Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
366/10.4EACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: VIOLAÇÃO DO DIREITO DE AUTOR
USURPAÇÃO
AUTORIZAÇÃO
LICENÇA
ERRO SOBRE A PROIBIÇÃO
DOLO
NEGLIGÊNCIA
Data do Acordão: 02/19/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA LOUSÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 195.º, N.º 1, E 197.º, AMBOS DO CÓDIGO DO DIREITO DE AUTOR E DOS DIREITOS CONEXOS (CDADC); ARTIGO 16.º DO CP
Sumário: I - Uma licença que seja requerida posteriormente à difusão pública de fonogramas - ainda que venha a ser emitida por forma a abranger o período em que se processou essa difusão -, não afasta a tipicidade da conduta prevista no art. 195.º, n.º 1, do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.

II - Se, de acordo com a matéria de facto provada, o arguido estava convencido de a execução pública dos CDs apenas necessitar da licença da SPA, o mesmo é dizer que desconhecia a imprescindibilidade de também obter autorização/licença PassMúsica; este quadro fáctico situa-se no domínio do erro sobre as proibições, a submeter à disciplina jurídica do artigo 16.º, do CP.

III - Acrescendo ainda que, o arguido explorava a “discoteca há apenas uns dias, tendo previamente incumbido uma sua funcionária pela obtenção das diversas licenças necessárias ao funcionamento do estabelecimento”, a sua conduta não é punível, por inexistência quer de dolo, quer de negligência.

Decisão Texto Integral: ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I - HISTÓRICO DO PROCESSO

            1.         Sob acusação do Ministério Público (de futuro, Mº Pº), foi sujeito a julgamento o arguido A..., sob imputação da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de usurpação, previsto e punido (de futuro, p. e p.) pelas disposições conjugadas dos artigos 195º, n.º 1 e 197º, do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 63/85, de 14 de Março, por referência aos arts. 68º, n.º 2, 176º, 178º e 184º, n.º 2 do mesmo diploma legal.

            Realizada audiência de discussão e julgamento, veio o arguido a ser absolvido.

            2.         Inconformado, recorre o Mº Pº de tal sentença, formulando as seguintes CONCLUSÕES:

A) Ao contrário do sustentado na douta decisão recorrida, encontra-se preenchido o elemento negativo do tipo objectivo de ilícito imputado ao arguido - usurpação, p.p. pelas disposições conjugadas dos arts. 195.º, n.º 1 e 197.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, pois à data da fiscalização o arguido não detinha a necessária autorização/licença da Passmúsica para poder difundir as músicas indicadas nos pontos C) e D) da matéria de factos provada;

B) Essa autorização tem de ser necessariamente prévia à difusão das músicas, pelo que o facto de o arguido ter posteriormente obtido a mencionada licença, abrangendo o período em que foi fiscalizado, nada altera quanto à consumação do crime, que se verifica com a mera utilização não autorizada de obras protegidas.

C) Por força da fundamentação da matéria de facto que alude aos documentos de fls. 359 e 360, 361 e 362, impunha-se, a nosso ver, que no ponto I) da matéria de facto dada como provada se aditasse que a B... era titular de licença Passmúsica para os meses de Outubro a Dezembro de 2010, “desde o dia 14/12/2010”.

D) Só assim esse ponto da matéria de facto não resultaria contraditório com o anterior ponto H), como sucede no caso dos autos.

E) Por outro lado, o ponto 1) dos factos não provados não pode subsistir nos termos descritos, pois entra em contradição com o mencionado ponto H) dos factos provados: se o arguido solicitou a licença apenas após a fiscalização, como consta do facto provado H) (e se essa licença deve ser prévia como acima se mencionou) não se pode concluir, como não provado, que o arguido «não solicitou, como devia, a necessária autorização/licença»;

F) A sentença padece, assim, nos assinalados pontos matéria de facto provada e não provada, do vício decisório contemplado no art. 410º n.º 2, al. b) do Código de Processo Penal, devendo ser corrigida em conformidade.

G) Está, pois, preenchido integralmente o tipo objectivo de ilícito, sendo que, a nosso ver, também se encontra verificado o tipo subjectivo, embora a título de negligência e não de dolo, como imputado em sede de acusação.

H) O arguido desconhecia a obrigação de obter prévia autorização da Passmúsica, mas deveria ter diligenciado no sentido de obter todas as informações e subsequentes autorizações que lhe permitissem reiniciar a actividade em cumprimento da lei.

I) A falta de tempo porque quis reabrir rapidamente o estabelecimento, a circunstância de ter delegado obrigações dessa natureza noutras pessoas e o facto de não ter procurado obter junto do anterior explorador da Discoteca toda a informação pertinente (cfr. Registo das declarações do arguido no sistema habilus, primeira gravação aos minutos 1:09 a 1:46 e 2:36 a 2:48 e segunda gravação aos minutos 2:23 a 3:22), demonstram que o arguido não actuou com a diligência e o cuidado que podia e devia ter e de que era capaz (facto que deveria ter sido dado como provado).

J) Se o arguido incorreu em erro, julgando que a autorização da SPA (que detinha) era suficiente para poder difundir música na Discoteca, esse erro deve ser qualificado erro sobre as proibições, contemplado no art. 16.º do Código Penal, que exclui o dolo, mas deixa ressalvada a punibilidade da negligência, pela qual deveria ter sido condenado (e não um erro sobre a ilicitude, não censurável, previsto no art. 17.º do mesmo diploma legal, como concluiu a Mma Juiz).

K) Com efeito o arguido actuou em estado de erro sobre o carácter ilícito do facto, imputável a uma falta de informação ou de esclarecimento e, por isso, porque censurável, integra o tipo específico da censura da negligência.

L) Porque assim não decidiu, considerando, pelo contrário, que não estavam preenchidos todos os elementos objectivos do tipo de crime em apreço e que o arguido actuou com falta de consciência da ilicitude não censurável, incorreu a Mma Juiz em erro de julgamento, já que os factos apurados não permitiam a referida decisão de direito.

M) Pelo exposto, salvo melhor opinião, e sempre com muito respeito pela decisão recorrida, decidindo como decidiu, a Mma Juiz do Tribunal a quo não fez uma correcta interpretação da lei, violando o disposto nos arts. 16° e 17° do Código Penal e 195.º, n.º 1 e 197.º, n.º 1, ambos do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 63/85, de 14 de Março.

Nestes termos e nos demais de Direito, que doutamente se suprirão, deverá o presente recurso ser julgado totalmente procedente e, em consequência, deve ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que contemple o teor das alegações expendidas e conclusões apresentadas, assim se fazendo inteira Justiça.

3.         O arguido respondeu, pugnando pela improcedência do recurso, e CONCLUINDO:
A. Por douta sentença proferida pelo tribunal a quo, foi o arguido absolvido do crime que lhe vinha imputado - um crime de usurpação, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 195.º, n.º 1 e 197.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC), por referência aos arts. 68.º, n.º 2, 176.º, 178.º e 184.º, n.º 2 do mesmo diploma legal.
B. O recurso interposto pelo Ministério Público, assenta na não concordância do assim decidido pela douta sentença, alegando que o elemento negativo do tipo objectivo de ilícito imputado ao arguido se encontra, de facto, preenchido, uma vez que o arguido não detinha a necessária autorização/licença da Passmúsica à data da fiscalização que fora realizada, O que faz com que a douta sentença padeça do vício decisório, nos termos do art. 410.º, n.º 2, al. b) do CPP.
C. Não assiste razão no assim alegado no recurso interposto pelo Ministério Público.
D. De acordo com as “Regras e Condições Gerais de Licenciamento e Aplicação de Tarifários” da AUDIOGEST e GDA (PassMúsica), disponível no sítio da Internet o licenciamento para o serviço PassMúsica, pode ser efectuado: ”(...) No prazo de cinco dias úteis após a visita ao estabelecimento por parte de um colaborador, devidamente identificado e credenciado, das Entidades de Gestão Colectiva de Direitos Conexos e sem prejuízo de lhe ser concedido prazo adicional para o correcto preenchimento do Pedido de Licenciamento e desde que o Utilizador seja expressamente informado do prazo concedido para tal efeito;”
E. Se é certo que, de acordo com o n.º 1 do art. 195° do CDADC “Comete o crime de usurpação quem, sem autorização do autor ou do artista, do produtor de fonograma e vídeo grama ou do organismo de radiodifusão, utilizar uma obra ou prestação por qualquer das formas previstas neste Código.”, certo é também que essa autorização pode ser requerida e obtida mesmo após a visita da fiscalização;
F. A lei (CDADC) não fala na obtenção de uma ‘autorização prévia”, como alega o Ministério Público no seu recurso, pois se assim o exigisse não
abriria o pressuposto de obter tal autorização, mesmo após da
fiscalização efectuada a um estabelecimento.

G. O recorrido obteve a competente licença PassMúsica para os meses Outubro, Novembro de Dezembro de 2010, tendo pago a respectiva tarifa proporcional aos meses em que o estabelecimento daquele este aberto, após ter sido efectuada a fiscalização no dia 28 de Novembro de 2010.
H. Com a concessão da licença, com o respectivo pagamento efectuado pelo recorrido, resulta vazia a imputação a este do crime p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 195.º, n.º 1 e 197.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC), por referência aos arts. 68.º, n.º 2, 176.º, 178° e 184.º, n.º 2 do mesmo diploma legal.
I. O que bem protegido pelo normativo vindo de referir, são as obras abrangidas pelos Direitos de Autor e com a obtenção da respectiva licença/autorização para utilização dessas obras, essa protecção acha-se concretizada.
J. Com a obtenção da licença e com a concessão implícita de autorização por parte dos autores e artista da obra, o bem protegido pelo normativo previsto no CDACD encontra-se salvaguardado.
K. Havendo licença o bem encontrando-se protegido, não existindo, portanto, consumação do crime de usurpação, uma vez que existe autorização do ‘dono’ da obra, autorização essa que pode ser obtida após fiscalização ao estabelecimento.
L. Bem andou a douta sentença em decidir pela absolvição do arguido, ora recorrido, por não se encontrar preenchido o elemento negativo do tipo objectivo de ilícito, não merecendo, por isso, qualquer censura.

Nestes termos e nos melhores de direito deve o recurso interposto ser considerado totalmente improcedente, mantendo-se a douta sentença recorrida que nenhuma censura merece.

Já neste Tribunal da Relação, o Ex.mº Sr. Procurador-Geral Adjunto, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, mas considerando que a imputação da conduta criminosa deve ser feita a título de negligência.

Cumprido o art. 417º nº 2 do Código de Processo Penal, o arguido nada disse. Já o assistente “Audiogest” pugnou pela procedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

4.         OS FACTOS

São os seguintes os factos considerados na douta sentença:


Factos provados

            A) No dia 28 de Novembro de 2010, pelas 2 horas e 15 minutos decorreu uma acção de fiscalização ao estabelecimento comercial designado “Discoteca X...”, sito na Rua (...), em Miranda do Corvo, área desta comarca, levada a cabo pela ASAE.

            B) O estabelecimento, explorado pela empresa “ B..., Lda.”, de que era gerente à data dos factos A..., encontrava-se em pleno funcionamento e aberto ao público, com diversos clientes no seu interior e a exibir música ambiente nas duas salas de que dispunha, através de aparelhagem sonora, com leitor de CD´s, mesa de mistura e colunas.

            C) Na primeira sala (no sentido de quem entra no estabelecimento) estava a ser difundido o tema “El cantante”, executado por Marc Anthony, que fazia parte de um CD denominado “El Cantante” e editado pela Sony BMG Music Entertainment.

            D) Na segunda sala, contígua à primeira e com acesso por esta, estava a ser difundida música integrada no CD 1 da Colectânea “Cidade AllStars 3”, editado pela Editora Vidisco.

            E) À data da fiscalização era o arguido a única pessoa que explorava o estabelecimento comercial acima identificado, que estabelecia os contactos com fornecedores, geria financeiramente o espaço, comprava equipamentos, decidia da sua utilização e diligenciava pela obtenção de todas as licenças e autorizações necessárias ao funcionamento regular da discoteca.

            F) Para tanto, o arguido solicitou a necessária autorização para difusão das obras musicais fixadas em CD e através de música ao vivo à Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), tendo sido emitida pela Delegação de Coimbra a avença mensal para Novembro de 2010.

            G) A Sony MG e a Vidisco são editoras associadas da Audiogest, pelo que a exibição dos CD´s acima referidos dependia da emissão de licença que autorizasse tal exibição por parte da PassMúsica.

            H) Após a fiscalização o arguido solicitou a licença Passmúsica, pagando dentro do prazo concedido os valores do licenciamento do estabelecimento para execução pública de música que lhe foram exigidos para os meses de Outubro, Novembro e Dezembro de 2010.

            I) A B..., Lda., é titular da licença Passmúsica emitida pela Audiogest a favor do estabelecimento X..., para o ano de 2010, e em particular para o mês de Novembro.

            J) À data da fiscalização o arguido estava convencido de que para a execução pública dos CDs apenas necessitava da licença da SPA de que era detentor.

            K) À data da fiscalização, o arguido explorava a Discoteca há apenas uns dias, e previamente havida incumbido uma sua funcionária pela obtenção das diversas licenças necessárias ao funcionamento do estabelecimento.

            L) O arguido não tem antecedentes criminais.

            M) Explora um café e um restaurante em Miranda do Corvo e uma loja em Coimbra do tipo vulgarmente conhecido como “loja dos trezentos”.

            N) Vive com a esposa, que está reformada, em casa própria, suportando um casal uma prestação bancária mensal relativa ao crédito habitação no valor de 2.000,00 €.

            O) A sua actividade empresarial tem atravessado dificuldades económicas, não retirando o arguido da mesma para si, e descontando o necessário ao cumprimento das suas obrigações bancárias, valor superior ao salário mínimo nacional.

            P) O arguido tem problemas de saúde, suportando uma despesa mensal com medicamentos cerca de 100,00 €.


Factos não provados

            1) O arguido não solicitou, como devia, a necessária autorização/licença à entidade que representa os produtores fonográficos, artistas, intérpretes e executantes - a PassMúsica (licenciamento conjunto da GDA – Cooperativa de Gestão de Direitos dos Artistas Intérpretes ou Executantes e Audiogest – Associação para a gestão e distribuição de Direitos) que o mesmo sabia ser obrigatória.

            2) Não obstante disso saber, o arguido não se absteve de assim actuar, difundindo as mencionadas músicas, integradas nos referidos CD´s, bem sabendo que o fazia sem a necessária autorização dos produtores, artistas, intérpretes e executantes ou de quem os representa, não tendo pago os direitos devidos por tal utilização e que assim lesava os interesses daqueles, designadamente os direitos de que são titulares, conexos aos direitos de autor.

            3) O arguido actuou de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito conseguido de obter um benefício a que sabia não ter direito, face à ausência do competente pagamento e autorização.

            4) O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei como ilícito criminal.


E foi a seguinte a motivação da matéria factual

            O tribunal fundou a sua convicção, à luz das regras da experiência comum, nas declarações do arguido, nos documentos juntos aos autos, no CRC do arguido, e nos depoimentos das testemunhas ouvidas em julgamento.

            Para a demonstração dos factos elencados em A) a G) foram determinantes o auto de notícia de fls. 212 a 214 (que foi devidamente corroborado em julgamento pelos inspectores da ASAE que participaram na acção de fiscalização), a documentação a ele anexa, nomeadamente, o talão de fls. 215, o registo fotográfico de fls. 214 a 216, e certidões de fls. 8 a 31, bem como as cópias da escritura de constituição de sociedade, de alvará e de licença de funcionamento de fls. 245 a 252, certidão permanente de fls. 201 a 203.

            Os factos descritos em H) e I) resultam de forma inequívoca da declaração da assistente Audiogest de fls. 359 e 360, do documento de fls. 361 e 362 que a acompanha e de fls. 298.

            O arguido prestou declarações coerentes e fundamentadas, declarando desconhecer, à data da fiscalização, da obrigatoriedade da licença Passmúsica. Reconheceu o exercício da gerência efectiva da X..., não colocou em causa o teor do auto de notícia e deu conta da sua situação socio-económica. As suas declarações afiguraram-se sérias e verosímeis, obtiveram confirmação da prova testemunhal produzida, em particular da testemunha C... e encontram suporte nos documentos juntos aos autos, merecendo por isso a confiança do Tribunal.

            Os factos que foram consignados como não provados foram contrariados pela prova produzida e valorada no sentido acima descrito.

            5.         O MÉRITO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art. 412º nº 1 do CPP. [[1]]

            QUESTÕES A RESOLVER:

  • Se ocorre contradição entre a matéria de facto provada e a não provada e, em consequência, se se mostram preenchidos os elementos do tipo de ilícito
  • Se ocorreu erro de julgamento no tocante ao elemento subjectivo do crime (erro sobre a ilicitude versus erro sobre as proibições)

5.1.      CONTRADIÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

            Sobre o tema em análise, referem Simas Santos e Leal-Henriques tratar-se de uma «(...) incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.

            Ou seja: contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente;». [[2]]

            Passando à situação em concreto, considera o recorrente existir contradição entre os factos provados elencados sob as alíneas H) e I) dos factos provados, e ponto 1) dos não provados, e que são do seguinte teor:

            H) Após a fiscalização, o arguido solicitou a licença Passmúsica, pagando dentro do prazo concedido os valores do licenciamento do estabelecimento para execução pública de música que lhe foram exigidos para os meses de Outubro, Novembro e Dezembro de 2010.

            I) A B..., Lda., é titular da licença Passmúsica emitida pela Audiogest a favor do estabelecimento X..., para o ano de 2010, e em particular para o mês de Novembro.

            A mesma contradição existiria com o facto não-provado sob o nº 1, que reza assim: 1) O arguido não solicitou, como devia, a necessária autorização/licença à entidade que representa os produtores fonográficos, artistas, intérpretes e executantes - a PassMúsica (licenciamento conjunto da GDA – Cooperativa de Gestão de Direitos dos Artistas Intérpretes ou Executantes e Audiogest – Associação para a gestão e distribuição de Direitos) que o mesmo sabia ser obrigatória.

            Consideramos assistir razão ao Recorrente.

            Desde logo, segundo as regras da lógica, se o arguido solicitou a licença Passmúsica após a fiscalização (facto “H”), o que se pode concluir é que não tinha essa licença aquando da fiscalização.

            Ora, a ser assim, e sabendo-se que a fiscalização ocorreu em 28/11/2010, entra-se em contradição quando se diz que a empresa gerida pelo arguido é titular dessa licença Passmúsica para o ano de 2010, e em particular para o mês de Novembro (facto “I”).

            E, o que resulta dos meios de prova tidos em conta para alicerçar os factos em análise (documentos de fls. 298 e 359 a 362) é que, na data da fiscalização, o arguido não tinha a licença Passmúsica e só a solicitou em 14/12/2010, sendo que a licença foi emitida para o último trimestre (Outubro a Dezembro de 2010).

            Já quanto ao facto não-provado (nº 1), há que atender que os factos tidos por não-provados traduzem, juridicamente, uma inexistência, tudo se passando como se nunca tivessem sido alegados.

            «As respostas aos quesitos são contraditórias quando os conteúdos de uns e outros são logicamente incompatíveis, não permitindo a subsistência de ambos.

            Esta situação não se pode verificar quanto a quesitos considerados não provados, (...), na medida em que a resposta negativa não conduz à prova do contrário, mas antes a considerar como se não tivessem sido articulados os factos contidos nos quesitos.

            Ou seja, só existe o conteúdo do quesito que se provou, inexistindo qualquer conteúdo daquele que se não provou e que possa colidir com a matéria de facto assente, seja de um outro quesito, seja da antiga especificação ou da actual base instrutória.» [[3]]

            Traduzindo uma inexistência, quer isso dizer não ser ontologicamente possível verificar-se uma contradição entre um facto provado (realidade existente) e um facto não-provado (algo que se tem por nunca ter sido sequer alegado).

            Face ao exposto, atenta a contradição entre os factos provados sob as alíneas “H” e “I”, impõe-se alterar o facto provado sob a alínea “I”, que passará a ter a seguinte redacção:

            I) A B..., Lda., é titular da licença Passmúsica emitida pela Audiogest a favor do estabelecimento X..., para os meses de Outubro, Novembro e Dezembro de 2010, desde 14/12/2010.

5.2.      DOS ELEMENTOS DO TIPO DE ILÍCITO

            Para além dos Direitos de Autor, a nossa lei entendeu por bem conferir tutela penal aos ditos Direitos Conexos.

            Um desses direitos é o dos produtores de fonogramas, entendendo-se por tal a pessoa singular ou colectiva que fixa pela primeira vez os sons provenientes de uma execução ou quaisquer outros”. Já o registo dessa fixação de sons em suporte material recebe o nome de fonograma: art. 176º nº 1, 3 e 4 do Código dos Direitos de Autor e Direitos Conexos (de futuro, apenas CDADC).

            Assim, nos termos do art. 195º nº 1 do CDADC, “comete o crime de usurpação quem, sem autorização (...) do produtor de fonograma (...), utilizar uma obra ou prestação por qualquer das formas previstas neste Código”.
            E, segundo o art. 68º nº 1 do mesmo diploma, essa utilização pode acontecer ou materializar-se “(...) por qualquer dos modos actualmente conhecidos ou que de futuro o venham a ser”.

            Ora, a difusão e execução públicas de um fonograma dependem de autorização do respectivo produtor (no caso, a Sony MG e a Vidisco): art. 184º nº 2 do CDADC. [[4]]

            No caso, temos que, em 28/11/2010 e num dos estabelecimentos da empresa gerida pelo arguido, que se encontrava aberto ao público, se estava a exibir música ambiente através de aparelhagem sonora, com leitor de CD´s, mesa de mistura e colunas.

            Numa das salas, difundia-se o tema “El cantante”, executado por Marc Anthony, que fazia parte de um CD denominado “El Cantante” e editado pela Sony BMG Music Entertainment; na outra, difundia-se música integrada no CD 1 da Colectânea “Cidade AllStars 3”, editado pela Editora Vidisco.

            A Audiogest, Associação para a Gestão e Distribuição de Direitos, é uma entidade constituída a coberto da Lei nº 83/2001, de 03.08, para, em Portugal proceder à gestão colectiva dos direitos dos Produtores Fonográficos.

            A PassMúsica «é a marca que identifica a licença e o serviço de licenciamento conjunto da AUDIOGEST e da GDA. Sob a designação “PassMúsica”, a GDA – que representa em Portugal Artistas, intérpretes e executantes – e a AUDIOGEST – que representa os Produtores fonográficos, autorizam empresas e entidades públicas e privadas dos mais diversos sectores a utilizarem fonogramas na sua actividade (por exemplo para ambientação musical de um espaço), cobrando, em contrapartida dessa licença, a respectiva remuneração.». [[5]]

            A Sony MG e a Vidisco são editoras associadas da Audiogest, pelo que a exibição dos CD´s acima referidos dependia da autorização desta entidade, autorização essa consubstanciada na licença PassMúsica.

            Ora, no dia em questão a empresa gerida pelo arguido não era titular da dita licença Passmúsica e, não obstante, tendo o estabelecimento aberto ao público, com clientes no seu interior, estava a exibir/difundir músicas através de aparelhagem sonora, editadas por associados da Audiogest.

            Temos, portanto, verificados todos os elementos objectivos do tipo de ilícito: a empresa gerida pelo arguido, sem autorização (licença Passmúsica) do produtor de fonograma (Sony e Vidisco, editoras associadas da Audiogest, a quem competia a emissão da licença/autorização), reproduzia/difundia os ditos temas musicais em local público.

            Ora, a M.mª Juíza assim não o entendeu, com a seguinte argumentação (passamos a transcrever):

            «Por conseguinte, e não obstante o arguido só após a fiscalização ter solicitado a licença passmúsica, o que é certo é que a licença emitida autorizou a exibição pública dos CDs difundidos nos meses de Outubro, Novembro e Dezembro de 2010, pelo que, reportando-se a acusação ao mês de Novembro de 2010, e em face dos elementos constantes dos autos tem de se concluir pela existência de autorização de utilização das obras em causa naquele mês, o que afasta a tipicidade da conduta.

            Não sendo típica a conduta do arguido por força do licenciamento para a execução pública e radiodifusão dos fonogramas utilizados do estabelecimento naquele período pelo arguido na exploração da referida discoteca, afastada está, necessariamente, a ilicitude do facto. Com efeito, para além de ter ficado assegurado o exclusivo da exploração económica da obra que o tipo legal visa proteger, ao proceder ao licenciamento do estabelecimento para o ano de 2010, o titular do bem jurídico protegido conformou a conduta do arguido com as regras vigentes, tornou-a autorizada, não podendo a mesma, por conseguinte, ser considerada ilícita pela ordem jurídica considerada na sua totalidade. Nas palavras de Figueiredo Dias invocando uma antiga formulação de Merkel a propósito do princípio da unidade da ordem jurídica (in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões fundamentais. A Doutrina Geral do Crime, págs. 365 e 367) “sempre que uma conduta é, através de uma disposição do direito, imposta ou considerada como autorizada ou permitida, está excluída sem mais a possibilidade de, ao mesmo tempo e com base num preceito penal, ser tida como antijurídica e punível”.». (sublinhado nosso)

            Quanto a este entendimento, começaremos por referir que os direitos de autor e os direitos conexos merecem, simultaneamente tutela civil e tutela penal.

            O pagamento da tarifa devida pela emissão da licença constitui uma remuneração e contende por isso com a vertente civil da tutela, pelo que, só neste âmbito, deve ser concedida relevância ao facto de “ter ficado assegurado o exclusivo da exploração económica da obra”. [[6]]

            Na procura de qual seja o bem jurídico aqui protegido, conclui Oliveira Ascensão: «Mas o fonograma interessa porque, sendo coisa corpórea, contém uma coisa incorpórea, seja ou não uma obra literária ou artística. O que se sujeita a um regime particular é a utilização da coisa incorpórea mediante a utilização da coisa corpórea.

            Neste sentido, o objecto de protecção são os sons e/ou imagens ínsitos no fonograma ou videograma no seu sentido de veículo, que exprimem normalmente uma coisa incorpórea, que pode ser obra literária ou artística.». [[7]]

            Para José Branco será «(...) o complexo de direitos que constituem o direito de autor. (...) os direitos de carácter patrimonial e direitos de natureza pessoal, (...)» [[8]]

            E será tendo em atenção essa dupla vertente de protecção que se deve equacionar a questão da ilicitude da conduta no parâmetro da unidade do sistema jurídico, pretendendo com isso significar-se que, se um determinado comportamento é lícito perante um determinado ramo do direito, não pode ser penalizado num outro ramo.

            A ilicitude é categoria conhecida doutros ramos do Direito, designadamente do Civil e do Contra-Ordenacional), mas assume contornos específicos em Direito Penal, em virtude dos também específicos bens jurídico-penais: «Com a categoria do ilícito se quer traduzir o específico sentido de desvalor jurídico-penal que atinge um concreto comportamento humano numa concreta situação, atentas portanto as condições reais de que ele se reveste ou em que tem lugar. Por outras palavras, é a qualificação de uma conduta concreta como penalmente ilícita que significa que ela é, de uma perspectiva tanto objectiva, como subjectiva, desconforme com o ordenamento jurídico-penal e que este lhe liga, por conseguinte, um juízo negativo de valo (desvalor).». [[9]]

            Portanto, a unidade da ordem jurídica só é equacionada perante comportamentos concretos e em toda a sua amplitude, ou seja, nos elementos objectivos e subjectivos da conduta.

            Essencial também que se registe não poder confundir-se a análise do facto/comportamento com a das respectivas consequências, pois pode existir autonomia entre ambas. [[10]]

            Ora, de acordo com o Direito Civil, também o comportamento do arguido é tido por ilícito pois violou uma disposição legal destinada a proteger interesses (art. 483º do Código Civil); só que, neste âmbito, as consequências são patrimoniais, a indemnização dos prejuízos sofridos pelo ofendido. [[11]]

            Daqui resulta não ficar beliscado o princípio da unidade da ordem jurídica, como se considerou na sentença recorrida.

            Passando à vertente penal da protecção e à análise da conduta do arguido.

            Resulta dos factos provados que a fiscalização foi efectuada em 28/11/2010, data em que a empresa gerida pelo arguido não era possuidora da licença Passmúsica.

            E mais se provou que o arguido promoveu a obtenção dessa licença em 14/12/2010, a qual lhe veio a ser concedida, abrangendo o período de Outubro a Dezembro de 2010.

            Será que esta posterior emissão da licença branqueia, ou torna lícita, a conduta ilícita do arguido, ocorrida em 28/11/2010, como o parece ter entendido a M.mª Juíza?

            Cremos que não.

            Desde logo porque, como resulta do art. 184º nº 2 do CDADC, a autorização, materializada na licença PassMúsica, tem de ser prévia à difusão pública dos fonogramas.

            Quanto à conduta, aludindo o tipo de ilícito a uma simples emissão/difusão de música sem licença, desinteressando-se da produção de qualquer desvalor moral ou material, integra um crime formal ou de mera actividade; porque se concretiza numa abstenção (actuar sem autorização/licença) e porque à negação do valor jurídico protegido não interessa o resultado obtido com a omissão (designadamente uma qualquer vantagem económica por parte do arguido ou prejuízo por parte do ofendido) é classificado como crime omissivo puro. [[12]]

            Por outro lado, «(...) se um estado antijurídico típico tiver uma certa duração e se protrair no tempo enquanto tal for vontade do agente, que tem a faculdade de pôr termo a esse estado de coisas, o crime será duradouro. Nestes crimes a consumação, anote-se, ocorre logo que se crie o estado antijurídico; só que ela persiste (ou dura) até que um tal estado tenha cessado.». [[13]] (destaque e sublinhado nossos)

            Isso mesmo se mostra consagrado no art. 3º do Código Penal (de futuro, apenas CP): o facto considera-se praticado no momento em que o agente actuou ou, no caso de omissão, deveria ter actuado, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido.

            A abordagem de uma determinada conduta humana terá sempre de ser efectuada no concreto contexto histórico-temporal em que ela teve lugar. Quer isto dizer que o crime se mostra consumado, exaurido, na data em que o agente actuou ou devia ter actuado.

            É esse o momento em que o bem jurídico foi atingido, sendo que o direito criminal é um direito de valores e protecção de bens jurídicos.

            Traduzindo-se a ilicitude da conduta na difusão em local público sem a prévia obtenção de autorização/licença, o facto típico ilícito consuma-se com essa difusão pública.

            Ora, consumado o crime, não há como proceder à reposição da conduta conforme o direito, não há como desvalor da acção/omissão.

            O facto de o agente ter depois passado a conduzir-se conforme o Direito, bem como o facto de ter praticado posteriormente actos para minimizar as consequências do crime, terão certamente grande relevância, mas apenas para efeitos das consequências do crime (a escolha e medida da pena).

            Acresce que o crime aqui em causa é um crime público (art. 200º do CDADC), o que significa que o bem jurídico protegido está subtraído à livre disponibilidade do particular em quem esse bem jurídico se corporiza no caso concreto.

            Nesta medida, mesmo que se pretendesse ver na posterior emissão da licença um consentimento do ofendido, sempre o mesmo seria de todo irrelevante por não se tratar de um interesse jurídico livremente disponível: art. 38º nº 1 do CP. [[14]]

            Quer isto dizer que a autorização (licença PassMúsica), posteriormente emitida e obtida, nunca poderia ter por efeito retirar à acção do arguido a ilicitude ou desvalor que a lei conferiu a tal conduta.

            Concluindo, uma licença que seja requerida posteriormente à difusão pública de fonogramas — ainda que venha a ser emitida por forma a abranger o período em que se processou essa difusão —, não afasta/retira a ilicitude-tipicidade à conduta prevista no art. 195º nº 1 do CDADC.

            Face aos factos apurados, estão verificados todos os elementos objectivos do tipo de crime por que o arguido vinha acusado.

5.3.      DO ELEMENTO SUBJECTIVO (ou DO ERRO SOBRE A ILICITUDE versus ERRO SOBRE AS PROIBIÇÕES)

            Como é sabido, para que alguém seja condenado pela prática de um crime, não basta ter concretizado/ou omitido uma determinada conduta tida legalmente por ilícita; para além do facto, torna-se necessário que essa conduta lhe possa ser imputada a título de culpa, isto é, que o sujeito tenha agido com o conhecimento dessa ilicitude e com a consciência e vontade de praticar esse ilícito.

            Quanto ao elemento subjectivo do tipo de ilícito, «(...) mostra-se necessário que o agente conheça a exigência legal de prévia autorização para utilizar a obra ou a prestação e, não obstante esse conhecimento, não deixe de agir dolosamente (...). Por outro lado, ainda que desconheça a necessidade de autorização e tal se deva a conduta negligente (...) será também punido a esse título por força do disposto no art. 197º nº 2 do CDADC.». [[15]]

            Ora, consta dos factos provados que, à data da fiscalização, o arguido estava convencido de que para a execução pública dos CDs apenas necessitava da licença da SPA de que já era detentor.

            Segundo o art. 16º do CP:

            1 - O erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime, ou sobre proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto, exclui o dolo.

            (...)

            3 - Fica ressalvada a punibilidade da negligência nos termos gerais.

            E, dispõe o art. 17º:

            1 - Age sem culpa quem actuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável.

            2 - Se o erro lhe for censurável, o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso respectivo, a qual pode ser especialmente atenuada.

            Segundo os ensinamentos de Figueiredo Dias, «Um erro que exclui o dolo existe, na verdade, segundo o direito português, em três casos: 1) quando verse sobre elementos, de facto ou de direito, de um tipo de crime; 2) quando verse sobre os pressupostos de uma causa de justificação ou de uma causa de exclusão da culpa; 3) quando verse sobre proibições (ou imposições, no caso de omissão) cujo conhecimento seria razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência do ilícito.». [[16]]

            Se se diz que o arguido estava convencido de que para a execução pública dos CDs apenas necessitava da licença da SPA, o mesmo é dizer que desconhecia a necessidade de obter autorização/licença PassMúsica.

            Estamos, portanto, no domínio de um erro sobre as proibições, a submeter à alçada do art. 16º do CP, como bem refere o Mº Pº.

            Visto isto, torna-se necessário averiguar se, excluído o dolo, o ilícito ainda pode ser imputado ao arguido a título de negligência.

            Discordando do Recorrente neste ponto, não se nos oferecem dúvidas de que a resposta deve ser negativa.

            Por um lado, face ao quadro factual que se deu como provado, ou seja, que o arguido explorava a Discoteca há apenas uns dias, tendo previamente incumbido uma sua funcionária pela obtenção das diversas licenças necessárias ao funcionamento do estabelecimento.

            Temos para nós, não ser hoje em dia exigível a um empresário, um homem médio, que trate ele próprio de todas as questões atinentes ao negócio e dizem as regras da experiência que normalmente se servem para o efeito de prestadores de serviços e/ou empregados.

            Na circunstância, o arguido incumbira uma funcionária da obtenção “das diversas licenças necessárias”.

            E se atentarmos na complexidade da realidade actual, de profusão/proliferação das (tantas) licenças, taxas, autorizações ..., que são impostas para o funcionamento dum negócio, mais fácil será também concluir que muitas vezes não bastará um cuidado e diligência médias para se ter assegurada uma actuação conforme o direito.

            E, ao nível do “conhecimento razoável indispensável”, só ocorre perguntar: quantas pessoas representarão sequer a possibilidade de que uma “falta de licença” possa constituir um crime?!!

            Por fim, há que atender a que nos situamos no domínio do direito penal secundário, em que é comummente aceite [[17]] ser razoavelmente indispensável esse conhecimento, quer pela “novidade” da incriminação da conduta, quer pela sua menor relevância axiológica. [[18]]

            Conclui-se, portanto, pela não censurabilidade da conduta do arguido, a acarretar a sua absolvição.

            III.       DECISÃO

6.         Pelo que fica exposto, acorda-se nesta Relação de Coimbra em manter a sentença recorrida, ainda que por diversa fundamentação, pelo que improcede o recurso.

Sem custas, atenta a qualidade do Recorrente.

Coimbra, 19 de Fevereiro de 2014

                                                                      

 (Isabel Silva - relatora)

 (Alcina Ribeiro - adjunta)


      [[1]] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 12.09.2007 (processo 07P2583), disponível em http://www.dgsi.pt/, sítio a ter em conta nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem: «III - Como decorre do art. 412.º do CPP, é à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, ou seja, o cerne e o limite de todas de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso estão contidos nas conclusões, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso.
                IV - As possibilidades de cognição oficiosa por parte deste Tribunal verificam-se por duas vias: uma primeira, que ocorre por necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida previstos no art. 410.º, n.º 2 do CPP, e uma outra, que poderá verificar-se em virtude de nulidade da decisão, nos termos do art. 379.º, n.º 2, do mesmo diploma legal.».
      [[2]] In “Recursos Penais”, Rei dos Livros, 8ª edição, 2011, pág. 77.
      No mesmo sentido, vai a demais doutrina. Assim, cf. Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal Anotado”, Almedina, 12ª edição, 2001, pág. 779; Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, vol. III, Verbo, 2ª edição, pág. 339 e Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário ao Código de Processo Penal”, Universidade Católica Editora, 2ª edição, notas 222 a 300, a págs. 1102 a 1122.

      [[3]] Acórdão do STJ, de 24.06.2003 (processo 03A1470). No mesmo sentido, e do mesmo Tribunal, acórdão de 22.2.2000 (processo 99A1016) e de 10.01.2013 (processo 4155/05.OTBSXL. L1.S1.).
      [[4]] Prescreve o art. 184º desse diploma:
      2 - Carecem também de autorização do produtor do fonograma ou do videograma a difusão por qualquer meio, a execução pública dos mesmos e a colocação à disposição do público, por fio ou sem fio, por forma a que sejam acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido.
      3 - Quando um fonograma ou videograma editado comercialmente, ou uma reprodução dos mesmos, for utilizado por qualquer forma de comunicação pública, o utilizador pagará ao produtor e aos artistas intérpretes ou executantes uma remuneração equitativa, que será dividida entre eles em partes iguais, salvo acordo em contrário.

      [[5]] In http://www.passmusica.pt/passmusica-new/?q=passmusica

      [[6]]De acordo com o ponto 2.6. das “Regras e Condições Gerais de Licenciamento e Aplicação de Tarifários” da Audiogest”, nos «(...) casos em que o Licenciamento não for solicitado voluntariamente e/ou a remuneração devida não for paga até à data de vencimento da respectiva factura, as entidades de Gestão Colectiva de Direitos Conexos são livres de vir a exigir, numa única prestação, judicial ou extra-judicialmente, o pagamento da remuneração bruta anual resultante da aplicação das tabelas gerais publicadas pelo Serviço de Licenciamento PassMúsica, que se encontrarem em vigor à data do incumprimento ou utilização não autorizada, sem prejuízo da exigência de juros de mora, compensação pelos custos incorridos e qualquer outra indemnização que venha a ser judicialmente arbitrada.».
      [[7]] In “Direito de Autor e Direitos Conexos”, 1992, Coimbra Editora, pág. 568.
      [[8]] In “Comentário das Leis Penais Extravagantes”, vol. II, Universidade Católica Portuguesa, pág. 248, anotações 2ª e 3ª.
            [[9]] Figueiredo Dias, “Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime”, 2ª edição, 2ª reimpressão, Coimbra Editora, pág. 268.
      [[10]] Neste sentido, Figueiredo Dias, obra citada, pág. 388/389, § 9 e 10.

      [[11]] Ainda que desnecessáriamente, a nosso ver, agora sim por força da unidade do sistema jurídico, o art. 203º do CDADC refere expressamente que a responsabilidade civil emergente da violação dos direitos nele previstos é independente da responsabilidade criminal e pode ser exercida em conjunto com a ação criminal.

      [[12]] Eduardo Correia, “Direito Criminal”, I, Almedina, reimpressão, 1971, pág. 231/232.
      [[13]] Figueiredo Dias, obra citada, pág. 314.
      [[14]] Aliás, no caso verificar-se-ia a situação aludida por Eduardo Correia, em que o consentimento (ou a sua falta, no caso) é um “elemento constitutivo do tipo legal de crime” (obra citada, II, pág. 19.
      [[15]] José Branco, obra citada, pág. 257, anotação 19.
[16] Obra citada, pág. 542/543.
      [[17]] Sobre este aspecto, cf. Figueiredo Dias, obra citada, pág. 363/365; José Branco, obra citada, pág. 257 e Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal”, 2007, Universidade Católica Portuguesa, pág. 99.

      [[18]] No mesmo sentido, acórdão da Relação do Porto, de 08.10.1997 (processo 9710224, nº do Documento: RP199710089710224): «II - Existe erro sobre uma circunstância de facto, que exclui o dolo, estando o arguido convencido de que não necessitava de qualquer autorização, mas infundadamente, por falta de conhecimento que deve ser imputada a uma falta de informação (e por isso fazia funcionar no estabelecimento de bar de que ele era proprietário uma aparelhagem de música, que emitia temas musicais ouvidos por diversos clientes, sem licença dos autores das obras difundidas ou da Sociedade Portuguesa de Autores). III - Tal erro, porém, não lhe é censurável, porque o arguido estava no negócio há apenas 3 meses e tinha contratado com uma agência de documentação a obtenção das diversas autorizações necessárias para o funcionamento do mesmo, pelo que não pode ser punido nem sequer a título de negligência.».