Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
8509/20.3YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO FRANCISCO SANTOS
Descritores: PROCEDIMENTO DE INJUNÇÃO
ÂMBITO DE APLICAÇÃO
EMPRESA
TRANSACÇÃO COMERCIAL
Data do Acordão: 01/25/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE POMBAL DO TRIBUNAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: DECRETO-LEI N.º 269/98, DE 1 DE SETEMBRO
Sumário: I) O procedimento especial de injunção é o processo próprio para exigir judicialmente o cumprimento das seguintes obrigações: obrigações pecuniárias emergentes de contrato de valor não superior a € 15 000; obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro, e pelo Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de Maio, independentemente do valor da dívida.

II) Não basta que uma pessoa celebre uma transacção que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração para ficar preenchido o conceito de empresa e para que essa transacção seja qualificada como comercial. É ainda necessário que: i) essa pessoa actue enquanto organização no âmbito de tal actividade ou de uma actividade profissional autónoma, o que implica que a referida pessoa, independentemente da sua forma e estatuto jurídico no direito nacional, exerça uma actividade económica de forma estruturada e estável, actividade essa que não se deve limitar a uma prestação pontual e isolada; ii) a transacção em causa se inscreva no âmbito da referida actividade.

III). Não é um contrato entre empresas e não é transacção comercial o contrato de empreitada celebrado entre um empresário em nome individual que se dedica à actividade de construção civil no âmbito da qual outorgou em tal contrato, e outra pessoa singular que pretende destinar o produto da empreitada (moradias) à venda ou arrendamento, mas em relação à qual não se prova que se dedica à construção de edifícios para venda.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

A. , residente em ..., ..., requereu, através do procedimento especial de injunção, a notificação de B. e de sua esposa, C., residentes em ...strasse ... – Hagen, no sentido de lhe ser paga a quantia de € 26 622,86, conforme discriminação a seguir indicada: capital: € 19 600,00; juros de mora: € 6 869,86; taxa de justiça: € 153.

Para o efeito alegou:
1. Que ele, requerente, é empresário em nome individual, dedicando-se à actividade de empreiteiro de construção civil, enquanto que o requerido se dedica à construção de edifícios para venda;
2. Que, em 30 de Setembro de 2003, no âmbito dessas actividades, o requerente celebrou com o requerido um contrato denominado pelas partes de empreitada, tendo por objecto a execução pelo requerente dos trabalhos de construção de um edifício multifamiliar, composto por duas moradias geminadas independentes, no lugar de ..., freguesia de ..., concelho da ...;
3. Que as moradias objecto do contrato destinavam-se a ser vendidas pelos requeridos a terceiros;
4. Que o preço estipulado foi o de € 184 000,00 (cento e oitenta e quatro mil euros);
5. Que a obra foi executada pelo requerente dentro do prazo estipulado e entregue ao requerido, que a aceitou sem reservas ou reclamações, em finais do ano de 2004;
6. Que do valor do preço estipulado apenas foi pago ao requerente a quantia de € 164 400,00, permanecendo até hoje em dívida o montante bruto de € 19 600,00.

Notificados, os requeridos opuseram-se ao procedimento de injunção. Na sua defesa alegaram em síntese:
1. Que o imóvel cuja construção foi adjudicada pelo requerido ao requerente não foi objecto de afectação a qualquer actividade económica ou profissional do requerido, pelo que, não estando em causa uma transacção comercial, não era lícito o recurso ao procedimento de injunção;
2. Que a lei faz depender a instauração e prosseguimento da injunção de factura relativa à transacção comercial pelo que, não existindo factura, não era admissível lançar mão do procedimento de injunção;
3. Que o requerimento injuntivo era inepto por falta de causa de pedir;
4. Que no caso de não procederem as excepções invocadas, o pedido deveria improceder já que o montante reclamado não era devido, pois o requerido liquidou todos os trabalhos executados pelo requerente.

Além de se oporem à injunção de pagamento, os requeridos pediram a condenação do requerente como litigante de má-fé, no pagamento de multa e de indemnização a favor deles.

Os autos foram remetidos para o tribunal competente, aplicando-se a forma de processo comum.

O requerente respondeu à matéria das excepções, sustentando a respectiva improcedência, e contestou o pedido de condenação como litigante de má fé.

No despacho saneador, o tribunal a quo, pronunciando-se sobre as excepções alegadas na oposição, decidiu:
· Julgar improcedente a alegação de ineptidão do requerimento de injunção;
· Julgar improcedente a alegação de que não era lícito ao requerente recorrer ao procedimento especial de injunção;
· Julgar improcedente a alegação de que, uma vez que não existia factura relativa à transacção entre o requerente e o requerido, não era lícito àquele requerente recorrer ao procedimento especial de injunção.

O processo prosseguiu os seus termos e após a realização da audiência foi proferida sentença que decidiu:
1. Julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenar os réus B. e C. a pagar ao autor A. a quantia de dezanove mil e seiscentos euros [€ 19.600,00] contra a apresentação da competente factura;
2. Condenar os réus como litigantes de má-fé em multa de 25 UC.    

O recurso:

Os réus não se conformaram com a sentença e interpuseram o presente recurso de apelação. Neste recurso impugnaram ainda o despacho saneador, na parte em que julgou improcedentes as excepções dilatórias invocadas na oposição. Pediram:

(…)


*

Questões suscitadas pelo recurso:

Como se vê pela exposição efectuada, o recurso tem por objecto várias decisões. Seguindo a regra do n.º 1 do artigo 608.º do CPC de que a sentença conhece, em primeiro lugar, das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica - – aplicável ao acórdão proferido em sede de apelação por remissão do n.º 2 do artigo 663.º do CPC –, o primeiro segmento do recurso que importa conhecer é o que tem por objecto o despacho saneador na parte em que julgou improcedente a alegação dos ora recorrentes de que não era lícito ao requerente recorrer ao procedimento especial de injunção. Com efeito, caso se entenda que o procedimento especial de injunção não era o meio processual próprio para exigir judicialmente aos réus o pagamento da quantia de € 26 622,86, a consequência será a absolvição da instância dos requeridos. E com a sua absolvição da instância fica sem efeito a condenação deles no pagamento da quantia de € 19 600, bem como a sua condenação como litigantes de má fé e ficará prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas na apelação.


*

Apreciemos, pois, o recurso interposto contra o despacho saneador, na parte em que ele julgou improcedente a alegação dos ora recorrentes de que não era lícito ao requerente recorrer ao procedimento especial de injunção.

O despacho saneador decidiu neste sentido dizendo, em síntese, que face ao teor do requerimento de injunção e quadrículas preenchidas, o procedimento de injunção era, em abstracto, ajustado ao pedido formulado. E era em abstracto ajustado pois os factos alegados pelo autor permitiam enquadrar o crédito invocado no conceito de crédito emergente de transacção comercial e tanto bastava para concluir que o autor requereu a providência em abstracto adequada à finalidade tida em vista.

Os requeridos contestam a decisão recorrida com uma dupla linha argumentativa.

A primeira é constituída pela alegação de que, sendo controvertida a qualidade em que o réu interveio no contrato, o conhecimento da invocada excepção dilatória inominada de falta de condição da acção (inexistência de relação entre a situação de facto deduzida e o regime legal invocado) devia ser relegada para a decisão final [VI conclusão].

A segunda é constituída pela alegação de que a edificação das moradias não foram objecto de afectação de qualquer actividade económica ou profissional do réu e que a transacção em apreço foi entre empresário da construção civil em nome individual (autor) e pessoa singular/consumidor (réu) [conclusões XVII a XXIV].

Esta segunda linha argumentativa assentou, por sua vez, na impugnação da decisão de julgar provada, sob as alíneas b) e e) que o réu B. dedicava-se à construção de imóveis para revenda e arrendamento e que pretendia rentabilizar as moradias germinadas a construir por intermédio da sua venda ou arrendamento a terceiros.

Apreciação do tribunal:

A resposta às questões suscitadas pelos recorrentes remetem-nos, antes de mais, para a delimitação do campo de aplicação do procedimento de injunção.

Este procedimento foi instituído pelo Decreto-Lei n.º 404/93, de 10 de Dezembro, que o definiu como a providência que permitia que o credor de uma prestação obtivesse, de forma célere e simplificada, um título executivo, condição indispensável ao cumprimento coercivo da mesma, quando se consubstanciasse no cumprimento de uma obrigação pecuniária.

No âmbito de tal diploma, o procedimento era aplicável quando estivesse em causa o cumprimento de obrigações pecuniárias decorrentes de contrato cujo valor não excedesse metade do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância.

O Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, que aprovou o regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª instância, revogou o Decreto-Lei n.º 404/93, de 10 de Dezembro, e elevou até à alçada dos tribunais de 1.ª instância o valor do procedimento de injunção.

O Decreto-Lei n.º 32/2003, que estabeleceu o regime especial relativo a atrasos de pagamento em transacções comerciais, transpondo a Directiva n.º 2000/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho de 29 de Julho, alterou a redacção do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 269/98, e, nos termos da nova redacção, o atraso de pagamento em transacções comerciais conferia ao credor o direito de recorrer à injunção, independentemente do valor da dívida.

O artigo 5.º do Decreto-lei n.º 107/2005, de 2005, de 1 de Julho, alterou a redacção do artigo 7.º Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro, passando a estatuir-se que a dedução de oposição no processo de injunção e, bem assim, a frustração da notificação do requerido determina a remessa do processo para o tribunal competente, aplicando-se a forma de processo comum quando o valor da dívida for superior à alçada da Relação.   

O Decreto-Lei n.º 32/2003 foi revogado pelo n.º 1 do artigo 13.º Decreto-lei n.º 62/2013, de 10 de Maio, com excepção dos artigos 6.º e 8.º, mantendo-se em vigor no que respeitava aos contratos celebrados antes da entrada em vigor de tal diploma.

O n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-lei n.º 62/2013, manteve a disposição de que o atraso de pagamento em transacções comerciais conferia ao credor o direito de recorrer à injunção, independentemente do valor da dívida.

Segue-se do exposto que quando foi instaurado, o procedimento especial de injunção era processo próprio para exigir judicialmente o cumprimento das seguintes obrigações:
· Obrigações pecuniárias emergentes de contrato de valor não superior a € 15 000;
· Obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro e pelo Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de Maio, independentemente do valor da dívida.

Visto que o valor em causa no processo é superior a 15 000 euros, a reclamação dele através do procedimento especial de injunção seria legalmente admissível se o contrato que lhe serve de fonte fosse de considerar transacção comercial para efeitos do Decreto-Lei 32/2003.

E é este o diploma que serve de referência à definição de transacção comercial porque ele manteve-se em vigor no que respeita aos contratos celebrados antes da entrada em vigor do Decreto-lei n.º 62/2013 [1 de Julho de 2013] e o contrato onde o requerente funda a obrigação de pagamento da quantia de € 26 622,86 foi celebrado em 25 de Julho de 2003.

Delimitado o campo de aplicação do procedimento especial de injunção, passemos a apreciar os argumentos dos recorrentes.

Como se escreveu mais acima, os recorrentes sustentam que, sendo controvertida a qualidade em que o réu/recorrente interveio no contrato o conhecimento da questão de saber se a providência de injunção era o meio processual próprio para exigir judicialmente o pagamento da quantia de € 26 622,86 devia ter sido relegada ara a decisão final, tanto assim que um dos temas da prova era o de saber se a edificação da moradia multifamiliar foi objecto de afectação a actividade económica ou profissional do réu.

O argumento dos recorrentes é pertinente.

Com efeito, findos os articulados, era controvertida a qualidade em que o réu celebrou o contrato que as partes denominaram de empreitada, com o requerente a afirmar que ele foi celebrado no desenvolvimento da actividade do autor, como construtor civil, e da actividade do réu, como construtor de edifícios para venda, e com os réus a impugnaram essa alegação e a afirmarem que o requerido adjudicou a construção das moradias enquanto consumidor, pois a edificação de tal imóvel não foi objecto de afectação a qualquer actividade profissional autónoma do requerido.

E sendo controvertida tal qualidade, o tribunal não estava em condições de decidir sobre a questão da admissibilidade do procedimento especial de injunção para o autor reclamar judicialmente dos réus o pagamento da quantia de € € 26 622,86. É que, contrariamente ao que se afirmou no despacho sob recurso, para decidir a questão não bastava que os factos alegados pelo autor permitissem enquadrar o crédito invocado no conceito de crédito emergente de transacção comercial. Era a necessária a prova de tais factos.

Daí que, salvo o devido respeito que nos merece, o tribunal a quo tenha incorrido em erro quando julgou, no despacho saneador, sem necessidade de mais provas, a questão da falta de propriedade da providencia de injunção para exigir judicialmente aos requeridos o pagamento da mencionada quantia.

Este erro não implica, no entanto, a revogação da decisão recorrida e a substituição dela por outra que determine a produção de prova sobre a matéria controvertida. E o erro não tem esta consequência uma vez que o tribunal a quo já se pronunciou sobre tal matéria, julgando provado sob a alínea b) da fundamentação da sentença que o réu B. dedicava-se em 2003 à construção de imóveis para revenda e arrendamento e sob a alínea e) que o réu B. pretendia rentabilizar as moradias geminadas a construir por intermédio da sua venda ou arrendamento a terceiros.

Os recorrentes impugnam, no entanto, estes segmentos da decisão relativa à matéria de facto. E é laborando no pressuposto da alteração deles no sentido de os factos neles compreendidos passarem para a galeria dos não provados que sustentam que o procedimento de injunção não era admissível para reclamar deles, recorrentes, o pagamento da quantia de € 26 622,86.

Assim, passaremos de seguida, a conhecer da impugnação da decisão de julgar provados, sob as alíneas b) e e), os seguintes factos:
· Que o réu, no ano de 2003, dedicava-se à construção e venda de imóveis para revenda e arrendamento;
· Que o réu pretendia rentabilizar as moradias germinadas a construir por intermédio da sua venda ou arrendamento a terceiros.

Os recorrentes pedem se julguem não provados estes factos.

Para o efeito invocaram, por um lado, excertos devidamente identificados das declarações do próprio recorrente, B., e excertos também devidamente identificados das testemunhas D. e E. . Por outro lado, censuraram a decisão recorrida na parte em que desvalorizou alguns passos das declarações do réu e dos depoimentos de D. e F., especialmente quando considerou falso o interesse declarado pelo réu e pela filha E. na aquisição de uma farmácia na ... e quando, em relação à afixação nas moradias em questão de uma placa com um anúncio para venda, não ter aceitado a justificação dada pelo réu e pelas testemunhas D. e F. de que a mesma foi colocada pelo compadre do réu e pai da testemunha D. sem autorização dos réus.

Antes de este tribunal expor a sua convicção sobre a prova produzida, importa dizer que a matéria que o tribunal a quo julgou provada sob as alíneas b) e e) não coincide na íntegra com o que foi alegado pelo autor.

Vejamos. Sob alínea b) o tribunal a quo julgou provado que “o réu B. dedicava-se à construção e venda de imóveis para revenda e arrendamento”, ao passo que o autor alegou na 2.ª parte do artigo 1.º do requerimento de injunção que “o réu dedicava-se à construção de edifícios para venda”.

Se confrontarmos a redacção da alínea b) com o que foi alegado no requerimento de injunção, vemos que o autor não atribuiu ao autor a actividade de construção de edifícios para arrendamento.

Observe-se que a actividade que o autor imputa ao réu tem por referência o ano de 2003, como o atesta o facto de no artigo 2.º do requerimento inicial ter alegado que o contrato em questão nos autos foi celebrado em 2003 “no âmbito dessas actividades”, ou seja das actividades que atribui a si e ao réu no artigo 1.º de tal articulado.

Sob a alínea e), o tribunal a quo julgou provado que “o réu pretendia rentabilizar as moradias germinadas a construir por intermédio da sua venda ou arrendamento a terceiros”, ao passo que no artigo 4.º do requerimento de injunção, “o autor alegou que as moradas objecto do contrato destinavam-se a ser vendidas pelos requeridos a terceiros”.

Mais uma vez, se confrontarmos a redacção da alínea e) com o que foi alegado no requerimento de injunção, vemos que o autor não assinalou como destino das moradias objecto do contrato o arrendamento.

Feitas estas observações, cabe dizer que, reapreciada a prova produzida – toda a prova -, não há dúvida de que o réu, ora recorrente, instado sobre o destino que queria dar às moradias objecto do contrato afirmou que fez as vivendas para as duas filhas irem viver nelas.

E também não há dúvida de que a testemunhaD. , genro dos réus, afirmou que as vivendas foram construídas para as irmãs, querendo dizer com isto que as vivendas foram construídas para nelas viveram as duas filhas dos réus, uma das quais, E. , sua esposa.

E também não há dúvidas de que a testemunha E. , filha dos requeridos, afirmou que as vivendas em questão foram construídas para ela e para a sua irmã, a testemunha G. , aí irem morar.

De igual forma, a testemunha F., filha dos réus, também afirmou que as vivendas foram construídas para si e para a sua irmã, a testemunha E. .

Também a testemunha F., empresário de construção civil, produziu um depoimento no mesmo sentido, ao afirmar que D. lhe pediu um orçamento para a construção das duas moradias e que, na altura em que lho pediu, disse-lhe que as moradias eram para a então sua namorada (a testemunha E. ) e para a irmã dela, a testemunha F..

A convicção deste tribunal quanto ao fim com que o réu adjudicou a construção das moradias ao autor não difere da do tribunal a quo. E assim, à semelhança do que fez o tribunal recorrido, não dá crédito ao que disseram o réu e as testemunhas atrás identificadas sobre o fim com que foram construídas as duas moradias geminadas.

E a primeira razão que adiantamos para não dar crédito a tais depoimentos reside na circunstância de terem sido trazidos ao conhecimento do tribunal pelo autor, pelas testemunhas H. , I. e até pelo próprio réu, factos que convergem no sentido de que o réu adjudicou a construção das duas moradias geminadas com o propósito de as vender.

H. afirmou – sem que tal afirmação tivesse merecido qualquer contestação das partes - que aplicou os alumínios nas moradias. Contou que enquanto esteve na obra apercebeu-se que numa das janelas das moradias estava afixada uma placa com os dizeres “vende-se”, seguidos de um número de telefone do “Sr. J. ”, ou seja, da pessoa que tanto no dizer do réu como no dizer do autor acompanhava a realização da obra por incumbência do réu. Contou ainda que, num dos dias em que trabalhou na obra, apercebeu-se da presença nela do tal Sr. J. a mostrar a casa a duas pessoas.

A testemunha I. afirmou – também sem que tal afirmação tenha merecido qualquer contestação das partes – que trabalhou na obra como pedreiro por conta do autor. Referiu, à semelhança da testemunha atrás identificada, que esteve afixada na obra uma placa a publicitar a venda das moradias. E contou também que, período em que esteve a trabalhar na obra, viu o Sr. J. “a levar clientes para comprar”.

O autor referiu também que esteve afixada na obra uma placa com os dizeres vende-se com o número do telefone do Sr. J. . Contou também que o Sr. J. mostrava as moradias a interessados na sua compra. Mais: referiu que viu o réu na obra, na companhia de um outro senhor, de nome L. , que tinha uma agência imobiliária. E referiu que ele próprio levou às moradias pessoas interessadas na compra delas.

Este tribunal não encontra razões para duvidar das testemunhas e do réu quando afirmaram que esteve afixado nas moradias uma placa com os dizeres “vende-se” e com o número do telefone do “Sr. J. ”, e quando afirmaram que as moradias foram mostradas por este a pessoas interessadas na compra delas. Como não duvida do autor quando ele próprio afirmou que levou às moradias pessoas interessadas na sua compra e que o réu esteve na moradia com o tal Sr. L. , agente imobiliário.

Não se ignora que tanto o réu como as testemunhas D. e F. procurarem desvalorizar o facto de ter estado afixada nas moradias uma placa com os dizeres “vende-se, afirmando que tal colocação foi feita pelo referido J. , à revelia do réu.

Esta versão não nos convenceu. Sendo o referido J. a pessoa que acompanhava a construção da obra, no interesse do réu – facto afirmado por este último -, o que é normal, à luz das regras da experiência comum, é que ele tivesse afixado a placa com os dizeres “vende-se” e tivesse mostrado a moradia a interessados na sua compra porque soubesse que o fim com que o réu adjudicou a construção das moradias foi o da venda.

Aliás, só este fim explica que o próprio autor tenha levado pessoas às moradias interessados na sua compra.

De resto, quando falou nos vários imóveis de que é proprietário em Portugal, o réu falou de todos eles como “investimento”, o que é concordante com a construção das moradias para venda ou arrendamento e não com a construção delas para serem habitadas pelas filhas.

A segunda razão para não darmos crédito a tais depoimentos radica no facto – que é incontroverso – de as filhas dos réus nunca terem residido nas moradias, nem sequer nelas terem passado férias.

Por fim, contra a falta de crédito da tese de que o réu adjudicou a construção das moradias para as filhas irem viver nelas depõe o facto de os réus não terem alegado, na oposição à injunção, tal facto. Limitaram-se a alegar que a edificação de tal imóvel não foi objecto de afectação a qualquer actividade económica ou profissional autónoma do requerido (artigo 6.º da oposição). Se, na realidade, o fim com que o réu adjudicou a construção das moradias tivesse sido o de as dar para habitação das filhas, o que seria normal é que tivesse alegado logo este fim na oposição.

Pelo exposto mantém-se a decisão de julgar provada a matéria da alínea e).

A convicção deste tribunal já difere da do tribunal a quo no que diz respeito à decisão proferida sob a alínea b). Sob esta alínea o tribunal a quo julgou provado que, no ano de 2003, o réu dedicava-se à construção de imóveis para revenda e arrendamento.

Reapreciada toda a prova produzida, não encontramos nela a confirmação desta realidade.

Em primeiro lugar, a prova produzida – constituída especialmente pelas declarações do réu, pelos depoimentos das testemunhas D. , E. , F. e até pelas declarações do próprio autor - aponta no sentido de que, tendo por referência esse ano, bem como os seguintes, o réu estava emigrado na Alemanha há vários anos.

E quanto à actividade profissional dele em tal país, o mesmo declarou - sem que este tribunal tenha razões para duvidar da veracidade que disse - que tinha, desde 1978, uma empresa de distribuição de produtos alimentares e bebidas.

Em segundo lugar, dando crédito ao que disse o autor e a sua filha E. , o réu é proprietário de vários imóveis Portugal. Com efeito, o réu afirmou: “eu tenho vivendas no Algarve, em tenho vivendas em Coimbra, tenho vivendas na Figueira da Foz e tenho vivendas em Pombal, e tenho um prédio em Pombal, mas tenho tudo alugado”. Por sua vez, a testemunha E. afirmou que o pai tinha um imóvel na localidade de Pedrógão Grande e outro no Algarve.

Esta realidade é, no entanto, insuficiente para se presumir que o réu dedicava-se, no ano de 2003, à construção de imóveis para venda e arrendamento.

E é insuficiente porque nem o réu nem a sua filha E. - ou o autor e as restantes testemunhas - esclareceram se os imóveis de que o réu e proprietário em Portugal foram construídos por si ou se foram apenas alguns construídos e outros comprados. Como não esclareceram quando é que o réu se tornou proprietário de tais imóveis.

E é ainda insuficiente porque nenhuma das pessoas ouvidas (partes e testemunhas) identificou um imóvel que tenha sido construído e vendido pelo réu.

Sem o conhecimento dos imóveis que foram construídos pelo réu, e das vendas ou arrendamentos e sem conhecimento do ano de construção dos imóveis, não se vê como se pode julgar provado que, no ano de 2003, o réu dedicava-se à construção de móveis para venda e arrendamento.

Em terceiro lugar, as circunstâncias em que o réu adjudicou ao autor a construção das moradias em questão nos autos e as circunstâncias em que decorreu tal construção não são próprias de alguém que se dedica à construção de imóveis para venda. Se, na realidade, o réu se dedicasse à construção de casas para venda, o que seria normal é que fosse ele próprio a construir ou a escolher o empreiteiro; o que seria normal é que, uma vez adjudicada a empreitada, acompanhasse de perto a execução da obra.

Não se passou nada disto. Sabe-se pelo exame do próprio contrato de arrendamento que não foi ele quem subscreveu o contrato. O contrato foi subscrito por D. em nome do dono da obra. Sabe-se pelas declarações do autor, da testemunha D. e do próprio réu que quem escolheu o empreiteiro foi o tal Sr. J. e sabe-se também pelas declarações das mesmas pessoas que, enquanto a obra estava a ser construída, o réu estava emigrado na Alemanha e quem acompanhava a execução dela, representando o réu nos contactos com o empreiteiro, era o tal “Sr. J. ”.

Em consequência do exposto, altera-se a decisão proferida sob a alínea b) julgando-se não provado que o réu se dedicava em 2003 à construção de imóveis para revenda e arrendamento.

Julgada a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, cabe agora responder à questão de saber se o procedimento de injunção era admissível para exigir judicialmente aos réus o pagamento da quantia de 19 600 euros.

A resposta é negativa.

Como resulta do exposto acima, o recurso ao procedimento de injunção para exigir judicialmente o pagamento da quantia de 19 600 euros seria admissível se o contrato de onde emerge a obrigação de pagamento de tal quantia fosse de qualificar como transacção comercial para efeitos do Decreto-lei n.º 32/2003. Sucede que não é.

Segundo a alínea a) do artigo 3.º do diploma acabado de citar, entende-se por “transacção comercial qualquer transacção entre empresas e entidades públicas, qualquer que seja a respectiva natureza, forma ou designação, que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração”. E de acordo com a alínea b) do mesmo preceito, entende-se por “empresa qualquer organização que desenvolva uma actividade económica ou profissional autónoma, mesmo que exercida por pessoa singular”.

Seguindo o acórdão do Tribunal de Justiça a União Europeia proferido em 15 de Dezembro de 2016, no processo n.º C-256/15, no que diz respeito à interpretação do conceito de transacção comercial e de empresa para efeitos da Directiva 2000/35/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 29 de Junho, não basta que uma pessoa celebre uma transacção que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração para ficar abrangida pelo conceito de empresa e para que essa transacção seja qualificada como comercial na acepção do artigo 2.º, n.º 1, da citada directiva. É ainda necessário que essa pessoa actue enquanto organização no âmbito de tal actividade ou de uma actividade profissional autónoma. E esta exigência implica – continuando a seguir o acórdão - que a referida pessoa, independentemente da sua forma e estatuto jurídico no direito nacional, exerça uma actividade económica de forma estruturada e estável, actividade essa que não se deve assim limitar a uma prestação pontual e isolada, e que a transacção em causa se inscreva no âmbito da referida actividade.

Tendo presente este conceito de transacção comercial e de empresa, é de afirmar que o contrato de empreitada em causa nos autos não foi um contrato entre empresas e, por isso, não é de considerar como transacção comercial. É que se o autor cabe claramente no conceito de empresa, visto que se provou que se dedicava, como empresário em nome individual, à actividade de construção civil e que foi no exercício dela que celebrou com o réu o contrato com vista à execução de um edifício composto por duas moradias, já o mesmo não se pode dizer em relação ao réu. Na verdade, embora se tenha julgado provado que o réu solicitou ao autor a edificação de duas moradias geminada para as vender ou arrendar, não ficou demonstrada a alegação de que ele, réu, se dedicava à construção de edifícios para venda. E sem esta prova não se pode afirmar – como fez o requerente - que o contrato em causa nos autos se inscreva no âmbito de tal actividade. Por outras palavras, a realidade que se apurou não permite concluir que quando celebrou o contrato de empreitada, o réu era um empresário da construção civil e que tenha sido no exercício desta actividade que solicitou ao autor a edificação das duas moradias.

Logo, o contrato em causa não cabe no conceito de transacção comercial para efeitos do Decreto-Lei n.º 32/2003. E não caindo nele, não era admissível exigir judicialmente ao réu o pagamento da quantia de € 26 622,86 através da providência de injunção.

Esta inadmissibilidade configura uma excepção dilatória inominada que determina a absolvição da instância dos réus (n.º 2 do artigo 576.º do CPC). Citam-se, a título de exemplo, deste entendimento o acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido em 26-09-2005, no recurso n.º 0554261, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 20-05-2014, no processo n.º 30092/13.6YIPRT.C1, e o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 21-04-2016, no processo n.º 184887/14.1YIPRT.L1-8, todos publicados em www.dgsi.pt. Na doutrina cita-se em abono deste entendimento Salvador da Costa, páginas 172 de “A Injunção e As Conexas Acção e Execução, Almedina”.

Não se ignora que a dedução da oposição determinou, no caso, a remessa dos autos para o tribunal competente, com aplicação, aos termos posteriores do processo, da forma de processo comum e que o processo comum de declaração é apropriado para conhecer da acção destinada a exigir o pagamento da quantia de € 26 622,86, ainda que esta não proceda de transacção comercial na acepção da alínea a) do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 32/2003.

E também não se ignora que o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão proferido em 14-02-2012, no processo n.º 319937/10.3YIPRT.L1.S1. publicado em www.dgsi.pt decidiu que “remetidos os autos para o tribunal competente e aplicando-se o processo comum ordinário face à dedução de oposição ao pedido de injunção de valor superior à alçada da Relação (cf. o disposto no artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de fevereiro) a questão que consiste em saber se a transação comercial que esteve na origem do crédito reclamado é ou não daquelas que permitem a injunção, não exerce qualquer influência no mérito da causa, saber se o pedido de pagamento deve ou não deve proceder, nem exerce qualquer influência na tramitação da causa visto que estamos em processo comum e não em processo especial”.

No entender deste tribunal, a remessa dos autos ao tribunal competente com aplicação, aos termos posteriores do processo, da forma de processo comum não satisfaz por completo os direitos processuais dos réus. Com efeito:
· Se a acção seguisse desde o início os termos do processo comum, como deveria ter seguido, os réus teriam a faculdade de a contestar no prazo de 30 dias a contar da citação [n.º 1 do artigo 569.º do CPC), ao passo que, no caso, dispuseram apenas de 15 dias para deduzir oposição [n.º 1 do artigo 12.º do Anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro];
· Se a acção seguisse desde o início os termos do processo comum, como deveria ter seguido, os réus seriam citados apenas para a contestar, ao passo que, no caso, foram notificados para em 15 dias pagarem ao requerente a quantia pedida ou deduzirem oposição à pretensão; 
· Se a acção seguisse desde o início os termos do processo comum, como deveria ter seguido, no caso de não ser contestada, a consequência seria a confissão dos factos articulados pelo autor [n.º 1 do artigo 567.º do CPC], ao passo que, no procedimento de injunção, na hipótese de não ser deduzida oposição, o requerimento inicial passa a ter força executiva (n.º 1 do artigo 14.º do [n.º 1 do artigo 12.º do Anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro].

Segue-se do exposto que o recurso à providência de injunção ou à acção declarativa com processo comum para exigir o pagamento da quantia de € 26 622,86 não era indiferente para os direitos processuais dos réus.  

Ora, estes tinham não só o direito de se opor a que lhes fosse exigido o pagamento através da providência de injunção, como o direito de serem demandados através do processo comum de declaração.

E, assim, aplicando ao caso, com as devidas adaptações, a regra do n.º 2 do artigo 193.º do CPC, de acordo com a qual em caso de erro na forma do processo ou no meio processual não devem aproveitar-se os actos já praticados, se do facto (isto é, se do aproveitamento) resultar uma diminuição das garantias do réu, não é de aproveitar o requerimento de injunção e os actos subsequentes.

 

   

 

Em suma, apesar de a dedução da oposição ter determinado, no caso, a remessa dos autos para o tribunal competente, com aplicação, aos termos posteriores do processo, da forma de processo comum é de manter a absolvição dos réus da instância.

Em consequência, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas na apelação.


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Decisão:

Julga-se procedente o recurso interposto contra a decisão proferida no despacho saneador que julgou improcedente a alegação de que a providência de injunção não era processualmente admissível para exigir judicialmente aos réus a quantia de € 26 622,86 e, em consequência:
1. Revoga-se e substitui-se essa decisão por outra a julgar que a providência de injunção não é processualmente admissível para exigir judicialmente aos réus a quantia de € 26 622,86;
2. Absolvem-se os réus da instância;
3. Julga-se prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas no recurso de apelação.


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Responsabilidade quanto a custas:

Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e a circunstância de o autor ter ficado vencido no recurso, condena-se o mesmo nas custas do recurso.

Coimbra, 25 de Janeiro de 2022