Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
22/20.5GATCS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: DESOBEDIÊNCIA QUALIFICADA
CONTRAORDENAÇÃO
RECUSA DE IDENTIFICAÇÃO A AGENTE POLICIAL
Data do Acordão: 03/10/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE TRANCOSO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 348.º, N.º 2, DO CP; 14.º, N.º 2, DA LEI ORGÂNICA DA GUARDA NACIONAL REPUBLICANA (LEI N.º 297/63/2007, DE 06-11); ARTS. 170.º, N.º 1, E 171.º, N.ºS 1 E 2, DO CÓDIGO DA ESTRADA
Sumário: Incorre na prática do crime de desobediência qualificada, p. e p. nas disposições conjugadas dos artigos 348.º, n.º 2, do Código Penal, 170.º, n.º 1, e 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código da Estrada, e 14.º, n.º 2, da Lei Orgânica da GNR (aprovada pela Lei n.º 63/2007, de 06-11), o arguido que, perante ordem que expressamente lhe foi dada, na sequência de contraordenação estradal por ele cometida, recusa identificar-se a agentes da GNR.
Decisão Texto Integral:




Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do processo especial, sob a forma sumária, n.º 22/20.5GATCS, do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, Trancoso – Juízo C. Genérica, foi o arguido V. submetido a julgamento, sendo-lhe então imputada a prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, de um crime de desobediência qualificada e de três crimes de injúria, p. e p. respetivamente nos artigos 348.º, n.º 2 do Código Penal, com referência aos artigos 49.º, do D.L. n.º 433/82, de 27 de outubro, 170.º, n.º 1 e 171.º, n.ºs 1 e 2 do Código da estrada, 5.º da Lei de Segurança Interna 14.º, n.º 2 da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana, 181.º, n.º 1 e 184.º, conjugado com o 132.º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal.

2. Realizada a audiência de discussão e julgamento, por sentença de 29.09.2020 o tribunal decidiu [transcrição parcial do dispositivo]:

“Em face do exposto, o Tribunal decide julgar a acusação parcialmente procedente e em consequência:

- Absolver o Arguido V. pela prática de dois crimes de injúria agravada, previstos e punidos pelos artigos 181.º, n.º 1 e 184.º, conjugados com o artigo 132.º, n.º 2, alínea l), do Código Penal.

- Condenar o Arguido V., pela prática, em autoria material e na forma consumada de:
· Um crime de injúria agravada, previsto e punido pelos artigos 181.º, n.º 1 e 184.º, conjugados com o artigo 132.º, n.º 2, alínea l), do Código Penal, contra o ofendido B(…), na pena de 75 dias de multa.
· Um crime de desobediência qualificada, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 2, do Código Penal, por referência ao previsto no artigo 49.º do D.L. n.º 433/82, de 27 de outubro, artigo 170.º, n.º 1 e 171.º, n.º 1 e 2, todos do Código da Estrada, artigo 5.º, n.º 1, da Lei de Segurança Interna e artigo 14.º, n.º 2, da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana, na pena de 120 dias de multa.

- Fixar a pena única, em cúmulo jurídico, em 130 (cento e trinta) dias de multa, à taxa diária de 6,00€ (seis euros), num total de 780,00€ (setecentos e oitenta euros) – sendo de descontar no seu cumprimento um dia de multa, nos termos do artigo 80.º do Código Penal, pelo que o Arguido terá de proceder ao pagamento da quantia de 774,00€ (setecentos e oitenta e quatro euros).

(…).”

3. Inconformado com a decisão recorreu o arguido, formulando as seguintes conclusões:

1. O Recorrente foi condenado, em autoria material e na forma consumada de: [transcrição do dispositivo];

2. Discorda o Recorrente desta condenação;

3. Impugna a matéria de facto de 1 a 14, vejamos, Não aceita que circulasse em excesso de velocidade – a velocidade do veículo dos Autos não foi verificada por qualquer forma nem está quantificada pelo que este facto 1 é conclusivo; depois,

4. Depois, deverá smo, acrescentar-se aos factos provados 1 – Pelo menos um dos militares, o P(…), que fiscalizou o arguido no dia 23.08.2020, cerca das 18h30m, conhecia pessoalmente o arguido. 2 – O arguido foi detido, algemado e levado para o posto da GNR com vista a ser identificado, durante cerca de uma hora (cf. auto de notícia e auto de libertação de fls). 3 – Quando se encontrava detido no posto da GNR dirigiu aos militares as expressões constantes da matéria provada.

5. Meios probatórios que impunham decisão diversa, quais sejam: - suporte digital gravação da produção de prova testemunhal audiência de julgamento, 0.16 do CD, do qual se extrai supra:

6. O próprio Tribunal a quo pondera referindo a testemunha militar da GNR P(…) que «Contudo, esta testemunha não mereceu grande credibilidade por parte do Tribunal (…)».

7. É que esta testemunha andou com o arguido na escola conhecia-o na data dos factos e nem assim se eximiu a deter algemar e deter o arguido durante cerca de uma hora para o identificar – tudo o que se revela ilegal por desproporcional desadequado.

8. Donde as injúrias a terem tido lugar escudam-se em prova proibida pois que terão sido “proferidas” quando o arguido foi detido algemado durante cerca de uma hora – ilegalmente percute,

9. Acresce, não consta dos factos provados que o Arguido tinha na sua posse quaisquer elementos de identificação: ora, seguindo a lição do Ac. TRG de 3.03-2014, do qual se extrai: I. O crime de desobediência por o agente ter omitido uma conduta imperada, pressupõe a prova de que estava em condições de cumprir a ordem dada.

10. Aqui chegados, finalmente e por cautela, mesmo que se conclua pela desobediência, esta não é, como sustenta o tribunal a quo, desobediência qualificada, vejamos,

11. A qualificação que mereceu acolhimento na sentença, mostra-se errada, por não ser aquela que resulta de uma boa interpretação das normas aplicáveis, sejam elas do CP, da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana e da Lei da Segurança Interna.

12. Assim sendo, a incriminação do caso presente deverá ter lugar sob a cobertura de tipicidade conferida pela norma do n.º 1 desse mesmo artº 348º, na sua al. b).

13. Incluída a matéria de facto propugnada forçoso é concluir pela atuação desproporcional, desadequada da GNR, com absolvição do Arguido (a quem no limite a GNR deveria ter aplicado uma coima por violação de regra estradal) – não é aceitável que um militar da GNR conheça um cidadão de vista porque o meio é pequeno, por ter andado com o cidadão na escola e ainda assim não se exima de o deter algemar e reter no posto da GNR cerca de uma hora para … o identificar.

14. A decisão em crise viola os artigos 250.º e 147º do CPP, o artigo 70.º do Código Penal e os artigos 18.º e 32.º da CRP.

Termos em que e nos demais de Direito deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogada a Sentença recorrida, com as legais consequências.

4. Foi proferido despacho de admissão do recurso.

5. Em resposta ao recurso, o Ministério Público concluiu:

1. O conceito de velocidade excessiva e de excesso de velocidade (mencionado pelo recorrente) são distintos e importam, segundo as regras de circulação estradal, sanções e modos de verificação distintos.

2. O Julgador fundamentou o decido no facto provado n.º 1 referindo que os militares inquiridos foram unânimes em relatar que o arguido se encontrava em velocidade excessiva (e não em excesso de velocidade) reportando-se à factualidade dada como provada no ponto 1, onde é referido “que o mesmo conduzia em velocidade superior à permitida naquele local, via onde se localizam diversos estabelecimentos comerciais e onde circulam, com frequência e em número elevado, pessoas e veículos”, sendo, deste modo, percetível a fundamentação expendida a este mister.

3. O facto de não se ter apurado, em concreto, qual a velocidade a que o arguido circulava – importante para se determinar se o arguido circulava em excesso de velocidade – não releva para a apreciação realizada a propósito do apuramento do seu exercício da condução em velocidade excessiva. Termos em que a sentença recorrida não padece de qualquer vício a este propósito.

4. O Tribunal a quo cuidou de indagar e de apreciar toda a factualidade pertinente para a boa e justa decisão da causa, a qual fundamentou.

5. Não se verifica a existência de qualquer prova proibida, sendo que a detenção do arguido ocorreu na sequência da prática, em flagrante delito, do crime de desobediência.

6. Caso não haja lugar à qualificação do crime de desobediência, nos termos constantes na sentença recorrida, sempre terá o arguido V. praticado o crime de desobediência simples, em face da factualidade dada como provada, pelo deve ser condenado.

7. Sem prejuízo do anteriormente exposto, a sentença recorrida assenta numa fundamentação cuidada quanto ao decidido, realizando uma apreciação correta quanto factualidade apreciada, a qual se mostra firmada de uma forma lógica e coerente e que resulta numa decisão justa, tecnicamente correta e isenta de qualquer nulidade ou vícios.

Nestes termos e nos demais de direito, negando provimento ao recurso interposto e, em consequência, mantendo a douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo, ou, assim o entendendo, condenado o arguido pela prática de um crime de desobediência simples, farão V/ Exas a acostumada Justiça.

6. O Exmo. Procurador da República emitiu parecer, pronunciando-se no sentido de o recurso dever ser julgado totalmente improcedente.

7. Cumprido o n.º 2, do artigo 417.º do CPP, o recorrente não reagiu.

8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cabendo, pois, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

Tendo presente as conclusões, pelas quais se delimita o objeto do recurso, sem prejuízo do conhecimento de eventuais questões de natureza oficiosa, no presente caso importa decidir se (i) ocorre erro de julgamento; (ii) os factos são insuscetíveis de ser subsumidos ao crime de desobediência simples e menos ainda qualificada.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar da sentença [transcrição parcial]:

II – Dos Factos

- Factos provados:

Em julgamento e com relevo para a decisão da causa, resultou provada a seguinte factualidade:

1. No dia 23-08-2020, cerca das 18h30m, na Rua do (…), em (…), o Arguido conduzia o veículo automóvel de marca Mitsubishi, modelo Strakar, de matrícula (…), quando militares da GNR, devidamente uniformizados e no exercício das suas funções, se aperceberam de que o mesmo conduzia em velocidade superior à permitida naquele local, via onde se localizam diversos estabelecimentos comerciais e onde circulam, com frequência e em número elevado, pessoas e veículos.

2. Em ato contínuo, os militares da GNR (…) e (…), utilizando o veículo patrulha em que encontravam, seguiram no encalce do Arguido e, através dos meios luminosos e sonoros do referido veículo, deram ordem de paragem ao Arguido, a qual cumpriu.

3. Seguidamente, por forma a aferir se o Arguido procedia ao exercício regular da condução e de modo a proceder à elaboração de auto de contraordenação por violação do previsto no artigo 145.º, n.º 1, alínea e), do Código da Estrada, os militares da GNR solicitaram a apresentação dos documentos de identificação pessoal e, bem assim, os da viatura que conduzia.

4. Porém, o Arguido recusou cumprir tal ordem dizendo aqueles militares «não dou e não dou».

5. Perante tal recusa e em face da prática de uma contraordenação estradal, o Arguido foi advertido por militar da GNR, uniformizado e em exercício de funções, que incorreria na prática do crime de desobediência se não exibisse os referidos documentos.

6. Não obstante, o Arguido persistiu na recusa em exibir os documentos solicitados, sendo que lhe foi solicitado, uma vez mais, que exibisse os referidos documentos sob pena de detenção pela prática do mencionado crime de desobediência, tendo este dito ao militar «não dou».

7. Na sequência da conduta anteriormente referida o Arguido foi detido e conduzido ao Posto da GNR de (…).

8. Já no interior do Posto, o Arguido dirigindo-se ao Guarda (…), disse «tu és um burro».

9. Após, dirigindo-se ao (…), disse «tu és uma vergonha.»

10. O Arguido sabia que ao recusar-se a exibir o seu documento de identificação e o documento de identificação do veículo estava a desobedecer a uma ordem legítima emanada de autoridade competente para a fiscalização de trânsito, nomeadamente para proceder à autuação de contraordenações rodoviárias, que lhe foi regularmente comunicada pelos militares da GNR, devidamente uniformizados e no exercício das suas funções, o que quis e logrou.

11. Não obstante tal conhecimento, sabia o Arguido que ao atuar nos termos descritos, impedia o exercício das funções dos militares da GNR, conhecendo que com a sua conduta obstava à elaboração do competente auto de contraordenação por via da falta da sua identificação e, bem assim, da identificação do veículo, o que quis e logrou.

12. Mais sabia o Arguido que a sua conduta o fazia incorrer na prática de um crime de desobediência qualificada, o que quis.

13. Mais sabia o Arguido que ao dirigir aos referidos militares da GNR, em exercício de funções, a expressão referida em 8, atingia a dignidade, honra e consideração que lhes são devidas como pessoas e por causa das suas funções, o que, não obstante, quis e logrou.

14. O Arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Mais se provou que:

15. Do Certificado do Registo Criminal do Arguido constam as seguintes condenações:

- Por decisão transitada em julgado a 25-09-2019, nos autos que correram termos sob o n.º 182/17.2GACLB, no Juízo de Competência Genérica de Celorico da Beira, por factos praticados a 23-09-2017, que consubstanciam a prática de um crime de ofensa à integridade física, foi o Arguido condenado numa pena de 10 meses de prisão, substituída por 220 dias de multa, à taxa diária de 7,00€, num total de 1.540,00€.

16. O Arguido exerce funções de motorista, auferindo cerca de 750,00€ mensais.

17. O Arguido reside com os seus pais e irmão mais novo, em casa própria daqueles.

18. O Arguido completou o 12.º ano de escolaridade.


*

- Factos não provados:

Não resultou provada a seguinte factualidade:

a) O Arguido, após insistência para apresentar os seus documentos identificativos, dirigiu-se aos três militares da GNR presentes e disse: «vocês são uns badamecos que aqui andam com a farda em cima», «eu não dou nada a vocês», «eu vou-me embora».

b) No posto, o Arguido, dirigiu-se ao Guarda P(…) e disse «tu uma vez passaste um auto mas eu paguei-o»».


*

A restante matéria constante dos articulados não referida, quer nos factos provados quer nos não provados, contém matéria de direito, conclusiva e genérica ou matéria de facto sem relevo para a decisão da causa, razão pela qual não consta da presente decisão.

*

- Motivação da matéria de facto:

(…).

3. Apreciação

§1. Da impugnação da matéria de facto

Insurge-se o recorrente contra os factos dados como provados sob os itens 1 a 14, os quais – depreende-se – configurariam «erro de julgamento», parecendo, assim, ser seu propósito desencadear a sindicância ampla da matéria de facto, ou seja para além dos vícios que pertinam à confeção técnica da decisão, apreensíveis diretamente a partir do seu texto, ainda que conjugado com as regras da experiência comum – [cf. artigo 410.º, n.º 2 do CPP].

Pretendendo a sindicância do «erro de julgamento» deve o recorrente observar os ónus contemplados nos n.ºs 3 e 4, do artigo 412.º, do CPP, indicando designadamente o «concreto ponto de facto» que considera incorretamente julgado, bem assim as «concretas provas» que impõem decisão diversa da recorrida, os quais, em parte significativa, nem sede de conclusões, nem na correspondente motivação resultam cumpridos.

Na verdade, apontando para um conjunto alargado de itens, não cuida o recorrente de individualizar o (s) segmento (s) que encerraria (m) o «erro de julgamento», omitindo em consequência a indicação da (s) s «concreta (s) prova (s)» que, na relação com cada um dos mesmos, imporia decisão diversa da recorrida.

Efetivamente, da motivação apenas decorre não se conformar com a consideração de que “circulasse em excesso de velocidade”, pois, acrescenta, “a velocidade do veículo dos autos não foi verificada por qualquer forma nem está quantificada”, pelo que a descrição contida sob o item 1 (factos provados) apresentar-se-ia conclusiva.

Por outro lado, pretende ver aditados aos factos provados:

(i)Pelo menos um dos militares, o P(…), que fiscalizou o arguido no dia 23.08.2020, cerca das 18h30m, conhecia o arguido”;

(ii)O arguido foi detido, algemado e levado para o posto da GNR com vista a ser identificado, durante cerca de uma hora (cf. auto de noticia e de libertação de fls.)”;

(iii)Quando se encontrava detido no posto da GNR dirigiu aos militares as expressões constantes da matéria de facto provada”.

No que concerne à impugnação dos itens 2 a 14 (inclusive) dos factos provados, não resultando cumpridos, em toda a sua extensão, os ónus a que se reportam os n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, rejeita-se o recurso.


*

No que tange à impugnação da matéria inscrita sob o item 1 dos factos provados, ao contrário do que o recorrente preconiza, não se integra na mesma qualquer conceito conclusivo, sendo certo que a argumentação desenvolvida é suscetível de relevar como oposição no âmbito do eventual processo instaurado por contraordenação, matéria alheia ao objeto dos presentes autos.

Com efeito, do referido item [na parte que merece a censura do recorrente] resulta tão só a razão de ser da intervenção dos militares da GNR, qual seja o facto de se haverem apercebido de que “conduzia em velocidade superior à permitida naquele local, via onde se localizam diversos estabelecimentos comerciais e onde circulam, com frequência e em número elevado, pessoas e veículos”; se a inadequação ao local da velocidade se vem, ou não, a confirmar constitui aspeto que não pertina ao processo.

Diferente seria o juízo se, como considerou o acórdão do TRE de 08.05.2018 (proc. n.º 3/14.8FCOLH.E1), se pudesse extrair dos factos haver a «recusa do fornecimento de identificação, para efeito da elaboração de auto de contraordenação» ocorrido num quadro em que se verificassem, cumulativamente, dois requisitos: a intervenção da autoridade administrativa ou policial [resultasse] manifestamente descabida e não apenas juridicamente discutível, como muitas vezes sucede; o cumprimento da ordem [provocasse] dano a direito ou interesse juridicamente protegido do visado, (…) não (…) suscetível de ser revertido por uma ulterior decisão não sancionatória, no final do processo de contraordenação», entraves que não se verificam.

Não procedendo as objeções suscitadas pelo recorrente, é de manter inalterado o item em referência.


*

Quanto à matéria de facto que o recorrente quer ver aditada, cabe desde logo relembrar que neste domínio o tribunal de recurso – assim como a primeira instância – só se deve pronunciar sobre os factos que revistam interesse para a decisão da causa. Ora, tendo presente o objeto do processo, não é o caso dos factos elencados.

Com efeito:

(i) O primeiro posto que em causa estava - na sequência da constatação de contraordenação levada a efeito no exercício da condução - o propósito, por parte dos militares da GNR, de levantar o correspondente auto de contraordenação, o que demandava a identificação do agente da infração, a realizar nos termos do artigo 171.º, n.º 1 do Código da Estrada – [cf. o artigo 170.º do mesmo diploma], sendo, para o efeito, irrelevante se os militares conheciam, ou não, o arguido/recorrente.

(ii) O segundo, resultando do acervo factual provado haver sido o arguido conduzido ao Posto da GNR na condição de detido por via da desobediência em que incorreu - e não já para ser identificado [artigo 250.º do CPP] - não assume igualmente relevância para a decisão a proferir. Só uma menor perceção sobre o que realmente estava em causa no processo pode justificar a alegação contida no ponto 13 das conclusões e, assim, a violação das normas, no mesmo, convocadas, a qual manifestamente não ocorre.

Abre-se aqui um parêntesis para clarificar o facto de a detenção do arguido não constituir prova e, por maioria de razão «prova proibida», como pretende o recorrente – [cf. ponto 8 das conclusões]. Ainda que constituísse – e não constitui - objeto do processo uma eventual detenção ilegal, não se antevê como tal ilegalidade se poderia projetar – apagando – nas expressões dirigidas pelo arguido ao militar B(…). Na verdade, fazendo nossas as palavras do Exmo. Procurador da República «não vislumbramos, e o arguido também não o explica, em que medida é que o facto de ter injuriado os militares da GNR enquanto estava algemado constitui prova proibida».

(iii) O último já resulta da conjugação da matéria inscrita sob os itens 7 e 8 (factos provados).

Não há, assim, lugar ao aditamento dos factos elencados pelo recorrente.


*

Em suma, não se verificando vícios ou outras causas de invalidade que o impeçam, considera-se definitivamente fixada a matéria de facto.

§2. Da qualificação jurídico-penal dos factos no que respeita ao crime de desobediência.

Não se conforma o recorrente com a subsunção dos factos no crime de desobediência porquanto apresentar-se-ia o acervo factual omisso no que concerne à circunstância de ter o mesmo na sua posse quaisquer documentos de identificação, apelando, para tanto, ao acórdão do TRG de 03.03.2014, proferido no âmbito do processo n.º 5/12.9PABRG.G1, disponível em www.dgsi.pt/trg.

Vejamos.

Versa o identificado aresto sobre a não apresentação, pelo arguido, na esquadra da PSP, e na sequência de para tanto ter sido notificado, de uma arma e respetivos documentos, concluindo o tribunal de recurso que à condenação do crime imputado (de desobediência) «não basta a prova de que o arguido não entregou a arma e os documentos», sendo igualmente necessária a prova que «o arguido tinha a arma e os documentos em seu poder» ou, pelo menos, «algum facto de que inevitavelmente resulte que podia dispor deles para efetuar a entrega».

Em abono de semelhante entendimento, refere o dito acórdão: «Quem não tem consigo determinado bem, nem pode dispor dele, não comete o crime de desobediência por não o entregar, porque não lhe é possível cumprir. É algo que decorre da própria natureza das coisas. Mesmo assim, cita-se quem sabe mais: “só se deve obediência a ordens possíveis de cumprir, sendo a possibilidade aferida, como é próprio dum comando dirigido a alguém em concreto, pela situação e capacidades do particular do particular destinatário. De impossibililita nemo tenetur. O problema põe-se sobretudo (…) nos casos em que desobedecer é omitir a conduta imperada” – Conimbricense, tomo III, pág. 257 (…)».

Contudo, no caso concreto, decorre com clareza da matéria de facto provada não ter sido esta a situação. Na verdade, conforme uma vez mais realça no seu parecer o Senhor Procurador, nos «factos provados em 4, 5, 6 e 10 é repetidamente dito que o arguido se recusou a exibir os documentos, e não apenas que não os exibiu, só podendo tal expressão significar que a não apresentação dos documentos foi um ato voluntário e não resulta de uma impossibilidade material (…)». E assim é, bastando para tanto atentar nos segmentos: «o Arguido recusou cumprir tal ordem dizendo (…) «não dou e não dou»; «Perante tal recusa»; «o Arguido persistiu na recusa em exibir os documentos (…), tendo … dito ao militar «não dou». De facto, a insistente recusa na exibição dos documentos, materializada do modo descrito, encarada à luz das regras da experiência comum, não pode deixar de significar senão que o arguido, dispondo dos documentos que lhe foram solicitados no decurso de ação de fiscalização de trânsito, não os exibiu - podendo fazê-lo - voluntariamente.

Perante a recusa em fornecer a identificação que lhe foi solicitada pelos militares da GNR, motivada pelo exercício da condução nas condições descritas sob o item 1 dos factos provados, tendente à elaboração do auto de contraordenação por violação da alínea e), do n.º 1, do artigo 145.º do Código da Estrada, sendo inquestionável a regularidade substancial e formal da ordem, a competência da identidade que a emitiu, bem assim a regularidade da sua comunicação ao destinatário, a violação do dever emergente do concreto comando, acrescendo ainda – dispensável no caso - a cominação da punição, verificados que também resultam os elementos subjetivos do tipo, não nos suscita reserva a subsunção da conduta ao crime de desobediência.

Com efeito, dispõe o artigo 170.º do Código da Estrada:

“1 – Quando qualquer autoridade ou agente de autoridade, no exercício das sus função de fiscalização, presenciar contraordenação rodoviária, levanta ou manda levantar auto de notícia, o qual deve mencionar:

a) Os factos que constituem a infração, o dia, a hora e local e as circunstâncias em que foi cometida, o nome e a qualidade da autoridade ou agente de autoridade que a presenciou, a identificação dos agentes da infração (…)”.

Por seu turno, sob a epígrafe “Identificação do arguido”, estipula, de seguida, o artigo 171.º:

“1 – A identificação do arguido deve ser efetuada através da indicação de:

a) Nome completo (…);

b) Domicílio fiscal;

c) Número do documento legal de identificação pessoal, data e respetivo serviço emissor (…);

d) Número do título de condução e respetivo serviço emissor;

(…)

2 – Quando se trate de contra-ordenação praticada no exercício da condução e o agente não puder identificar o autor da infração, deve ser levantado o auto de contra-ordenação ao titular do documento de identificação do veículo, correndo contra ele o correspondente processo.

(…)”.

Afigura-se-nos, pois, que em face da natureza e atribuições da Guarda Nacional Republicana [cf. Lei n.º 63/2007, de 06.11], o motivo que determinou a sua – dos militares - intervenção e o fim a que se destinava – levantar o auto de notícia – a ordem dirigida ao arguido, no sentido de fornecer os elementos de identificação se apresenta material e formalmente legítima.

Poder-se-ia questionar se, perante a previsão do n.º 2, do artigo 171.º, do caráter subsidiário, de ultima ratio, do direito penal, dos princípios da necessidade, proporcionalidade e adequação que enformam a atividade da administração, não seria de afastar a punição pelo crime de desobediência, posto que sempre poderia ser levantado o auto de contraordenação ao titular do documento de identificação do veículo, correndo contra este o correspondente procedimento [contraordenacional], seguindo-se então os trâmites descritos nos ulteriores números da disposição legal em referência.

Com o devido respeito por posição em contrário, não nos parece!

Desde logo, porque tal corresponderia a onerar a administração, conduzindo-a à eventual prática de atos/procedimentos que só colhem justificação nos casos em que, por circunstâncias alheias a uma conduta voluntária de recusa do condutor, não seja possível proceder à sua identificação no ato, como sucede v.g. quando a infração não é presenciada pelas autoridades ou agentes de autoridade a quem compete a ação de fiscalização. São situações que não se confundem, a demandar reações distintas. Enquanto num caso a impossibilidade de identificação resulta de uma causa objetiva, ou pelo menos não imputável a uma conduta voluntária do infrator, no outro assiste-se a um comportamento intencionalmente dirigido ao não acatamento da “ordem”, que se sabe material e formalmente legítima.

Também na doutrina se identificam autores que a propósito do artigo 49.º do RGCC [«As autoridades administrativas competentes e as autoridades policiais podem exigir ao agente de uma contra-ordenação a respetiva identificação»] defendem ser a recusa injustificada de identificação punível como desobediência [artigo 348.º do Código Penal]. Neste sentido pronunciam-se, entre outros, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do regime Geral das Contra-Ordenações, Universidade Católica Editora, 2011, pág. 207 [«A recusa injustificada de identificação é punível como desobediência (artigo 348.º do CP), permitindo a detenção em flagrante delito do suspeito (artigo 255.º do CPP)»]; António de Oliveira Mendes e José dos Santos Cabral, in Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, Almedina, 2009, pág. 149 [«A não identificação poderá ter na sua génese uma atitude voluntária de recusa por parte do arguido em relação à entidade policial o que o constitui como agente do tipo legal de desobediência previsto e punido do artigo 348.º do Código Penal com a sequente possibilidade de detenção em flagrante delito nos termos do artigo 255.º do Código de Processo Penal»]; António Beça Pereira, in Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, Almedina, 2005, pág. 97.

Mais defende o recorrente que nunca poderia ter sofrido condenação pelo crime de desobediência qualificada, porquanto não colheria, no caso, aplicação o n.º 2, do artigo 14.º da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana [aprovada pela Lei n.º 63/2007, de 06.11] dado não se estar perante o cumprimento de ordens «emitidas no âmbito de medidas de polícia e meios de coerção», conforme o n.º 1 do citado preceito e artigos 28.º, 29.º e 34.º da Lei de Segurança Interna (LSI), não existindo, assim, disposição legal que permita «a punição da desobediência qualificada», devendo em consequência a incriminação ocorrer à luz da alínea b), do n.º 1, do artigo 348.º do Código Penal.

Uma vez mais, afigura-se-nos não lhe assistir razão.

Pese embora a referência feita na sentença em crise ao artigo 5.º da LSI (Lei de Segurança Interna), da “Definição e fins da segurança interna”, decorrentes do artigo 1.º da Lei n.º 53/2008, de 29.08, resulta não colher o diploma aplicação num caso como o dos autos. Com efeito, as normas que o enformam não foram, de todo, gizadas para situações em que em questão esteja a prática de uma contraordenação.

Isto dito.

O artigo 14.º da Lei n.º 63/2007, de 06.11 [Lei Orgânica da GNR], à semelhança do que sucede com o artigo 12.º da Lei Orgânica da PSP, dispõe que “1 – No âmbito das suas atribuições, a Guarda utiliza as medidas de policia legalmente previstas e nas condições e termos da Constituição e da Lei de Segurança Interna, não podendo impor restrições ou fazer uso de meios de coerção para além do estritamente necessário. 2 – Quem faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade de polícia ou agente de autoridade da Guarda, é punido com a pena legalmente prevista para a desobediência qualificada”.

Já às atribuições da Guarda Nacional Republicana se reporta o artigo 3.º do mesmo diploma, cabendo-lhe, entre muitas outras, velar pelo cumprimento das leis e regulamentos relativos à viação terrestre, designadamente através de ações de fiscalização do trânsito, no âmbito das quais têm naturalmente lugar medidas de polícia - condutas administrativas que decorrem das respetivas atribuições -, sendo que no caso concreto, como vimos, o poder/dever de identificação do condutor/infrator decorre diretamente da lei [cf. artigos 170.º e 171.º do Código da Estrada e 272.º da Constituição].

Conclui-se, pois, no sentido de se mostrarem reunidos todos os elementos objetivos e subjetivos do crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Código Penal, com referência aos artigos 170.º e 171.º do Código da Estrada, 49.º do RGCC, 14.º, n.º 2 da Lei n.º 63/2007, de 06.11 – [vide, perfilhando idêntico entendimento, os acórdãos do TRE de 08.05.2018 (proc. n.º 3/14.8FCOLH.E1), 11.07.2019 (proc. n.º 22/16.0GAGDL.E3), do TRC de 18.09.2013 (proc. n.º 75/12.0GBMIR.C1)].

III. Dispositivo

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar improcedente o recurso.

Custas, com taxa de justiça que se fixa em 3 [três] UCs, a cargo do recorrente – [artigos 513.º e 514.º do CPP; artigo 8.º do RCP, com referência à tabela III].

[Texto processado e revisto pela relatora]

Maria José Nogueira (relatora)

Frederico Cebola (adjunto)