Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
44/10.4EALSB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: RIBEIRO MARTINS
Descritores: CONFISSÃO INTEGRAL E SEM RESERVAS
Data do Acordão: 12/15/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 344ºE 426º DO CPP
Sumário: Se da gravação das declarações prestadas em audiência de julgamento não resulta inequivocamente que o arguido tenha confessado a totalidade dos factos que lhe são imputados, as declarações que prestou não podem qualificar-se como uma confissão integral e sem reservas e darem-se como provados os factos com base em tais declarações.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal de Coimbra –
I –
1- No processo sumário 44/10 do 3º Juízo Criminal de Coimbra, J e T. oram condenados nas penas de seis meses de prisão substituídos por igual período de multa e em cem dias de multa, às taxas diárias de € 9 e €10 respectivamente, pela prática em co-autoria material dum crime de especulação p. e p. pelo art.º 35º/1 alínea c) do Dec-Lei nº 28/84 de 20/1.
2- O T recorre concluindo –
1) O arguido T foi condenado pelo crime de especulação p. e p. pelo art.º 35/1 alínea c) do Dec-Lei nº 28/84 de 20/1, na pena de 6 meses de prisão substituídos por igual tempo de multa e em 100 dias de multa, tudo à taxa diária de €10.
2) A prova produzida em audiência impunha que o tribunal não desse por provados os seguintes factos relativamente ao arguido T –
a) "Dessa forma, ao chegar o arguido T que trazia consigo os 4 bilhetes, os arguidos venderam os bilhetes ao agente da ASAE pelo preço acordado";
b) O arguido T agiu "deliberada, livre e conscientemente, em conjugação de esforços e intentos";
c) O arguido T "sabia tal conduta proibida por lei e criminalmente punível" (ponto 10).
3. Impunha ainda que desse como provado, ao invés, que:
d) Dessa forma, ao chegar o arguido T, que trazia consigo os 4 bilhetes e os entregou ao arguido J, este vendeu os bilhetes ao agente da ASAE pelo preço acordado"
e) O arguido T muito embora soubesse que o arguido J na referida ocasião e lugar ia vender os aludidos bilhetes, desconhecia o preço acordado entre o arguido J e o agente da ASAE, o valor inscrito (preço) em cada um dos bilhetes, bem assim como o concreto preço anunciado na internet pelo arguido J para a venda dos bilhetes.
f) O arguido T não sabia que quer a sua conduta, quer a do arguido J, era proibida por lei e criminalmente punível.
g) Os bilhetes eram exclusivamente pertencentes ao arguido J que os adquirira pelo preço total de € 228;
h) Os contactos via e-mail com o agente da ASAE e tendentes à concretização da aludida venda foram exclusivamente mantidos com o arguido J
4) Não resulta da prova produzida que o arguido T, nas circunstâncias de tempo e lugar ali mencionadas, tivesse "vendido" o que quer que fosse e muito menos que tivesse vendido os aludidos bilhetes ao agente da ASAE em concertação com o arguido J e pelo preço acordado.
5) Nada sustenta a conclusão de que o arguido T sabia que o arguido J ia vender os bilhetes por preço diverso do que constava dos mesmos, ou que soubesse que esta sua conduta era proibida por lei;
6) O Tribunal fundou a sua decisão quanto à matéria de facto que deu como provada, e no que ora releva, nas declarações dos arguidos que confessaram integralmente e sem reservas os factos imputados, conjugados com o teor dos documentos de fls. 10/11, 12 e 13 juntos aos autos (auto de apreensão e cópias dos originais dos bilhetes de ingresso respectivos, que se encontram em envelope na contracapa, respectivamente).
7) O Tribunal admitiu como válida a confissão integral e sem reservas realizada pelos arguidos, o que implicou que se considerassem provados os factos imputados aos arguidos;
8) Contudo, o T nunca confessou integralmente os factos consubstanciadores do crime de especulação, mormente que os bilhetes em causa nos autos estavam a ser anunciados e, posteriormente, vendidos, a preço superior ao constante da face de tais bilhetes (nem tal questão lhe foi formulada ou ao co­-arguido).
9) A confissão é parcial se não abrange todos os "factos imputados", isto é, não inclui todos os factos relevantes para a imputação criminal.
10) O despacho proferido em audiência que reconheceu existir uma confissão integral e sem reservas é nulo, nulidade que expressamente se invoca, pugnando-se pela sua revogação já que aquelas declarações não consubstanciam uma confissão integral quanto aos factos que integram os elementos típicos do crime de especulação, em particular o facto do arguido saber ou não o preço por que estavam a ser vendidos e publicitados os bilhetes.
11) Há insuficiência para a decisão da matéria de facto provada porquanto não constam da factualidade dada como provada todos os factos necessários para que se concluísse que o arguido T cometeu o crime que lhe vinha imputado, designadamente que o arguido T soubesse ou estivesse ciente de que os bilhetes em causa estavam a ser vendidos (e que tinham sido anunciados) por preço superior ao que constava da face dos mesmos.
12) No caso vertente não se procurou determinar o grau de participação do arguido T nos factos praticados pelo arguido João, não se questionando sequer os arguidos a esse propósito e aceitando-se a "confissão" do arguido T mesmo quando este afirma que se limitou a levar os bilhetes ao amigo.
13) A actuação do inspector da ASAE, tal qual vem descrita na matéria dada como provada, configura uma actuação de agente provocador.
14) No que tange à actuação do agente provocador, é pacífica a ideia de que é preciso distinguir os casos em que a actuação do agente provocador cria uma intenção criminosa até então inexistente, dos casos em que o sujeito já está implícita ou potencialmente inclinado a delinquir e a actuação do agente apenas põe em marcha aquela decisão;
15) Da factualidade dada como provada, no que tange ao recorrente, verifica-se que a anuência do inspector da ASAE à compra dos bilhetes levou a que o arguido J solicitasse ao recorrente que lhe levasse os bilhetes, o que o recorrente fez, sendo certo que, antes daquela actuação do inspector da ASAE, não ficou provado que o arguido T tivesse praticado qualquer acto de execução do crime de especulação e, por conseguinte, estivesse potencialmente inclinado ou determinado à prática dos factos que praticou;
16) Nessa medida, se a contribuição do recorrente para os factos foi desencadeada e determinada pelo inspector da ASAE, que actuou como agente provocador, a prova obtida com base naquela actuação é nula, por ter sido utilizado um meio enganoso proibido por lei (cfr. art. 126/1 e 2 alínea a) do CPP);
17) No que toca à condenação do recorrente, a sentença baseou-se, em parte, em prova obtida através de agente provocador [auto de apreensão e objectos apreendidos] e, nessa medida, tal prova é nula por via do disposto no art. 126/1 e 2 alínea a) do CPP, sendo nulo todo o processado dela dependente, com a consequente absolvição do arguido T;
18) O recorrente não tinha nem nunca teve qualquer domínio dos factos que legitime atribuí-los a autoria sua (mesmo em co-autoria), seja no sentido de decidir colocar os bilhetes à venda, de definir o seu preço, de escolher quando, a quem e por quanto os vender ou de recusar a sua venda; o recorrente nunca dominou os acontecimentos de tal modo que nunca a iniciativa e a execução dos factos dependeram decisivamente da sua vontade.
19) Caso assim se não entenda, o que só por mera hipótese se admite, então a responsabilização do recorrente deverá balizar-se apenas dentro dos limites da cumplicidade, sendo a sua pena especialmente atenuada nos termos dos artºs. 27/2 e 73 do Código Penal.
20) Caso não se considere que o tribunal baseou a sua convicção em provas nulas, entende-se, sem conceder, que o quantitativo diário fixado para a pena de multa é excessivo face à situação económica do recorrente, quer à data da prolação da sentença quer actualmente;
21) À data da prolação da sentença o recorrente auferia €650 mensais e vivia em casa arrendada, partilhada com o arguido J, pagando € 134 mensais da sua quota-parte, mas, desde 30/6/2010 que os seus rendimentos económicos ficaram drasticamente reduzidos a apenas € 250 mensais de remuneração base, que aufere de um trabalho em part -time que mantém;
22) A taxa diária fixada no valor de € 10 mostra-se excessiva, desproporcionada e desmedida face á situação económica do recorrente e coloca em perigo a sua própria subsistência, pelo que deverá ser substituída por uma taxa diária de € 5;
23) O tribunal violou o disposto no art. 47/2 do Código Penal ao interpretar o citado normativo no sentido de que o quantitativo diário no montante de €10 era adequado aos rendimentos e encargos mensais do condenado;
24) Uma interpretação adequada do art. 47/2 do Código Penal, face á factualidade provada sobre a situação económica, postularia que fosse determinado um quantitativo diário inferior, em valor não superior a €5;
25) Nestes termos deverá dar-se provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida e decidindo-se em conformidade com o requerido, absolvendo-se o recorrente do crime pelo qual foi condenado ou, se assim não se entender, determinando-se o reenvio para novo julgamento.
3- Respondeu o Ministério Público junto do tribunal recorrido, pugnando pela manutenção da condenação do recorrente mas admitindo que a taxa diária da muta possa ser reduzida, no que foi secundado em parecer do Ex.mo Procurador-Geral Adjunto a que o recorrente também respondeu.
4- Colheram-se os vistos legais, cumprindo agora apreciar e decidir!
II-
1- Decisão de facto inserta na sentença -
a) Factos provados -
1) O arguido J publicitou na Internet a venda de bilhetes para o concerto dos “U2” a realizar em Coimbra.
2) Na sequência desse anúncio, foi contactado por um inspector da ASAE, com quem combinou encontrar-se, por desconhecer a sua actividade profissional, no “Café Mil Doce”, em Coimbra, para lhe vender bilhetes para tal espectáculo;
3) Para o efeito, deslocou-se a esse local no dia 14.06.2010 e, pelas 21:30 horas, abordou o referido agente da ASAE com quem tinha combinado o encontro.
4) De imediato, o arguido J propôs-lhe a venda de 4 bilhetes, dos referidos em 1) pelo preço total de € 800, ao que o agente da ASAE acedeu.
5) Para concretização dessa venda, o arguido J solicitou ao arguido T que fosse ter com eles e levasse os respectivos bilhetes, o que o mesmo fez.
6) Dessa forma, ao chegar o arguido T, que trazia consigo os 4 bilhetes, os arguidos venderam os bilhetes ao agente da ASAE pelo preço acordado.
7) Cada um dos bilhetes tinha o valor facial de € 57.
8) O inspector da ASAE identificou-se, logo após, e deu voz de detenção aos arguidos, que devolveram os € 800 recebidos, ficando os bilhetes respectivos apreendidos.
9) Os arguidos agiram deliberada, livre e conscientemente, em conjugação de esforços e intentos;
10) Sabiam tal conduta proibida por lei e criminalmente punível.
11) O arguido J aufere cerca de € 450 líquidos mensais; vive em casa arrendada, partilhada com terceiros, pagando € 134 mensais da sua quota-parte; tem a frequência do 2.º Ano de Engenharia Civil;
12) O arguido T aufere cerca de € 650 líquidos mensais; vive em casa arrendada, partilhada com o arguido J pagando € 134 mensais da sua quota-parte; tem a Licenciatura em Português/Inglês e o Curso de Especialização em Ciências Documentais;
13) Não se lhes conhecem antecedentes criminais.
b) Inexistem factos não provados
c) Motivação da decisão de facto –
Factos 1.º a 10.º - As declarações dos arguidos – confessando integralmente e sem reservas os factos imputados –, complementadas pelo teor dos documentos de fls. 10/1 e 12 e 13 ( auto de apreensão e cópias dos originais dos bilhetes de ingresso respectivos, que se encontram em envelope na contracapa, respectivamente );
11.º e 12.º: As declarações dos arguidos – informando o tribunal sobre os seus elementos pessoais – que na ausência doutros elementos mais consistentes se consideraram atendíveis;
13.º: O teor dos documentos de fls. 30 e 31 ( CRC dos arguidos).
                                      *
2- Apreciação –
O arguido impugna a decisão de facto contestando ter feito do provado uma confissão integral e sem reservas. Invoca a insuficiência para a decisão dos factos provados. Alega que a actuação dos agentes da ASAE configura a acção típica do «agente provocador», com a consequente proibição legal dos seus depoimentos e do apreendido. E, finalmente, tem por excessiva a taxa diária da multa.
Referir-nos-emos a estas questões pela ordem indicada. Assim -
2.1- O recorrente discorda da decisão de facto naquilo em que a mesma o compromete com a prática do crime, negando que as declarações que fez no julgamento configurem uma “confissão integral e sem reservas” da matéria da acusação.
Neste sentido transcreve passagens das declarações que prestou donde retira a falta duma “confissão integral e sem reservas”.
Ouvida a gravação das declarações do arguido, fica-nos a percepção que o convite feito a uma confissão integral e sem reservas não foi compreendida pelo mesmo, tanto que este acabara de declarar que “se limitou a levar os bilhetes ao local onde o amigo negociou a venda, pensando não haver nisso mal nenhum; e que se soubesse que a venda era ilegal lhe teria dito para o não fazer ou então que o fizesse sozinho”.
Perante estas declarações, que o arguido não retirou nem delas se retractou, carece de compreensão o convite a uma “confissão integral dos factos que lhe foram lidos”. E perante um «sim, sim» seguramente equívoco, também não se compreende como possa ter ficado consignado em acta uma confissão dos factos “nos precisos termos em que vinha acusado”.
Estamos convictos que o arguido/recorrente não teve a consciência do exacto significado do que lhe era perguntado pelo que não podem ter-se por confessados os factos que integram a prática do crime, nomeadamente o elemento subjectivo tido por provado –, o dolo do arguido/recorrente.
E quanto aos elementos objectivos o arguido apenas admitiu que dera os seus préstimos ao amigo levando-lhe, a pedido deste, os bilhetes ao local onde negociara a sua venda, tendo-se com ele comprometido a estar presente no acto do cumprimento dalguns dos efeitos decorrentes do negócio (a entrega dos bilhetes e o recebimento do preço).
É isto que nos parece corresponder àquilo que o arguido validamente declarou na audiência.
Não havendo uma esclarecida confissão integral parece-nos que perde consistência probatória parte do elenco dos factos tidos por provados, nomeadamente que o recorrente fosse interventor na venda (ponto 6), que tivesse recebido o valor do preço acordado (ponto 8), que tivesse havido conluio entre os arguidos com vista à venda (ponto 9) e que soubesse que esta integrava a prática dum ilícito mormente criminal (ponto 10).
O arguido afirmou que se limitara a dar os seus préstimos à venda dos bilhetes que eram do arguido J por este lhe ter solicitado a sua presença por recear ser enganado por pretenso comprador.
Ao considerar provados todos os factos que integram a prática do crime com base numa pretensa “confissão integral e sem reservas”, o tribunal violou o art.º 344º do Código de Processo Penal.
Consequentemente haverá de repetir-se o julgamento por falta de prova bastante para todos os factos havidos como provados.
2.2- A insuficiência para a decisão da matéria de facto tida por provada tem, em princípio, de surpreender-se da leitura da decisão recorrida, por si só ou enquanto conjugada com as regras da experiência comum, i é, sem o lançar de mão doutros elementos constantes dos autos excepção feita quanto à prova tarifada.
Tem-se comummente entendido que constituir “prova tarifada” a constante de documento  autêntico ou autenticado, a prova pericial e a prova por confissão integral e sem reservas nas condições definidas pelo art.º 344º do Código de Processo Penal.
Ora, já vimos que no caso, contrariamente ao referido na sentença e na acta de julgamento, não cremos que o arguido tivesse confessado integralmente os factos da acusação, pelo que se poderá afirmar com o recorrente estar presente o referido vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, o que determinará a anulação do julgamento com o reenvio do processo, quanto ao recorrente, para novo julgamento sobre a matéria da acusação.
2.3- A questão só agora colocada dos elementos da ASAE terem agido como «agentes provocadores», não foi tema tratado no julgamento onde estes nem sequer foram inquiridos.
A invocação da actuação dos elementos da ASAE como «agentes provocadores» não foi objecto de discussão nem de decisão no julgamento feito na 1ª instância.
E tendo de repetir-se o julgamento uma vez que a prova obtida pela confissão do arguido recorrente não tem a força conferida pelo art.º 344/2 alínea a) do Código de Processo Penal, é no julgamento a efectuar que o arguido poderá e deverá recolocar a questão da legalidade da actuação dos agentes da ASAE e consequente caracterização tanto da apreensão como dos seus depoimentos como “prova proibida” face à estatuição dos art.ºs 125º e 126/1 e 2 alínea a) do Código de Processo Penal ([1]).
O que não podemos é aqui antecipar soluções para julgamento a efectuar em detrimento da liberdade de apreciação da 1ª instância quando é certo que o reenvio versa sobre toda a matéria da acusação.
Ou seja, sendo procedente a questão da falta de integral confissão do arguido/recorrente com a consequente necessidade de repetição do julgamento, fica prejudicada a apreciação aqui e agora de tal questão.
2.4- O mesmo se diga quanto à apreciação da questão do excesso da taxa diária da multa aplicada (cfr. art.º 660/2 do CPC).
III –
Decisão –
Termos em que se anula o julgamento relativamente ao arguido T, reenviando - se o processo para novo julgamento deste arguido sobre toda a matéria da acusação.
Sem custas.
Coimbra,    


[1] Neste estudo será interessante a consulta da obra “Lei e Crime; O agente infiltrado versus o agente provocador; Os Princípios do Processo Penal”, Almedina, pp. 253 e ss. e 303 e ss.; bem como da Lei n.º 101/2001, de 25 de Agosto.