Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
327/11.6SAGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CALVÁRIO ANTUNES
Descritores: ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
Data do Acordão: 06/26/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE 3º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 358º, 359 E 379 Nº 1 AL. B) DO CPP
Sumário: 1.- Constando da acusação que os factos foram praticados "No passado dia 13/7/2011, pelas 11.30 horas" e assentando a defesa do arguido na negação da prática desses factos nesse dia, ao dar-se como provado na sentença que os factos ocorreram "Em dia não cabalmente apurado do mês de Julho de 2011, ao final da manhã ", tal alteração deveria ter sido previamente comunicada ao arguido nos termos do art. 358 n.º 1 do C.P.;

2.- Essa omissão consubstancia a nulidade da sentença.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório:

1. Para julgamento em processo comum e com intervenção do tribunal singular, foi:

A..., filho de (...) e de (...), nascido a 10 de Abril de 1957, natural da freguesia de (...), concelho da Guarda, casado, operário da construção civil aposentado, residente na Rua (...), Guarda

sendo-lhe imputados factos susceptíveis de integrar a prática, em autoria material, na forma consumada de um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180º, n.º 1, do Cód. Penal.
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O arguido apresentou contestação oferecendo o merecimento dos autos e tudo o que a seu favor resultar da audiência de julgamento, tendo arrolado prova testemunhal.

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O assistente B... deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido e demandado, peticionando a condenação deste último no pagamento de uma indemnização no valor de €1.100,00, a título de danos não patrimoniais.

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Efectuado o julgamento o tribunal recorrido decidiu:

a) Condenar o arguido A... pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 180º, n.º 1, do Cód. Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de €7,00 (sete euros), num total de €840,00 (oitocentos e quarenta euros).

b) Condenar o demandado civil A... a pagar ao demandante civil B... a quantia de €700,00 (setecentos euros) a título de indemnização civil.

Custas na parte criminal pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) U.C.’s.

Custas na parte cível pelo demandante e pelo demandado na proporção dos respectivos decaimentos, sendo o valor total o de €1.100,00, como sendo o correspondente ao pedido.


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2. Inconformado, o arguido/demandado interpôs o presente recurso, formulando nas respectivas motivações as seguintes (transcritas) conclusões:

1- O Tribunal errou na apreciação da prova nomeadamente quando apreciou o depoimento da testemunha C... que claramente revelou não ser verdadeiro.

2- Igualmente o mesmo acontece na valoração do depoimento da testemunha D...;

3- Não teve em conta estes depoimentos para fixar a data em que os factos ocorreram, quando ambos referiram que o Arguido pretendia falar com o Presidente da Câmara e não com o Assistente.

4- Também tomou como decisiva, relativamente à fixação do período de tempo dos factos o depoimento do Arguido quando este foi vago e referiu "talvez em Julho".

5- Ainda, alterou na sentença a data referida na acusação, ao referir "em dia não cabalmente apurado do mês de Julho de 2011 ".

6- Esta alteração na sentença violou as garantias de defesa do arguido. 

7- Uma vez que este tinha baseado a sua defesa na impossibilidade de ter cometido tal crime por nessa data não ter estado no edifício Câmara.

8- Violando a sentença os princípios do acusatório e do contraditório (art°s 32º n° 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa.

9- Uma vez que não foi dado prazo ao arguido para reorganizar a sua defesa.

Termos em que deverá ser considerada nula a sentença absolvendo o arguido com o que se fará JUSTIÇA


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3. O assistente veio, a fls 257/258, responder, defendendo que o recurso não deve ser admitido e mantida a decisão recorrida.

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4.Pro sua vez, o Magistrado do Ministério Público veio oferecer a resposta, de fls. 259/273, onde sustenta que a sentença recorrida não merece reparos, devendo manter-se inalterada, formulando nas respectivas motivações as seguintes (transcritas) conclusões:

“1ª_ Face à matéria de facto dada com provada, cremos que o arguido-recorrente A... não poderia deixar de ser condenado, como o foi e bem, pela prática do crime de difamação, p. e p. pelo art° 180° n° 1 do C. Penal.

2ª_ Inexiste, na sentença ora em recurso, o apontado vício de erro notário na apreciação da prova, a que alude o art° 412° n° 2-c);

3°_ A sentença ora em recurso não violou qualquer disposição legal, "máxime" as dos artigos aludidos em conclusões pelos arguidos;

4°_ O tribunal baseou, e bem, a sua convicção relativamente aos factos dados como provados, nos depoimentos das testemunhas do assistente, C..., E..., F... e D...;

5°_ Pois que foram estas pessoas que estiveram presentes, naquelas circunstâncias de tempo, lugar e modo e presenciaram os factos;

6°_ Os depoimentos destas testemunhas revelaram-se credíveis, imparciais, objectivos, coincidentes, convincentes e sérios;

7°_ Os factos apurados pelo Tribunal, em audiência de julgamento, quer quanto à data dos factos quer à pretensa alteração destes (de dia concreto para dia não apurado, mas ambos do mês de Julho de 2011) em nada belisca os direitos do arguido, nomeadamente os atinentes à sua defesa;

8°_ E, em face do que foi apurado em audiência de julgamento, relativamente à data, não poderia deixar de ser outra a conclusão a que chegou a sentença;

90_ Já que o tribunal ficou com dúvidas quanto à data, concreta, da verificação dos factos, não quanto à ocorrência destes;

10°- Não ocorreu, em qualquer caso, a extinção do direito de queixa do assistente;

11°- O Tribunal, ao assim decidir, não atropelou a sua própria motivação relativamente aos factos não apurados. Longe disso;

12°_ Já que o arguido assumiu que se deslocou à Câmara em outros dias que não soube especificar e que, num deles, talvez em Julho, procurou especificadamente o aqui assistente, a quem dirigiu os impropérios por que veio a ser condenado;

13°_ O Tribunal, ao transcrever os depoimentos de testemunhas, para comprovar que o arguido pretendia falar com o Presidente da Câmara e não com o assistente, tal não merece a credibilidade dada pelo recorrente, já que o tribunal, quando apurado, deve fazer constar a motivação da conduta do autor dos factos;

14°- Ao concluir desta forma, o Tribunal não errou na apreciação da prova;

15°- O Tribunal andou bem e teve em devida conta os depoimentos das aludidas testemunhas, para alcançar e fixar a data em que os factos socorreram;

16°- É isento de qualquer censura, o facto das declarações do arguido serem vagas, relativamente à data dos factos, assente na expressão deste "talvez em Julho";

17°- Não se vislumbra porque motivo o tribunal não poderia alterar, com base dos factos apurados em julgamento, a data constante da acusação, para data não concretamente apurada, mas situada no mês de Julho de 2011;

18°- Tal não viola as garantias de defesa do arguido, pois que este tinha baseado a sua defesa na impossibilidade de ter cometido tal crime por nessa data não ter estado no edifício da Câmara;

 19°- Se não foi dado prazo ao arguido para organizar a sua defesa, com base na alteração da data dos factos, deveria tê-lo requerido?! E como não o fez "sibi imputet".

20°- Tal não constitui violação dos princípios do acusatório e do contraditório, nos termos por nós acima sufragados;

21°- A ter ocorrido qualquer vício, tal configuraria uma mera irregularidade, já sanada, porque não foi atempadamente arguida pelo arguido, que se encontrava presente – artº 123°;

22°- Não lobrigamos no texto da sentença ora sob censura, a ocorrência de qualquer vício que a possa inquinar e que possa conduzir à absolvição do arguido- recorrente, como o mesmo requer.

23°- Em tudo bastaria ao tribunal "ad quo", lançar mão do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artº 127° do CPPenal.

Termos em que, Deve ser a sentença ora em recurso ser mantida " in totum" como é de JUSTIÇA E DIREITO,”

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5. Admitido o recurso (fls.275) e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, no douto parecer que emitiu (fls. 283/285), pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso.
Notificados, nos termos e para os efeitos consignados no artº 417.º, n.º 2, do C. P. Penal, ninguém se pronunciou.

Foram colhidos os vistos legais.

Procedeu-se à conferência, com observância do formalismo legal, cumprindo, agora, apreciar e decidir.

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II. Fundamentação.

1. Delimitação dos poderes cognitivos do tribunal ad quem e objecto do recurso:
É hoje entendimento pacífico que as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98, sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
Por isso, temos, como

Questões a decidir:    
- Apreciar se a alteração efectuada na sentença no que à data da pratica dos factos se refere, ou seja quando a sentença alterou a data referida na acusação, ao referir "em dia não cabalmente apurado do mês de Julho de 2011", violou as garantias de defesa do arguido, dado que este tinha baseado a sua defesa na impossibilidade de ter cometido tal crime por nessa data não ter estado no edifício Câmara. Se ocorreu a violação dos princípios do acusatório e do contraditório (art°s 32º n° 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa.
- Se ocorrem os alegados erros de julgamento e, em caso afirmativo, se o acervo factológico provado deve ser modificado nos exactos termos sugeridos pelo recorrente.

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2. Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos (por transcrição):

“1. FACTUALIDADE PROVADA

Discutida a causa, resultaram provados, com relevância para a decisão final, os seguintes factos:

A) Em dia não cabalmente apurado do mês de Julho de 2011, ao final da manhã, no interior do edifício da Câmara Municipal da Guarda, concretamente à entrada do hall localizado junto ao corredor de acesso ao gabinete da presidência, o arguido, na presença de C..., E..., F...e D..., em tom de voz muito elevado proferiu por mais de uma vez as seguintes expressões em relação ao assistente B...: “O engenheiro B... é o maior corrupto desta terra e desta Câmara”, e é um “ladrão”.

B) Ao ter conhecimento de tais epítetos e afirmações, o assistente B... sentiu-se ofendido e lesado na sua honra e consideração.

C) O arguido, ao protagonizar os factos que se dão como provados, teve a intenção de ofender o assistente B... na sua honra e consideração, assim como agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que tais epítetos e afirmações são objectiva e subjectivamente ofensivos, e que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, e ainda assim não se absteve de os praticar.

D) O arguido encontra-se aposentado, mediante o que aufere uma pensão de reforma no valor de €300,00 mensais. Vive com a esposa, que é auxiliar da acção educativa e aufere o salário mínimo nacional pelo seu trabalho. Não tem despesas nem encargos para além da sobrevivência do seu agregado familiar.

E) O arguido sofre de uma psicose maníaco-depressiva (doença afectiva bipolar tipo I), doença crónica e cíclica que carece de tratamento permanente com estabilizadores do humor. Regista dois internamentos no Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital Sousa Martins, nesta cidade da Guarda, nos dias 10 de Março de 2008 a 2 de Maio de 2008, e de 14 de Julho de 2011 a 29 de Julho de 2011.

F) O arguido não tem quaisquer antecedentes criminais.”


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3. Quanto aos factos não provados, ficou consignado na sentença, que,

2. FACTUALIDADE NÃO PROVADA

Da audiência de discussão e julgamento resultou como não provado que:

1) Os factos narrados na pronúncia tenham ocorrido exactamente no dia 13 do mês de Julho de 2011, e às 11:30 desse dia.

2) No dia dos factos o arguido tenha dito que “O engenheiro B... é um vigarista e o maior gatuno que existe na Câmara”.

3) No local onde foram proferidas as palavras por parte do arguido se encontrassem presentes ainda outros munícipes para além daqueles que se referem na matéria provada, que por ali circulassem e se tenham apercebido claramente do sucedido.

4) O assistente B... se encontre ainda hoje bastante vexado devido aos factos praticados pelo arguido e que se dão como provados.


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4. E quanto à motivação da matéria de facto, ficou consignado:

3. MOTIVAÇÃO

Relativamente aos factos que se deram como provados no que diz respeito à dinâmica dos factos, o tribunal baseou a sua convicção no teor dos depoimentos prestados pelas testemunhas C..., E..., F... e D.... Todas estas testemunhas depuseram de forma serena, clara, inequívoca e circunstanciada, declarando ter presenciado tais factos de forma absolutamente directa e afirmando-os sem qualquer dúvida, sem que exista o que quer que seja que pessoalmente os mova contra o arguido ou tenham qualquer interesse no desfecho da presente causa. Embora se trate de pessoas que têm o mesmo local de trabalho e privam quase diariamente com o assistente (que não com o arguido), esta circunstância, quanto a nós, não coloca minimamente em causa a credibilidade que nos mereceram os respectivos depoimentos.

Aliás, o próprio arguido, mais do que negar a ocorrência dos factos, negou sobretudo e quase em exclusivo aquele que é apontado como sendo o dia da sua ocorrência. Dito por outras palavras, a defesa do arguido consistiu quase exclusivamente na negação do dia dos factos, muito mais do que na negação da ocorrência dos factos propriamente ditos, ainda que eventualmente em qualquer outro dia. Pelo contrário, o arguido assumiu até que se deslocou à Câmara Municipal da Guarda em numerosos outros dias que não soube precisar, e que pelo menos em um deles (talvez em Junho de 2011) procurou especificamente o aqui assistente com vista a inquiri-lo sobre um lar de idosos na localidade de Videmonte do qual o assistente será o responsável, e como não conseguiu chegar à palavra com o assistente, saiu do edifício, nas suas palavras, “indignado”. Ora, a nosso ver, tal depoimento prestado pelo arguido pode ser perfeitamente entendido como uma confissão parcial dos factos, ainda que mais uma vez, repita-se, o arguido negue em absoluto a data que é alegada na pronúncia.

Com efeito, justamente a respeito desta data, e como se viu, a verdade é que a mesma acaba por ser dada como não suficientemente provada, desde logo porque nenhuma das testemunhas acima referidas soube precisar tal data com suficiente rigor, tendo apontado apenas genericamente para o mês de Julho do passado ano de 2011.

Por outro lado, é verdade que a testemunha C... afirmou que, no dia seguinte aos factos, teria visto o arguido a ser preso por cinco polícias. Em declarações prestadas em seguida, o arguido insurgiu-se contra esta afirmação, alegando que essa terá sido uma altura em que se sentiu mal, teve de ser internado e para tanto foi transportado pela polícia para o hospital, até porque o seu filho é militar da GNR. Por seu turno, do ofício de fls. 209 trazido pelo Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital Sousa Martins (e como aliás se dá como provado), resulta que o arguido foi internado naqueles serviços por duas vezes, tendo sido uma delas no dia 14 de Julho de 2011, que é justamente o dia seguinte àquele que se refere na pronúncia.

No entanto, não só não foi esta a única data em que o arguido terá sido internado, como também existem outros elementos que colocam a data em dúvida, sobretudo o depoimento prestado pela testemunha J..., a qual, apesar de se tratar do filho do arguido e por isso não ser distanciado do desfecho desta causa, sempre veio dizer que passou o período do final da manhã do dia 13 de Julho de 2011 com o seu pai, não podendo os factos ter sido praticados nesse momento. Afirmou a testemunha que se recordava da data por ter consultado a escala anual das suas folgas, ter constatado que esteve de folga nesse dia e que, como em todas as folgas, terá vindo à cidade da Guarda e estado com o seu pai no final da manhã e almoçado com o mesmo.

Ora, embora se reconheça que (com o devido respeito) a fiabilidade e credibilidade do depoimento desta testemunha J... é reduzida por ser filho do arguido e porque sempre é duvidoso que a data em causa tenha sido de facto fixada desta forma (até porque declarou a testemunha que teria sido uma 3ª-feira quando na realidade o dia 13 de Julho de 2011 foi uma 4ª-feira), a verdade é que este elemento coloca em dúvida a precisão que é possível ter quanto a tal data, até porque, como já se disse, nenhuma das testemunhas presenciais dos factos a soube afirmar com clareza. A este respeito dir-se-á ainda que as testemunhas G..., H...e I... em nada contribuíram para a convicção do tribunal, na medida em que apenas vieram afirmar que vêm o arguido e estão com ele todos os dias de manhã por volta da hora que é referida na pronúncia, sendo certo que de qualquer forma também essa hora não a pudemos dar como suficientemente provada por falta de elementos seguros nesse sentido. As testemunhas presenciais e em que o tribunal se baseou também não foram precisas quanto à hora dos factos, sabendo apenas afirmar que terá sido no final do período da manhã, tal como se dá como provado.

Relativamente às folhas de registo de presenças no edifício da Câmara Municipal da Guarda no dia 13 de Julho de 2011, que constam de fls. 132 a 136, haverá que dizer que é um facto que o nome do arguido não consta de tais registos, e que este acaba por ser mais um elemento que gera dúvidas sobre a data dos factos. No entanto, também é verdade que foi referido pela unanimidade das testemunhas inquiridas a esse respeito que é perfeitamente possível e acontece frequentemente que pessoas entrem no edifício sem que fiquem a constar de tal registo, atendendo até a que existem apenas duas funcionárias que por ele velam e o hall de entrada é de grandes dimensões, sendo os serviços mais utilizados pelos cidadãos logo perto da entrada e no rés-do-chão, isto para além de existirem ainda outras entradas possíveis no edifício. Assim, pode perfeitamente ter sucedido que o arguido tenha entrado no edifício sem que tenha sequer ficado a constar do registo aqui em apreço, e isto quer o dia dos factos tenha sido o que se refere na pronúncia, quer não.

Finalizando quanto à matéria que se deu como provada, os factos relativos às condições pessoais, económico-financeiras e de saúde do arguido baseiam-se nas declarações por este prestadas, não existindo elementos para delas duvidar nesta parte, e ainda no teor do ofício de fls. 209. Quanto aos antecedentes criminais do arguido (que não existem) foi relevante o respectivo CRC que consta dos autos.

Revertendo à matéria que se dá como não provada na parte em que ainda não foi abordada, diremos que os epítetos de “vigarista” e “gatuno” que são referidos na pronúncia foram considerados não provados, na medida em que nenhuma testemunha inquirida os reproduziu ou afirmou, referindo várias até que não se lembravam de tais expressões, apesar de interpeladas directamente nesse sentido.

Quanto ao facto de se encontrarem presentes outros munícipes para além das testemunhas aqui inquiridas no momento dos factos, tal circunstância foi dada como não provada na medida em que nenhuma das testemunhas o pôde afirmar com qualquer espécie de segurança ou certeza.

Por fim, quanto ao facto de o aqui assistente e demandante se encontrar vexado pelo sucedido até aos dias de hoje, tal facto foi dado como não provado, na medida em que nenhuma testemunha afirmou que assim fosse, e também porque aliás essa circunstância nem sequer resulta como muito provável à luz das mais elementares regras da experiência comum face a todo o contexto, envolvência e singeleza dos factos.”


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5. APRECIANDO.

O recorrente, além de por em causa a matéria de facto que o tribunal a quo, considerou provada, questiona também o facto de o tribunal ter considerado que violou as sua s garantias de defesa uma vez que este tinha baseado a sua defesa na impossibilidade de ter cometido tal crime por nessa data não ter estado no edifício Câmara.
Assim, concluiu o arguido/recorrente que a sentença recorrida violou os princípios do acusatório e do contraditório (art°s 32º n° 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa.) uma vez que não foi dado prazo ao arguido para reorganizar a sua defesa, devendo, consequentemente ser considerada nula a sentença recorrida.
Vejamos então.
Como se sabe, o processo penal tem estrutura acusatória (art.32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa) e é pela acusação que se define o objecto do processo.
Por isso, a acusação deve conter, designadamente, a narração dos factos imputados ao arguido e as disposições legais aplicáveis aos mesmos factos (artigos 283º, n.º 3, alíneas b) e c) e 285º, n.º3, do Código de Processo Penal).
Em obediência ao princípio da identidade do objecto do processo, este um corolário do princípio da acusação, o objecto da acusação deve manter-se idêntico, ou seja, o mesmo, desde aquela até à sentença final.
Porém, não obstante este princípio, por razões de economia processual e no próprio interesse do arguido, a lei permite expressamente ao Juiz que este possa comunicar aos sujeitos processuais, mesmo no decurso da audiência de julgamento, quer uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia (artº 358.º do C.P.P.), quer uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia (artº 359.º do C.P.P.). Assim, estipula o art.358º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que “Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa” acrescentando-se no n.º 2: “Ressalva-se dos disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.».
Por sua vez o artº1.º, alínea f), do C.P.P. considera alteração substancial dos factos, aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. Daqui resulta que a alteração não substancial dos factos é aquela que, representando embora uma modificação dos factos que constam da acusação ou da pronúncia, não tem por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
Contudo, que na situação de não alteração substancial dos factos, quer na da alteração substancial dos factos, o arguido tem o “direito a ser ouvido”, no sentido de lhe dever ser dada oportunidade efectiva de discutir e tomar posição sobre decisões relativas a essas questões, particularmente as tomadas contra ele.
No caso concreto o arguido alega que formulou toda a sua defesa, no sentido de provar que no dia 13 de Julho de 2011, não ter estado na Câmara Municipal da Guarda, pelo que provando tal facto ficaria afastada a possibilidade de o mesmo ser condenado pela prática do crime de difamação de que o mesmo era acusado de ter praticado nesse dia.
Na verdade, nos nºs 1, 2 e 3 da acusação (fls 61 e 65) constava que “No passado dia 13/7/2011, pelas 11.30 horas, no interior do edifício da Câmara Municipal da Guarda, concretamente no hall localizado junto ao corredor de acesso ao gabinete da presidência, o arguido, na presença de C..., E..., F...e D..., em tom de voz muito elevado proferiu por mais de uma vez as seguintes expressões em relação ao assistente: “O engenheiro B... é o maior corrupto desta terra e desta Câmara”, e é um “ladrão”.

Por sua vez, a sentença recorrida, deu como provado que “A) Em dia não cabalmente apurado do mês de Julho de 2011, ao final da manhã, no interior do edifício da Câmara Municipal da Guarda, concretamente à entrada do hall localizado junto ao corredor de acesso ao gabinete da presidência, o arguido, na presença de C..., E..., F...e D..., em tom de voz muito elevado proferiu por mais de uma vez as seguintes expressões em relação ao assistente B...: “O engenheiro B... é o maior corrupto desta terra e desta Câmara”, e é um “ladrão”.
Compulsados os autos, mormente as actas de audiência de discussão e julgamento, do dia 20/6/2012 (fls 193/196), do dia 3/7/2012 (fls 294/296) esta após ter sido solicitada (fls. 291) e a acta 11/7/2012, (fls 212), constatamos que não foi comunicada ao arguido a alteração que veio a ficar consagrada na decisão. Ou seja não lhe foi comunicado que os factos que lhe eram imputados teriam ocorrido “em dia não cabalmente apurado do mês de Julho de 2011, ao final da manhã...” e não “No passado dia 13/7/2011, pelas 11.30 horas...” como constava da acusação.
A dimensão do objecto do processo cuja alteração se repercute irreparavelmente na estratégia da defesa, e por isso só pode ser alterada em casos específicos, é a dimensão da alteração dos factos suporte de uma qualificação jurídica, dado que a mesma tem repercussão na defesa do arguido como é o caso dos autos.
Por todo o exposto, resulta clara a necessidade de o julgador a quo dar cumprimento ao artigo 358º, nº 1, do CPP, não só com rigor mas também segundo uma leal transparência para com a defesa. A qualidade e a posição de arguido, independentemente da responsabilidade e consequências que lhe possam advir da prática dos factos é, por natureza do funcionamento das regras processuais, uma parte mais débil, sujeita ao cumprimento de prazos no exercício dos seus direitos, podendo a todo o momento ser surpreendido com novos factos e mesmo prova de que terá que se defender.

Ao não ter procedido a tal comunicação, o tribunal a quo incorreu na prática da nulidade invocada pelo recorrente, na medida em que os factos que vieram a ser atendidos pelo tribunal recorrido não são os mesmos que constavam da acusação, e não tendo o arguido sido notificado de tal alteração nem lhe tendo sido concedido prazo (se ele o pretendesse) para alterar a sua defesa, ocorreu uma violação dos princípios do acusatório e do contraditório (artºs 358º, nº 1 e 379.º n.º 1 al. b) do CPP e artº 32º, nºs 1 e 5, da CRP/76).

Assim, declaramos nula a sentença proferida, ordenando que o Sr. Juiz do tribunal de 1.ª instância reiniciar a audiência, comunicando ao arguido da alteração não substancial de factos e caso este o pretenda sendo-lhe dado prazo para preparação da sua defesa, seguindo os termos normais, com a subsequente prolação de nova sentença (artºs 358º, nº1 e 379, nº 1 b) do CPP.

                                                 ***

Face ao decidido não se conhece o restante do recurso, por inútil.

Procede pois o recurso.

                                        ***
  III – Decisão.

Face ao exposto, acordam os Juízes que compõem esta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, relativamente ao recurso do arguido, em conceder provimento ao recurso, declarando nula a decisão recorrida e, em consequência, determinam que o tribunal de 1.ª instância reinicie a audiência de discussão e julgamento, comunicando ao arguido da alteração não substancial de factos, nos termos acima expostos, proferindo, a final, sentença.
Sem custas.
                                                 ***

Calvário Antunes (Relator)

Vasques Osório