Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5525/16.3T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: ACÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DA PATERNIDADE
PROVA PERICIAL
DEVER DE COOPERAÇÃO
RECUSA
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 02/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JUÍZO FAM. MENORES - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.417 CPC, 344 Nº2, 1798, 1801 CC, 26 CRP
Sumário: 1. - Apurado, em ação de investigação de paternidade, que o réu manteve relacionamento sexual com a mãe do menor no período legal de conceção deste, em relacionamento amoroso fugaz entre ambos, numa altura em que a mãe do menor mantinha relacionamento afetivo duradouro com outro homem, o qual veio a ser judicialmente excluído da paternidade, e sendo a mãe a única testemunha com conhecimento do relacionamento com tal réu, não havendo outra forma de demonstrar o nexo de causalidade entre aquele relacionamento sexual, a gravidez ocorrida e o nascimento do menor, cabia ao réu sujeitar-se aos exames genéticos determinados pelo Tribunal, posto que não recorreu da decisão que os ordenou.

2. - Se tal réu apresentou recusa perentória a sujeitar-se a esses exames, invocando a irrelevância de tal prova e violação da sua integridade física e da reserva da sua vida privada, importa ponderar os interesses opostos em presença, prevalecendo o interesse e o direito do menor à determinação da sua identidade, mesmo que com incómodos para o visado (a proteção do direito deste cede perante o direito à identidade pessoal e genética, nos termos do disposto no art.º 26.º da Constituição).

3. - Há inversão do ónus da prova, quando a contraparte tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, mormente em litígios em que estejam em causa direitos de personalidade, como aquele direito à identidade pessoal e genética, na vertente da paternidade.

4. - Sabendo-se que esses exames genéticos constituem hoje prova plena do ponto de vista científico da paternidade, quem (pretenso pai) culposamente impede a respetiva realização, recusando, sem justificação atendível, submeter-se a eles, assim prejudicando a descoberta da verdade, cai na previsão do n.º 2 do art.º 344.º do CCiv., conjugado com o art.º 417.º, n.º 2, do NCPCiv., se notificado com a legal cominação.

Decisão Texto Integral:









Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

Intentando ação de investigação de paternidade,

contra A (…), com os sinais dos autos,

o Exm.º Magistrado do M.º P.º, reportando-se ao menor M (…), também com os sinais dos autos,

pediu o reconhecimento da paternidade do R. relativamente a tal menor, procedendo-se ao respetivo averbamento no seu assento de nascimento, bem como da avoenga paterna,

alegando, para tanto, em síntese, que:

- o menor nasceu em 09/08/2000 e foi perfilhado por J (…) sendo, porém, que, por sentença de 17/07/2014, foi declarado que este não era o seu pai;

- em inícios de dezembro de 1999, a mãe do menor e o R. mantiveram entre si relações sexuais de cópula completa, em consequência das quais aquela engravidou, dando à luz o menor, no termo do período normal de gestação.

O R., citado, negou ter mantido relações sexuais com a mãe do menor ou ser pai deste, sendo que nunca a própria mãe do menor, a qual declarou ter mantido relações sexuais com vários homens, lhe imputou a paternidade do filho, assim concluindo pela improcedência da ação.

Dispensada a audiência prévia, saneado o processo, delineados objeto do litígio e temas de prova, determinada a realização de prova pericial para averiguação da paternidade do menor – não realizada por não comparência do R. no IMNL –, procedeu-se à produção de prova em audiência final.

Após o que foi proferida sentença, pela qual, conhecendo de facto e de direito, foi a ação julgada procedente, assim se declarando “o R. A (…) pai do menor M (…) para todos os efeitos legais” e ordenando-se o cumprimento, após trânsito em julgado, do “disposto no artigo 78º do C. de registo civil, a fim de se proceder ao correspondente averbamento da paternidade ora declarada, bem como da respectiva avoenga paterna, no assento de nascimento do menor”.

Inconformado, recorre o R., apresentando alegação, culminada com as seguintes

Conclusões ([1]):

(…)

O M.º P.º apresentou contra-alegação recursória, concluindo pela improcedência do recurso e confirmação do decidido.

O recurso foi admitido, como de apelação, com efeito suspensivo da decisão e subida imediata e nos próprios autos, tendo sido ordenada a remessa do processo a este Tribunal ad quem, onde foi mantido tal regime recursivo.

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.

II – Âmbito do Recurso

Sendo o objeto dos recursos delimitado pelas respetivas conclusões, pressuposto o objeto do processo delimitado em sede de articulados – como é consabido, são as conclusões da parte recorrente que (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso, nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor e aqui aplicável (doravante NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 –, está em causa na presente apelação saber ([2]):

a) Se houve irregularidade no procedimento adotado nos autos para realização da prova pericial, afetando, de forma relevante, o direito de defesa do R.;

b) Se deve proceder a impugnação da decisão da matéria de facto;

c) Se, em matéria de direito, ocorreu erro de julgamento, seja quanto ao ónus da prova (e inversão do mesmo) seja quanto ao desfecho do litígio.

III – Fundamentação

          A) Da irregularidade no procedimento para obtenção da prova pericial

          Pretende o Recorrente, desde logo, ter ocorrido irregularidade no procedimento adotado nos autos para realização da prova pericial, afetando, de forma relevante, o seu direito de defesa, o que impediria a extração das conclusões firmadas na sentença e que conduziram ao juízo de procedência da ação, mormente a inversão do ónus da prova.

          Vejamos, então.

          Dispõe o art.º 417.º do NCPCiv. (com a epígrafe “Dever de cooperação para a descoberta da verdade”), na parte aqui relevante:

“1 - Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados.

2 - Aqueles que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil.

3 - A recusa é, porém, legítima se a obediência importar:

a) Violação da integridade física ou moral das pessoas;

b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações;

c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4.” (itálico aditado).

E estabelece o n.º 2 do art.º 344.º do CCiv. que há “inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei de processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações” (itálico aditado).

Ora, resulta do processado dos autos, quanto à considerada recusa do R./Recorrente a submeter-se ao exame/prova pericial no INML, que:

a) Foi proferido despacho de expressa admissão dessa prova (fls. 49), do qual não foi interposto recurso (cfr. art.ºs 644.º, n.º 2, al.ª d), e 638.º, n.º 1, ambos do NCPCiv.);

b) Tal despacho de admissão de prova foi objeto de notificação ao R. (fls. 54);

c) O qual veio mostrar discordar da determinada realização do exame, por desnecessário, e afirmar que “não aceita” fazê-lo, o que traduz recusa perentória a submeter-se ao mesmo, sem nada requerer (fls. 56 a 58);

d) Perante o que foi ordenada a notificação ao R. para comparência no INML, na data designada, “com a advertência do disposto na segunda parte do n.º 2 do artigo 417.º do C.P.C.” (fls. 62);

e) Tendo-se procedido à notificação deste despacho ao Mandatário do R. (fls. 63) e ao próprio R., com explicitação da respetiva cominação (de multa, livre apreciação probatória do valor da recusa, sem prejuízo da inversão do ónus da prova, nos termos do n.º 2 do art.º 344.º do CCiv.) – cfr. fls. 64 ([3]);

f) Foi junta informação do INML, comunicando que o R. não compareceu ao exame, que, por isso, não foi realizado (fls. 73), tendo os autos prosseguido os seus normais trâmites até final em 1.ª instância.

Ora, assim sendo, não pode olvidar-se que foi apresentada declaração fundamentada de recusa perentória a submeter-se ao exame/prova, perante anterior despacho – não recorrido – a admitir expressamente (e ordenar) a perícia (também quanto ao R.).

Por isso, nada tendo sido requerido, e ordenada já a perícia, nada se impunha então acrescentar, pois que restaria valorar, oportunamente, a conduta de recusa de colaboração da parte visada, no plano probatório, posto que era de prova que se tratava e esta ficou inviabilizada.

Donde que, salvo o devido respeito, nada haja a censurar ao Tribunal a quo por, tendo optado pelo prosseguimento dos autos (para audiência final, por haver outras provas a produzir), só vir a tomar nova posição na sentença (em sede de decisória), valorando, então, aquela conduta de recusa de submissão ao exame/perícia.

Invoca o Apelante que impugnou a admissibilidade desse meio de prova em requerimento dirigido ao Tribunal e de que este não conheceu.

Porém, salvo o devido respeito, não pode colher esta argumentação.

Nem o R. apresentou requerimento – mas, apenas, declaração de recusa perentória para efeitos probatórios (nada requereu) –, nem aquela impugnação seria admissível, por processualmente inidónea perante despacho já proferido de admissão do meio de prova ([4]), pelo que apenas lhe restava a já aludida via recursória (recurso imediato de decisão interlocutória sobre admissão de meio de prova), de que não lançou mão.

Nada, pois, a censurar nesta parte à decisão recorrida, não se vendo que tenha sido prejudicado – pelo Tribunal – o seu direito de defesa.

Questão diversa – de que oportunamente se conhecerá – é a de saber se estão, ou não, verificados os requisitos factuais e legais para a decidida inversão do ónus da prova.

B) Da procedência da impugnação da decisão de facto

O Recorrente discorda do juízo do Tribunal a quo quanto à decisão da matéria de facto, situando o seu inconformismo relativamente ao ponto 4 dos factos dados como provados – onde consta que “Em finais de Novembro e em inícios de Dezembro de 1999 a mãe do menor e o R. mantiveram relações sexuais de cópula completa” – e ao juízo probatório negativo sobre ter a mãe do menor mantido, na época, relações sexuais com vários homens.

 (…)

Em suma, nada há a alterar ao juízo probatório da 1.ª instância, quedando-se, por isso, inalterado o factualismo ajuizado pelo Tribunal a quo.

C) Quadro fáctico da causa

Na 1.ª instância foi julgada provada – e agora inalterada – a seguinte factualidade ([5]) a atender:

«1.M (…) nasceu em 9/8/2000 em Santo António dos Olivais, Coimbra, sendo filho de E (…).

2. Por sentença proferida em 17-7-2014 no processo de impugnação da perfilhação com o nº 906/13.7TMCBR da 2ª secção da Vara Mista de Coimbra foi declarada como não verdadeira a declaração de perfilhação constante do assento de nascimento do menor M (…) por parte de J (…) por este não ser o pai daquele e foi ordenado o cancelamento, no assento de nascimento do menor, do averbamento de tal paternidade/perfilhação, bem como a avoenga paterna.

3. A mãe do menor e o R. trabalhavam, no ano de 1999, no bloco operatório de ortopedia dos HUC, ele como médico e ela como enfermeira.

4. Em finais de Novembro e em inícios de Dezembro de 1999 a mãe do menor e o R. mantiveram relações sexuais de cópula completa.

5. O A. requereu a realização de exames periciais ao menor, à sua mãe e ao R..

6. O R. opôs-se, por tal violar a sua vida privada e a sua dignidade pessoal, familiar e profissional, pois é casado e um distinto e conceituado médico, sendo que seriam colegas seus a fazer o exame e ficariam a saber que lhe era atribuído um relacionamento amoroso há 16 anos.

7. Tendo sido designado o dia 21-2-2017 para recolha de amostras biológicas ao menor, à sua mãe e ao R., foi este notificado para comparecer no INML-Delegação do Centro, com a advertência do disposto na segunda parte do nº 2 do artigo 417º do C.P.C., mas faltou.» ([6]).

D) Substância jurídica do recurso

1. - Da inversão do ónus da prova

Em recente aresto do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) foi adotado o seguinte entendimento ([7]):

«Diz-nos Lebre de Freitas que “o comportamento do recusante pode, mais drasticamente, determinar, quando verificado o condicionalismo do art. 344-2 do CC, a inversão do ónus da prova. Tal acontece quando a recusa impossibilita a prova do facto a provar, a cargo da contraparte, por não ser possível consegui-la com outros meios de prova, já por a lei o impedir (…), já por concretamente não bastarem para tanto os outros meios produzidos”.

E, reportando-se concretamente às acções relativas à filiação, acrescenta:

“Tido em conta o dever de colaboração, não é legítima a recusa à realização dos exames hematológicos (art. 1801º CC); mas, tida em conta a tutela dos direitos de personalidade, não é admissível a execução coerciva desses exames, sem prejuízo de a recusa dever ser valorada em termos de prova, podendo mesmo, designadamente quando implique a impossibilidade de o autor fazer prova da filiação biológica, dar lugar à inversão do ónus da prova”.

É idêntica a posição assumida por Lopes do Rego, referindo, no que toca à problemática dos exames hematológicos em acções de reconhecimento de paternidade:

“Para além da condenação em multa, se o exame se configurava como absolutamente essencial à determinação da filiação biológica – implicando, consequentemente, a recusa do pretenso pai a verdadeira impossibilidade de o autor fazer prova da invocada filiação biológica (por exemplo, em consequência de, no caso concreto, inexistirem meios probatórios que a possam demonstrar indirectamente) – deverá aplicar-se o preceituado no nº 2 do art. 344º, presumindo-se a paternidade e passando a incumbir ao recusante o ónus de criar «dúvidas sérias» sobre ela”.

Essa conduta do recusante, sublinha o mesmo Autor, “configura-se seguramente como culposa, na medida em que o tribunal haja considerado insubsistentes as razões pretensamente invocadas para se subtrair ao exame, qualificando, deste modo, a recusa como «ilegítima».

Tem sido por vezes defendido que a situação descrita de recusa não é subsumível na previsão do art. 344º nº 2, uma vez que ela não impede ou preclude a demonstração indirecta do vínculo biológico, através da prova testemunhal.

Todavia, como acentua Freitas Rangel, esse argumento não colhe, na medida em que, “com a recusa, o autor viu-se privado de recorrer à prova directa, por meios científicos, da procriação biológica que fica irremediavelmente afastada com a recusa de cooperação do réu”.

Acrescenta o mesmo Autor que o regime previsto no art. 344º, nº 2, “não pressupõe que o único meio de prova idóneo para a demonstração de determinado facto seja o inviabilizado pela conduta culposa da parte. Basta que se trate de meio de prova de especial relevância, isto é, que só por si fosse idóneo para garantir a procedência da acção”.

Pode, pois, concluir-se que se o investigado, com a sua recusa, ilegítima – de se submeter a exame laboratorial susceptível de fornecer prova directa da filiação biológica – inviabiliza a prova desta filiação, deve, por aplicação do art. 344º nº 2, inverter-se o ónus da prova, passando a parte que impossibilitou a prova a ficar onerada com a demonstração da não verificação daquele facto» ([8]).

E prossegue o mesmo Ac. STJ:

«... não se descortinam razões que justifiquem a falta de comparência do réu ao exame, que, aliás, como é sabido e se fosse esse o obstáculo, nem teria de ser efectuado com base em amostras de sangue (apesar de ser suficiente uma simples picada para este efeito), podendo incidir sobre outro material biológico (unhas, cabelo, saliva).

Assim, a não comparência injustificada do réu ao exame é, no circunstancialismo provado, culposa e ilegítima, tendo tornado impossível a prova directa do facto da procriação biológica.

(…)

Neste contexto, a recusa do réu em submeter-se a exame impossibilitou a prova directa da procriação biológica, que era, em concreto, o único meio de demonstrar esse facto, face à falência da prova indirecta através de testemunhas.

Deve, pois, operar a inversão do ónus da prova, nos termos acima expostos, pelo que impendia sobre o réu a prova de que o autor não é fruto de relações de sexo entre o réu e a mãe do autor e, assim, que este não é filho daquele.

Prova que o réu não logrou efectuar, como decorre da decisão proferida sobre a matéria de facto, devendo a dúvida sobre a realidade desse facto ser resolvida contra si (art. 414º do CPC).

Esse non liquet em termos de prova deve ser resolvido por um liquet desfavorável ao réu, onerado com a prova».

Na mesma linha, foi entendido no Ac. STJ de 17/05/2016 ([9]):

«I. Há inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei do processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações.

II. Tendo em conta que os testes de ADN são como que uma prova plena do ponto de vista científico da paternidade, ou seja, do ponto de vista da realidade factual, manifesto é que aquele que culposamente impede a realização desses exames está a preencher a previsão do n.º 2 do art.º 344.º do CC.

III. A atitude do R, investigado progenitor, não aceitando a solução de recolha do seu material biológico pelo INML, nem por qualquer outra instituição, salvo se efectivada na Síria e por ordem de um tribunal sírio, o que já sabia não ser viável nem ter o valor de prova, implica uma recusa implícita e ilegítima, logo, uma violação culposa do dever de cooperação».

E no Ac. STJ de 23/02/2012 ([10]):

«(…)

III - Aquele que, culposamente, se recusa a se submeter as testes de ADN em acção de investigação da paternidade em que é réu, fica onerado com o encargo de provar que não é pai, nos termos do art.º 344º nº 2 do C. Civil.

IV - O direito à identidade pessoal, por referência a um determinado arquétipo familiar, do réu, em acção de investigação da paternidade, tem de ceder perante o direito à identidade pessoal e genética do filho, nos termos do art.º 26º da Constituição.

(…)

VI - Em acção de investigação da paternidade, deve o réu ser notificado para se submeter aos testes de ADN com a advertência de que a sua recusa injustificada implica a inversão do ónus da prova, nos termos do art.º 344º nº 2 do C. Civil».

Também no Ac. STJ de 02/02/2010 ([11]):

«(…)

III - Tendo o réu deixado de comparecer no exame designado, sem haver justificado a falta, nem ter requerido a marcação de um novo exame ou agravado da decisão que o determinou, não pode, sob pretexto da impossibilidade legal de atribuir valor probatório à sua recusa, recuperar a questão da validade do exame hematológico que deixou precludir.

IV - Ainda que o tribunal de 1.ª instância tenha fundado a convicção de que entre a mãe do menor e o réu existiram relações sexuais de cópula completa, no período legal da concepção do menor, com base na recusa do réu em submeter-se a exame hematológico, na qual assentou a presunção de paternidade, que o réu não logrou ilidir, agiu no âmbito das regras definidas pelos arts. 519.º, n.º 1, do CPC, e 357.º, n.º 2, do CC, apreciando, criticamente, o valor da sua conduta, para efeitos probatórios, que este STJ não pode sindicar».

E, do mesmo modo, no Ac. STJ de 23/09/2008 ([12]):

«1º - A causa de pedir nas acções de investigação de paternidade é constituída pelo acto gerador, competindo à mãe do menor, na falta de presunção legal, alegar e fazer a prova de que, no período legal de concepção, só com o investigado manteve relações sexuais de cópula completa;

2º - Provando a mãe do menor que com o investigado manteve relações sexuais durante o período legal de concepção, presume-se a paternidade do mesmo, o qual, todavia, pode ilidir tal presunção com base em dúvidas sérias que possa suscitar;

3º - Devolvendo-se, nesse caso, ao autor o ónus da prova da exclusividade do relacionamento sexual durante o período legal de concepção;

4º - Podendo hoje provar-se a paternidade biológica por meio científico (art. 1801º do CC), a recusa a exame hematológico pelo autor requerida, por banda do investigado, sem justificação, faz inverter o ónus da prova a cargo daquele demandante» ([13]).

Concordando-se com esta posição reiterada e fundamentada do STJ, cabe ainda dizer que, no caso dos autos, a ocorrida recusa perentória do R. a submeter-se a exame pericial não era legítima.

Com efeito, no confronto entre o direito do menor à identidade pessoal, com estabelecimento da paternidade – ademais, em caso em que havia sido judicialmente impugnada, como vem apurado, a perfilhação do menor, em consequência do que foi declarada como não verdadeira a declaração de perfilhação constante do respetivo assento de nascimento, por o perfilhante, J (…), não ser o pai, com decorrente cancelamento do averbamento de tal paternidade/perfilhação e da avoenga paterna –, e os direitos de personalidade do R. – invocada violação da “integridade física” e da “reserva da vida privada” (cfr. fls. 57) –, atenta a relevância dos interesses em causa e as consequências da invocada violação, sempre teria de prevalecer o direito e o interesse do menor a ver estabelecida a paternidade e a sua identidade, ainda que com incómodos para o R. (os resultantes da normal convivência humana e social e que a ordem jurídica impõe para garantia necessária de direitos essenciais e indispensáveis de outrem).

Donde que o R./Apelante não pudesse, nessa perspetiva, recusar-se a ser sujeito ao exame (cfr. art.º 417.º, n.ºs 2 e 3, al.ªs a) e b), do NCPCiv.), que se mostrava essencial para a descoberta da verdade e boa decisão da causa e que, como referido, nem teria de ser efetuado com base em amostras de sangue (apesar de ser suficiente uma simples picada para este efeito), podendo incidir sobre outro material biológico (unhas, cabelo, saliva).

Não se descortinam, pois, razões válidas/atendíveis que justificassem, in casu, a declarada recusa perentória e a falta de comparência do R. ao exame determinado, pelo que a sua conduta apurada só pode ter-se, ante a relevância e graduação dos interesses e direitos em jogo, como obstáculo injustificado à realização da justiça, através do impedimento à descoberta da verdade e boa decisão da causa, assumindo-se, no circunstancialismo provado, como culposa e ilegítima, tendo tornado impossível a prova direta do facto da procriação biológica.

Assim se conclui, também aqui, que foi a recusa do R. em submeter-se a exame a deixar impossibilitada a prova direta da procriação biológica, que era, em concreto, o único meio de demonstrar esse facto, face à falência da prova indireta através de testemunhas.

Por isso se compreende que deva, neste contexto, operar a inversão do ónus da prova, nos termos expostos, pelo que impendia sobre o demandado a prova de que o menor não é fruto de relações de sexo entre o R. e a mãe daquele e, assim, que tal menor não é filho do R./Apelante.

Prova que este não logrou fazer, como decorre da decisão proferida sobre a matéria de facto, devendo a dúvida sobre a realidade desse facto ser resolvida contra si (art.ºs 417.º, n.ºs 1 e 2, e 414.º, ambos do NCPCiv., e 344.º, n.º 2, do CCiv.).

2. - Do período legal de conceção

Defende ainda o Recorrente que o menor não pode ser seu filho.

Argumenta que, se a mãe do menor tivesse tido relações sexuais com o Apelante no período dado como provado, e tendo o menor nascido de forma prematura e ao fim de 32 semanas, nunca poderia a gravidez ocorrida ser consequência de eventuais relações sexuais tidas com o Recorrente, porquanto a conceção teria que se ter dado depois de 28/12/1999.

Como visto, concluiu-se pela coerência do relato da mãe do menor no sentido de o nascimento do filho ter sido prematuro, em um mês (nascimento aos oito meses de gestação, em agosto de 2000, em vez de aos nove meses).

E já se adiantou, em todo o caso, que dos dois diversos períodos temporais discutidos (finais de novembro/inícios de dezembro de 1999 e, por outro lado, 09/08/2000) logo pode concluir-se e quantificar-se relativamente ao dito caráter prematuro.

Assim sendo, resta atentar no factualismo provado.

Se – como se provou – o menor nasceu em 09/08/2000 e resultou apurado que o relacionamento sexual entre a sua mãe e o R./Apelante ocorreu em finais de novembro e inícios de dezembro de 1999, portanto cerca de oito meses antes do seu nascimento, então nenhum obstáculo se retira da ponderação do período legal de conceção, apenas sendo de concluir que o menor nasceu prematuramente em cerca de um mês (em vez de aos nove meses de gestação, que apenas se completariam em setembro seguinte, nasceu aos oito meses, em agosto).

O período legal de conceção vem estabelecido no art.º 1798.º do CCiv., segundo o qual o momento da conceção do filho é fixado, para os efeitos legais, dentro dos primeiros cento e vinte dias dos trezentos que precederam o seu nascimento, salvas as exceções dos artigos seguintes (que aqui não importam).

De acordo com este critério, o período legal de conceção do menor decorreu, grosso modo, entre meados de outubro de 1999 e meados de fevereiro de 2000, o que contempla, obviamente, o tempo do apurado relacionamento sexual entre a mãe do menor e o R. (por finais de novembro e inícios de dezembro de 1999), correspondente a cerca de oito meses antes do nascimento (o que se conjuga com a relatada prematuridade em cerca de um mês).

Nada obsta, pois, à pretensão do A., posto dever – reitera-se – operar a inversão do ónus da prova, com a consequência de impender sobre o R./Recorrente a prova de que o menor não é fruto de relações de sexo entre tal demandado e a mãe daquele, de molde a demonstrar que o menor não é seu filho.

Verificado, manifestamente, que não logrou fazer-se tal prova negativa, a dúvida sobre a realidade desse facto é resolvida contra si (R.), o que logo determina a improcedência do recurso, havendo de manter-se inalterada a decisão recorrida.


***

IV – Sumário (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

1. - Apurado, em ação de investigação de paternidade, que o réu manteve relacionamento sexual com a mãe do menor no período legal de conceção deste, em relacionamento amoroso fugaz entre ambos, numa altura em que a mãe do menor mantinha relacionamento afetivo duradouro com outro homem, o qual veio a ser judicialmente excluído da paternidade, e sendo a mãe a única testemunha com conhecimento do relacionamento com tal réu, não havendo outra forma de demonstrar o nexo de causalidade entre aquele relacionamento sexual, a gravidez ocorrida e o nascimento do menor, cabia ao réu sujeitar-se aos exames genéticos determinados pelo Tribunal, posto que não recorreu da decisão que os ordenou.

2. - Se tal réu apresentou recusa perentória a sujeitar-se a esses exames, invocando a irrelevância de tal prova e violação da sua integridade física e da reserva da sua vida privada, importa ponderar os interesses opostos em presença, prevalecendo o interesse e o direito do menor à determinação da sua identidade, mesmo que com incómodos para o visado (a proteção do direito deste cede perante o direito à identidade pessoal e genética, nos termos do disposto no art.º 26.º da Constituição).

3. - Há inversão do ónus da prova, quando a contraparte tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, mormente em litígios em que estejam em causa direitos de personalidade, como aquele direito à identidade pessoal e genética, na vertente da paternidade.

4. - Sabendo-se que esses exames genéticos constituem hoje prova plena do ponto de vista científico da paternidade, quem (pretenso pai) culposamente impede a respetiva realização, recusando, sem justificação atendível, submeter-se a eles, assim prejudicando a descoberta da verdade, cai na previsão do n.º 2 do art.º 344.º do CCiv., conjugado com o art.º 417.º, n.º 2, do NCPCiv., se notificado com a legal cominação.


***

V – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo, consequentemente, a sentença recorrida.

Custas da apelação pelo R./Apelante.


Coimbra, 06/02/2018

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).
Assinaturas eletrónicas.

Vítor Amaral (relator)

                    Luís Cravo

                                      

Fernando Monteiro


([1]) Que se transcrevem, com negrito e sublinhado retirados.
([2]) Caso nenhuma das questões resulte prejudicada pela decisão das precedentes.
([3]) Foi cumprido o disposto no art.º 247.º, n.º 2, do NCPCiv., pelo que foi efetuada a notificação com a legal cominação.
([4]) Com o decorrente esgotamento do poder jurisdicional da 1.ª instância (art.º 613.º, n.ºs 1 e 3, do NCPCiv.).
([5]) Que se deixa transcrita.
([6]) Foi ainda julgado que “Não resultaram provados outros factos com interesse para a decisão a proferir, nomeadamente, que naquela época a mãe do menor tenha mantido relações sexuais com vários homens, médicos, advogados, juízes e homens dos seguros”.
([7]) Trata-se do Ac. STJ de 03/09/2017, Proc. 737/13.4TBMDL.G1.S1 (Cons. Pinto de Almeida), em www.dgsi.pt, no qual são citados, entre outros, Lebre de Freitas – em Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 2.ª ed., p. 440, bem como Código Civil Anotado (coordenação de Ana Prata), Vol. I, ps. 427 e 428 –, Lopes do Rego – in Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2.ª ed., p. 454, e O ónus da prova nas acções de investigação de paternidade: prova directa e indirecta do vínculo da filiação, Comemorações dos 35 Anos do Código Civil, Vol. I, 787 –, Rodrigues Bastos – em Notas ao CPC, Vol. III, 3.ª ed., p. 81 –, Teixeira de Sousa – em Estudos Sobre o Novo Processo Civil, p. 322 – e Paula Costa e Silva – in A realização coerciva de testes de ADN em acções de estabelecimento da filiação, em Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel Magalhães Collaço, Vol. II, ps. 577 e ss..
([8]) Louva-se, no plano jurisprudencial, nos “Acórdãos do STJ de 06.02.2003, de 23.09.2008, de 02.02.2010, de 23.02.2012 e de 17.05.2016”.
([9]) Proc. 8928/11.6TBOER.L2.S1 (Cons. Paulo de Sá), em www.dgsi.pt.
([10]) Proc. 994/06.2TBVFR.P1.S1 (Cons. Bettencourt de Faria), também em www.dgsi.pt.
([11]) Proc. 684/07.9TBCBR.C1.S1 (Cons. Hélder Roque), em www.dgsi.pt.
([12]) Proc. 08B1827 (Cons. Serra Baptista), em www.dgsi.pt.
([13]) Veja-se ainda o anterior Ac. STJ de 28/05/2002, Proc. 02A1633 (Cons. Afonso de Melo), em www.dgsi.pt, segundo o qual, quanto à “exclusividade das relações sexuais imposta pelo assento de 1983, hoje como Acórdão uniformizado”, “Recusando o réu os exames hematológicos, inverteu-se o ónus da prova sobre essa exclusividade”.