Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
593/09.7TBAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CECÍLIA AGANTE
Descritores: REGISTO PREDIAL
IMPUGNAÇÃO
LEGITIMIDADE
CORRECÇÃO OFICIOSA
REQUERIMENTO
ERRO MATERIAL
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
Data do Acordão: 03/02/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - JUÍZO DE MÉDIA E PEQUENA INSTÂNCIA CÍVEL DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 69º, NºS 1 E 2, 70º, 73º, NºS 1 E 2, 79º, NºS 1 E 2, 82º, 131º E 147º, Nº 1, DO CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL; DEC. LEI Nº 129/07, DE 27/04 (ORGÂNICA DO INSTITUTO DOS REGISTOS E DO NOTARIADO).
Sumário: I – O registo predial está entregue a órgãos da administração pública, embora as conservatórias sejam órgãos administrativos de natureza especial, subordinados à administração central.

II – O Dec. Lei nº 129/07, de 27/04, que aprova a orgânica do Instituto dos Registos e do Notariado, define-o como um instituto público integrado na administração indirecta do Estado, dotado de autonomia administrativa e património próprio, que prossegue atribuições do Ministério da Justiça, sob superintendência e tutela do respectivo ministro.

III – O registo predial, na veste de registo público, atesta a verificação de factos jurídicos e permite que o público em geral se possa fiar nos efeitos que típica e normalmente se produzem associados a tal facto.

IV – Como mecanismo de contestação às decisões assumidas no âmbito do registo predial pelo Conservador está prevista a impugnação judicial, para a qual tem legitimidade qualquer interessado e o Ministério Público – artº 131º do Código de Registo Predial.

V – A relação processual registal estabelece-se entre o apresentante e a conservatória, o que funda, desde logo, a intervenção do conservador na instância judicial, quer na primeira instância quer na fase recursiva.

VI – Por isso, o Conservador do Registo Predial está legitimado a responder às alegações de um Recorrente em processo registal/impugnação judicial.

VII – No registo predial o acto individualizador do prédio é a sua descrição, que tem por fim a identificação física, económica e fiscal dos prédios, com a feitura de uma descrição distinta por cada prédio e com a definição de diversas menções tendentes a contribuir para a sua individualização (artºs 79º, nºs 1 e 2; e 82º do C. Reg. Predial).

VIII – A organização registal é referenciada por dois assentos: a descrição, que constitui o assento principal; e a inscrição, que corresponde ao secundário.

IX – O procedimento registal predial é hoje composto pela apresentação (cuja iniciativa do pedido de registo pertence aos sujeitos, activos ou passivos, da respectiva relação jurídica – artº 36º), instrução (artº 60º) e qualificação (em que o conservador formula um juízo de mérito acerca do registo que lhe é pedido e que constitui um pressuposto da decisão final acerca da viabilidade de realização do registo).

X – A função do conservador do registo predial é tida como parajudicial, no sentido de que, apesar da natureza administrativa da actividade registal, a apreciação relativa à admissibilidade do facto a registo envolve juízos análogos aos que o tribunal formula na apreciação do mérito da causa.

XI – Não obstante a não taxatividade das causas de recusa, só excepcionalmente o registo deve ser recusado, com a deriva dos nºs 1 e 2 do artº 69º do C. Reg. Predial. – o mesmo é dizer que o registo provisório por dúvidas deve prevalecer sobre a recusa e deve ser lavrado sempre que não haja fundamento para recusa mas as deficiências, irregularidades ou inexactidões da apresentação alicercem a provisoriedade (artº 70º).

XII – A única diferença entre o registo provisório e o definitivo é que aquele está sujeito a prazos de caducidade enquanto este não tem qualquer duração temporal previamente definida.

XIII – Se houver deficiências na requisição do registo, incluindo da apresentação, elas devem ser supridas oficiosamente com base nos documentos apresentados ou já existentes no serviço de registo competente ou até por acesso directo à informação constante das bases de dados das entidades ou serviços da administração pública (artº 73º, nº 1, C. Reg. Predial).

XIV – Se as deficiências existentes não puderem ser sanadas nos moldes indicados, o interessado deve ser avisado para, no prazo de cinco dias, proceder ao seu suprimento, sob pena de o registo ser lavrado como provisório ou recusado (nº 2 do artº 73º), pois só excepcionalmente o registo predial deve ser recusado.    

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

         I. Relatório

            A “A....” propôs contra B... e C..., acção declarativa constitutiva, sob a forma de processo sumário, pedindo a declaração de nulidade da partilha para separação de meações celebrada pelos réus, por escritura de 15/2/2008, lavrada no Livro xx – W do Cartório Notarial da Dra. D...., e a impugnação e declaração de ineficácia em relação à autora, para efeitos de satisfação do seu alegado crédito do valor actual de 15.551,59 euros e juros vincendos. Alegou, em súmula, que nesse acto foi partilhado o bem comum dos réus, a fracção autónoma designada pela letra T, destinada a habitação, correspondente ao 4.º andar direito trás, do prédio urbano sito na ....., matricialmente inscrito sob o artigo nº yyyy.... e descrito, na Conservatória do Registo Predial de ...., sob o nº qq.... Em 23/12/2008, na Conservatória de Registo Predial de ...., requereu, por fax, dois actos de registo relativos ao prédio descrito sob o nº vvvv....da freguesia da ......, do concelho de ....: a) o registo da acção de nulidade e de impugnação pauliana; b)  a remoção de dúvidas da Ap. 46/20080307, actualizada a 25/06/2008. Pedidos que foram anotados à descrição qq.../kkkkk...... da Conservatória do Registo Predial de ...., respectivamente, pela Ap. 12/20081223 e Ap. 11/20081223, mas cujo registo, em 02/01/2009, a Senhora Adjunta do Conservador recusou por não estar titulado nos documentos apresentados, nos termos do disposto nos artigos 43.º, nº 1, 68.º e 69.º, nº 1, alínea b) e nº 2, do Código do Registo Predial”, aduzindo que “o pedido de registo de conversão (Ap. 11) e de registo de acção (Ap. 12) incide sobre o prédio qq... da freguesia da ....... Ora, essa descrição corresponde a prédio constituído em propriedade horizontal, não tendo assim autonomia susceptível de ser objecto de factos jurídicos sem estar associado a uma ou várias fracções que o integram. Com a instituição do regime de propriedade horizontal, as fracções autónomas é que passam a ser objecto de relações jurídicas. Assim, indicando-se erradamente o número da descrição do prédio, o registo só pode ser recusado, por não poder ser lavrado sobre o prédio efectivamente constante do título, uma vez que sobre ele não foi requerido. Os registos efectuam-se apenas sobre as descrições dos imóveis indicados pelos interessados na requisição do registo: nenhum dos elementos predefinidos pelo requisitante pode ser alterado pela Conservatória, nele se incluindo o número da descrição ou as letras das fracções dos imóveis objecto do registo pretendido e freguesia.

           

            A requerente, notificada da recusa, impugnou judicialmente o despacho, nos termos do requerimento de fls. 7/14, concluindo que a requisição do registo omite a referência à fracção, mas tal omissão não constitui fundamento de recusa dos actos de registo, uma vez que não só o prédio vvvv....como a fracção T estão devidamente identificados no articulado e no pedido da acção cuja cópia da petição inicial acompanhou o pedido de registo. A omissão da referência à fracção T é um erro material revelado no contexto do documento junto com o requerimento de registo, que pode e deve ser rectificado nos termos do art. 249.º do C. Civil. Nos termos do nº 1 do art. 73.º do C. Registo Predial, deverá ser suprida a deficiência em causa com base no documento que instruiu o registo e no documento existente na Conservatória (Ap. 46/20080307), dos quais resulta, clara e necessariamente, que os actos do registo respeitam à fracção T e não a qualquer outra do prédio. Não querendo supri-la oficiosamente, deveria ter convidado a requerente do registo a fazê-lo, nos termos do nº 2 do art. 73.º do Código do Registo Predial.

           

            O Senhor Conservador do Registo Predial, sustentando o despacho impugnado, opôs que os registos em questão foram recusados por terem sido pedidos sobre o prédio mãe e não sobre a fracção T, não estando assim titulados nos documentos apresentados. A acção respeita à fracção T e a Ap. 46/20070307 e não respeita à Descrição qq... da ....... A aceitação da correcção oficiosa do requerimento, fazendo-o reportar à fracção T, seria todo um inverter dos princípios da instância e da prioridade do registo e um atentado contra a segurança do comércio jurídico imobiliário pelo qual se pauta o registo predial.

            O Ministério Público pronunciou-se pela improcedência da impugnação judicial.

           

            Na decisão da impugnação judicial, a Exm.ª Juiz, de modo bem fundamentado, negou provimento ao recurso.

            Irresignada, interpôs a requerente recurso de apelação, finalizando o corpo das alegações com as conclusões subsequentes:

[……………………………………………………………..]      

            Concluiu pela revogação da sentença recorrida e substituída por outra que revogue o despacho de recusa em causa e ordenada a realização ou feitura dos dois actos de registo requeridos, ou, se assim não for decidido, ordenada a notificação do impugnante para suprir, em 5 dias, a alegada deficiência de preenchimento da requisição de registo que consiste apenas em ter omitido a referência à fracção T, e ordenados os subsequentes actos de registo requeridos.

            Respondeu o Senhor Conservador do Registo Predial de ...., defendendo a ilegitimidade processual da recorrente e a confirmação da decisão impugnada.

            O Ministério Público, na resposta, subscreveu os argumentos aduzidos na decisão apelada e advogou a manutenção do despacho recorrido.

            A recorrente atravessou requerimento em que defende que a Conservatória não detém personalidade judiciária e, estando representada pelo Ministério Público, deve ser ordenado o desentranhamento das alegações que o Senhor Conservador subscreveu.


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            II. Delimitação do objecto do recurso

            O requerimento apresentado pela recorrente supõe a apreciação da questão prévia da admissibilidade das alegações subscritas pelo Senhor Conservador do Registo Predial.

            Ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, na caracterização dos fundamentos do recurso recolhidos nas conclusões, impõe-se que analisemos:

            - a rectificação oficiosa de erro material da requisição do registo;

            - o convite ao suprimento da deficiência da requisição do registo.


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         1. Questão prévia

            Como mecanismo de contestação às decisões assumidas no âmbito do registo predial pelo Senhor Conservador está prevista a impugnação judicial, para a qual tem legitimidade qualquer interessado e o Ministério Público (artigo 131º do Código de Registo Predial, diploma a que pertencerão todas as normas citadas sem menção de proveniência). Assim, a decisão de recusa do registo requerido pela A.... foi por esta judicialmente impugnada e, alcançada na primeira instância decisão confirmatória da recusa, apelou para o Tribunal da Relação. Recurso de apelação que, para além dos interessados, pode ser instaurado também pelo Senhor Conservador e pelo Ministério Público (artigo 132º-A).

            O registo predial está entregue a órgãos da administração pública, embora as conservatórias sejam órgãos administrativos de natureza especial, subordinados à administração central. O Decreto-Lei n.º 129/07, de 27 de Abril, que aprova a orgânica do Instituto dos Registos e do Notariado, I. P., define-o como um instituto público integrado na administração indirecta do Estado, dotado de autonomia administrativa e património próprio, que prossegue atribuições do Ministério da Justiça, sob superintendência e tutela do respectivo ministro (artigo 1º). E as conservatórias do registo predial são qualificadas como serviços desconcentrados do IRN, I. P (artigo 8º, 3, b).

            A apelante centra o seu entendimento na falta de personalidade judiciária do Senhor Conservador alegante.

            A personalidade judiciária consiste na susceptibilidade de ser parte (artigo 5º, 1, do Código de Processo Civil). É um pressuposto processual que representa uma posição da parte em relação ao processo em concreto, que justifica poder a parte ocupar-se do objecto do processo. E o critério geral para se saber quem tem personalidade judiciária é o da correspondência entre a personalidade jurídica e a personalidade judiciária (n.º 2 do predito artigo 5º). E têm personalidade jurídica e, consequentemente, judiciária os institutos públicos. Logo, o IRN, I.P. e os seus serviços desconcentrados têm personalidade judiciária.

            Questão diversa é a de indagar como são representados e nisso reside o fulcro da problemática suscitada pela apelante.

            A actividade das conservatórias do registo predial não corresponde a uma actividade tipicamente administrativa, prosseguindo interesses públicos e interesses privados. Porém, como se integra, material e organicamente, na administração pública, alguns enquadram-na na administração pública de interesses particulares. Não olvidemos, contudo, que o registo se destina, em primeira linha, à tutela dos interesses de terceiros indeterminados, do público, e só reflexamente protege o interesse privado daquele que aproveita do facto registado. Por isso, nos parece que a actividade registal se situa na área da gestão pública do Estado[1].

            E, a ser assim, em função do plasmado constitucionalmente (artigo 221º da Constituição da República Portuguesa), como o Ministério Público é o órgão do Estado encarregado de, nos termos da lei, representar o Estado (artigo 1º do Estatuto do Ministério Público), a representação do Estado em juízo é feita pelo Ministério Público, cuja intervenção se faz por via principal (artigo 5º, 1, do Estatuto do Ministério Público). Mas a actividade do Estado, sempre desenvolvida para a realização dos fins do Estado, é exercida por via directa e indirecta. E o instituto público, que visa o desempenho de certas funções administrativas de carácter não empresarial pertencentes ao Estado ou a outra pessoa colectiva pública, remete-nos para o próprio Estatuto do Ministério Público (artigo 5º, 1 e 4), que estabelece a distinção entre a representação do Estado e a de outras pessoas colectivas públicas, de modo a que aquela implica uma intervenção principal e esta apenas uma intervenção acessória.
Opção que só é afastada nos casos em que a lei defira a competência de representação judicial ao Ministério Público, porque «impor indiscriminadamente uma representação a um conjunto heterogéneo de pessoas e entidades quando pode haver boas razões para distinguir e, em certos casos, ser aconselhável, quando menos por motivos de ordem técnica, que a representação em juízo seja confiada aos órgãos normais dessas pessoas colectivas»
[2].

            A norma geral de representação processual do Estado, ínsita ao artigo 20º do Código de Processo Civil, confere-a ao Ministério Público, sem prejuízo dos casos em que a lei permita o patrocínio do Estado por mandatário judicial próprio, em que cessa a intervenção principal do Ministério Público logo que este esteja constituído. Dispositivo que admite, para os bens ou direitos do Estado na administração ou fruição de entidades autónomas, a intervenção processual conjunta do Ministério Público e do mandatário judicial.

            Em face das sucintas considerações tecidas cremos que a intervenção do Ministério Público é aqui justificada pela própria lei, mas não em representação do Instituto dos Registos e Notariado, já que da sentença prolatada no processo de impugnação judicial podem interpor recurso de apelação o impugnante, o conservador que sustenta, o presidente do Instituto dos Registos e do Notariado, I.P. e o Ministério Público (artigo 147º, 1). Norma que confere legitimidade autónoma e independente a cada uma destas entidades para apelar da decisão da sentença proferida em primeira instância e que, como tal, não pode deixar de conferir interesse a qualquer destes sujeitos em manifestar o seu posicionamento sobre a matéria, no fundo, apresentando “alegações”. Vale dizer que a apresentação das alegações pelo Senhor Conservador do Registo Predial, autor do despacho de recusa de registo sujeito a apreciação recursiva, traduz o exercício do contraditório, o contraponto do direito ao recurso que a lei registal, expressamente, lhe confere.

            O registo predial, na veste de registo público, atesta a verificação de factos jurídicos e permite que o público em geral se possa fiar nos efeitos que típica e normalmente se produzem associados a tal facto. Vale dizer que é plural o objecto da publicidade registal: os factos que se registaram e que se provam pelo registo e as situações jurídicas que desse registo se retiram por ilação[3]. Pluralidade que envolve um feixe alargado de interesses centrados no interesse público do conhecimento do facto registado como requisito de eficácia, mas também os interesses privatísticos dos sujeitos beneficiários do facto registado. E, por isso, está legitimada a intervenção alargada dos titulares dos diversos interesses em jogo na prossecução dos fins prosseguidos pelo recurso de apelação: a validade jurídica do acto do conservador do registo predial. Dizer que, nesta multiplicidade de interesses, há lugar para a tutela do interesse prosseguido pelo conservador na defesa da tese que sustenta o acto por si praticado, a corroborar a sua legitimação para alegar ou responder às alegações do apelante na contraposição de razões, argumentos, justificativos do entendimento por si sufragado.

            Aliás, a relação processual registal estabelece-se entre o apresentante e a conservatória[4], o que funda, desde logo, a intervenção do conservador na instância judicial, quer na primeira instância quer na fase recursiva.

            Do exposto concluímos que o Senhor Conservador do Registo Predial estava legitimado a responder às alegações da apelante e, em consequência, carece esta de razão na questão suscitada, mantendo-se nos autos a resposta por aquele apresentada.

            Estes considerandos facultam que, de imediato, expressemos a carência de fundamento do Senhor Conservador na invocação da ilegitimidade da recorrente. Com efeito, em harmonia com o normativizado sob o artigo 147º, 1, no processo de impugnação judicial podem interpor recurso de apelação o impugnante, o conservador que sustenta, o presidente do Instituto dos Registos e do Notariado, I.P. e o Ministério Público. Norma que, explicitamente, confere legitimidade à requerente do registo para impugnar a decisão judicial que lhe é desfavorável.


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         II. Fundamentos de facto

[……………………………………………….]      


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         III. Fundamentos de direito

            1. A rectificação oficiosa de erro material da requisição do registo

            O fulcro da questão de facto, como bem define na sua sentença a Senhora Juiz a quo,  reside na requisição dos registos se reportar à descrição correspondente ao prédio mãe, sem nela identificar a fracção “T”, a que se dirigia o pedido. Mais clarificadamente, a apelante requereu o registo da acção de nulidade e de impugnação pauliana e a remoção de dúvidas da Ap. 46/20080307, actualizada a 25/06/2008, relativamente ao prédio descrito sob o nº vvvv....da freguesia da ...... do concelho de ...., quando queria pedir esse acto  no que tange ao prédio descrito sob o nºzzzz....da freguesia da ...... do concelho de ..... No fundo, no impresso-formulário para requisição do registo, a requerente omitiu a menção da letra “T”, respeitante à fracção em causa no acto.

            No registo predial o acto individualizador do prédio é a descrição, que tem por fim a identificação física, económica e fiscal dos prédios, com a feitura de uma descrição distinta por cada prédio e com a definição de diversas menções tendentes a contribuir para a sua individualização (artigos 79º, 1 e 2, e 82º). O nosso registo é de base real, pelo que todos os actos se centralizam no prédio. E é no seguimento da descrição do prédio que são lançadas as inscrições ou as correspondentes cotas de referência, com informação de cancelamentos e caducidades para cabal publicitação da informação que deixou de estar em vigor (artigo 79º, 3 e 4). É no reporte às descrições que são efectuadas as inscrições para definir a situação jurídica dos prédios, mediante extracto a eles referentes  (artigo 91º, 1 e 2). Tudo alterado, complementado ou rectificado por averbamentos à descrição e à inscrição (artigos 88º e 100º).

            A organização registal é referenciada por dois assentos: a descrição, que constitui o assento principal, e a inscrição, que corresponde ao secundário[5].

            Descrições que, ainda assim, só podem ser abertas na dependência de inscrição ou averbamento, salvo o caso de recusa de registo em que será aberta uma ficha para a anotação correspondente, mas as inscrições são sempre lavradas por referência às descrições (artigos 80º, 1, e 91º, 2).

            Esta breve concatenação do sistema organizacional do registo predial destaca a relevância da descrição e permite compreender a recusa do Senhor Conservador que, encontrando uma discrepância entre o pedido de registo de conversão e de registo de acção com a descrição indicada na requisição do registo,  defende que a errónea indicação do número da descrição do prédio tem de conduzir à recusa do registo, por não poder ser lavrado sobre o prédio efectivamente constante do título, uma vez que sobre ele nada foi requerido.

            Donde advogue a apelante o recurso à rectificação oficiosa do seu pedido de registo, nos termos da previsão do artigo 249º do Código Civil. Preceito que confere o direito à rectificação do erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita. Deve tratar-se de um lapso ostensivo, em face dos próprios termos da declaração, quer quanto à sua própria existência quer quanto ao modo de o rectificar[6]. Ostensabilidade que deve resultar do próprio contexto da declaração negocial, mas poderá também advir das circunstâncias que a acompanham. Não deixa de ser uma forma de erro na declaração, merecedora de um tratamento especial e simplista, justificado pelo carácter manifesto do lapso cometido, de modo a que não subsista qualquer fundada dúvida sobre o que se quis declarar[7].

            Admitimos tratar-se de um acto patente, indubitável, visível no contexto da declaração, desde logo pelo facto do registo da acção de impugnação pauliana se reportar ao acto de partilha da fracção autónoma designada pela letra T, destinada a habitação, correspondente ao 4.º andar direito trás, do prédio urbano sito na ......, freguesia da ......, concelho de ...., inscrito na matriz sob o artigo nº yyyy.... e descrito na Conservatória do Registo Predial de .... sob o nº qq.... É certo que na descrição mencionada no pedido da acção sujeita a registo volta a requerente a identificar a descrição do prédio mãe (n.º qq...), mas a alusão expressa à fracção “T” não pode ter deixado dúvidas ao declaratário quanto à descrição efectivamente em causa – a  “qq...-T”.  Em suma, o lapso da requisitante do registo redundou apenas na omissão da letra “T” após a descrição que indicou, erro patenteado pelos documentos com que instruiu o pedido de registo.

            Pretende a recorrente que a rectificação da requisição do registo deveria ocorrer oficiosamente.

            O procedimento registal predial é hoje composto pela apresentação, instrução e qualificação. Ressalvadas as situações de registo oficioso, a iniciativa do pedido de registo (a apresentação) pertence aos sujeitos, activos ou passivos, da respectiva relação jurídica, a todas as pessoas que nele tenham interesse ou aos obrigados à sua promoção (artigo 36º). E feita essa apresentação, o conservador procede à sua anotação no diário, juntamente com os documentos que instruem o pedido (artigo 60º). Processo que tem de ser instruído com os documentos necessários a fundar o acto de registo requisitado. É o princípio da instância.

            Processo que culmina com a qualificação, em que o conservador formula um juízo de mérito acerca do registo que lhe é pedido. A função do conservador do registo predial é tida como parajudicial,  no sentido de que, apesar da natureza administrativa da actividade registal, a apreciação relativa à admissibilidade do facto a registo envolve juízos análogos aos que o tribunal formula na apreciação do mérito da causa[8]. Vale dizer que o mérito ou demérito da pretensão registal está sujeita ao princípio da legalidade, registal e substantiva, sendo a viabilidade do pedido avaliada em face das disposições legais aplicáveis, dos documentos apresentados e dos registos anteriores, bem como na verificação da identidade do prédio, a legitimidade dos interessados, a regularidade formal dos títulos e a validade dos actos nele contidos (artigo 68º). Como vimos, é na verificação da identidade do prédio que incide a problemática sob recurso: a requisitante, ao apresentar o pedido de registo, reportou-o à descrição predial qq... da freguesia da ...... quando, na verdade, pretendia referenciá-lo à fracção autónoma designada pela letra T desse mesmo prédio.   Já acentuámos a base real do nosso registo predial, a legitimar que todos os registos respeitem à descrição e a acentuar a essência da referência descritiva na petição de registo.

            Dentre os fundamentos de recusa do registo, plasmados no n.º1 do artigo 69º, conta-se o não estar o facto titulado nos documentos apresentados (n.º 1, b), fundamento que serviu de base à recusa impugnada. Não obstante a não taxatividade das causas de recusa, só excepcionalmente o registo deve ser recusado, com deriva do n.º2 do artigo 69º, ao estatuir que, para além dos casos previstos no número anterior, o registo só pode ser recusado se, por falta de elementos ou pela natureza do acto, não puder ser feito como provisório por dúvidas. O mesmo é dizer que o registo provisório por dúvidas deve prevalecer sobre a recusa e deve ser lavrado sempre que não haja fundamento para recusa mas as deficiências, irregularidades ou inexactidões da apresentação alicercem a provisoriedade (artigo 70º).

            A única diferença entre o registo provisório e o definitivo é que aquele está sujeito a prazos de caducidade enquanto este não tem qualquer duração temporal previamente definida. É esta possibilidade de o conservador lavrar registos provisórios por dúvidas que leva a defender a excepcionalidade da recusa do registo. Só em casos extremos deve o conservador optar por esta[9]. Para protecção do interesse público do destinatário, as irregularidades da apresentação não deverão impedir o registo. Deve é o apresentante ficar com o ónus de o regularizar sob pena de caducidade.

            A esta luz, convenhamos que é forçada a razão apresentada pelo Senhor Conservador para a recusa do registo (o facto não está titulado nos documentos), já que um dos documentos que instrui o pedido de registo da acção corresponde à petição inicial (artigo 53º) e essa identificava descritivamente a fracção T, a querer significar que o registo respeitava à descrição qq...-T e não à descrição qq.... Dizer que o pedido efectuado para a descrição qq... não se comporta nos documentos traduz uma petição de princípio, que sobreleva a forma à substância.

            Assim, por esta via de análise, estamos certos que, perante a inexactidão manifesta do pedido de registo, a solução mais conforme ao princípio registal da excepcionalidade da recusa determinaria a que fosse lavrado provisoriamente por dúvidas, conferindo ao requisitante a faculdade de requerer a rectificação do impresso-formulário e a remoção das dúvidas, sem que incumbisse ao Senhor Conservador o suprimento oficioso desse lapso. A rectificação da declaração, nos termos da previsão do predito artigo 249º, não é de promoção oficiosa; antes supõe o impulso do declarante que, apercebendo-se do erro, requer a sua rectificação. Logo, falece razão à apelante ao pretender que essa norma conduza à rectificação oficiosa da sua declaração.

            2. O convite ao suprimento da deficiência da requisição do registo

            No registo da acção incumbe também ao conservador verificar a identidade do prédio descrito com o individualizado nos documentos apresentados, para efectuar a dita qualificação. Nela, como acentuámos, o conservador emite um juízo acerca do mérito da requisição do registo, desde a opção entre registar e não registar, e dentro da primeira, entre fazê-lo provisoria ou definitivamente. É esse juízo valorativo que se chama qualificação e que constitui um pressuposto da decisão final do conservador acerca da viabilidade de realização do registo. O conservador deve apreciar a legalidade registal e a existência e validade substantiva do acto[10]. E naquele primeiro item, existindo deficiências do procedimento de registo, incluindo da apresentação, elas devem ser supridas oficiosamente com base nos documentos apresentados ou já existentes no serviço de registo competente ou até por acesso directo à informação constante das bases de dados das entidades ou serviços da administração pública (artigo 73º, 1). Disposição legal introduzida no Código de 1984, que visa a simplificação e modernização da actividade registal, facultando o completar do procedimento de registo com base nos próprios documentos apresentados, nos elementos colhidos em documentos arquivados ou existentes na conservatória ou até pelo recurso às bases de dados dos diversos serviços da administração pública[11]. E se as deficiências existentes não puderem ser sanadas nos moldes indicados, o interessado deve ser avisado para, no prazo de cinco dias, proceder ao seu suprimento, sob pena de o registo ser lavrado como provisório ou recusado (n.º2 do artigo 73º). Do exposto resulta que as dúvidas só podem fundamentar a recusa se forem sérias e se não puderem ser supridas.

            No despacho de recusa o Senhor Conservador invocou também o artigo 43º, 1, que impõe a apresentação de prova documental bastante dos factos sujeitos a registo. Como estava em causa o registo da acção e de conversão da apresentação 11, ambos relativos à fracção “T”, julgamos ter sido apresentada a prova documental bastante, desde logo, pelo facto da fundamentação do despacho de recusa não referir a falta de entrega dos documentos. Todavia, ainda que assim fosse, sempre se imporia a sua solicitação às entidades públicas competentes. E o articulado necessário ao registo da acção poderia ser requisitado ao tribunal, mediante reembolso pela recorrente dos encargos correspondentes (n.ºs 3 e 4 do artigo 73º).

            Contrapõe a apelante que o artigo 42º consente a descrição sem a especificação da fracção, por não prever a indicação da letra de qualquer fracção, mas apenas a indicação do prédio, tal como o próprio impresso formulário não exibe qualquer “campo” relativo à fracção. Sem razão em tal afirmação, porque o artigo 81º prevê para a propriedade horizontal as descrições subordinadas, com uma descrição distinta para cada fracção autónoma. E dentre as menções exigidas para o extracto da descrição contam-se a “série das letras correspondentes às fracções” dos prédios constituídos em regime de propriedade horizontal (artigo 82º, 2).

            Refuta a tese da recorrente o Senhor Conservador também no apelo à inversão dos princípios da instância e da prioridade do registo e um atentado contra a segurança do comércio jurídico imobiliário prosseguida pelo registo predial. Considerações que, quanto ao princípio da instância, esbarram no actual princípio do máximo aproveitamento dos actos praticados e no suprimento oficioso de deficiências do procedimento de registo, a fazer intuir que este princípio se reduz à iniciativa do pedido de registo.

            O princípio da prioridade do registo, prior tempore, significa apenas que o direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguirem relativamente aos mesmos bens, por ordem da data dos registos, e, dentro da mesma data, pela ordem temporal das apresentações correspondentes. Ora, quer do registo provisório quer do convite ao suprimento das deficiências resulta apenas que o registo se reporta à data da apresentação. Na recusa, o registo só conserva a prioridade correspondente à apresentação se o recurso, hierárquico ou contencioso, vier a ser procedente (artigo 6º). Princípio que em nada é postergado com a determinação do convite ao suprimento das deficiências – a opção do legislador do registo predial foi de conferir ao registo a data da apresentação, solução concatenada com o princípio da instância. Tomada a iniciativa de pedir o registo, haja ou não intervenção do conservador, a data da sua efectivação reporta-se sempre à da apresentação. E mesmo a recusa dá lugar à abertura da descrição e anotação na ficha do acto recusado após o número, data e hora da respectiva apresentação (artigos 80º, 2, e 69º, 3). Não vislumbramos, por isso, qualquer violação da segurança do comércio jurídico imobiliário inerente à fé pública registal. A inscrição do facto no registo permite a terceiros confiar no seu conteúdo, actuar com base nas correlativas expectativas – é o apelidado investimento de confiança[12]. Sem olvidarmos que da realização do registo nada mais resulta do que uma presunção de correspondência entre a aparência registal e a realidade substantiva (artigo 7º), a fiabilidade do registo em nada é afectada pelo convite ao suprimento das deficiências. Tudo fica publicitado no reporte à data da apresentação, de modo a preservar os interesses de terceiros que tenham acesso à informação registal.

            Segurança registal que, na linha de defesa dos direitos dos titulares inscritos, é estática, mas que tende, nos sistemas actuais, para a segurança dinâmica, que visa a protecção de terceiros adquirentes de boa fé que registem os direitos que adquiram confiados na presunção registal emanada do registo anterior a favor do transmitente[13]. Estando o registo predial vocacionado para a publicidade, tendo em vista aquele duplo aspecto da segurança, não vemos frustrada a segurança registal no suprimento das deficiências do procedimento do registo, quando a data do registo se reporta sempre à data da apresentação, independentemente das vicissitudes que o afectem.

            Igualmente se não diga, como fez o Senhor Conservador, que a decisão de recusa é indiferente para a autora, uma vez que bastaria nova apresentação para ultrapassar as dificuldades interpretativas surgidas. Na verdade, a apresentação é anotada no diário pela ordem dos pedidos juntamente com os documentos instrutórios (artigos 60º e 61º). Assento que assume especial relevância nos casos em que a eficácia do registo perante terceiros depende da sua prioridade temporal. Como os registos são lavrados pela ordem de anotação no diário e a sua data é a da apresentação (75º e 77º), está explicada a importância da feitura do registo com a data da apresentação em causa.

            Ante o expendido, o êxito da apelação conduz à revogação da decisão recorrida e determina a formulação de convite à apelante no suprimento das deficiências apontadas, extraindo a seguinte súmula conclusiva:

            1. O lapso ostensivo na declaração, quer quanto à sua própria existência quer quanto ao modo de o rectificar, não pode ser oficiosamente sanado, antes supõe o impulso do declarante para requerer a sua rectificação.

            2. Para simplificação e modernização da actividade registal predial, o suprimento das deficiências do procedimento de registo pode ocorrer com base nos próprios documentos apresentados, nos elementos colhidos em documentos arquivados ou existentes na conservatória ou pelo recurso às bases de dados dos diversos serviços da administração pública.

            3. E se as deficiências existentes não puderem ser sanadas nos moldes indicados, o interessado deve ser avisado para, no prazo de cinco dias, proceder ao seu suprimento, pois só excepcionalmente o registo predial deve ser recusado.


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            V. Decisão

         Face ao exposto, acordam no Tribunal da Relação de Coimbra em julgar a apelação procedente e, revogando a sentença recorrida, determinar que o Senhor Conservador do Registo Predial avise a recorrente A... para, em cinco dias, suprir as deficiências apontadas ao requerido procedimento de registo predial.

            Sem custas, por a apelante ter obtido ganho de causa e os apelados estarem delas isentos.


[1] José Alberto González, “Direitos Reais e Direito Registal Imobiliário”, 4ª ed., págs. 171 e 172.
[2] Parecer da PGR de 19-05-2000, PGRP00000877.
[3] José Alberto González, ibidem, pág. 145.

[4] José Alberto González, ibidem, pág. 154.
[5] José Alberto González, ibidem, pág. 152.
[6] Manuel Andrade, “Teoria Geral da Relação Jurídica”, II, pág. 255.
[7] Jacinto Fernandes Rodrigues Bastos,  “Das Relações Jurídicas”, III, pág. 94.
[8] José Alberto González, ibidem, pág. 185.
[9] José Alberto González, ibidem, pág. 224.
[10]  José Alberto González, ibidem, págs. 183, 185 e 186.
[11] Isabel Pereira Mendes, “Código de Registo Predial”, 17ª ed., págs. 359 e 360.
[12] José Alberto González, ibidem, pág. 226.
[13] Isabel Pereira Mendes, “Estudos sobre Registo Predial”, 1998, pág. 75.