Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3009/21.7T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: INSOLVÊNCIA
PARTES
CAUSA DE PEDIR
CASO JULGADO
Data do Acordão: 10/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO COMÉRCIO DE COIMBRA DO TRIBUNAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 581.º DO CÓDIGO DO PROCESSO CIVIL
Sumário: I) Na insolvência desencadeada por iniciativa ou apresentação do devedor e até à prolação da decisão que declara ou não a respectiva insolvência, o processo tem como única parte o próprio devedor/apresentante, não assumindo a qualidade de partes os credores da insolvência.

II) A causa de pedir do processo de insolvência é constituída pela impossibilidade de cumprimento pelo devedor das obrigações vencidas que concretamente tenha sido alegada.

III) Decretada a insolvência do devedor num determinado processo por si impulsionado, a existência de uma nova causa de pedir necessária à instauração pelo mesmo devedor de um segundo processo de insolvência não se basta com a mera invocação de novas dívidas.

IV) Para se poder falar de uma nova causa de pedir é necessário que o devedor tivesse conseguido por alguma forma eliminar o passivo cuja impossibilidade de satisfação serviu de razão à anterior declaração de insolvência.

V) Persistindo esse passivo e a impossibilidade da sua satisfação, mantém-se necessariamente a situação de insolvência anteriormente declarada, de nada importando que ela se tenha agravado com o vencimento de novas obrigações ou que o activo do devedor se tenha modificado para mais.

Decisão Texto Integral:







Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A... apresentou-se à insolvência em 06.07.2021 no Juízo de Comércio de Coimbra, Comarca de Coimbra, pedindo que se declare o seu estado de insolvência, e, simultaneamente, que lhe seja concedido o benefício da exoneração do passivo restante.

Alegou para tanto que foi declarada em situação de insolvência por sentença de 14.12.2017 proferida no P. 8859/17.6T8CBR deste Juízo de Comércio de Coimbra, tendo aí sido prolatado despacho que declarou antecipadamente cessado o procedimento de exoneração do passivo restante que havia sido requerido e liminarmente deferido; esteve entretanto a trabalhar até Setembro de 2019, vindo a ficar desempregada por não lhe ter sido renovado o contrato a termo; até ao momento não conseguiu arranjar novo emprego; presentemente encontra-se a auferir o RSI no montante de € 322,42 mensais, tendo um filho a estudar e residir consigo; paga € 220,42 de renda mensal; vive desse valor e das ajudas de terceiros; acumulou novas dívidas, não dispondo de património ou proventos que lhe permitam acudir à respectiva satisfação.

Ouvida a devedora/apresentante sobre a possibilidade de verificação da excepção do caso julgado, a mesma opôs-se alegando que as dívidas que relaciona são posteriores ao anterior pedido de insolvência.

Em 21.07.2021 foi proferida decisão de indeferimento liminar do pedido de declaração de insolvência.

Inconformado, deste veredicto recorreu a devedora, recurso admitido como apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

São os seguintes os factos que foram considerados assentes na decisão recorrida e não tiveram impugnação:

1º A Requerente nasceu em 22/04/1979 e é natural da freguesia de ...., concelho de ...... (cf. Assento de Nascimento nº .... do ano de 2011, lavrado na Conservatória do Registo Civil de ..... junta como doc. nº 1).

2º A requerente refere que esteve a trabalhar no ..... – .....até Setembro de 2019, não lhe tendo sido renovado o contrato a termo, ficou desempregada.

3º Após um período de subsidio de desemprego que já terminou, a Requerente e o seu filho encontram-se actualmente a subsistir com o Rendimento Social de Inserção, no valor de 322,42€ (cfr. doc nº 3 junta).

4º A Requerente não consegue encontrar emprego.

5º Tem um filho a estudar e a residir consigo em casa arrendada, cujo valor de renda é de 220,00€ mensais (cfr. doc nº 4 junto).

6º Para fazer face às necessidades básicas de alimentação, suas e de seu filho, tem tido a ajuda de familiares e de instituições de solidariedade social.

7º Tem quatro meses de renda em atraso.

8º A requerente não dispõe de património.

9º Indica como os maiores credores: a- B... , com sede em .... SU ZUg, credor da quantia de 29.951,00€; b- C... , residente no ......, credor da quantia de 880,00€; c- Instituto de Gestão financeira da Segurança Social, I.P., Av. ....., credor da quantia 516,41€; d - D... , S.A., com sede na Rua ....., credor da quantia de 117,38€.

10º A Requerente foi declarada em situação de insolvência por sentença proferida no dia 14.12.20217, no âmbito do processo 8859/17.6T8CBR a correr termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo de Comércio de Coimbra – Juiz 2, tendo alegado, em síntese, que, sendo devedora de uma quantia global de cerca de 30.000,00€, encontra-se impossibilitada de a solver. Com efeito, encontra-se desempregada, auferindo o rendimento social de inserção no valor mensal de 275,74€, tendo um filho menor a seu exclusivo cargo e não possui rendimentos ou bens apreensíveis, pelo que se encontra em situação de insolvência. Requereu, ainda, a concessão da exoneração do passivo restante, alegando reunir os necessários pressupostos legais para o efeito.

11º Foi pedido e deferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, com encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa insolvente.

12º Em 19/02/2020 foi proferido despacho a declarar cessado antecipadamente o procedimento de exoneração do passivo restante. É o seguinte o respectivo teor (extrato): “(…) de harmonia com as normais regras de experiência e em face do seu próprio silêncio, julga-se irrefutável que a insolvente conhecia e representou corretamente a sua vinculação ao dever de informar sobre os seus rendimentos (tanto mais que foi notificada diversas vezes para o efeito) e que não deu cumprimento a essa obrigação, sem qualquer justificação comprovada para tal. Dispõe o já citado artigo 243.º, n.º 3, do CIRE que quando o requerimento de cessação antecipada se baseie nas alíneas a) e b) do n.º 1 –sendo que, no presente caso, baseia-se na alínea a) – o juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão, sendo que, a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações. * Tudo visto, e ao abrigo do citado artigo 243.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, do CIRE, decide-se recusar a exoneração ao insolvente A... , fazendo-se, desta forma, cessar antecipadamente o respetivo procedimento.”

13º Tal processo encontra-se no aquivo geral desde 04/09/2020.

14º No referido processo foi apresentada a seguinte lista definitiva de credores reconhecidos: a- B... , no montante de 26.011,80; b-António José da Encarnação, no montante de €800,00, a título de rendas vencidas; c-EDP Comercial, no montante de €209,54; d - Ministério Público, no montante de 1.892,78€. 15º Foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos, que homologou a lista de credores apresentada.

                                                          

                                                                       *

A apelação.

Nas conclusões com que encerra a respectiva alegação, a recorrente levanta como única questão a de saber se não ocorre a excepção do caso julgado que conduziu ao indeferimento decretado, uma vez que tendo agora sido alegada “nova e diferente situação de desemprego e novas e dívidas e credores” não existe identidade de causa de pedir nem de sujeitos entre os presentes autos e o processo que correu termos sob o nº 8859/17.6CBR.

Apreciando.

A respeito da distinção entre as figuras do caso julgado-excepção e da autoridade do caso julgado, importa referir aqui as linhas mestras em que repousa a dicotomia, à luz da conceptualização cristalinamente desenhada no Acórdão do STJ, de 26.2.2019 (disponível in www.dgsi.pt) .

Escreveu-se aí:“(…) a excepção implica sempre a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir (cfr. art. 581º, nºs 1 a 4, do CPC). A autoridade do caso julgado não: exigir essa tríplice identidade equivaleria, como já se afirmou, a "matar" esta figura; "a autoridade existe onde a exceção não chega, exatamente nos casos em que não há identidade objetiva”. A excepção de caso julgado tem um efeito negativo de inadmissibilidade da segunda ação, impedindo qualquer decisão futura de mérito; na segunda ação, o juiz deve abster-se de conhecer do mérito da causa, absolvendo o réu da instância (art. 576º nº 2 do CPC). A autoridade de caso julgado "tem o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito. Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida. (...)
Na autoridade de caso julgado, existe uma diversidade entre os objetos dos dois processos e na excepção uma identidade entre esses objetos. Naquele caso, o objecto processual decidido na primeira ação surge como condição para apreciação do objeto processual da segunda ação; neste caso, o objeto processual da primeira ação é repetido na segunda. Na excepção, a repetição deve ser impedida, uma vez que só iria reproduzir Na autoridade, há uma conexão ou dependência entre o objeto da segunda ação e o objeto definido na primeira ação, sem que aquele se esgote neste. Aqui, impõe-se que essas questões comuns não sejam decididas de forma diferente, devendo a decisão da segunda ação acatar o que foi decidido na primeira, como pressuposto indiscutível”.

Perante este enquadramento impõe-se desde já dizer que, tal como se entendeu na decisão ora recorrida, não está em jogo nos presentes autos uma qualquer manifestação de autoridade do caso julgado emergente do anterior processo, mas sim a excepção do caso julgado formada pela decisão que decretou a insolvência da ora apelante.

Com esta qualificação parece também concordar a recorrente.

O seu dissídio radica então na ausência de dois dos três pressupostos da referida excepção que a decisão recorrida considerou preenchidos: a identidade da causa de pedir e a identidade de sujeitos.

Vejamos, pois, se esses pressupostos se verificam, para o que teremos em atenção a natureza do processo de insolvência e da fase processual em que ele se encontra.

Tem sido entendido que o processo de insolvência é de estrutura tendencialmente complexa, decompondo-se numa primeira fase declarativa da situação de insolvência do devedor, visando o acertamento desse estado[1] – que pode ou não iniciar-se mediante a apresentação do devedor – e eventualmente numa outra, que apenas se segue à declaração de insolvência, esta de natureza ou cariz essencialmente executivo, podendo comportar certos procedimentos declarativos, designadamente aquele que se destina à verificação e graduação dos créditos sobre a insolvência (art.º 128 do CIRE).

Seja como for, certo é que na insolvência desencadeada por iniciativa ou apresentação do devedor, até à prolação da decisão que declara ou não a respectiva insolvência, o processo desenrola-se sem o contraditório dos credores relacionados pelo devedor– cfr. os art.ºs 24, nº 1, al.ª a), 27 e 28 do CIRE.

Não é, por conseguinte, defensável a tese de que esta fase declarativo-constitutiva tem os credores da insolvência como partes. Não há outra parte que não o próprio devedor/apresentante, sendo até mais curial a posição que exclui nessa fase a existência de partes em sentido técnico, dado o típico antagonismo que caracteriza um processo de partes. De sorte que voltando o actual processo a ser iniciado por apresentação do devedor é óbvia a identidade de sujeitos.

Mas ao invés do que pretende a recorrente também se nos afigura que ocorre identidade de causas de pedir em que igualmente se baseou a decisão impugnada.

Com efeito, sendo a causa de pedir o facto jurídico de que emerge a pretensão do autor (art.º 581, nº 4, do CPC), o facto que jurídicamente determina ou funda tal pretensão no processo de insolvência é, de acordo como o art.º 3º, nº 1, do CIRE, a impossibilidade de cumprimento pelo devedor das obrigações vencidas.[2]

Trata-se aqui do facto concreto (cfr. a 2ª parte do nº 4 do art.º 581 do CPC) pelo que a impossibilidade há de ser aquela que concretamente é alegada.

Entende a recorrente que há “factos novos” que se traduziriam numa nova situação de desemprego e em novas dívidas.

Só que ainda que a devedora tenha alegado novas dívidas (novas obrigações já vencidas) não estaremos por tal motivo diante de “factos novos”, e muito menos em face de uma nova causa de pedir.

É que a impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas que justifica o novo pedido não é nova: é a mesma que já se verificava no anterior processo, na medida em que se não vislumbra que as dívidas aí relacionadas tenham deixado de subsistir. Na verdade, no processo precedente não só os créditos aí reconhecidos e graduados ficaram por satisfazer, como não houve qualquer exoneração do passivo, sem embargo de lhes acrescerem outras que a devedora entretanto contraiu. Por outro lado, não alega a recorrente e Requerente do presente processo a extinção desse passivo, total ou parcialmente, após o encerramento do anterior (nomeadamente por força de pagamentos que supervenientemente haja efectuado[3]).

Para se poder falar de uma nova causa de pedir seria mister que a anterior tivesse desaparecido, ou seja, que a devedora tivesse conseguido por alguma forma eliminar o passivo cuja impossibilidade de satisfação serviu de razão para a instauração do anterior processo insolvencial.

Persistindo esse passivo e a impossibilidade da sua satisfação, mantém-se necessariamente a situação de insolvência então invocada, de nada importando que ela se tenha agravado com o vencimento de novas obrigações. Como, aliás, também de nada relevaria para a configuração de uma eventual nova causa de pedir o facto de o activo da devedora se ter modificado para mais – modificação que, de resto, tão pouco foi aduzida no novo requerimento a pedir a declaração de insolvência.

Isto é, está também presente o pressuposto da identidade de causas de pedir entre o actual processo e o p. nº 8859/17.6T8CBR.

Em suma, o recurso não merece provimento, sendo de manter a decisão recorrida.

Pelo exposto, na improcedência da apelação, confirmam a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

                              Coimbra, 26 de Outubro de 2021

    

                                               (Freitas Neto – Relator)

                                               (Paulo Brandão)

                                               (Carlos Barreira)       

 


[1] Cfr. o Ac. desta Relação de 12.07.2017, de resto igualmente citado na sentença recorrida.
[2] Independentemente de a impossibilidade que a lei elege como facto jurídico dever ser aferida mediante um critério económico.
[3] Nestes autos continua a ser indicado como maior credor – titulando o crédito que é de longe o mais elevado e significativo – o credor B... , cujo montante é ainda de € 26.011,80.