Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ISABEL VALONGO | ||
Descritores: | CASSAÇÃO DO TÍTULO DE CONDUÇÃO SISTEMA DE PONTOS NE BIS IN IDEM CONSTITUCIONALIDADE | ||
Data do Acordão: | 02/02/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | LEIRIA (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA MARINHA GRANDE - JUIZ 1) | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS. 148.º, N.ºS 1, 2, 3, 4, AL. C), 10, 11 E 12, DO CÓDIGO DA ESTRADA (REDACÇÃO DA LEI N.º 116/2015, DE 28-08; ART. 29.º, N.º 5, DA CRP | ||
Sumário: | I – A cassação da carta de condução por efeito da perda total de pontos [cfr. artigo 148.º, n.ºs 4, al. c), 10, 11 e 12, do Código da Estrada] não constitui uma nova condenação pela prática dos factos determinantes da aplicação da proibição de conduzir veículos motorizados. II – Ao invés, a dita cassação consubstancia, em relação às condenações determinantes da perda de pontos, um novo sancionamento, axiologicamente motivado pela inidoneidade, entretanto revelada pelo condutor e, em última ratio, por imperativos de segurança rodoviária. III – Deste modo, o circunstancialismo referido não traduz qualquer violação do princípio ne bis in idem. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra I. Relatório 1. No âmbito dos autos de impugnação judicial n.º 209/21.3T9MGR, provenientes do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo de Competência Genérica da Marinha Grande - Juiz 1, por sentença de 17-05-2021, foi julgado totalmente improcedente o recurso de impugnação judicial interposto por HM e, em consequência, mantida a decisão administrativa recorrida. 2. Inconformada recorreu a arguida, formulando as seguintes conclusões: “a) O disposto no nº 10, do artigo 148º do Código da Estrada, é inconstitucional quando impõe que: “A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do nº 4 é ordenada em processo autónomo”, por tal constituir uma clara violação do artigo 29º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa, uma vez que "ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime" e, por maioria de razão, pela mesma contraordenação; b) Com a condenação do segundo crime, em 2019, a recorrente ficou com zero pontos na sua carta de condução, devendo o Tribunal ter ordenado a cassação da carta de condução, não sendo necessário a ANSR vir depois decidir pela cassação do título de condução, noutro processo; c) Não existe qualquer fundamento para o arguido ser julgado em processo autónomo para lhe ser cassada a carta de condução, pois, quer no procedimento contraordenacional, quer no processo-crime, existe a informação necessária (e se não existe no processo crime, é possível obtê-la através da consulta do registo do condutor junto da ANSR), para ordenar a cassação; d) A privação de pontos resulta de forma automática de acordo com a natureza da contraordenação (grave, muito grave ou crime); privação de 3 ou 4 pontos na contraordenação grave; 4 ou 5 pontos na contraordenação muito grave; e privação de 6 pontos quanto for cometido crime; e) Nos termos do nº 4 do artigo 148º do CE: “A subtração de pontos tem os seguintes efeitos: c) A cassação do título de condução do infrator, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor”; f) Quando o condutor fica com zero pontos, tem de lhe ser cassada a carta de condução, pura e simplesmente, o que implica privado de conduzir por, pelo menos, 2 anos; g) A cassação da carta de condução é mais grave que a inibição de conduzir, implicando em ambos os casos que o condutor não pode conduzir veículos automóveis; h) Se há cassação do título, não pode o arguido ser simultaneamente inibido de conduzir, por a cassação retirar o título ao condutor e assim estar automaticamente inibido de conduzir até obter novo título, o que só pode acontecer após dois anos da cassação; i) Inibir o condutor por 12 meses após ficar com zero pontos e depois privá-lo de conduzir por mais 2 anos aquando da cassação, é uma clara violação do princípio ne bis in idem consagrado no artigo 29º, no 5 da CRP. Termos em que deve ser revogada a sentença que julgou improcedente a impugnação e bem assim a decisão da autoridade administrativa que ao aplicar a cassação do título de condução à recorrente em processo autónomo, violou o artigo 29º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa, Assim se fazendo Justiça.” * 3. Foi proferido despacho de admissão do recurso.4. Em resposta ao recurso o Ministério Público concluiu: “1º - Concorda-se com os fundamentos da decisão que julgou improcedente a impugnação judicial. 2º - Pelo que, deve ser negado provimento ao recurso da recorrente. 3º Devendo a sentença proferida, ser confirmada e integralmente mantida. Nestes termos, deverá a douta sentença recorrida ser mantida e negado provimento ao recurso. 5. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de o recurso não merecer provimento. 6. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP, o recorrente não reagiu. 7. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, pois, decidir. II. Fundamentação 1. Delimitação do objecto do recurso Tendo presente as conclusões, pelas quais se delimita o objecto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, importa decidir se ocorreu violação do principio “ne bis in idem”. 2. A decisão recorrida Ficou a contar da sentença (transcrição parcial: “A) Factos provados, com relevância para a decisão em causa: 1) Pela prática, em 02/06/2018, de um crime de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, foi a arguida condenada, além do mais, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, por sentença transitada em julgado em 05/09/2018, no âmbito do processo sumário n.º 81/18.0GAMGR, que correu termos neste Juízo de Competência Genérica. 2) Pela prática, em 31/08/2019, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, foi a arguida condenada, além do mais, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, por sentença transitada em julgado em 21/10/2019, no âmbito do processo sumário n.º 179/19.8GAMGR, que correu termos no Juízo de Competência Genérica da Marinha Grande – J2. 3) No seguimento das condenações mencionadas nos pontos 1 e 2, a ANSR instaurou o competente processo com vista à verificação dos requisitos da cassação da carta de condução da aqui recorrente. 4) As referidas condenações determinaram a perda da totalidade dos pontos atribuídos a cada condutor (6 pontos por cada uma delas). * B) Factos não provados:Com relevância, inexistem factos por provar. * A demais matéria não releva para a decisão da causa, é conclusiva ou de direito, pelo que não foi aqui considerada.”* 3. ApreciaçãoDa violação do ne bis in idem Defende o recorrente que “o disposto no nº 10, do artigo 148º do Código da Estrada, é inconstitucional quando impõe que: “A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do nº 4 é ordenada em processo autónomo”, por tal constituir uma clara violação do artigo 29º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa, uma vez que "ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime". Vejamos. Da decisão em crise resultou provado ter sido a arguida condenada: A - por sentença transitada em julgado em 05/09/2018, no âmbito do processo n.º 81/18.0GAMGR do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo de Competência Genérica da Marinha Grande - Juiz 1, pela prática, em 02/06/2018 de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, além do mais, na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 12 meses, - cfr fls13 a 16. B - por sentença transitada em julgado em 21/10/201922.03.2018, no âmbito do processo n.º179/19.8GAMGR, do Juízo de Competência Genérica da Marinha Grande – J2, pela prática em 31/08/2019, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, além do mais, na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 12 (doze) meses - cfr fls 9/v a 11. Em ambos os casos os factos foram praticados já na vigência das alterações introduzidas pela Lei n.º 116/2015, de 28.08 ao Código da Estrada, ocorrida em 01.06.2016. Nos termos do artigo 121.º - A do Código da Estrada (preceito aditado pela Lei n.º 116/2015), sob a epígrafe “Atribuição de pontos”: 1 – A cada condutor são atribuídos doze pontos. […]. Sobre o Sistema de pontos e cassação do título de condução, dispõe o artigo 148.º do mesmo diploma: […] 2 – A condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtração de seis pontos ao condutor. […] 4 – A subtração de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos: […] c) – A cassação do título de condução do infrator, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor. […] 10 – A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n.º 4 é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução. 11 – A quem tenha sido cassado o título de condução não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efetivação da cassação. 12 – A efetivação da cassação do título de condução ocorre com a notificação da cassação. […]. Assim sendo, ocorrida a subtração da totalidade dos pontos atribuídos a um condutor tem lugar a cassação do seu título de condução, independentemente de qualquer juízo sobre a perigosidade do condutor, com base nos factos que que fundaram a dita subtracção e na sua personalidade. A medida de cassação da carta de condução imposta à ora Recorrente pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária não constitui punição pelos factos que foram objecto dos processos n.º 81/18.0GAMGR do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo de Competência Genérica da Marinha Grande - Juiz 1 e n.º179/19.8GAMGR, do Juízo de Competência Genérica da Marinha Grande - J2. Com efeito, os factos apurados nestes processos são constitutivos de crimes de condução de veículo em estado de embriaguez e justificaram a condenação da Recorrente também em penas acessórias de proibição de conduzir veículos com motor. Já o processo administrativo referente à cassação da carta de condução visa apreciar o registo de infracções do condutor, com o propósito de contabilizar a perda de pontos decorrente da prática de contraordenações e/ou de crimes rodoviários, com vista a determinar a perda da totalidade desses pontos, caso em que ocorre a cassação do título de condução. Resulta clara a falta de coincidência do objecto de tais processos. * III. DispositivoTermos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar improcedente o recurso. Custas, com taxa de justiça que se fixa em 3 (três) UC, a cargo da recorrente – (artigos 513.º e 514.º do CPP; artigo 8.º do RCP, com referência à tabela III). Coimbra, 2 de Fevereiro de 2022 Texto revisto pela relatora Isabel Valongo (relatora) Jorge França (ajunto)
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