoronamento e prejuízos daí decorrentes, reconheceram a necessidade de intervenção nesse muro, tendo aquele condomínio declinado comparticipar nas obras necessárias à reparação desse muro a pretexto que a degradação do muro lhes não era imputável;

            - O A., face à posição assumida pelo dito condomínio e visando acautelar o desmoronamento daquele muro, mandou construir um novo muro em betão em toda a extensão do muro que ruiu, com cerca de 9 m de comprimento e 3,5 m de altura, com tela de impermeabilização e “barbacãs” para escoamento de águas;

            - Esses trabalhos tornaram necessária a realização de obras no prédio do A. consistentes na reconstrução de novo muro de vedação, na reconstrução do sistema de drenagem de águas pluviais e substituição das canalizações de água. [cf. II. 1. alíneas d), f), g), h), i), j), k), l), m), n), o), p) e r), supra]

            5. O A. reitera a sua pretensão de condenação dos Réus no pagamento da indemnização pelos alegados prejuízos decorrentes das obras de construção do novo muro dito em II. 1. p), supra, considerando, além do mais, que a execução dessas obras era da responsabilidade dos Réus, pois a iminência de desabamento do muro que aí existia derivava da falta de aptidão para suportar as terras do talude aberto e criado com a construção dos prédios dos Réus, e, ainda, de nunca terem sido executadas obras de reparação ou de conservação.

            A Mm.ª Juiz a quo veio a concluir que o A. não provou que as características do muro construído em 1983, ou a não realização de obras de conservação e reparação desse muro no período que decorreu entre a sua construção e a constatação da iminência do seu desabamento no ano de 2012, tenham sido a condição sem a qual não se teria verificado a degradação do muro, e que obrigou à sua demolição e à construção de um novo muro a expensas do A., o mesmo é dizer que não logrou demonstrar-se a existência de um nexo naturalístico entre aqueles factos e as despesas suportadas pelo A..

            Sem quebra do respeito sempre devido por entendimento contrário, afigura-se que esta é a resposta que decorre da realidade apurada e do quadro jurídico supra referido.

            6. Entre as restrições mais comuns ao direito de propriedade sobre imóveis, de interesse particular, relevam as que decorrem das relações de vizinhança e que ora se traduzem em limitações ao direito de livre actuação do proprietário, ora em limitações ao direito de excluir ou impedir intromissões alheias.[2]

            Assim, nomeadamente, o proprietário de um prédio pode, em princípio, proceder nele à abertura de minas, poços ou à feitura de escavações (art.º 1348º, n.º 1); porém, existem limitações impostas pela segurança do prédio vizinho, em termos de evitar desmoronamentos ou deslocações de terra, determinando a lei que sejam tomadas as precauções adequadas à prevenção de tais danos, ou seja, as adequadas a evitar que o prédio vizinho fique privado do apoio necessário (cf., ainda, o n.º 2 do mesmo art.º).

            E o facto de serem tomadas as precauções julgadas/consideradas necessárias (para evitar os danos) não exime o autor das obras da obrigação de indemnizar o dono do prédio vizinho dos danos que, mesmo assim, ele sofra por virtude delas (é responsável pelo prejuízo que vier a causar), sendo que não são requisitos desta responsabilidade, nem a culpa do agente, nem a ilicitude da sua conduta.

            A responsabilidade civil que se configura no art.º 1348º, n.º 2, decorre da prática de actos lícitos, na justa medida em que as escavações levadas a efeito pelo proprietário do terreno vizinho cabem no feixe de direitos que emergem do direito de propriedade, nomeadamente de uso e fruição.[3]

            Trata-se, pois, de uma das numerosas hipóteses típicas de acto lícito que obriga o agente a reparar os danos causados.[4]

            7. Daqui decorre que para que se constitua uma situação de responsabilidade por facto lícito sempre haverá que demonstrar a ocorrência do facto (do agente)[5], o dano/prejuízo na esfera jurídica de outrem e o nexo de causalidade entre o facto e o dano (cf. o art.º 483º, n.ºs 1 e 2); é necessário, para que surja a obrigação de indemnizar do proprietário, que entre a abertura de poços, minas ou as escavações executadas no seu prédio e os danos sofridos nos prédios vizinhos exista um nexo de causalidade (cf., ainda os art.ºs 563º e 1348º, n.º 2). [6]    

            Nesta situação, a tutela jurídica é antecipada, impondo ao proprietário um dever de diligência acrescido na preparação e realização desses trabalhos; e a noção de dano tem de ser mais abrangente de modo a englobar não só os desmoronamentos ou deslocações de terra decorrentes de tais actividades, mas também o perigo de tais consequências virem a surgir.[7]

            8. O art.º 563º, ao aludir à probabilidade do dano, consagra a teoria da causalidade adequada segundo a qual “não basta que o facto praticado pelo agente tenha sido, no caso concreto, condição (s. q. n.) do dano; é necessário ainda que, em abstracto ou em geral, o facto seja uma causa adequada do dano”; será “causa jurídica do prejuízo a condição que, pela sua natureza e em face das circunstâncias do caso, se mostre apropriada para o gerar”.

            Como aquela teoria comporta várias formulações, talvez a melhor formulação seja a seguinte: “como causa adequada deve considerar-se, em princípio, toda e qualquer condição do prejuízo. Mas uma condição deixará de ser causa adequada, tornando-se pois juridicamente indiferente, desde que seja irrelevante para a produção do dano segundo as regras da experiência, dada a sua natureza e atentas as circunstâncias conhecidas do agente, ou susceptíveis de ser conhecidas por uma pessoa normal, no momento da prática da acção. E dir-se-á que existe aquela irrelevância quando, dentro deste condicionalismo, a acção não se apresenta de molde a agravar o ´risco` de verificação do dano.”[8]

            Para que um facto seja causa de um dano é necessário, primeiro, a existência de um facto concreto condicionante de um dano (nexo naturalístico) e, depois, que o concreto facto apurado seja, em abstracto e em geral, apropriado, adequado, para causar esse dano (nexo de adequação), sendo certo que esta segunda questão apenas se suscita uma vez apurada a existência, no plano naturalístico, daquele facto concreto.[9]

            9. Não podendo considerar-se como causa em sentido jurídico toda e qualquer condição, há que restringir a causa àquela ou àquelas condições que se encontrem para com o resultado numa relação mais estreita, isto é, numa relação tal que seja razoável impor ao agente responsabilidade por esse mesmo resultado[10] - a doutrina da causalidade adequada, indubitavelmente perfilhada pelo art.º 563º, não prescinde de que o facto tenha sido, efectivamente, no caso concreto, uma condição do resultado danoso, ou seja, pressupõe que a acção tenha sido condictio sine qua non do resultado; a adequação é um mais que acresce à pura condicionalidade.[11]

            10. O problema de causalidade é o problema da relação de condicionalidade entre o facto constitutivo de responsabilidade e o dano real verificado (o dano como uma determinada realidade que se verifica em certo momento). O dano a indemnizar deve ser todo o dano causado pelo facto, e esse dano.[12]

            11. Tendo presente os factos apurados, principalmente, os referidos em II. 4., supra, e o descrito quadro normativo, é de considerar:

            - Em 1982/1983, foi construído o muro no logradouro dos prédios dos Réus, a delimitar esses prédios do logradouro do prédio do A. que situava num plano superior;

            - Tal muro tinha as características que permitiam que suportasse as terras do talude criado com o movimento de terras e escavações efectuadas para implantar as garagens;

            - Em 2001, o A. nivelou o seu prédio para o deixar à cota que apresentava na sua confrontação nascente, elevando-o na sua confrontação poente, no local em que fazia extrema com o logradouro e as garagens dos prédios identificados em II. 1. b) e c) e junto ao muro em causa, nos moldes descritos em II. 1. k);

            - Em Junho/2012, o dito muro apresentava, em toda a sua extensão, uma fissura longitudinal, despreendimento do seu reboco e apodrecimento de materiais, ameaçando ruir com o consequente risco de aluimento das terras do prédio do A. para o logradouro dos prédios identificados em II. 1. b) e c), atingindo as garagens ai existentes, impondo-se a sua reparação;

            - O A. procedeu à demolição do muro em risco de desmoronamento e à construção de um novo muro em betão em toda a extensão do anterior, no prédio do A., com cerca de 9 m de comprimento e 3,5 m de altura, e teve ainda de reconstruir o sistema de drenagem de águas pluviais e substituir as canalizações de água, suportando o correspondente custo.

            Sendo estes os factos relevantes, é irrecusável que o A. não provou que as características do muro construído em 1983, ou a não realização de obras de conservação e reparação desse muro (no período entre a sua construção e a constatação da iminência do seu desabamento em 2012), tenham sido a condição sem a qual não se teria verificado a degradação do muro e que obrigou à sua demolição e à construção de um novo muro a expensas do A..

            Ou seja, como bem se diz na sentença sob censura, o A. não logrou demonstrar a existência de um nexo naturalístico entre aqueles factos e as despesas por ele suportadas.

            E não demonstrada tal relação de causalidade naturalística entre as características do muro construído em 1983 e/ou a falta da sua manutenção e o risco de desabamento, determinante das obras de construção do novo muro, relação essa que subjaz à pretensão deduzida em juízo (facto constitutivo do direito do A.), apenas se poderá concluir que não estão reunidos os requisitos da invocada e almejada obrigação de indemnização, com a consequente improcedência do pedido (art.º 342º, n.º 1).[13]

            12. Em derradeira análise, partindo das “conclusões” da alegação de recurso (cf. principalmente, a primeira parte das “conclusões 12ª e 23ª”, ponto I, supra), não se antolha possível considerar, designadamente, que a elevação do muro primitivo levada a efeito pelo A. em 2001 (actuação do A. que não ficou confinada à mera elevação do muro) em nada contribuiu para o seu apodrecimento e/ou que o muro inicial fosse inadequado à sustentação das terras, sabendo-se que, dada a configuração da acção, apenas a comprovação de tais premissas/condições poderia levar ao atendimento da pretensão do A..

            13. Resta dizer que a situação dos autos não se enquadra na previsão dos art.ºs 492º e 493º[14] - antes, pelo que fica exposto, no âmbito de aplicação do art.º 1348º - e que, na realidade, o A. veio a construir o seu muro de vedação e suporte [art.º 1371º e II. 1. r), supra][15], deixando de existir o muro de suporte construído pelos proprietários dos prédios aludidos em II. 1. b) e c) e no qual ou à volta do qual se introduziram modificações [cf., principalmente, II. 4., supra] que lançaram a dúvida sobre a razão de ser do estado de perigo e ruína a que o A. se dignou pôr cobro, circunstancialismo esse que ditou o desfecho da acção.

            14. Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.


*

            III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

            Custas pelo A./apelante.


*

07.3.2017


           

Fonte Ramos ( Relator )

Maria João Areias

Vítor Amaral


[1] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.

[2] Vide Henrique Mesquita, Direitos Reais – Sumários das Lições ao Curso de 1966-1967, págs. 141 e seguinte, onde também se refere e ensina: “Em determinadas situações, o exercício do direito de propriedade sobre imóveis ou certas formas desse exercício só são possíveis mediante a utilização de prédios vizinhos; noutros casos, aquele exercício, muito embora não implique na intromissão em prédio alheio, repercute-se ou propaga-se para além dos limites horizontais do respectivo imóvel, indo afectar a propriedade de outrem. Se a natureza exclusivista do direito de propriedade não sofresse temperamentos, tornar-se-ia impossível, nestas situações, conciliar os interesses conflituantes dos vários proprietários: cada um deles poderia impedir aos demais as formas de exercício que, directa ou reflexamente, atingissem o seu imóvel” [pág. 141].

[3] Cf. o acórdão do STJ de 13.11.2012-processo 777/05.7TBTVD.L1.S1, publicado no “site” da dgsi.

[4] Vide, entre outros, Henrique Mesquita, ob. cit., págs. 142 e seguintes; Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, III, 2ª edição, 1987, pág. 183 [Que salientam que a indemnização pelo prejuízo sofrido é devida “Mesmo que tenham sido tomadas as precauções consideradas necessárias para evitar os danos (…). Também neste caso se não exige a culpa do responsável”] e L. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, Quid Juris, 6ª edição (reimpressão), 2010, págs. 227 e seguinte.

[5] A expressão contida no art.º 1348º, 2 do CC de que “os proprietários vizinhos serão indemnizados pelo autor delas” (obras feitas), significa que o autor delas é o proprietário do imóvel, não o seu autor material (por exemplo, o empreiteiro ou o trabalhador por conta de outrem que a executou) - vide, entre outros, os acórdãos do STJ de 13.11.2008-processo 08B3485 e de 13.11.2012-processo 777/05.7TBTVD.L1.S1, publicados no “site” da dgsi.

[6] Cf. o cit. acórdão do STJ de 13.11.2012-processo 777/05.7TBTVD.L1.S1 [tendo-se concluído, designadamente: “Na situação do art.º 1348º, a obrigação de indemnizar, quando ocorra a prática de um acto lícito, não decorre da existência de uma actuação culposa, bastando que se verifiquem: a) o facto (lícito) adveniente da acção voluntária do vizinho ou do proprietário do prédio confinante; b) a verificação de um prejuízo adveniente da alteração ou deterioração da coisa de que o lesado é proprietário; c) que se possa estabelecer um nexo de causalidade entre as obras e os danos na propriedade do lesado.”].

[7] Cf., de entre vários, o acórdão da RG de 27.10.2016-processo 34/14.8T8VPC.G1 [que também conclui estarmos perante situação semelhante à contemplada no art.º 1350º do CC - quando dispõe que “Se qualquer edifício ou outra obra oferecer perigo de ruir, no todo ou em parte, e do desmoronamento puderem resultar danos para o prédio vizinho, é licito ao dono deste exigir da pessoa responsável pelos danos, nos termos do artigo 492º, as providências necessárias para eliminar o perigo” -, hipótese em que ainda não houve a ruina (o evento material que se quer prevenir/evitar) mas já existe o perigo de tal acontecer, e que, só por si, já lesa e comprime ilegitimamente o direito de propriedade do vizinho], publicado no “site” da dgsi.
[8] Vide I. Galvão Teles, Direito das Obrigações, 5ª edição, Coimbra Editora, 1986, págs. 380 e seguintes e, ainda, nomeadamente, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol I., 4ª edição, Almedina, Coimbra, 1982, págs. 795 e seguintes e Rui de Alarcão, Direito das Obrigações, Lições ao 3º Ano Jurídico, Coimbra, 1983, págs. 280 e seguintes;

[9] Cf., entre outros, os acórdãos do STJ de 03.12.1998 e 03.02.1999, respectivamente in BMJ 482º, 207 e CJ-STJ, VII, 1, 73, referindo-se nos dois primeiros pontos do sumário do primeiro: “se se discute a causalidade naturalística, ou seja, a fixação da sequência naturalística dos factos, que conduz a um certo dano, o seu encadeamento sequencial, de modo a determinar se o efeito proveio de um dado facto anterior, isso reconduz-se a matéria de facto, já que estamos perante a ponderação do trajecto naturalístico dos actos que se sucedem uns aos outros. Já se está perante matéria de direito quando nos situamos no âmbito da causalidade jurídica, uma vez que, então, do que se trata é de valorar, integrar e enquadrar normativamente a sequência naturalística dos factos e das coisas em ordem a saber se – face ao mundo do direito – essa sequência releva de modo a poder fixar-se normativamente a conexão causa-efeito entre um facto e um dano”.
[10] Vide Vaz Serra, Obrigação de indemnização, n.º 5, BMJ, 84º.
[11] Vide F. M. Pereira Coelho, O Problema da Causa Virtual na Responsabilidade Civil, “Colecção teses”, Almedina, 1998, pág. 30, nota (19) e Antunes Varela, ob. cit., págs. 806 e seguinte.
[12] Vide F. M. Pereira Coelho, ob. cit., págs. 171, 174, 187 e 209.
[13] A respeito de situações em que emerge a obrigação de indemnizar, cf., entre outros, o acórdão da RP de 12.6.2003-processo 0332151, publicado no “site” da dgsi e o citado acórdão da RG de 27.10.2016-processo 34/14.8T8VPC.G1.
[14] Sobre tais normativos, vide Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, 1982, págs. 467 e seguintes.
[15] Vide, nomeadamente, Henrique Mesquita, ob. cit., págs. 166 e seguintes e Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, III, cit., págs. 247 e seguintes.