Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
96/14.8EALSB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: APREENSÃO DE CORRESPONDÊNCIA
REQUISITOS DE VALIDADE
MÉTODOS PROIBIDOS DE PROVA
NULIDADE
INVALIDADE DA PROVA
Data do Acordão: 06/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (SECÇÃO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DA INSTÂNCIA CENTRAL DE LEIRIA - J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 125.º, 126.º, 179.º E 252.º DO CPP
Sumário: I – O n.º 1 do art. 252.º do CPP refere-se aos casos já prevenidos no artigo 179.º do mesmo diploma, em que existe prévia ordem ou autorização judicial para proceder à apreensão, devendo nesse caso a correspondência ser levada intacta ao juiz, seguindo-se o procedimento do n.º 3 desse normativo (o juiz toma conhecimento do conteúdo da correspondência e fá-la juntar ao processo se for relevante para a prova).

II – Quando não exista qualquer intervenção prévia da autoridade judicial competente para ordenar a apreensão, regem os n.ºs 2 e 3 do artigo 252º, nos seguintes parâmetros:

- a autoridade policial deve informar o juiz, o qual pode autorizar a abertura imediata da correspondência; ou

- a autoridade policial pode ordenar a suspensão da remessa da correspondência e se, no prazo de 48 horas, a ordem não for convalidada pelo juiz, a correspondência é remitida ao destinatário.

III – É, pois, clara a lei no sentido de não poder ocorrer apreensão de correspondência sem prévia intervenção do juiz, apenas sendo legalmente permitida a medida cautelar de suspensão da sua remessa.

IV – A apreensão realizada à revelia das citadas disposições legais é, por força do disposto no artigo 179.º, n.º 1 do CPP, nula; sendo este vício atinente a meio de prova, não segue o regime do artigo 122.º do mesmo Código, mas antes o prescrito nos arts. 125.º e 126.º, n.º 3, ainda do mesmo corpo de normas.

Decisão Texto Integral:




Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

 

I. Relatório

No processo de inquérito 96/14.8EALSB da 2ª Secção do DIAP de Leiria (Comarca de Leiria, Instância Central, Secção de Instrução Criminal, J3) a Magistrada do Ministério Público requereu à Mmª Juiz de Instrução o seguinte:

Compulsados os autos, constatamos que, no âmbito do inquérito nº 718/15.3PCLRA, o qual se mostra aqui apensados, foi apreendido, no dia 23 de Dezembro de 2015, entre o mais, 16 caixas suspeitas de conterem calçado contrafeito (cfr. fls. 6 do expediente mencionado).

Com efeito, no presente inquérito investiga-se a prática do crime de contrafacção, imitação e uso ilegal de marca, previsto e punido pelo art. 324.0 do Código da Propriedade Industria, o qual é praticado, pelos indícios recolhidos por A... , bem como pela sua companheira B... , por C... e D... .

Sucede que no decurso da investigação, apurou-se que, a fim de se proceder à venda destes artigos, os suspeitos estabelecem as negociações via online, mais concretamente, através de anúncios colocados em páginas por si criadas do "Facebook".

Nesta sequência, conforme já foi referido, foram apreendidos, no dia 23 de Dezembro de 2015 os artigos supra referidos, uma vez que, C... , indivíduo já bastante conhecido pela PSP, pela prática de crimes já referidos, e com estes relacionados (nomeadamente burlas), foi avistado, à porta dos CTT, Marrazes, com uma postura bastante inquieta e discurso incoerente. Logo de seguida, no mesmo local, foi avistado D... , no interior dos CTT, tendo a PSP se apercebido que o mesmo se encontrava a proceder ao envio de 16 caixas, as quais, face ao "modus operandi", aparentavam conter no seu interior calçado contrafeito.

Mais se apurou que nas caixas supra mencionadas, se refere, no local do remetente " A... ", motivo pelo qual se suspeita do envolvimento do mesmo.

Prescreve o art. 249.º do Código de Processo Penal, no que se refere a providências cautelares quanto aos meios de prova que:

"1 - Compete aos órgãos de polícia criminal, mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária competente para procederem a investigações, praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova.

2 - Compete-lhes, nomeadamente, nos termos do número anterior:

a) Proceder a exames dos vestígios do crime, em especial às diligências previstas no n.º 2 do artigo 171º, e no artigo 173.º, assegurando a manutenção do estado das coisas e dos lugares;

b) Colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime e a sua reconstituição;

c) Proceder a apreensões no decurso de revistas ou buscas ou em caso de urgência ou perigo na demora, bem como adoptar as medidas cautelares necessárias à conservação ou manutenção dos objectos apreendidos.

3 - Mesmo após a intervenção da autoridade judiciária, cabe aos órgãos de polícia criminal assegurar novos meios de prova de que tiverem conhecimento, sem prejuízo de deverem dar dela notícia imediata àquela autoridade".

Acresce que o art. 179.º nº 1 refere que, "sob pena de nulidade, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão, mesmo nas estações de correios e de telecomunicações, de cartas, encomendas, valores, telegramas ou qualquer outra correspondência, quando tiver fundadas razões para crer que:

a) A correspondência foi expedida pelo suspeito ou lhe é dirigida, mesmo que sob nome diverso ou através de pessoa diversa;

b) Está em causa crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos; e

c) A diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova 

"e no nº 3 que "O juiz que tiver autorizado ou ordenado a diligência é a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida. Se a considerar relevante para a prova, fá-la juntar ao processo; caso contrário, restitui-a a quem de direito, não podendo ela ser utilizada como meio de prova, e fica ligado por dever de segredo relativamente àquilo de que tiver tomado conhecimento e não tiver interesse para a prova.

Pelo exposto, remetam-se os autos ao MM JIC, com a promoção de validação da apreensão efectuada, bem como, em caso de deferimento, que se cumpra o disposto no nº 3 do art. 179.º do Código de Processo Penal.

A Mmª Juiz de Instrução proferiu em 16 de Setembro de 2016 o seguinte despacho:

(…)

Cumpre pois apreciar.

Compulsados os presentes autos extrai-se que "no dia 23 de Dezembro de 2015 agentes da Policia de Segurança Pública, Comando Distrital de Leiria, procederam à apreensão de 16 caixas que aparentavam ser de calçado, as quais se encontravam no interior da Loja dos CTT em Marrazes, Leiria, estando as mesmas já do lado de dentro do balcão da referida Loja"- auto de notícia de fls. 2 e ss constante do inquérito nº. 718/15.3 PCLRA- apenso.

A PSP justificou a apreensão cautelar dos referidos objectos a fim de os mesmos poderem servir como meio de prova - cf. auto de apreensão junto ao inquérito nº. 718/15.3 PCLRA apenso a estes autos.

De acordo com o disposto no artigo 179°, nº. 1 do Código de Processo Penal, sob pena de nulidade, o juiz pode ordenar ou autorizar, por despacho, a apreensão, mesmo nas estações de correios de encomendas, quando tiver fundadas razões para crer que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova. De acordo com o disposto no nº. 3 do artigo 179° do CPP o juiz que tiver autorizado ou ordenado a diligência é a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida e se a considerar relevante para a prova determinará a sua junção aos autos. Caso contrário restitui-a a quem de direito.

De acordo com o disposto no artigo 249° do CPP compete aos órgãos de polícia criminal, mesmo antes de receberem a ordem da autoridade judiciária competente, praticarem os actos cautelares e urgentes para assegurarem os meios de prova, nomeadamente procedendo a apreensões em caso de urgência ou perigo na demora, bem como adaptar medidas cautelares necessárias à conservação ou manutenção de objectos apreendidos. Relativamente à apreensão de correspondência dispõe ainda o artigo 252° do CPP que:

" 1 - Nos casos em que deva proceder-se à apreensão de correspondência, os órgãos de polícia criminal transmitem-na intacta ao juiz que tiver autorizado ou ordenado a diligência.

2-Tratando-se de encomendas ou valores fechados susceptíveis de serem apreendidos, sempre que tiverem fundadas razões para crer que eles podem conter informações úteis à investigação de um crime ou conduzir à sua descoberta, e que podem perder-se em caso de demora, os órgãos de polícia criminal informam do facto, pelo meio mais rápido, o juiz, o qual pode autorizar a sua abertura imediata.

3- Verificadas as razões referidas no número anterior, os órgãos de polícia criminal podem ordenar a suspensão da remessa de qualquer correspondência nas estações de correios e de telecomunicações. Se, no prazo de quarenta e oito horas, a ordem não for convalidada por despacho fundamentado do juiz, a correspondência é remetida ao destinatário.".

No caso concreto não foi autorizada ou ordenada pelo juiz de instrução a apreensão de qualquer correspondência ou encomenda. Tendo o órgão de polícia criminal procedido ao abrigo do disposto no artigo 249°, nº. 1, al. e) do CPP deveria ter sido observado o disposto no artigo 252° do mesmo diploma legal. Ou seja, no caso de a apreensão não ter sido ordenada ou autorizada pelo juiz de instrução deveria o opc competente ter informado desse facto o juiz de instrução e pelo meio mais rápido, o qual poderia ter autorizado de imediato a abertura da correspondência (artigo 252°, nº. 2 do CPP) ou poderia o opc competente ter ordenado a suspensão da remessa da correspondência que se encontrava na estação de correios, devendo essa ordem ser convalidada no prazo a que alude o artigo 252°, nº. 3 do CPP pelo juiz de instrução.

No caso concreto não foi observado nenhum dos procedimentos a que se fez alusão, sendo que só decorridos mais de oito meses é que se veio suscitar perante o juiz de instrução a validação da apreensão efectuada nos termos que se encontram expostos na promoção em análise.

Face ao exposto, não se poderá validar a apreensão efectuada uma vez que a mesma foi efectuada em violação do disposto nas normas legais supra referidas.

Nestes termos e ao abrigo do disposto nos artigos 179°, nº. 1°; 118°, nº. 1 e 3; 122º, nº. 1; 125 e 126, nº. 3 todos do CPP declara-se nula a apreensão efectuada não podendo ser utilizada a prova obtida em consequência da sua realização.

Notifique o MP do presente despacho e após devolva os autos de inquérito ao DIAP competente.

Inconformada com este despacho, dele recorreu a Ilustre Magistrada do Ministério Público, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1. Nos presentes autos, PSP procedeu à apreensão de encomendas em estação de CTT, a qual se encontra regulada nos artigos 179.º e 252.º, ambos do Código de Processo Penal.

2. Posteriormente, remeteu o expediente ao magistrado do Ministério Público de turno, uma vez que se tratava de período de férias judiciais, a fim de se proceder à competente validação.

3. Volveram mais de oito meses, desde a apreensão (em virtude do inquérito ter sido remetido para continuação de investigação) e sem a Mm. JIC se pronunciar sobre a mesma;

4. Nesta sequência, e uma vez que se tratava de apreensão de correspondência, a qual não foi aberta, foi promovido que a apreensão fosse validada, bem como que as encomendas fossem abertas na presença de JIC, nos termos do disposto no art. 179.º n° 3 do Código de Processo Penal;

5. A Mm JIC proferiu despacho, onde decidiu a apreensão como nula "não podendo ser utilizada a prova obtida em consequência da sua realização", em virtude de não ter sido autorizada/determinada/validada pela Mm. JIC nem a si comunicada “de mediato”;

6. No entanto, a não comunicação imediata de tal apreensão integra uma nulidade, a qual é sanável, nos termos do disposto nos art. 120.º e 121.º do Código de Processo Penal;

7. Certo é que as encomendas apreendidas permanecem por abrir, pelo que o juízo de abertura (e consequente intromissão no direito fundamental de privacidade) ainda não foi efectuado, motivo pelo qual se promoveu a sua abertura;

8. Caso assim não se entenda, e se mantiver a decisão proferida, impõe-se a devolução das encomendas apreendidas ao seu possuidor, não obstante se suspeitar fortemente, que as mesmas contêm no seu interior material contrafeito, o qual continuará a circular;

9. Face a tais factos, o despacho recorrido deverá ser revogado, a fim de ser proferido outro, o qual, entre o mais, determine a abertura das encomendas em causa.

No entanto V. Excªs Farão a habitual Justiça.

O recurso foi objecto de despacho de admissão e não foi exercido o direito de resposta.

Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso merece provimento.

Corridos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.


***

            II. Fundamentação

            Sendo o concreto objecto do recurso delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da correspondente motivação, sem prejuízo das questões do conhecimento oficioso, a questão a apreciar consiste em saber se a apreensão cautelar de correspondência sem qualquer intervenção judicial pode ser convalidada.

Apreciando:

Em causa está a apreensão de 16 encomendas em estação de correio levada a cabo pela PSP sem qualquer intervenção judicial, efectuada em 23.12.2015, não aberta, que o recorrente entende que pode ser objecto de validação, padecendo de nulidade que é sanável mediante a intervenção do juiz.

Não há qualquer dúvida que esta apreensão não pode assimilar-se à previsão do artigo 179º do Código de Processo Penal que prevê a possibilidade de apreensão de correspondência (no que se incluem encomendas) mediante prévia autorização ou ordem do juiz, sob pena de nulidade.

Há, no entanto, a possibilidade de interferir no normal curso da correspondência sem prévia intervenção judicial no âmbito das medidas cautelares e de polícia previstas nos artigos 248º a 253º do Código de Processo Penal.

No que concerne a apreensão cautelar de correspondência rege o artigo 252º do Código de Processo Penal do seguinte teor:

 1 - Nos casos em que deva proceder-se à apreensão de correspondência, os órgãos de polícia criminal transmitem-na intacta ao juiz que tiver autorizado ou ordenado a diligência.

2-Tratando-se de encomendas ou valores fechados susceptíveis de serem apreendidos, sempre que tiverem fundadas razões para crer que eles podem conter informações úteis à investigação de um crime ou conduzir à sua descoberta, e que podem perder-se em caso de demora, os órgãos de polícia criminal informam do facto, pelo meio mais rápido, o juiz, o qual pode autorizar a sua abertura imediata.

3- Verificadas as razões referidas no número anterior, os órgãos de polícia criminal podem ordenar a suspensão da remessa de qualquer correspondência nas estações de correios e de telecomunicações. Se, no prazo de quarenta e oito horas, a ordem não for convalidada por despacho fundamentado do juiz, a correspondência é remetida ao destinatário.".

Ou seja, o nº 1 refere-se aos casos já prevenidos no artigo 179º em que existe prévia ordem ou autorização judicial para proceder à apreensão, devendo nesse caso a correspondência ser levada intacta ao juiz, seguindo-se o procedimento do nº 3 desse normativo (o juiz toma conhecimento do conteúdo da correspondência e fá-la juntar ao processo se for relevante para a prova).

Quando não exista qualquer intervenção prévia da autoridade judicial competente para ordenar a apreensão, regem os números 2 e 3 do artigo 252º no sentido de que.

1º - a autoridade policial deve informar o juiz, o qual pode autorizar a abertura imediata da correspondência, ou

2º - a autoridade policial pode ordenar a suspensão da remessa da correspondência e se, no prazo de 48 horas, a ordem não for convalidada pelo juiz a correspondência é remitida ao destinatário.

É, pois, clara a lei no sentido de que não pode ocorrer apreensão de correspondência sem prévia intervenção do juiz mas apenas pode ser tomada a medida cautelar de suspensão da sua remessa.

Sendo assim, a apreensão realizada é nula por força do disposto no artigo 179º, nº 1 do Código de Processo Penal e, tratando-se de nulidade atinente a meio de prova, não segue o regime do artigo 122º do Código de Processo Penal, mas antes dos artigos 125º e 126º, nº 3 do Código de Processo Penal que proíbem as provas obtidas mediante intromissão na correspondência sem consentimento do titular e fora da previsão dos referidos preceitos que delimitam os casos em que pode ser realizada a sua apreensão.

Importa, por consequência, manter o despacho recorrido, improcedendo o recurso.


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III. Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam em negar provimento a o recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo o despacho recorrido.

Não há lugar a tributação em razão do recurso interposto (cfr. artigo 522º, nº 1 do Código de Processo Penal).


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Coimbra, 7 de Junho de 2017

Texto elaborado e revisto pela relatora

(Maria Pilar Pereira de Oliveira - relatora)

(José Eduardo Fernandes Martins - adjunto)