Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
49/08.5IDAVR.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE DIAS
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
IVA
Data do Acordão: 01/22/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – ANADIA – JUÍZO DE INSTÂNCIA CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ALTERADA
Legislação Nacional: ARTIGO 105º Nº 1 DO RGIT
Sumário: No âmbito do IVA, o devedor tributário só comete o crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105º, do R.G.I.T., se tiver recebido o montante da prestação tributária e esteja, por isso, obrigado à sua entrega ao Estado, o não faça no prazo legalmente fixado para tal.
Decisão Texto Integral: Processo nº 49/08.5IDAVR.C2, Comarca do Baixo Vouga – Anadia – Juízo de Instância criminal.

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Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Criminal.
No processo supra identificado em que são arguidos:
A..., L.dª”; sociedade comercial por quotas; constituída a 06-01-1999; com o capital social de €49.879,79; com sede na (....), Anadia (N.I.P.C. (....); N.I.S.S. (....);
B...; filho de (....) e de (....); natural da freguesia de Válega, concelho de Ovar; nascido a 18/08/1954; divorciado; professor e gerente de profissão; e com residência [T.I.R.] na Rua (....) Praia de Mira (N.I.C. (....); N.I.F. (....); N.I.S.S. (....).
C... filho de (....) e de (....); natural da freguesia de Sé Nova, concelho de Coimbra; nascido a 27/10/1967; casado; gerente de profissão; e com residência [T.I.R.] no Bairro (....) Coimbra (N.I.C. (....); N.I.F. (....); N.I.S.S. (....).
Foi proferida decisão que:
1) Condena a sociedade “ A...., L.da” como responsável pela prática de um crime de abuso de confiança, p. p. pelo art. 105.º, n.º 1, do R.G.I.T., na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, a €5,00 (cinco euros) diários, num total de €900,00.
2) Condena cada um dos arguidos B.... e C....pela prática, em coautoria, de um crime de abuso de confiança, p. p. pelo art. 105.º, n.º 1, do R.G.I.T., na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, a €7,00 (sete euros) diários, num total de €840,00.
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Inconformados interpuseram os arguidos, pessoas singulares, recurso para esta Relação:
São do seguinte teor as conclusões formuladas na motivação do recurso, do arguido B...., e que delimitam o objeto do mesmo:
1. O Recorrente pede a sua absolvição por não ter sido produzida, em sede de Audiência de Julgamento, prova da conduta criminal que lhe era imputada,
2. No que constitui uma violação do disposto no art. 356, n.º 1 a contrario sensu do C.P.P..
3. De facto, do depoimento testemunhal dado em valoração pelo M.D. Tribunal a quo, verificou-se uma incorreta valoração do depoimento da testemunha o Exmº Sr. E..., presente a juízo, designadamente nos momentos no depoimento gravado no C.D., n.º 20130418094549_545888_1495806, na sessão de julgamento do dia 18/042013, aos 9 minutos e 59 segundos e no depoimento gravado no CD nº 20130513143218_545888_1495806, na sessão de julgamento do dia 13-05-2013, aos 4 minutos e 32 segundos, referindo-se a se podia precisar quando foram as faturas efetivamente pagas ao recorrente;
4. De onde deveria ter sido dado como não provados os factos referentes ao recebimento do valor faturado e o IVA até à data limite da sua entrega, ou seja, até 15 de Fevereiro em todos os períodos em causa nos autos.
Ainda,
5. quanto ao elemento volitivo a M. D. Sentença Judicial ora recorrida não precisou o modo de aferição do elemento volitivo, não se sabendo de onde pode assacar o grau de culpa do Recorrente, o qual, a ser assim, ex vi o princípio constitucional do in dubio pro reu, teria atuado com base numa mera negligência e, daí, desembocando a situação em mérito numa mera contraordenação fiscal, p. e p. pelo art. 114 do RGIT,
6. daí cessando a responsabilidade cumulativa do ora Recorrente, à luz do disposto no art. 7, n.º 4, do RGIT,
De outro modo, sempre sem modestamente conceder,
7. deverá o arguido e recorrente ser condenado numa razão diária inferior à sentenciada, tanto em número de dias de pena de multa como em montante diário aplicável, dado o carácter primário, a verificação de se tratar de um crime simples, quase privilegiado, o pouco rendimento disponível do recorrente pessoa singular.
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São do seguinte teor as conclusões formuladas na motivação do recurso, do arguido C.... e que delimitam o objeto do mesmo:
1-O aqui arguido e recorrente C...., pelo presente, recorre, de facto e de direito, da sentença que, após a realização de novo julgamento, determinado pelo acórdão proferido por este tribunal que determinou o reenvio do processo para novo julgamento, o condenou pela prática, em coautoria, de um crime de abuso de confiança, p. p. pelo art. 105 nº 1 , do RGIT, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de 7,00€, o que perfaz o montante total da multa de 840,00€.
I -RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO - DO ERRO DE JULGAMENTO:
2- Salvo o devido respeito por diferente entendimento, o Tribunal a quo julgou incorretamente os pontos 2., 4., 5., 7., 8. e 10 da matéria de facto dada como provada, bem como o ponto 2. da matéria de facto dada como não provada;
3. Deveria o Tribunal a quo ter dado como não provado o facto enunciado como 2. dos factos provados, na parte em que refere que a gerência da sociedade foi exercida pelo arguido C....após Agosto de 2003 "e até, pelo menos data posterior ao ano de 2006" e, por conseguinte, deveria ter dado como provado o facto constante do ponto 2. dos factos não provados;
4.Da mesma forma, todas as referências nos pontos 4, 5, 7, 8 e 10 da matéria de facto dada como provada ao arguido C.... deveria ter sido dada por não provada;
A) QUANTO AO EXERCÍCIO DAS FUNÇÕES DE GERENTE DE FACTO PELO AQUI RECORRENTE
5. Indesmentível que é a gerência de direito por parte do aqui Arguido (através de certidão da respetiva conservatória), cumpria ao Tribunal a quo, salvo melhor entendimento, indagar sobre a prática de atos que indiciassem a gerência de facto da sociedade arguida por parte do aqui Recorrente e, mais especificamente, que o aqui Recorrente interferia nas decisões relativas ao pagamento de impostos ao Estado da sociedade em causa;
6. Ora, do depoimento das testemunhas ouvidas resulta, precisamente, que o aqui Recorrente, ao constituir uma nova sociedade, em Agosto de 2003, passou a dedicar-se exclusivamente a essa, tendo-se afastado da gerência da sociedade arguida;
7.No que respeita à valoração realizada pelo Tribunal a quo do depoimento da testemunha E..., quanto a esta matéria, refere a sentença recorrida expressamente que a formulação da sua convicção resultou "do inspetor tributário, a partir da documentação da sociedade" (sic sentença recorrida). Ora, se documentação havia, seria este o meio de prova válido, uma vez que o depoimento da referida testemunha não pode substituir a prova direta que alegadamente poderia ser feita através de documento. Sendo certo que caberá perguntar: que documentação? De que data era a mesma? Sobre tal matéria nada se diz e nada se saber;
8. Acresce que os depoimentos acima transcritos nas motivações do presente recurso e que aqui se dão por reproduzidas, das testemunhas E... (depoimento prestado na audiência de discussão e julgamento datada de 25 de Janeiro de 2012, gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no tribunal, com duração de 30 min 00 seg, início às 10:28:11 e fim às 11 :00:57), D... (depoimento prestado na audiência de discussão e julgamento datada de 25 de Janeiro de 2012, gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no tribunal, com duração de 08 min 04 seg, início às 12:10:16 e fim às 12:18:20) e F... (depoimento prestado na audiência de discussão e julgamento datada de 25 de Janeiro de 2012, gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no tribunal, com duração de 14 min 23 seg, início às 11:34:38 e fim às 11 :49:01[provas que deverão ser renovadas], é, no nosso entendimento, evidente que os atos de gerência, tais como plasmados no ponto 2. da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, eram praticados apenas pelo arguido B....e não já pelo arguido C.....
9. Mais refere a sentença recorrida como determinante para a formulação da sua convicção quanto a esta matéria o facto de o aqui Recorrente "ter recebido remuneração durante algum tempo" (sic sentença recorrida). Mas até quando? E que prova foi feita quanto a esta matéria?
10. Acresce que o ponto 2. dos factos dados como provados refere expressamente que: "A gerência da sociedade, no período compreendido entra a sua constituição e até, pelo menos data posterior ao ano de 2006,foi exercida pelos arguidos B.... e C....(...)". Ora, atendendo que, no que respeita ao último período tributário em causa nos autos (quarto trimestre de 2006), tinha como data limite de pagamento do tributo em causa o dia 15 de Fevereiro de 2007, seria fundamental que o Tribunal a quo determinasse, concretamente, até quando o aqui Recorrente alegadamente exerceu as referidas funções de gerente, já que, neste âmbito, a determinação daquela data não poderá ser "por aproximação". Ou bem que o aqui Recorrente exercia aquelas funções na data da consumação do alegado ilícito criminal ou bem que não exercia e, neste caso, não pode ser responsabilizado pelo mesmo. Neste conspecto, estamos perante uma situação de insuficiência da matéria de facto dada como provada para a prolação da sentença proferida.
B) QUANTO AO RECEBIMENTO DAS FATURAS QUE DERAM ORIGEM À LIQUIDAÇÃO DE IVA CONSTANTE DOS AUTOS
11. O Tribunal a quo julgou incorretamente o ponto 4. dos factos dados como provados, uma vez que deveria ter julgado como não provado o efetivo recebimento das quantias aí referidas. Consequentemente, julgou erradamente o constante dos pontos 5., 7., 8. e 10 dos factos dados como provados, na medida em que pressupõe o efetivo recebimento das referidas quantias;
12. A testemunha E... referiu expressamente que, para afirmar o recebimento do montante em causa, teve por base os "[18:55] os extratos de contas correntes que tenho, evidenciam apenas as faturas pendentes de pagamento (depoimento prestado na audiência de discussão e julgamento datada de 25 de Janeiro de 2012, gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no tribunal, com duração de 30 min 00 seg, início às 10:28:11 e fim às 11:00:57, ao minuto 18:55 - prova que se requer seja renovada),afirmando que os mesmos constam referidos no auto de notícia;
13. Em primeiro lugar, o auto de notícia, salvo melhor entendimento, não constitui meio de prova. Em segundo lugar, como o senhor inspetor tributário esclareceu e resulta clarividente do extrato de depoimento acima transcrito, para elaborar a informação constante do relatório a fls. 808 a 821 e retirar a conclusão sobre o recebimento das faturas que deram origem à liquidação de IVA, o mesmo não teve em conta os elementos da contabilidade consultados na sequência da notificação de 18 de Abril de 2013, mas sim os supostos "saldo de conta dos saldos pendentes retirado, não da contabilidade, mas do programa de gestão comercial da própria empresa", alegadamente "recolhido precisamente neste dia, no dia 28 de Julho de 2008" (sic depoimento transcrito da testemunha). Ora, os referidos saldos pendentes de contas correntes não constam dos presentes autos, desconhecendo-se a que se refere a testemunha indicada, não tendo sido apresentados como prova, impedindo, assim, ao Tribunal a sua valoração e às partes o exercício do seu direito de defesa;
14. Por outro lado, como consta do relatório constante a fls. 808 a 821, da análise da contabilidade da sociedade, o senhor inspetor tributário apenas consegui apurar o alegado recebimento de menos de metade das faturas emitidas no referido período (cfr. fls. 7 do referido relatório), sendo certo que mesmo esse "apuramento", como o senhor inspetor tributário reconheceu em audiência de discussão e julgamento contém erros, nomeadamente no segundo quadro da página 7 do referido relatório.
15. Ora, a testemunha G.., em depoimento prestado na audiência de discussão e julgamento datada de 25 de Janeiro de 2012, gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no tribunal, com duração de 19 min 31 seg, com início às 11:09: 15 e fim às 11 :28:46 (prova que deverá ser renovada), para justificar, ainda, a discrepância entre o valor faturado e o recebido, referiu que muitas vezes eram emitidas notas de crédito, situação essa que foi também admitida pela testemunha E... na audiência realizada a 3 de Junho de 2013;
16. Efetivamente, o que o Senhor Inspetor Tributário se limitou a fazer foi ver se havia saldos devedores nas contas de clientes da sociedade A..... Ora, a inexistência de saldos    devedores nas contas de clientes da sociedade A.... não equivale a pagamento. Efetivamente, é a própria testemunha G... que afirma existirem muitas notas de crédito e que tais notas de crédito eram emitidas posteriormente. Ora, se eram emitidas notas de crédito, o saldo devedor dos clientes poderia efetivamente ser zero, não fruto do pagamento, mas sim da anulação da fatura, ou ainda, fruto do pagamento parcial e anulação parcial do faturado;
C) QUANTO À DATA DO RECEBIMENTO DAS FACTURAS QUE DERAM ORIGEM À LIQUIDAÇÃO DE IVA CONSTANTE DOS AUTOS
17. Por maioria de razão quanto ao atrás alegado, também não poderia o Tribunal a quo ter julgado como provadas as datas de recebimento constante do ponto 4. dos factos provados;
18. A prova produzida não permite concluir de forma cabal pelos concretos períodos, ainda que apurados com recurso a um lapso temporal tão vasto como sejam os períodos indicados no ponto 4. dos factos provados (atente-se que para o último trimestre de 2003 é apontado como data do recebimento dessas quantias o período entre 15 de Maio de 2004 e 21 de Julho de 2008, mais de quatro anos, portanto).
19. A testemunha E..., ouvida na audiência de discussão e julgamento realizada no dia 13 de Maio de 2013, (depoimento prestado na audiência de discussão e julgamento datada de 13 de Maio de 2013, gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no tribunal, com duração de 14 min 24 seg, início às 14:32:28 e fim às 14:46:52), incorreu frequentemente em contradição ao referiu, por um lado, existirem falhas na documentação que lhe foi facultada da contabilidade da empresa, designadamente ao nível dos recibos, e, depois, por outro, ao afirmar perentoriamente, no seu depoimento, que as contas estão saldadas, pois tal foi verificado através da conta corrente de saldos pendentes constantes do sistema informático da empresa, sendo certo que é a mesma testemunha que afirma, que os recibos analisados são o único meio que conseguiu obter e que permitem atestar, sem margem para dúvida, a data em que é efetuado o recebimento das faturas;
20. Resulta do seu depoimento (nas transcrições realizadas na motivação do presente recurso, para a qual se remeter), bem como do relatório a fls. 808 a 821 que, por um lado, não tinha documentos de suporte suficientes, designadamente recibos, talões de depósito ou extratos bancários que lhe permitissem apurar com precisão as datas do recebimento dos valores das faturas em causa. E mesmo nos poucos casos (conforme reconhece) em que existiam alguns recibos, tendo em conta que dos recibos não constava qualquer referência às faturas a que se reportavam, a testemunha "procurou" valores correspondentes ou aproximados e presumiu, por aproximação de datas e valores entre faturas e recibos / talões de depósito, que se reportavam a determinadas faturas dos períodos aqui em causa. Salvo o devido respeito, tal método não permite que a testemunha afirme de forma categórica saber precisar o intervalo de tempo em que ocorreram os recebimentos das faturas aqui em causa;
21. Ora aqui chegados, impõe-se concluir, nesta parte da questão que não existem nos autos elementos, nem foi feita prova produzida (atenta a contradição evidente do testemunho em que assentou a convicção do tribunal para dar como provadas as datas de recebimento constantes do ponto 4. dos factos provados);
22. A convicção do julgador tem que ser objetivável e motivável em elementos objetivos que a tornem credível em conformidade com as regras da experiência, da lógica, da racionalidade, da razoabilidade.
23. Nestes termos, o Tribunal a quo ao ter decidido nos termos acima expostos quanto à matéria de facto impugnada violou o disposto no art. 127 do CPP. Por último diga-se ainda que, pelo menos, perante a prova produzida em audiência sempre deveria o tribunal ter lançado mão do princípio in dubio pro reo, que impunha a absolvição do Arguido;
24. Face à alteração da matéria de facto dada como provada, como se requer, resulta clara a inexistência de factos subsumíveis na tipificação legal do crime de abuso de confiança fiscal, sendo certo que, ainda que não se procedesse a tal alteração da matéria de facto sempre se diria não estarem preenchidos tais elementos.
NÃO OBSTANTE E SEM PRESCINDIR NO ATRÁS ALEGADO,
III - RECURSO DE DIREITO
25. Tratando-se o crime de abuso de confiança fiscal de um crime omissivo, nos termos do artigo 5, n.º 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias, que ocorre na data em que termina o prazo para cumprimento dos respetivos deveres tributários e estando a sociedade arguida sujeita ao regime normal de IVA, de periodicidade trimestral, verificados os demais requisitos (que o arguido já afirmou não estarem preenchidos), o crime consumar-se-ia no dia 15 do segundo mês seguinte àquele em que foi alegadamente liquidado, como decorre do artigo 41, n.º 1, al. b), do Código do IVA, mais concretamente, relativamente aos períodos das faturas em causa, em 15 de Fevereiro de 2004, 15 de Fevereiro de 2006 e 15 de Fevereiro de 2007 - cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 29 de Fevereiro de 2012, referente ao processo n.º 1638/09.6IDLRA.C1 e Acórdão, também da Relação de Coimbra, datado de 28 de Março de 2012, referente ao processo n.º 1133/l0.0IDLRA.C1;
26. Efetivamente, o mecanismo do IVA exige a entrega não do montante liquidado, mas sim do saldo positivo apurado no confronto entre o imposto liquidado (recebido ou não) e o imposto suportado pelo sujeito passivo;
27. Aquela distinção é relevante, uma vez que, no caso em apreço, estaremos perante a eventual não entrega de prestação não deduzida, caindo na previsão da 2.ª parte do n.º 2 do artigo 105 (e não no n.º 1, como erradamente julgou a sentença objeto do presente recurso e que aplicou erradamente o referido normativo legal);
28. Ora, consumando-se o crime de abuso de confiança fiscal, nos casos de sujeito passivo abrangido pelo regime da periodicidade trimestral, no dia 15 do segundo mês seguinte àquele em que o IVA é faturado, o recebimento das quantias em causa terá, forçosamente, que ocorrer até àquela data, sob pena de não existir crime de abuso de confiança fiscal;
29. No caso dos autos, a sentença recorrida deu como provado que o recebimento dos referidos valores foram todos posteriores à data limite de pagamento, ou seja, entre 15 de Maio de 2004 e 21 de Julho de 2007 (4.º trimestre de 2003), entre 15 de Maio de 2006 e 21 de Julho de 2008 (4.º trimestre de 2005) e entre 15 de Maio de 2007 e 21 de Julho de 2008 (ponto 4. dos factos provados).Se assim é, então, forçoso é concluir que o recebimento de todas as quantias liquidadas nos períodos da dívida de que o arguido vinha acusado, ocorreram para além data de entrega do imposto respetivo as quais deveriam ter tido lugar em 15 de Fevereiro de 2004, 15 de Fevereiro de 2006 e 15 de Fevereiro de 2007, respetivamente;
30. É que como já se viu para que o tipo legal de crime aqui em causa esteja preenchido, é necessário que o sujeito passivo tenha, efetivamente, recebido as quantias dentro do período legal de entrega e que, decorrido tal prazo não tenha procedido à sua entrega ao Estado - neste sentido, veja-se o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, em 22 de Abril de 2013, passível de ser consultado aqui: http://www.dgsi.ptljtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/e55fbb8f283546208025 7b6500518f6f?OpenDocument&Highlight=0,abuso,de,confian%C3%A7a,fiscal.
31.Ora, no caso dos autos, em tudo idêntico ao enunciado neste Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, o Tribunal a quo deu como provado que até à data limite de pagamento, a sociedade arguida não recebeu qualquer quantias das faturas emitidas nos períodos em causa e que deram origem à liquidação do IVA;
32.Neste seguimento, em virtude de não ter resultado provado que o recebimento tenha ocorrido até ao termo do período tributário em que a entrega do imposto ao Estado deveria ter sido efetuada, não podia o Tribunal a quo firmar convicção no sentido da condenação;
33.Ao não assim considerar, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 105, n.º 1 e 2, do RGIT
Deve o recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a sentença proferida pelo Tribunal a quo, e substituída por uma outra na qual deverá o Recorrente ser absolvido do crime pelo qual foi acusado e condenado.
Respondeu o Magistrado do Mº Pº, concluindo:
1- Apenas foi objeto de julgamento, do qual emergiu a sentença ora recorrida, a questão de facto concreta mencionada no douto acórdão de II Instância de 19.9.2012, qual seja, a da concretização ou balizamento das datas em que a sociedade arguida recebeu as quantias de IVA liquidadas e constantes das declarações remetidas ao Fisco ( facto 4° da anterior sentença);
2- Estava vedado aos recorrentes, desta feita, censurar a sentença em quaisquer outras questões de facto e de direito que não aquela, como sejam vg. as de saber se o arguido C.... exerceu ou não a gerência da sociedade ou se o IVA em causa foi ou não recebido pela mesma;
3- No reapuramento/concretização/balizamento do citado facto provado n° 4, desta feita o Tribunal a quo deu como provado que a sociedade arguida recebeu o IVA de 2003 entre 15.5.2004 e 21.7.2008; o de 2005 entre 15.5.2006 e 21.7.2008 e o de 2006 entre 15.5.2007 e 21.7.2008.
4- Ou seja, admitiu no limite que todo o imposto pode ter sido recebido apenas em 21.7.2008, logo, depois do período tributário em que a obrigação de entrega deveria ter sido cumprida;
5- Logo, prejudicada se mostra a condição objetiva de punibilidade prevista no art. 105°-4-b) do RGIT, pois, que, no prazo legal de entrega da prestação, fixado no art. 41°-1-b) do CIVA, ainda o imposto não havia sido recebido ou tal se admitiu, cfr. o cit. Ac. da RG de 22.4.2013.
6- E, com ela, a comissão do indicado crime.
7- Temos, por isso, por prejudicado o rebate do recurso do arguido B.....
8- Nada opomos, pois, à absolvição de todos os arguidos.
Nesta Instância, o Ex.mº Procurador Geral Adjunto entende, no parecer emitido, que ambos os recursos merecem improvimento, devendo manter-se a sentença recorrida.
Foi cumprido o art. 417 nº 2 do CPP.
Foi apresentada resposta pelo arguido C...., na qual sustenta o alegado na motivação.
Foram colhidos os vistos legais.
Foi efetuada a conferência.
Cumpre decidir.
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È do seguinte teor a matéria de facto apurada e motivação da mesma:
C) FUNDAMENTAÇÃO:
I – O TRIBUNAL JULGA PROVADOS OS SEGUINTES FACTOS:
1. A sociedade arguida “ A...., L.dª” foi constituída em 1999, sob a forma de sociedade por quotas, tendo sido registada na Conservatória de Registo Comercial de Anadia sob o número de identificação de pessoa coletiva (....), com o objeto de comércio de material elétrico e mecânico para indústria, bem como componentes industriais e respetiva importação e exportação.
2. A gerência da sociedade, no período compreendido entre a sua constituição e até, pelo menos, data posterior ao ano de 2006, foi exercida pelos arguidos B.... e C...., incumbindo-lhes, nessa medida, praticar os atos indispensáveis ao regular funcionamento da mesma, designadamente, receber pagamentos de clientes, pagar a fornecedores, contratar trabalhadores, pagar-lhes os respetivos salários, adquirir matéria prima e máquinas e vender mercadorias.
3. A dita sociedade tem a sua sede na (....), Anadia e é sujeito de Imposto sobre Valor Acrescentado (I.V.A.) no regime normal de periodicidade trimestral, estando obrigada, através da atuação dos seus gerentes, a enviar periodicamente ao Serviço de Administração do I.V.A. (S.I.V.A.) o montante de imposto exigível, devendo, para tal, proceder ao apuramento do imposto no momento da emissão da respetiva fatura, o qual deve ser adicionado ao valor desta, devendo, ainda, enviar, simultaneamente com o imposto, uma declaração relativa às operações efetuadas no exercício da sua atividade.
4. A sociedade arguida, por intermédio dos seus gerentes e aqui arguidos B.... e C...., liquidou nas suas operações comerciais e recebeu dos seus clientes, as seguintes quantias, a título de I.V.A.:
Ano de 2003:
a) entre 15.05.2004 (15.02.2004 + 90 dias) e 21.07.2008, a quantia de €7.643,17 (sete mil seiscentos e quarenta e três euros e dezassete cêntimos), respeitante ao 4.º trimestre;
Ano de 2005:
a) entre 15.05.2006 (15.02.2006 + 90 dias) e 21.07.2008, a quantia de €15.374,33(quinze mil trezentos e setenta e quatro euros e trinta e três cêntimos), respeitante ao 4.º trimestre;
Ano de 2006:
a)entre 15.05.2007 (15.02.2007 + 90 dias) e 21.07.2008, a quantia de €16.922,27(dezasseis mil novecentos e vinte e dois euros e vinte e sete cêntimos), respeitante ao 4.º trimestre.
5. Contudo, não obstante ter recebido dos seus clientes, o I.V.A. liquidado durante os referidos períodos de tempo, cujo total perfaz a quantia de €39.939,77 (trinta e nove mil novecentos e trinta e nove euros e setenta e sete euros cêntimos) e remetido ao S.I.V.A. as declarações relativas àqueles períodos, algumas fora do prazo legal (nomeadamente as referentes aos períodos em causa na pronúncia), ou seja, até ao dia 15 do segundo mês seguinte ao trimestre do ano civil a que respeitam as operações, a sociedade arguida, através dos seus gerentes e aqui arguidos B.... e C...., e em obediência a uma decisão conjunta, não fez a entrega daquele imposto nos cofres do Estado, nem supriu essa falta nos 90 dias seguintes ao termo daqueles prazos;
6. Os arguidos e a sociedade arguida foram notificados no âmbito destes autos para procederem ao pagamento, no prazo de 30 dias, das quantias “supra” referidas, acrescidas dos respetivos juros e do valor da coima aplicável, não tendo qualquer deles procedido a esse pagamento.
7. Os arguidos B.... e C...., atuando em comunhão de esforços e intenções e agindo em nome e no interesse da sociedade arguida, quiseram não entregar reiteradamente os montantes de imposto que liquidaram nos documentos que emitiram, dessa forma recebendo e integrando no património daquela sociedade as quantias acima enumeradas, que utilizaram em benefício dela e como se de coisa sua se tratasse, bem sabendo que as mesmas não lhes pertenciam e que estavam legalmente obrigados a entregá-las nos cofres do Estado por constituírem prestações tributárias legalmente exigíveis, o qual assim prejudicavam por dar origem a um diminuição das receitas fiscais.
8. Sabiam, também, que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.
9. O arguido B.... confessou parcialmente os factos.
10. Os arguidos agiram do modo descrito face às dificuldades económico-financeira da sociedade arguida, tendo por isso optado por efetuar com as disponibilidades financeiras existentes o pagamento de salários aos trabalhadores e os pagamentos aos fornecedores, em detrimento da entrega dos valores de I.V.A. apurados.
11. O arguido B.... vive sozinho; habita em casa própria, amortizando crédito bancário em prestações mensais de €800,00; trabalha como professor, auferindo cerca de €1,600,00 mensais; faz algum trabalho extra do qual retira cerca de €4.000/5.000,00 anuais (nada recebeu ou recebe da gerência da sociedade arguida que já não tem qualquer atividade); suporta ainda um crédito pessoal que amortiza em prestações mensais de €335,00 e um crédito particular que amortiza em prestações mensais de €600,00.
12. O arguido C.... tem 2 filhos menores para cujo sustento contribui com €200/250,00 mensais; trabalha como gerente, auferindo cerca de €600,00 mensais e todas as suas despesas são suportadas pela sociedade para a qual trabalha atualmente.
13. O arguido B.... foi condenado por sentença de 09.10.2012, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 7,00, por factos praticados em 2007;
14. Do registo criminal do arguido C.... e da sociedade arguida não consta qualquer inscrição.
II – O TRIBUNAL JULGA NÃO PROVADOS TODOS OS RESTANTES FACTOS, NOMEADAMENTE QUE:
1. Todas as declarações periódicas de I.V.A. foram entregues dentro do prazo legal.
2. O arguido C...., no período referido nos autos, não era gerente de facto da sociedade arguida.
3. Os montantes recebidos dos clientes a título de I.V.A. não foram entregues ao Estado porque a sociedade arguida não tinha de facto esse dinheiro.
4. E isto porque, o contabilista da referida sociedade nunca informou o arguido B.... da real situação económico-financeira da sociedade, de que os valores que efetivamente eram faturados aos clientes, não eram sequer suficientes para fazer face ao pagamento das despesas com pessoal e material.
5. O arguido B.... sempre trabalhou a par com os demais trabalhadores nos serviços que lhes eram contratados.
6. Nunca o arguido B.... se apropriou de dinheiro da sociedade para seu proveito pessoal.
7. Se na qualidade de gerente que desempenhava, o arguido B.... não entregou ao Estado os montantes de impostos devidos, foi porque efetivamente a sociedade não tinha esse dinheiro (cfr. ponto 10. dos factos provados quanto ao destino das disponibilidades financeiras existentes).
8. O arguido B.... é pessoa respeitada e respeitadora no meio social em que vive;
9. E é pessoa de modesta condição social e de média condição económica.
III – MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO:
O Tribunal baseou a sua convicção na análise crítica de todas as provas produzidas e analisadas em audiência de discussão e julgamento, livremente apreciadas e valoradas em conjugação com as regras da experiência comum, nomeadamente:
Os documentos juntos aos autos:
Auto de notícia [fls.76 a 79] e documentos anexos [fls.80 a 115];
Outros documentos [fls.14 a 16 (certidão da matrícula da sociedade arguida); 146 a 153, 192 a 200 (notificações); 355 a 361 (declarações periódicas de I.V.A. dos trimestres em causa); e 533 a 542];
A informação da Autoridade Tributária e Aduaneira junta aos autos no âmbito do novo julgamento efetuado a fls. 808 a 821.
Os C.R.C. juntos aos autos a fls. 790 a 794.
As declarações do arguido B....:
Confessou os factos, no essencial, em conformidade com os factos provados;
Confirmou o pagamento de salários dos trabalhadores e o pagamento aos fornecedores essenciais à manutenção do funcionamento da empresa em detrimento do I.V.A.; declarou que o arguido C.... também exerceu a gerência da sociedade nos períodos em causa; relatou as suas condições pessoais e a atual situação da sociedade arguida.
As declarações do arguido C....:
Relatou os factos, no essencial, em conformidade com a sua contestação;
Declarou que deixou a gerência de facto de sociedade arguida em Setembro de 2003;
Relatou as suas condições pessoais.
Os depoimentos das testemunhas:
E...; inspetor tributário; sabe dos factos porque fez a ação inspetiva à sociedade arguida entre Dezembro de 2007 e Julho de 2008 por incumprimento em relação aos pagamentos de I.V.A.
Explicou que havia declarações em falta e que foram entregues durante a inspeção; declarou que da documentação examinada resulta o exercício da gerência também pelo arguido C....; e constatou as dificuldades económico-financeiras da sociedade arguida.
No decorrer do novo julgamento realizado, relatou que na sequência da notificação que lhe foi feita pelo Tribunal, na sessão de julgamento ocorrida no dia 18 de Abril de 2013 elaborou a informação junta aos autos a fls. 808 a 821 (não obstante ter dado conta das dificuldades que teve na obtenção dos elementos contabilísticos, por falta de colaboração dos arguidos e do Técnico oficial de contas da sociedade arguida).
Explicou, de forma coerente e credível, e por forma a convencer da veracidade das suas afirmações, que os elementos que conseguiu obter não permitem concluir, na plenitude, quais as datas de recebimento dos valores de todas as faturas emitidas pela sociedade arguida nos períodos de IVA relativos aos quartos trimestres de 2003, 2005 e 2006. Contudo, explicou também que não lhe restavam dúvidas que à data da recolha do extrato de saldos pendentes, a 21 de Julho de 2008, a sociedade arguida já tinha recebido o IVA em causa nos presentes autos.
Não tem o tribunal qualquer fundamento para infirmar os dados contidos no relatório junto a fls. 808 e seguintes, até porque o Sr. Inspetor explicou, de forma coerente lógica e credível o modo como chegou à conclusão de que pelo menos no dia 21 de Julho de 2008 (balizamento possível) a sociedade arguida já tinha recebido os montantes referidos nos factos provados. Na verdade, a referida testemunha referiu ao Tribunal que com base na data da recolha dos saldos pendentes retirado do programa de gestão comercial da empresa e com base nos recibos e extratos pendentes a sociedade arguida, em 21 de Julho de 2008, já tinha recebido o imposto devido e objeto dos presentes autos.
H...; foi sócio-gerente da sociedade arguida até ao verão 2003; não revelou conhecer quaisquer factos relevantes para a descoberta da verdade sobre a matéria em discussão ou para a boa decisão da causa.
G...; sabe dos factos porque foi empregada de escritório da sociedade arguida desde o ano 2000 até ao ano 2009; confirmou o não pagamento do I.V.A. por falta de disponibilidades financeiras; os atrasos no recebimento das faturas emitidas; confirmou que a gerência era exercida por ambos os arguidos, mas com menor presença do arguido C.... desde que iniciou atividade numa outra empresa.
F...; Técnico Oficial de Contas; sabe dos factos porque desempenhou a sua atividade profissional para a sociedade arguida desde a sua criação até ao ano de 2006; confirmou a falta de pagamentos do I.V.A. por dificuldades financeiras; confirmou que o arguido C.... também exerceu a gerência da sociedade nos períodos em causa.
I... ; sabe dos factos porque desde Novembro de 2004 a Dezembro 2010 foi empregado de uma outra sociedade de que o arguido C.... é gerente; desconhecia que este arguido fosse sócio-gerente da sociedade arguida; conhecia e falava apenas com o arguido B.... como responsável da sociedade arguida.
D...; sabe dos factos porque foi empregado da sociedade arguida desde o ano 2002 até ao ano 2005; confirmou que a gerência era exercida por ambos os arguidos, mas com menor presença do arguido C.... desde que iniciou atividade numa outra empresa.
J...; Técnico Oficial de Contas; sabe dos factos porque desempenha a sua atividade profissional para uma outra sociedade de que o arguido C.... é gerente e que manteve relações comerciais com a sociedade arguida; confirmou a existência de uma dívida daquela sociedade para com a sociedade arguida que foi integralmente paga embora posteriormente mas sem fazer qualquer correspondência direta com os montantes em causa nos trimestres em discussão nos autos; desconhecia que o arguido C.... tivesse qualquer ligação à sociedade arguida.
*
A única questão de prova que, em nosso entender, verdadeiramente resulta controvertida é o exercício da gerência de facto pelo arguido C....:
Não obstante a negação do arguido C...., o Tribunal entende que da conjugação de toda a prova resulta que também este arguido exerceu a gestão da sociedade nos períodos de tempo em causa.
Com efeito, para além de constar como gerente na matrícula da sociedade e de como tal ter recebido remuneração durante algum tempo, a restante prova também impõe essa conclusão; pois é confirmada pelo arguido B...., pelo inspetor tributário a partir da documentação da sociedade, pelo Técnico Oficial de Contas da sociedade e pelas testemunhas que foram trabalhadoras da sociedade arguida.
***
Conhecendo:
Objeto dos recursos.
Recurso do arguido B....:
- Entende não se terem provado factos referentes ao recebimento do valor faturado e o IVA até à data limite da entrega, até ao dia 15 de Fevereiro de todos os períodos.
- Alega não entender de que modo se aferiu o elemento subjetivo do crime.
- Com base no princípio in dúbio pro reo deveria entender-se que os factos foram praticados a título de negligência e que apenas originariam contraordenação fiscal.
- Entende ser a pena exagerada, quer no que concerne ao número de dias da pena de multa quer no que respeita à taxa diária aplicada.
Recurso do arguido C....:
-Tem como incorretamente julgados os pontos 2, 4, 5, 7, 8 e 10 dos provados e 2 dos não provados:
- Ao dar como provado que no período identificado nos autos exerceu as funções de gerente;
- Ao dar como provado que a sociedade efetivamente recebeu dos seus clientes os montantes de IVA, até 21 de Julho de 2008, tal aconteceu em data posterior à da obrigação da entrega;
- Pelo que não se encontram preenchidos os elementos do tipo de c5rime pelo qual foi condenado.
***
Recebimento pela sociedade arguida dos montantes faturados e IVA correspondente:
Resulta provado nos autos:
4. A sociedade arguida, por intermédio dos seus gerentes e aqui arguidos B.... e C...., liquidou nas suas operações comerciais e recebeu dos seus clientes, as seguintes quantias, a título de I.V.A.:
Ano de 2003:
a) entre 15.05.2004 (15.02.2004 + 90 dias) e 21.07.2008, a quantia de €7.643,17 (sete mil seiscentos e quarenta e três euros e dezassete cêntimos), respeitante ao 4.º trimestre;
Ano de 2005:
a) entre 15.05.2006 (15.02.2006 + 90 dias) e 21.07.2008, a quantia de €15.374,33 (quinze mil trezentos e setenta e quatro euros e trinta e três cêntimos), respeitante ao 4.º trimestre;
Ano de 2006:
a) entre 15.05.2007 (15.02.2007 + 90 dias) e 21.07.2008, a quantia de €16.922,27 (dezasseis mil novecentos e vinte e dois euros e vinte e sete cêntimos), respeitante ao 4.º trimestre.
5. Contudo, não obstante ter recebido dos seus clientes, o I.V.A. liquidado durante os referidos períodos de tempo, cujo total perfaz a quantia de €39.939,77 (trinta e nove mil novecentos e trinta e nove euros e setenta e sete euros cêntimos) e remetido ao S.I.V.A. as declarações relativas àqueles períodos, algumas fora do prazo legal (nomeadamente as referentes aos períodos em causa na pronúncia), ou seja, até ao dia 15 do segundo mês seguinte ao trimestre do ano civil a que respeitam as operações, a sociedade arguida, através dos seus gerentes e aqui arguidos B.... e C...., e em obediência a uma decisão conjunta, não fez a entrega daquele imposto nos cofres do Estado, nem supriu essa falta nos 90 dias seguintes ao termo daqueles prazos;
6. Os arguidos e a sociedade arguida foram notificados no âmbito destes autos para procederem ao pagamento, no prazo de 30 dias, das quantias “supra” referidas, acrescidas dos respetivos juros e do valor da coima aplicável, não tendo qualquer deles procedido a esse pagamento;
É jurisprudência pacífica que, o dever legal (sob pena de incorrer em responsabilidade criminal) de entregar as prestações devidas pressupõe sempre que estas tenham sido efetivamente recebidas.
Na doutrina e no que se refere especificamente ao caso do IVA não recebido, vide SILVA, Isabel Marques da – “Nullum Crime, Nulla Poena, Sine Lege Praevia : A inexistência de Infração Tributária nos Casos de IVA não Recebido” - Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Paulo de Pitta e Cunha – Volume II, Economia, Finanças Públicas e Direito Fiscal, de Eduardo Paz Ferreira, António Menezes Cordeiro, José Duarte, Jorge Miranda, Edições Almedina, 2010, pág. 257 e segs..
Como bem salienta o Prof. Germano Marques da Silva, in Direito Penal Tributário, pág. 58, “o que verdadeiramente se verifica nos crimes de abuso de confiança é o incumprimento do dever funcional do substituto: a entrega nos cofres do Estado dos bens que arrecadou em nome e por conta do Estado. É a infidelidade a razão da punição”.
Mas para haver esse incumprimento tem de haver liquidação (pagamento) da fatura pelo cliente.
Há diferença entre obrigação ou responsabilidade tributária pelo imposto IVA e eventual responsabilidade criminal daí decorrente.
Refere o inspetor tributário que efetuou o relatório no seguimento do reenvio processual, e que não se imiscuiu de criticar o acórdão, «As circunstâncias desta decisão prendem-se com a posição defendida no referido Acórdão de que "só após o recebimento se verifica a obrigação de entrega" (in pág. 21 do referido Acórdão), juízo que, salvo melhor opinião, não será o mais consentâneo com o n.º 1 do artigo 27° do Código do IVA, que dispõe que "os sujeitos passivos são obrigados a entregar o montante do imposto exigível, apurado nos termos dos artigos 19 a 26 e 78, no prazo previsto no artigo 41”, sendo que este respeita aos prazos de entrega das declarações periódicas. Se assim fosse, estaríamos já no âmbito do regime de caixa para efeitos de apuramento do IVA a entregar ao Estado».
Será como o sr. inspetor refere no que respeita a responsabilidade tributária, a nível fiscal, mas assim não é no que respeita a responsabilidade criminal, ou responsabilidade penal tributária.
Como se refere no Ac. da Rel. de Guimarães e com o qual concordamos plenamente, de 22-04-2013, relator Desemb. Cruz Bucho, proc. nº 520/11.1IDBRG.G1, “È certo que o IVA é devido desde a respetiva venda, faturação, liquidação e declaração aos serviços, e não desde o momento do pagamento da transação que lhe deu origem. Por isso, o pagamento do IVA liquidado e declarado é exigível logo que decorra o respetivo prazo, tenha ou não sido recebido do devedor seguinte.
Mas se as coisas se passam assim a nível fiscal, não é, porém, lícito concluir que para efeitos criminais, isto é da consumação de um crime de abuso de confiança fiscal, é indiferente saber se ocorreu ou não efetiva a cobrança do imposto aos clientes.
Salvo o devido respeito, importa não confundir a responsabilidade tributária pelo imposto devido com a responsabilidade penal tributária. O facto gerador da responsabilidade tributária é autónomo da responsabilidade criminal: a obrigação tributária existe independentemente do crime”.
No mesmo sentido, o Prof. Germano Marques da Silva, in Direito Penal Tributário, Lisboa, 2009, pág. 113 refere: “O facto gerador da dívida de imposto existe independentemente da prática de qualquer crime: a obrigação tributária é autónoma relativamente à responsabilidade penal pela prática de crime tributário e é geralmente proveniente da prática de facto ilícito, ainda que entre a dívida tributária e a responsabilidade pelo crime exista conexão”.
 O mestre Armando da Rocha Azevedo, em “O CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL E O CRIME CONTINUADO”, Tese de Dissertação de Mestrado em Direito Criminal, salienta “No crime de abuso de confiança fiscal não está em causa um incumprimento contratual, mas antes a não entrega dolosa de uma prestação tributária recebida por alguém que se encontra numa posição que se assemelha à figura do fiel depositário e que tem a obrigação legal de proceder à sua entrega”.
Só se é depositário de algo que se recebeu e, só se pode deixar de entregar, de forma voluntária, por quem tem a obrigação de entrega, quando já se recebeu.
Nesse Ac. da Rel. de Guimarães se expressa que, “afigura-se-nos - conforme de resto constitui doutrina e jurisprudência amplamente maioritárias - que o crime de abuso de confiança fiscal tem, como um dos seus elementos objetivos, a dedução ou o recebimento da prestação tributária, o que, no âmbito do imposto sobre o valor acrescentado (IVA), significa que o devedor tributário só pode praticar esse crime se tiver recebido o montante da prestação tributária, se esta lhe tiver sido entregue pelo adquirente”.
Isso já referimos no Ac. que ordenou o reenvio:
Como se refere no Ac. desta Relação, de 15-12-2010, proc. 24/06.4IDGRD.C1 (citado no recurso), “Em síntese, o que se conclui é que, no caso do IVA, só comete o crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105 do RGIT, aquele sujeito passivo que tendo efetivamente recebido o montante devido pela cobrança do imposto e esteja por isso obrigado à sua entrega ao Estado, o não faça no prazo legalmente fixado para tal”.
No mesmo sentido e texto, o Ac. desta Relação (também citado no recurso), de 29-02-2012, proc. 1638/09.6IDLRA.C1, “No caso do IVA, só comete o crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105º, do R.G.I.T., aquele sujeito passivo que, tendo efetivamente recebido o montante devido pela cobrança do imposto e esteja, por isso, obrigado à sua entrega ao Estado, o não faça no prazo legalmente fixado para tal”.
No mesmo sentido de que no caso do IVA, só comete o crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105 do R.G.I.T., aquele sujeito passivo que, tendo efetivamente recebido o montante devido pela cobrança do imposto e esteja, por isso, obrigado à sua entrega ao Estado, o não faça no prazo legalmente fixado para tal, se pronunciaram Germano Marques da Silva, Direito Penal Tributário, cit., pág. 244 e nota 93, Susana Aires de Sousa, Os Crimes Fiscais, cit pág. 124, Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infrações Tributárias, cit, págs.169 e 181 e Paulo Marques, Infrações Criminais, vol. I, Direção Geral dos Impostos (Centro de Formação), Lisboa, 2007, págs 138-139, Paulo Marques, Crime de Abuso de Confiança Fiscal, cit., pág. 75 e págs. 101 e ss.
Também no Ac. da Rel. Guimarães de 3-12-2012, rel. Fernando Monterroso se observou:
«Este enquadramento não é incompatível com a obrigação legal do responsável tributário pagar à administração fiscal todo o IVA que faturou, independentemente de o ter efetivamente recebido. Ao direito civil e ao direito fiscal não repugna a existência de antecipações de pagamento.
Porém, como se disse, só haverá crime quando o agente tiver recebido os valores e lhes der destino diferente daquele a que se estava obrigado. Outro entendimento poderia levar à condenação em casos em que o faltoso, que ainda não recebeu, estava em situação económica que o impedia, em absoluto, de cumprir a prestação. Isso violaria o princípio da culpa, que implica a proibição de punição criminal por facto não culposo. Só existe «culpa» se sobre o agente for possível formular um juízo de censura ético-jurídico por ter atuado de determinada forma, quando podia e devia ter agido de modo diverso (Eduardo Correia, Direito Criminal, vol. I, pag. 316). Facilmente se conjeturam casos em que não é possível censurar alguém por não ter entregue valores que ainda não recebeu, nomeadamente por estar em situação de carência económica.
Termina-se transcrevendo do acórdão desta relação proferido no recurso 194/08.7IDBRG.G2 (relatora Nazaré Saraiva), citando Paulo Marques: o recebimento da prestação tributária «está pelo menos implícito no tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal, mesmo no Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT)», pois, caso contrário, avança o mesmo autor, «se o agente a não tiver recebido previamente, como poderemos falar em incumprimento ilícito e doloso do dever de restituição ou entrega? Aquele precede necessariamente este último. (…) Apenas se pode recusar a entrega de algo que se recebeu previamente, que se teve em mãos. De outro modo, como exigir um comportamento diferente do agente? Como então justificar a sua punição severa consubstanciada em pena de prisão?» Cfr. Crime de Abuso de Confiança Fiscal – Problemas do Atual Direito Penal Tributário, Coimbra Editora, págs. 57-58. E, acrescenta o mesmo autor: «Quando, por exemplo, o contribuinte não recebeu previamente o IVA, resulta claro que não lhe é possível entregar o imposto, logo não poderia ter agido de outro modo, não se podendo falar em abuso de confiança, nem em crime omissivo doloso. A omissão dolosa pressupõe a decisão voluntária de não fazer nada quando podia e devia fazer o que a lei impõe. A não ser assim, um agente económico que nada recebesse dos seus clientes poderia inclusivamente ser condenado com pena de prisão apesar de não poder proceder de outro modo – não pode entregar o que nunca recebeu -. Daqui decorre a improcedência do sancionamento criminal, sem prejuízo da responsabilidade tributária, uma vez que o imposto é devido ao Estado independentemente de ter existido ou não recebimento prévio, assim como a dedução é permitida mesmo que o contribuinte não tenha pago a aquisição ao seu fornecedor». Cfr. Ob. cit., pág. 64.»
No caso em apreço pode chegar-se ao extremo, quando a sociedade recebeu dos clientes, os arguidos pessoas singulares podiam já não ser gerentes, pois que no ponto dois dos factos provados se refere que, “2. A gerência da sociedade, no período compreendido entre a sua constituição e até, pelo menos, data posterior ao ano de 2006, foi exercida pelos arguidos B.... e C....,…” e, no já referido ponto 4 dos mesmos provados se refere que as quantias de IVA poderiam ter sido recebidas efetivamente em 21-07-2008, sendo que data posterior ao ano de 2006 já o é 1 de janeiro de 2007.
Se relativamente à gerência se poderia apurar até quando os arguidos exerceram funções, já quanto ao momento do efetivo recebimento pela sociedade do IVA devido pelos seus clientes e aqui em causa, apenas se apurou o constante o atual ponto 4 dos provados, mesmo após o processo ter sido reenviado para apuramento desse ponto específico.
Ou seja, na condenação na sentença recorrida, todo o raciocínio é feito na perspetiva de os arguidos terem obrigação de entregar nos cofres da Fazenda Pública as quantias liquidadas a título de IVA até 15 de Maio de 2004, 15 de Maio de 2006 e 15 de Maio de 2007, sob pena de incorrerem em responsabilidade penal tributária, cometendo o crime de abuso de confiança fiscal.
Porém, temos entendimento diferente e que supra expressamos e sustentamos.
Porque só após o recebimento é que recai a obrigação penal de entrega (pagamento).
E, nas datas limite do pagamento do IVA respeitante a cada uma das prestações em causa nos autos, não está demonstrado que a sociedade arguida já tivesse recebido.
Pelo contrário. No terminus do prazo legal da entrega, está provado, que a arguida ainda não tinha recebido qualquer quantia, mas antes está provado que apenas recebeu após o decurso de 90 dias sobre o prazo da entrega, após 15-05-2004, 15-05-2006 e 15-05-2007.
Assim, temos que se verifica o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, sendo insuficientes os factos para proferir a decisão de direito.
Porém, do reenvio já efetuado não resultou apurada matéria suficiente, pelo que não há lugar a renovação do reenvio para o mesmo efeito.
Como se refere no Ac. do S.T.J. de 20-4-2006, proc.º n.º 363/03: “A insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão de ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. – e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ser apurados na audiência vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena.”
Assim que se entenda como não preenchidos os elementos do tipo de crime em causa, pelo que, condenação criminal dos arguidos não pode subsistir por não se ter apurado que o valor do IVA recebido o foi até 90 dias após o termo do prazo legal de entrega da prestação (antes se provou que foi recebido após o decurso desses 90 dias), devendo antes, ser absolvidos.
O artigo 105, nº 4 als.) a) e b) do RGIT estabelece duas condições objetivas de punibilidade, na medida em o que o seu conteúdo não faz parte da ilicitude e da culpa do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal. Em abstrato e em termos dogmáticos, a lei que cria uma condição objetiva de punibilidade é uma lei penalizadora, pelo que tem de objetivamente se verificar a condição, para haver crime.
O que não invalida a subsistência da obrigação tributária.
*
Esta decisão de absolvição dos arguidos prejudica o conhecimento das demais questões suscitadas nos recursos.
Esta decisão aproveita inclusive à arguida não recorrente, nos termos do art. 402 nº 2 al. a), do CPP.
Decisão:
Com os fundamentos expostos, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra em:
-Julgar procedentes os recursos interpostos pelos arguidos pessoas singulares e, em consequência, revoga-se a decisão de condenação e absolvem-se todos os arguidos, dos crimes de que vinham acusados.


Jorge Dias (Relator)
Orlando Gonçalves