Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
189/04.0TBSRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
REQUISITOS
RECONVENÇÃO
ADQUIRENTE
DOAÇÃO
Data do Acordão: 04/21/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO - SERTÃ - INSTÂNCIA LOCAL - SECÇÃO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 610º, 611º E 612º DO CC
Sumário: 1 - A impugnação pauliana é um meio de conservação patrimonial que não coloca em crise a validade do acto impugnado; o que significa que a reconvenção, deduzida por parte do adquirente do acto impugnado, a pedir que se declare que ele, adquirente, é proprietário por ter adquirido o bem por usucapião, em função da posse que lhe foi transmitida pelo alienante, é juridicamente inútil e não obsta, preenchidos os requisitos, ao êxito da impugnação pauliana.

2 - Sendo o acto impugnado uma doação, o impugnante apenas tem que provar o crédito, o seu montante e a sua anterioridade em relação ao acto impugnado; efectivamente, sendo o acto impugnado gratuito não exige a lei a má fé e, por outro lado, quanto ao requisito respeitante “à impossibilidade para o credor de obter a satisfação plena dos seus créditos ou o agravamento dessa impossibilidade”, de acordo com o art. 611.º do CC o ónus probatório colocado a cargo do impugnante esgota-se na prova do “montante das dívidas” (sendo aos impugnados que cabe a prova do devedor “possuir bens penhoráveis de igual ou maior valor”).

Decisão Texto Integral:

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

A... , S.A, com os sinais dos autos, intentou a presente “acção pauliana” contra B..., C , divorciados, residentes na Rua (...) , Proença-a-Nova, e D... , então menor, filho dos anteriores RR., pedindo que seja “decretada a ineficácia relativamente a si das doações constantes das escrituras celebradas em 21.02.2000 e 09.05.2000, no Cartório Notarial de (...) entre os Réus, relativa aos prédios nelas identificadas, podendo a Autora executá-los no património onde se encontram sempre na medida do necessário à satisfação do seu crédito sobre os 1.° e 2.° Réus, no valor de € 14.895,18 e juros vincendos após 30.03.2004, à taxa anual de 4% sobre 2.413.846$00 (€ 12.040,21)”.

Alegou, em síntese, ter sucedido ao BNU, sendo possuidora de uma livrança no valor de 2.413.846$00 (€ 12.040,21), subscrita pelos 1.º e 2.º RR., em 16.11.1999, e vencida em 05.08.2000, que não foi paga; motivo porque instaurou, sem sucesso, uma acção executiva que correu termos pelo Tribunal Judicial da Comarca da Sertã sob o nº 762/2001, uma vez que a 1.ª R. (devidamente autorizada pelo 2.º R., então seu marido, e demais comproprietários dos prédios) procedeu (após permuta com os demais comproprietários), em 21/02/2000, à doação ao 3.º R., filho menor de ambos, da totalidade dos prédios de que ficou proprietária, bem como a sua quota-parte daqueles em que ficou comproprietária; tendo posteriormente, em 19.05.2000, doado ainda, com autorização do 2.º R., ao 3.º R. o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o n.º 5201.

Concluiu que, em resultado de tais doações, ficou impossibilitada de obter a integral satisfação do seu crédito à custa do património dos dois primeiros RR., a quem não são conhecidos quaisquer bens, tendo tais doações sido feitas para impedir que a A. pudesse obter a satisfação do seu referido crédito.

Apenas o 3.º R. contestou (em 06/06/2011), sustentando:

Que o direito da A. caducou por terem decorrido mais de cinco anos sobre os actos impugnados.

Que a dívida dos 1.º e 2.º RR. não existe por a acção executiva se encontrar extinta por deserção da instância; e que a acção cambiária contra os subscritores da livrança já prescreveu porque vencida em 05/08/2000.

Que as doações foram efectuadas em virtude da 1.ª R. ter descoberto uma relação extra-conjugal por parte do 2.º R., desconhecendo o R/contestante a existência de qualquer dívida de seus pais face à A..

Que passou a possuir os prédios de forma contínua, pacífica, pública e de boa-fé, após as datas das doações (que de imediato registou em seu nome), pelo que há muito os adquiriu por usucapião; pedindo, em reconvenção, que seja declarado dono e legítimo possuidor dos prédios identificados nos art.º 16.º e 17.º do articulado,

.

A A. replicou, pugnando pela improcedência das excepções de caducidade e prescrição invocadas pelo réu; mantendo em tudo o mais o alegado e concluindo como na PI.


Foi admitido o pedido reconvencional e proferido despacho saneador – em que se julgou a instância totalmente regular, estado em que se mantém, e em que foram julgadas improcedentes, sem censura, as excepções de caducidade e prescrições suscitadas pelo R. contestante – organizada a matéria factual com interesse para a decisão da causa e instruído o processo.

Procedeu-se à realização da audiência de julgamento – já à luz do NCPC – após o que a Exma. Juíza de Círculo proferiu sentença em que concluiu concluindo a sua decisão do seguinte modo:

Em face de tudo o que ficou exposto:

a) Julgo totalmente procedente a acção e, em consequência, declaro a ineficácia, em relação à autora, das doações constantes das escrituras celebradas em 21/02/2000 e 09/05/2000, no Cartório Notarial de (...) entre os réus, relativa aos prédios nelas identificadas, podendo a autora executá-los no património do obrigado à restituição, na medida do necessário à satisfação do crédito da autora sobre os primeiro e segundo réus, no valor de € 12.040,21, acrescido de juros vencidos e vincendos, à taxa legal prevista para os juros civis;

b) Julgo totalmente improcedente a reconvenção deduzida pelo terceiro réu e, consequentemente, absolvo a autora/reconvinda do pedido reconvencional contra si deduzido (…)”

Inconformado com tal decisão, interpôs o R. contestante recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que julgue a acção totalmente improcedente e a reconvenção procedente.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

1ª Os factos considerados não provados na douta sentença recorrida sob as als. A e B devem ser considerados provados.

3ª Analisando os depoimentos das testemunhas descredibilizadas, (…), conclui-se que os prédios dos autos são tratados pelos tios do recorrente em seu nome, desde altura em que este era uma criança, pois tinha nove anos de idade à data das doações, não sendo crível que esta criança soubesse da existência de dívidas à A... e muito menos que tivesse conhecimento das mesmas antes da citação para a presente acção, já que não seria normal que a sua mãe lhe fosse dizer o que quer que fosse, uma vez que a execução estava extinta desde que foi decretada a falência dos RR.. (…) Dos citados depoimentos resulta toda a factualidade necessária para que seja decretada a aquisição originária a favor do recorrente, por usucapião, dos prédios autos.

4ª Na pendência dos presentes autos ocorreu a falência dos RR, B... e C... por sentença de 21/01/2005, transitada em julgado, proc. nº187/04.3TBSRT, ainda sob a alçada do CPEREF, acção proposta antes da acção de impugnação dos autos. (cfr. nº13 da matéria de facto provada).

(…)

Na verdade, a A. deveria após a prolação da sentença de falência por articulado superveniente e/ou alteração da causa de pedir e do pedido (nos termos do antigo cód. proc. civil, em vigor à data) adequar a presente acção à factualidade resultante da falência da B... e do C....

5ª A acção de impugnação pauliana podia ser promovida tanto pelo liquidatário como pelos credores mas, mesmo quando instaurada apenas por algum ou alguns destes, a sua procedência aproveitava a todos e não apenas ao proponente, como resultava do já citado artigo 159.º, n.º 1 do CPEREF. A sentença recorrida declarou procedente o pedido formulado, isto é a ineficácia das doações em relação à recorrida. O que face ao supra exposto, não pode ocorrer, pois trata-se de desvirtuar o preceituado na lei vigente à data da declaração de falência e beneficiar um dos credores. Assim, a A. perdeu toda a legitimidade em agir nos presentes autos face à falência dos RR., já que não alegou a sua qualidade de credor dos falidos, que reclamou créditos na falência, que foram reconhecidos, que a impugnação beneficia a massa da falência. Face ao exposto, deve ser declarada a perda de legitimidade da recorrida, a inutilidade superveniente da lide da presente acção de impugnação pauliana conforme a mesma foi configurada e improcedência do pedido.

6ª Não se pode dar como provado a existência de um crédito a favor da A..., tal como resulta da douta sentença recorrida. Não se verificando este pressuposto, também por tal terá de improceder a presente acção.

7ª O R. C... foi citado nos presentes autos por citação edital, após a referida sentença. (cfr. fls…) O MP em representação do R. foi notificado para contestar em 01/02/2008. (cfr. fls….). A R. B... foi citada por via a postal após a dita sentença. Acontece, que por força do estatuído no art.147º n.º 2 CPEREF o liquidatário judicial assume a representação do falido para os efeitos patrimoniais relativos à falência, o que mais não significa que a inibição do falido se revela inoperante só relativamente às matérias de natureza pessoal em geral. No caso dos autos os RR. tinham de ser citados na pessoa do liquidatário judicial, o que não ocorreu. Assim, estamos face a uma falta de citação dos co-RR., com os devidos e legais efeitos, isto é a nulidade de todos os actos processados nos autos.

A A. não apresentou qualquer contra alegação.

Colhidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

II – Fundamentação de Facto

Devem ser considerados provados os seguintes factos:

1. B... e C... casaram em 09/04/1988, no regime da comunhão de adquiridos, casamento dissolvido por divórcio decretado por sentença de 27/03/2000. (Alínea A) dos factos assentes)

2. D... nasceu em 21/05/1991, e é filho de B... e C.... (Alínea B) dos factos assentes)

3. A autora, que incorporou o BNU, instaurou em 26/10/01 no Tribunal da Sertã, execução ordinária distribuída com o n.° 762/2001, contra C... e B..., apresentando como título executivo livrança no valor de Esc. 2.413.846$00, vencida em 05/08/2000, subscrita em 16/11/1999 por C... e B..., em favor do BNU, e entregue no mesmo dia, no âmbito da actividade bancária do BNU, livrança cujo valor reporta a “dívida de acordo de regularização de 16/11/99”. (Alínea C) dos factos assentes)

4. Escritura intitulada de “Permutas e Doação”, de 21/02/2000, de fls. 15-28, pela qual foram adjudicadas a B..., com o consentimento de C..., os prédios identificados nas verbas:

- 1 (prédio rústico inscrito na matriz da Freguesia de (...) com o n.° 3.606),

- 3 (prédio rústico inscrito na matriz da Freguesia de (...) com o n.° 3.894),

- 5 (prédio rústico inscrito na matriz da Freguesia de (...) com o n.° 6.805),

- 6 (prédio rústico inscrito na matriz da Freguesia de (...) com o n.° 6.124),

- 7 (prédio rústico inscrito na matriz da Freguesia de (...) com o n.° 6.128),

- 9 (prédio rústico inscrito na matriz da Freguesia de (...) com o n.º 20.846),

- 12 (prédio rústico inscrito na matriz da Freguesia de (...) com o n° 20.889),

- 13 (prédio rústico inscrito na matriz da Freguesia de (...) com o n.° 26.567),

- 15 (prédio rústico inscrito na matriz da Freguesia de (...) com o n.° 26.642),

- 18 (prédio rústico inscrito na matriz da Freguesia de (...) com o n.° 26.659),

- 21 (prédio rústico inscrito na matriz da Freguesia de (...) com o n. 26.681),

- 25 (prédio rústico inscrito na matriz da Freguesia de (...) com o n.º 26.774),

- 27 (prédio rústico inscrito na matriz da Freguesia de (...) com o n. 26.778), e

- 28 (prédio rústico inscrito na matriz da Freguesia de (...) com o n.º 26.793), do documento complementar que faz parte da escritura.

E metade dos prédios identificados nas verbas:

- 10 (prédio rústico inscrito na matriz da Freguesia de (...) com o n.° 20.854),

- 17 (prédio misto inscrito na matriz da Freguesia de (...) com os n.os 16.653 e 2.295),

- 22 (prédio rústico inscrito na matriz da Freguesia de (...) com o n.° 26.684), e

- 29 (prédio rústico inscrito na matriz da Freguesia de (...) com o n° 26.802), como bens próprios de B..., e que esta doou, por conta da quota disponível, a seu filho D.... (Alínea E) dos factos assentes).

5. Escritura intitulada de “Doação”, de 19/05/2000, de fls. 31-32, sobre:

- prédio rústico inscrito na matriz da Freguesia de (...) com o n.° 6.119. (Alínea F) dos factos assentes)

6. O réu D... foi citado nesta acção em 09/05/2011, conforme a/r de fls. 137. (Alínea G) dos factos assentes)

7. A presente acção foi proposta em 31/03/04. (Alínea H) dos factos assentes)

8. Ao procederem como referido em 4. e 5., B... e C... quiseram impossibilitar, como impossibilitaram, o pagamento coercivo das quantias referidas em 3. (Ponto 1.º da base instrutória)

9. Sabendo que não tinham mais bens susceptíveis de ressarcir coercivamente as quantias referidas em 3. (Ponto 2.º da base instrutória)

10. No intuito de evitar a cobrança coerciva dos débitos referidos em 3. (Ponto 3.º da base instrutória)

11. Consta da escritura pública referida em 6., outorgada por B..., como primeira outorgante e C..., como segundo outorgante, além do mais, o seguinte:

“ (…) Pela primeira outorgante foi dito:

Que doa a seu filho D..., menor, natural da freguesia e concelho de Castelo Branco, residente na Rua (...) , por conta da sua quota disponível, o seguinte:

Prédio rústico, composto de terra de pastagem com oliveiras, sito em (...) , freguesia e concelho de (...) , registado na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o número cinco mil duzentos e um, onde se mostra registada a aquisição a favor da doadora pela inscrição G-um, inscrito na matriz sob o artigo 6119, com o valor patrimonial de 848$00.

Que atribui a esta liberalidade o valor de trinta mil escudos.

Pelo segundo outorgante foi dito:

Que presta o necessário consentimento a sua mulher para a outorga desta escritura.” – cfr. certidão de fls. 29 a 32, cujo teor, no de mais, se dá aqui por integralmente reproduzido.

12. Por sentença proferida em 21.01.2005, transitada em julgado em 28.02.2005, no âmbito do processo de falência n.º 187/04.3TBSRT do Tribunal judicial da Comarca de Sertã, iniciado no dia 30/03/2004 (e já arquivado e com visto em correição desde 11/10/2007), foram os ora primeira e segundo réus declarados falidos, ao abrigo do disposto no art.º 122.º do CPEREF, sendo certo que, em tal sentença não lhes foi fixada residência por o seu paradeiro ser desconhecido. – cfr. certidão junta de fls. 138 a 142 do apenso B, cujo teor, no de mais, se dá aqui por integralmente reproduzido.

13. Desde a data das escrituras referidas em 4 e 5, que D..., por si ou através de familiares ou terceiros, autoriza, trabalha e utiliza, como vinha ou pasto, colhe frutos, madeira, azeitona, batatas, couves, limpa o terreno, de forma contínua, os prédios identificados em 4 e 5, à vista de todos, sem oposição de ninguém, ignorando lesar direito de outrem e na convicção de que os prédios referidos lhe pertencem.

*

III – Fundamentação de Direito

Podia a presente acção pauliana ter sido julgada procedente no “saneador”; uma vez que nada do que foi invocado (mesmo que na íntegra provado) na contestação – aqui se incluindo a reconvenção – possui virtualidade jurídica para obstar ao êxito da acção pauliana.

Tudo se reconduz e resume ao seguinte: não se teve na devida conta a natureza, fundamento e requisitos (quando, como é o caso, os actos impugnados são gratuitos) da impugnação pauliana.

Expliquemo-nos:

A A. e aqui apelada, invocando a qualidade de credora dos 1.º e 2.º RR., lança mão de um dos meios de conservação patrimonial – a impugnação pauliana – a propósito dos negócios celebrados (descrito nos factos 4 e 5) com o 3.º R., D....

Impugnação pauliana que, enfatiza-se, é um meio de conservação patrimonial que não coloca em crise a validade do acto impugnado[1]; em que o credor não aspira a que o tribunal declare inválido (nulo ou anulável) um qualquer acto patrimonial praticado por um seu devedor em seu prejuízo; mas em que apenas pretende que o acto seja ineficaz[2] em relação a si (art. 616º do CC - ineficácia relativa[3]), podendo executar o bem no património do obrigado à restituição.

Por outras palavras ainda, “ (...) a impugnação pauliana é um meio de reacção contra actos positivos do devedor - designadamente contra actos de alienação - que não enfermam de qualquer vício interno (são actos válidos), mas que causam prejuízo aos credores.

A acção tem por finalidade a indemnização do credor impugnante à custa dos bens ou valores adquiridos pelos terceiros, não podendo tais bens ser atingidos senão na medida do necessário ao ressarcimento do prejuízo sofrido pelo credor.

Trata-se, portanto, de uma acção pessoal com escopo indemnizatório - e não de uma acção de declaração de nulidade ou de anulação ou de uma acção resolutória ou rescisória dos negócios realizados pelo devedor”[4],[5].

Significa isto que a reconvenção, deduzida por parte dum adquirente do acto impugnado, a pedir que se declare que ele, adquirente, é proprietário do bem, é juridicamente inútil e ineficiente; tendo em vista, claro está, obstar ao êxito da impugnação pauliana.

O ponto de partida da acção pauliana – o ponto de partida do A./credor – é justamente esse, ou seja, o A/credor não coloca em crise a validade do acto impugnado (e a constituição ou transferência de direitos reais por mero efeito do acto impugnado – cfr. art.408.º/1 do C. Civil); para o A/credor – e para a lógica jurídica duma acção pauliana – o R./adquirente passou a ser o proprietário do bem adquirido através do acto impugnado, pelo que vir o mesmo pedir que tal seja declarado, perdoe-se-nos a informalidade, “não aquece nem arrefece”, “é chover no molhado”.

É/foi justamente por isto que acrescentámos aos factos provados o facto 13 (dado como não provado na sentença recorrida, decisão esta impugnada pelo R/apelante); para além de tal facto estar implicitamente aceite pela A./apelada, foi o mesmo referido pelo primo e tios do R/apelante (as testemunhas E..., F...e G...), em termos convincentes e plausíveis, isto é, como o R./apelante alegou nos art.16.º a 18.º da contestação passou, após a data das doações e por causa da aceitação das mesmas, a possuir (a ter a disponibilidade fáctica) os prédios doados.

Ou seja, é verdade que o R/apelante adquiriu a propriedade dos prédios em causa por usucapião (art. 1316.º e 1287.º, ambos do C. Civil) e, para tal, para adquirir tais prédios por usucapião, nem sequer necessitou dos 10 anos (que o R/apelante invoca no art. 20.º da contestação) constantes do art. 1294.º/a) do C Civil, uma vez que, sendo a sua posse adquirida derivadamente da anterior possuidora/doadora (cfr. art. 1264.º/b) do C. Civil), pode juntar à sua posse a posse dos antecessores (acessão – art. 1256.º).

É que – chama-se a atenção – como resulta do alegado nos art. 16.º e ss. da contestação do R/apelante, a posse formal[6] do R./apelante não foi adquirida originariamente (por usurpação e contra a vontade da anterior possuidora) pela prática reiterada de actos materiais (1263.º, a), do C. Civil), mas sim, insiste-se, foi adquirida em função da aceitação das doações (como se refere nos art. 16.º e 17.º da contestação), ou seja, foi adquirida derivadamente da anterior possuidora/doadora.

Mais, sendo as doações formalmente válidas e não colocando a A/apelada em causa a propriedade da doadora (bem pelo contrário), o R/apelante, além de adquirir a propriedade dos prédios em causa por usucapião, também adquiriu imediatamente (na data das doações) a propriedade dos mesmos prédios por contrato (art. 1316.º), tendo, além da provada posse formal, posse causal[7].

Mas, repete-se, tudo isto é, no contexto da presente impugnação pauliana, juridicamente irrelevante; tão irrelevante que, embora a reconvenção deva ser julgada procedente, será o R/apelante que terá que ser condenado nas custas da mesma (uma vez que a A/apelado, ao intentar a acção pauliana, não dá/deu causa a uma reconvenção como a que foi deduzida – cfr. 535.º/1 do NCPC).

Isto dito, expostos a procedência e o despropósito jurídico do pedido reconvencional, passemos aos requisitos, no caso, dos actos sob impugnação.

De acordo e nos termos dos art. 610º, 611º e 612º, todos do CC, são os seguintes os requisitos da impugnação pauliana:

1-A existência de determinado crédito;

2-Que tal crédito seja anterior ao acto ou, sendo posterior, tenha sido o acto realizado dolosamente visando impedir a satisfação do direito do credor.

3-Resultar do acto a impossibilidade para o credor de obter a satisfação plena do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade;

4-Tratando-se de acto oneroso, que tenha havido má-fé, tanto da parte do devedor como do terceiro, entendendo-se por má-fé a consciência do prejuízo que o acto cause ao credor.

O que significa, revertendo ao caso presente, sendo os actos alvo da impugnação pauliana doações, que não tem que verificar-se este último requisito: ter havido má fé.

Efectivamente, define-se como oneroso o contrato em que a atribuição patrimonial efectuada por cada um dos contraentes tem por correspectivo, compensação ou equivalente uma atribuição da mesma natureza proveniente do outro; e como gratuito o contrato em que, segundo a comum intenção dos contraentes, um deles proporciona uma vantagem patrimonial ao outro, sem qualquer correspectivo ou contraprestação.

Daí o dizer-se que a distinção dos negócios jurídicos em onerosos e gratuitos tem como critério o conteúdo e finalidade do negócio[8].

Existe pois um acto oneroso sempre que uma pessoa visa conseguir uma vantagem suportando um sacrifício que esteja numa relação de estrita causalidade com a vantagem que se quer obter; a onerosidade exige duas atribuições patrimoniais em relação de causalidade; e existe na medida em que as partes estão de acordo em considerar as duas prestações ligadas reciprocamente pelo vínculo da causalidade jurídica[9]. Inversamente, um acto é a título gratuito quando seja realizado com uma particular intenção ou causa que é a de proporcionar uma vantagem à outra parte.

Isto exposto, importa admitir que há situações em que a distinção – que parece não poder suscitar dificuldades – se apresenta de modo menos nítido; quando se está perante negócios cujos efeitos atingem distintamente o património de mais de 2 sujeitos – os chamados negócios com dupla atribuição patrimonial ou negócios “bidireccionais” – a distinção adquire alguma dificuldade, uma vez que tais negócios são susceptíveis de revestir a natureza gratuita ou onerosa consoante a perspectiva pela qual são apreciados[10].

Não é, porém, o caso da doação, apontada como o negócio modelo dos actos gratuitos, cujos requisitos de acordo com o art. 940.º do CC são justamente: a) a disposição gratuita de certos bens ou direitos ou a assunção duma dívida em benefício do donatário; b) a diminuição do património do doador; c) e o espírito de liberalidade.

Dispensa do requisito da má fé (quando estão em causa doações) que se compreende – isto é, compreende-se que a boa fé das partes, nos actos gratuitos, não obste ao funcionamento da impugnação pauliana – uma vez que os interesses do credor devem sobrepor-se às expectativas do terceiro que enriqueceu gratuitamente (ou à custa duma contrapartida desprezível).

O que significa, olhando/apreciando os factos provados, que ficaram demonstrados – logo, findos os articulados – todos requisitos que, para o caso, a lei exige para a procedência/funcionamento da impugnação pauliana.

Vejamos:

Resulta do ponto 3 dos factos provados que a A/apelada é portadora duma livrança no valor de 2.413.846$00, vencida em 05/08/2000, subscrita em 16/11/1999 por C... e B....

É pois a A/apelada credora cambiária dos 1.º e 2.º RR. (contra os quais intentou, sem sucesso, uma execução), estando assente nos autos – por decisão, proferido no saneador, transitada em julgado – que os seus créditos cambiários não estão extintos por prescrição.

Mais, está definido que a constituição de tais créditos cambiários remonta a 16/11/1999, isto é, que na data da outorga das escrituras que formalizam os actos aqui “impugnados” (21-02-2000 e 19-05-2000) já existia e estava constituída a “responsabilidade” dos 1.º e 2.º RR. para com a A/apelada e no montante referido, ou seja, provou-se a anterioridade do crédito da A/apelada (não se exigindo assim a prova do acto ter sido realizado dolosamente visando impedir a satisfação do direito do credor).

Mais ainda – uma vez que de acordo com o art. 611º do CC o ónus probatório colocado a cargo do impugnante se esgota na prova do “montante das dívidas” – e na medida em que o R/apelante não alegou que os 1.º e 2.º RR. “possuem bens penhoráveis de igual ou maior valor”, ficou de imediato verificado o requisito respeitante “à impossibilidade para a A/apelada de obter a satisfação plena dos seus créditos ou o agravamento dessa impossibilidade”.

Dito doutro modo, era aos devedores e ao R./apelante, interessados na “manutenção” dos actos impugnados, que incumbia a prova dos 1.º e 2.º RR. possuírem bens penhoráveis de igual ou maior valor que a obrigação para com a A./apelada; prova que sempre fica prejudicada quando, como é o caso, nada se alega com tal objectivo.

Preenchido ficou pois o 3º requisito supra referido, isto é, a A./apelada cumpriu o encargo probatório que em tal requisito lhe é imposto pela lei (art. 611.º do C. Civil).

É por tudo isto que, logo, findos os articulados, estavam reunidos todos requisitos que, no caso, a lei exige para a procedência da impugnação pauliana.

Estava assente o crédito, o seu montante e a sua anterioridade em relação aos actos impugnados; e isto, apenas isto, era/é suficiente, no contexto do caso e da posição assumida pela R/apelante, para determinar a procedência da impugnação pauliana.

Efectivamente, repete-se, sendo os actos impugnados gratuitos, não exige a lei o 4.º requisito referido, ou seja, a má fé[11].

Em todo o caso, acrescenta-se:

Entende-se por má fé “a consciência de que o acto em causa vai provocar a impossibilidade para o credor de obter a satisfação integral do seu crédito ou um agravamento dessa impossibilidade. Tendo os outorgantes representado atempadamente as consequências danosas do seu acto, têm a possibilidade de o omitir, pelo que, se nele insistem, apesar desse conhecimento, esta sua atitude é eticamente censurável e por isso considerada de má fé[12].

Foi isto que claramente ficou provado – como resulta dos pontos 8 a 10 dos factos – em relação aos 1.º e 2.º RR., isto é, provou-se que os negócios impugnados foram efectuados com o objectivo de evitar o ressarcimento da A./apelada; porém, em relação ao R/apelante não está sequer provado[13] que conhecesse a existência do crédito da A. e que se prestara a colaborar no projecto por todos congeminado, o que, em resumo, a ter-se provado, significaria a consciência do prejuízo que o acto sob impugnação causava à A./apelada.

Isto para dizer que o facto não provado constante da alínea a)[14] – respeitante ao efectivo desconhecimento do R/apelante do crédito referido em 3. – é completamente inócuo para o desfecho dos autos; o que em regra interessa é o conhecimento (como elemento/pressuposto da sua própria má fé), porém, no caso, como já repetidamente explicámos, nem isso (uma vez que não é preciso a má fé).

Enfim, nada obsta, à procedência da impugnação pauliana dos actos/doações (referidas nos factos 4 e 5 deste acórdão) celebrados entre os RR., tanto mais que está em causa um acto claramente de natureza patrimonial, resultando do mesmo a diminuição da garantia patrimonial da A/apelada.

Procedência a que não se opõe a circunstância dos devedores (os 1.º e 2.º RR.) haverem sido declarados falidos, em 21/01/2005, em processo de falência iniciado no dia 30/03/2004 e terminado/arquivado em 11/01/2007, ou seja, em processo a que ainda se aplicava o CPEREF (cfr. art. 12.º do DL 53/2004, de 18 de Março – diploma que aprovou o actual CIRE).

É certo que, no antigo CPEREF – ao invés do actual CIRE, em que não consta qualquer regra especial relativa aos efeitos da impugnação pauliana, sendo-lhe assim aplicáveis as regras gerais previstas no art. 616.ºdo C. Civil, o mesmo é dizer, a procedência apenas aproveita ao credor impugnante – se dispunha expressamente, no art. 159.º/1, que, “resolvido o negócio jurídico ou julgada procedente a impugnação pauliana, os bens ou os valores correspondentes revertem para a massa falida”, ou seja, a procedência da impugnação pauliana provocava uma efectiva restituição dos bens à massa falida, não se verificando uma restituição na medida do credor impugnante, mas sim na medida do interesse de todos os credores.

Esta solução [da impugnação pauliana aproveitar apenas ao credor que a tenha adquirido] alterava-se, anteriormente à aprovação do CIRE, na impugnação colectiva prevista no CPEREF no qual quem impugnava actuava sempre no interesse de todos os credores. Os bens revertiam então para a massa falida, sendo o produto da venda desta distribuído por todos os credores, independentemente de quem havia requerido a impugnação do acto.[15]

Sucede, é o ponto, que não estamos exactamente perante a acção de impugnação pauliana de carácter colectivo explicitamente prevista no CPEREF, mas antes perante uma acção pauliana proposta autonomamente e em momento anterior à declaração de falência dos 1.º e 2.º RR.; mais, há muito (há mais de 8 anos), que o processo de falência se encontra encerrado, o que tudo se conjuga para considerar que a procedência da presente impugnação pauliana aproveita apenas ao credor impugnante, tendo/mantendo como consequência as regras gerais previstas no art. 616.º do C. Civil e não a inutilidade superveniente e a improcedência que se “pedem” na conclusão 5.ª.

Finalmente, ainda com a falência dos 1.º e 2.º RR. conexionado, entendemos que não se verifica a invocada falta de citação[16] dos 1.º e 2.º RR.

Em face do que constava dos autos – anota-se que a execução, donde consta a certidão da sentença de falência dos 1.º e 2.º RR., foi apensa a estes autos em data posterior à citação de tais 1.º e 2.º RR. – a citação dos 1.º e 2.º RR. foi feita sem falta ou preterição de quaisquer formalidades ou diligências.

Admite-se que, estando os mesmos declarados falidos desde 21/01/2005, pode ter ocorrido a irregularidade da sua representação, ou seja, o liquidatário podia/devia ter sido notificado da pendência dos autos para assumir a sua representação (cfr. 147.º do CPEREF).

Importa, porém, ter presente, que a situação jurídica do falido/insolvente não corresponde a uma incapacidade geral de exercício, mas a uma mera limitação da capacidade patrimonial para as matérias relativas à falência, mantendo a capacidade para as matérias de natureza pessoal e para as de natureza patrimonial estranhas à falência, ou seja, sendo a “acção pauliana” uma matéria de natureza patrimonial em que até pode ocorrer um evidente conflito/oposição entre os interesses da falência e da massa falida (interessados na procedência da impugnação) e do falido (interessado na improcedência da impugnação), havia sempre que conceder aos 1.º e 2.º RR., independentemente do disposto no art. 147.º do CPEREF, a capacidade de estar por si em juízo (a defender a sua “tese”, porventura oposta à do liquidatário, sobre os actos impugnados).

O que tudo se conjuga para considerar que a irregularidade ocorrida só podia ter sido invocada pelo liquidatário judicial, não podendo ser invocado pelo R/apelante (cfr. art. 203/1.º do CPC = 197.º/1 NCPC), que, aliás, se presume ter conhecimento da irregularidade há anos (desde que teve intervenção nos autos); mais, em face do encerramento há anos do processo de falência, tal irregularidade nem sequer nulidade já produz (cfr. art. 201/1.º do CPC = 195.º/1 NCPC), pelo que, também por aqui, a improcedência de tal questão é evidente.

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Em conclusão, improcede o que, em termos úteis, o R/apelante invocou e concluiu na sua alegação recursiva – a reconvenção procede, mas como explicámos tal não tem qualquer relevo – o que determina a confirmação da essência do decidido que não merece os reparos que se lhe apontam, nem viola qualquer uma das disposições indicadas.

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IV - Decisão

Nos termos expostos, decide-se julgar parcialmente procedente a apelação, confirmando-se integralmente o decidido na acção (a ineficácia relativa das doações) e revogando-se o decidido na reconvenção, substituindo-se o aí decidido pela procedência da reconvenção, declarando-se o 3.º R. – sem prejuízo da procedência da impugnação pauliana e da ineficácia declarada – dono e legítimo possuidor dos prédios identificadas nas escrituras e constantes dos pontos 4 e 5 dos factos provados.

Custas, nesta instância, pelo R/apelante.

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Coimbra, 21/04/2015

(Barateiro Martins - Relator)

(Arlindo Oliveira)

(Emídio Santos)


[1] Daí, a desnecessidade de quesitos 5.º a 10.º da BI.
[2] Antunes Varela, in RLJ, ano 122º, pág. 252 e ss.
[3] Embora, como aludiremos a final, no domínio do CPEREF (art. 157.º e 159.º), a ineficácia pudesse beneficiar todos os credores da massa falida.
[4] M. Henrique Mesquita, in RLJ, ano 128º, pág. 256.
[5] O impugnante “é apenas titular de um direito de crédito - o direito à restituição de determinado valor - perante o terceiro a quem o devedor alienou os bens” - cfr. M. Henrique Mesquita, in RLJ, ano 128º, pág. 255.
[6] O exercício de poderes de facto sobre uma coisa em termos de um direito real.

[7] O possuidor pode agir por força do direito real de que é titular, caso em que a sua posse é uma projecção ou expressão do seu direito real; tal posse – causal – constitui uma faculdade jurídica secundária do direito subjectivo – causal por que tem a causa no direito real.

[8] Geralmente, a doutrina chama a atenção para o relevo da intenção das partes, a sua vontade ou intento, quando se trata de determinar a natureza onerosa ou gratuita do negócio.

[9] Reciprocidade de prestações que pressupõe apenas um nexo causal entre ambas, não significando a sua equivalência objectiva ou mesmo subjectiva; isto é “o negócio não deixa de ser oneroso se as duas prestações, pelas mais variadas razões, não têm uma valor equivalente, desde que as partes as consideram contrapartida uma da outra” – Cfr. Cura Mariano, Impugnação Pauliana, pág. 210.

[10] Nos negócios chamados multidireccionais – refere Cura Mariano, in obra e local citados – formam-se várias relações jurídicas de diferente sentido, em que alguns sujeitos são comuns, podendo algumas das relações ter natureza gratuita e outras onerosa. Nestas figuras complexas deve atender-se às relações que permitam apurar se o terceiro ou terceiros beneficiados pelo acto de disposição do devedor pagaram ou não alguma contrapartida pelo bem alienado por este. Isso poderá conduzir a que o acto tenha uma natureza simultaneamente gratuita e onerosa, conforme a relação perspectivada.
[11] De tal maneira é assim que o art. 158.º do CPEREF – em que presume a má fé de vários actos – nem inclui os actos indiscutivelmente gratuitos.
[12] João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, pág. 191.

[13] E não se deu como provado por a BI não ter nenhuma pergunta em tal sentido; e não foi perguntado por tal não ter sido sequer alegado pela A./apelada, justamente por a A./apelada logo haver observado (art. 31.º da PI) que “não era exigível a má fé do devedor (doador) ou de terceiro (donatário)”.
[14] E referido na 1.ª conclusão do R/apelante.

[15] Cura Mariano, Impugnação Pauliana, pág. 252.
[16] Embora também se fale em “nulidade de citação”; e a “falta” e a “nulidade” não são uma e a mesma coisa.