Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
741/13.2TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: INVENTÁRIO
BENS COMUNS
CRÉDITO
CÔNJUGE
COMPENSAÇÃO
Data do Acordão: 10/07/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA - VARA DE COMPETÊNCIA MISTA 1ª S
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 1697 E 1730 CC
Sumário: 1. O regime das compensações previsto no artigo 1697º, apenas abrange as compensações por terem sido pagas dívidas comuns por meios de bens próprios ou dívidas próprias com bens comuns.

2. O crédito resultante da autora ter procedido ao pagamento das prestações de empréstimos bancários contraídos por ambos quando, pelo acordo complementar do divórcio, a casa de morada de família ficaria atribuída ao cônjuge marido até à partilha mediante a obrigação de este pagar sozinho as referidas prestações bancárias, consiste num pagamento com bens próprios de uma obrigação exclusiva do outro cônjuge.

3. O referido crédito, tal como todos aqueles que resultem de uma transferência de valores entre patrimónios próprios, constituem créditos entre os cônjuges, alheios à compensação, sendo exigíveis desde o momento do seu surgimento, por se encontrarem sujeitos ao regime geral das obrigações, não se justificando o seu diferimento para o momento da partilha.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

S (…) instaurou a presente ação declarativa sob a forma de processo sumário contra D (…)

pedindo a condenação do réu no pagamento da quantia de 6.390,40 € e ainda as quantias mensais que a tal título a autora vier a satisfazer à Caixa (...), acrescida de juros de mora à taxa legal.

Para o efeito, alegou, em síntese:

contraiu casamento com o réu, o qual foi dissolvido por divórcio em 24.05.2011;

nesse processo as partes firmaram o seguinte acordo: “Existe casa de morada de família que ficará atribuída ao cônjuge marido até à partilha e com início no próximo dia 03.06, mediante a obrigação de pagar sozinho, até à partilha, os empréstimos aos respectivos bancos que rondam actualmente as quantias mensais de 485,00€ e 380,00€, respectivamente, sem direito de tal reclamar como crédito pessoal na partilha”;

os empréstimos a que se reporta o acordo em questão constituíam dívidas do dissolvido casal garantidas por hipotecas; o réu não pagou esses empréstimos, vendo-se a autora obrigada a fazer tais pagamentos porquanto avisada pelo banco que se tal não sucedesse as hipotecas seriam executadas.

os pagamentos em questão totalizam o montante de 6.390,40€ e foram efetuados nos meses de Outubro a Janeiro de 2013, sendo que a autora também liquidará as prestações que entretanto se vencerem até liquidação integral ou mesmo até à partilha da casa de morada de família.

O réu contestou, por exceção, invocando a nulidade do acordo celebrado porquanto as amortizações a que a autora se reporta têm na sua génese empréstimos bancários da responsabilidade de ambos os cônjuges, e ainda o momento processualmente oportuno para exigir os créditos respetivos é o da partilha dos bens comuns do casal, aquando da separação de meações, havendo que imputar a ambas as meações o passivo do acervo a partilhar, verificando-se erro na forma do processo.

Conclui pela improcedência da ação.

A autora respondeu à contestação, salientando a legitimidade desta ação e pugnando pela condenação do réu como litigante de má-fé.

O juiz a quo proferiu saneador/sentença, considerando que os créditos reclamados são inexigíveis até à partilha, não sendo este o momento próprio para o fazer, julgando em consequência improcedente a presente ação, absolvendo o réu do pedido.

Inconformada com tal decisão, a autora dela interpôs recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

A - A dívida peticionada nos presentes autos pela A. ao R., não só não faz parte do património comum porque inexistente à data da proposição da ação de divórcio instaurada por aquela a este, como também não se mostra ferida de nulidade por violação do disposto no Art. 1730º do C.C. o acordo originário da mesma.

B - Com efeito, tal como tudo melhor se alcança duma leitura atenta do acordo celebrado entre A. e R. na Conferência de Divórcio datada de 24.05.2011 do processo de divórcio que correu seus termos sob o nº 1412/11.0TBLRA do 3º Juízo Cível deste Tribunal de Leiria, transcrito na alínea B – 3 Fundamentação de Facto da D.sentença ora recorrida,

C – O R., porque a A. lhe atribuiu o direito de habitar a casa da morada de família desde 3.06.2011 até à partilha, obrigou-se a pagar pelo uso desse direito, as quantias mensais de cerca de 485,00€ e 380,00€, correspondentes a valores de empréstimos bancários contraídos pelo ex-casal.

D - Ou seja, apesar daquele acordo ter a sua génese em dívidas pelos quais ambos respondem na proporção de metade conforme se dispõe no Artº 1730º do Cód.Civil (os empréstimos bancários “ut supra” referidos),

E - com a sua celebração, A. e R. não pretenderam de modo algum alterar a regra de metade aqui disposta,

F - mas antes fixar o valor dum pagamento a efetuar por este aquela a título de compensação pelo direito do R. usufruir sozinho a casa da morada de família, desde 3.06.2011 até à partilha.

G - Pagamento esse que só por maior comodidade ambos fixaram em ser satisfeito diretamente ao banco e não à A.

H - Assim, porque, atento o que se dispõe no Artº 1689º nº 1 do C.C. – cada cônjuge receberá na partilha os bens próprios e a sua meação nos bens comuns, conferindo previamente o que dever a esse património –

I - e porque a lei faz retroagir os efeitos do divórcio, no tocante às relações patrimoniais entre os cônjuges à data da proposição do divórcio (Artº 1789º do C.C.),

J - e ainda porque na situação em apreço facilmente se verifica que a data da entrada da petição do processo de divórcio só pode ser anterior à data da celebração do acordo em causa,

K - a composição do património comum só pode englobar os bens existentes nessa data e não os contraídos posteriormente a essa data (entrada da p.i. de divórcio em Tribunal), apenas esses devendo ser assim objeto de partilha,

L - (atente-se ao que se refere no D.Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 8.01.2011 (Proc. 4931/10.1TBLRA.C1)) – “Com a retroação - que significa que a composição da comunhão se deve considerar fixada no dia da proposição da ação e não do dia do trânsito em julgado da decisão e que a partilha deve ser feita como se a comunhão tivesse sido dissolvida no dia da instauração da ação ou na data em que cessou a coabitação – quer-se evitar o prejuízo de um dos cônjuges pelos atos de insensatez, prodigalidade ou de pura vingança que o outro venha a praticar desde a proposição da ação sobre valores do património comum (ensinamento de Pires Lima / Antunes Varela, Cód.Civil Anotado, Coimbra Editora 1992, Vol. IV, pág. 561” (SIC),

M - Estamos assim perante uma dívida contraída depois da dissolução do casamento entre os cônjuges e que se reporta ao património próprio de cada um sem intervenção do património comum (apesar de ter a sua génese neste).

N - Só erroneamente se refere no D.Despacho Saneador Sentença recorrido que estamos perante uma situação de compensação entre cônjuges que deverá ser operada na partilha e que até esta (partilha) tais valores reclamados pela A. ao R. não são exigíveis.

O - Deste modo, porque na situação em apreço se mostram reunidos e verificados os requisitos exigidos pelo invocado instituto de enriquecimento sem causa estatuído no Artº 473º do C.C. (que alguém obtenha um enriquecimento que o obtenha à custa do outro; que o enriquecimento não tenha causa justificativa; e inexistência de ação apropriada que possibilite ao empobrecido meio de ser indemnizado ou restituído), deverá anular-se a D.decisão proferida no Despacho Saneador-Sentença ora recorrido, substituindo-o por outro que julgue a presente ação procedente por provada e condene o R. no pedido, ou, a assim não se entender a ordenar o regular prosseguimento da lide até final.

P - De igual modo, e sem conceder, sempre se dirá ainda que a verificar-se qualquer situação de inexigibilidade da dívida reclamada pela A. ao R., esta (inexigibilidade), porque exceção dilatória importava a absolvição do R. da instância e não do pedido, atento o que se dispõe nos Artº 278º, 576º e 577º todos do nCPC.

Q - Deverá assim revogar-se o D.Despacho Saneador-Sentença ora recorrido, substituindo-o por outro que julgando a ação procedente por provada, condene o R. no pedido, ou, quando assim se não entender, que determine o regular prosseguimento da lide até final, sob pena de se violar o disposto no Artº 473º, 1689º, 1697º e 1730º todos do Cód.Civil.

R - Acaso assim se não entenda, o que só por mera hipótese académica ora se admite, sempre se dirá ainda que a verificar-se qualquer situação de inexigibilidade da dívida peticionada pela A. ao R., esta inexigibilidade, porque exceção dilatória importa a absolvição do R. da instância e não do pedido, conforme estatuído nos Artº 278º, 576º e 577º todos do nCPC..

Não foram apresentadas contra-alegações.
Cumpridos os vistos legais nos termos previstos no nº2, in fine, do art. 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., arts. 635º, e 639, do Novo Código de Processo Civil[1] –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Se o crédito reclamado pela autora só é exigível no âmbito do inventário para partilha do património comum.
2. A verificar-se a inexigibilidade do crédito, se tal importava a absolvição do pedido ou da instância.
3. Não se verificando a inexigibilidade, se se verificam os demais pressupostos para a peticionada condenação do réu no pedido.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

1. Se o crédito reclamado pela autora só é exigível no âmbito do inventário para partilha do património comum.

O Tribunal a quo teve em consideração os seguintes factos para a decisão da questão em apreço:

A. Autora e Réu contraíram casamento católico em 15 de Agosto de 1998, sem convecção antenupcial o qual foi dissolvido por divórcio decretado por sentença, já transitada em julgado e proferida no âmbito do processo nº 1412/11.0TBLRA do 3º Juízo Cível deste Tribunal.

B. No âmbito do processo referido em A. Autora e Réu acordaram relativamente à casa de morada de família que “Existe casa de morada de família que ficará atribuída ao cônjuge marido até à partilha e com início no próximo dia 03.06, mediante a obrigação de pagar sozinho, até à partilha, os empréstimos aos respectivos bancos que rondam actualmente as quantias mensais de 485,00€ e 380,00€, respectivamente, sem direito de tal reclamar como crédito pessoal na partilha”.

C. A casa de morada de família não foi ainda partilhada.

D. Por conta do acordo referido em B. o réu não entregou à Caixa (...) as quantias mensais referentes aos meses de Outubro de 2011 a Janeiro de 2013, discriminadas nas seguintes prestações:

– Outubro de 2011 no valor de 415,00€;

- Novembro de 2011 no valor de 407,59;

- Dezembro de 2011 no valor de 410,00€;

- Janeiro de 2012 no valor de 408,00€;

- Fevereiro de 2012 no valor de 404,00€;

- Março de 2012 no valor de 404,00€;

- Abril de 2012 no valor de 425,00€;

- Maio de 2012 no valor de 404,00€;

- Junho de 2012 no valor de 380,18€;

- Julho de 2012 no valor de 405,00€;

- Agosto de 2012 no valor de 387,00€;

- Setembro de 2012 no valor de 387,00€;

- Outubro de 2012 no valor de 411,30€;

- Novembro de 2012 no valor de 374,10€;

- Dezembro de 2012 no valor de 374,44€;

- Janeiro de 2013 no valor de 393,79€;

E. Por conta do referido em D. a autora entregou à Caixa (...) as quantias aí discriminadas.

Teremos ainda em consideração os seguintes factos, relativamente aos quais existe acordo entre as partes:

F. Avisada a A. pelo banco de que o R. não havia feito tais pagamentos mensais e que iriam executar judicialmente a competente hipoteca, viu-se a A. obrigada, com vista a evitar os elevados dispêndios com a referida execução hipotecária, a satisfazer em substituição do R. aqueles pagamentos à entidade bancária.

G. Os empréstimos bancários a que se refere o acordo referido em B., foram contraídos por ambos os cônjuges durante a pendência do matrimónio, encontrando-se garantidos por hipotecas.

H. Apesar da casa de morada de família não ter sido ainda partilhada, o réu continua aí a residir.


*

A decisão a proferir no presente recurso passa pela resposta a dar às seguintes questões:

- natureza da dívida paga pela autora;

- validade do acordo celebrado entre os cônjuges;

- exigibilidade do crédito da autora.

O Juiz a quo, configurando a situação em apreço como um caso de pagamento de uma dívida da responsabilidade de ambos os cônjuges, com bens próprios de um deles, veio a concluir pela inexigibilidade do crédito fora do momento da partilha, ao abrigo do disposto no nº1 do artigo 1671º do Código Civil.

A Apelante insurge-se contra tal enquadramento e, a nosso ver, com toda a razão.

O referido enquadramento estaria correto se ignorássemos o acordo celebrado entre os cônjuges aquando do seu pedido de divórcio, ou seja, se tivéssemos em consideração unicamente que a aqui autora procedeu (com dinheiro seu) ao pagamento à Caixa de Crédito Agrícola das prestações de empréstimos bancários celebrados por ambos para aquisição da casa de morada de família e outros bens comuns, empréstimos estes que seriam da responsabilidade de ambos os cônjuges e que fazem parte do passivo comum.

Contudo, não é essa a causa de pedir nem o fundamento jurídico em que a autora faz assentar a presente ação.

A autora fundamenta o seu direito de crédito no acordo complementar de divórcio respeitante ao destino da casa de morada de família[2], pelo qual “a casa de morada de família ficará atribuída ao cônjuge marido até à partilha, com início no próximo dia 03/06, mediante a obrigação de este pagar sozinho até à partilha, os empréstimos aos respetivos bancos que rondam actualmente as quantias mensais de 485,00 € e 380,00, respectivamente, sem direito de tal reclamar como crédito pessoal na partilha.”

Mediante tal acordo, pretenderam os cônjuges determinar a atribuição do uso da casa de morada de família (imóvel que constituirá um bem comum do casal), até à partilha. E, tendo acordado na atribuição do seu uso (desde 3.06. 2011 até à partilha) ao ex-cônjuge marido, acordaram igualmente em que fosse este a suportar determinados encargos mensais, para compensar a autora da atribuição de tal uso exclusivo ao seu ex-cônjuge.

Ou seja, os cônjuges quiseram estabelecer uma contrapartida económica para o uso da casa de morada de família, sendo indiferente, para a natureza do acordo, que a quantia mensal acordada fosse suportada mediante um pagamento a efetuar diretamente à autora, ou mediante o encargo de proceder à liquidação ao banco de determinadas prestações da responsabilidade de ambos.

O crédito reclamado não tem por fundamento o facto de a autora ter procedido ao pagamento de uma dívida comum (o que aconteceria se qualquer um deles tivesse adiantado o valor das prestações do referido empréstimo, sem que algo tivesse sido acordado a tal respeito).

O crédito reclamado fundamenta-se no acordo realizado entre ambos, em sede de processo de divórcio – cujos efeitos retroagem à data da propositura de tal ação –, pelo qual, em troca da atribuição do uso exclusivo da casa de morada de família, o réu teria de assumir determinados encargos e no incumprimento por parte do réu da de tal obrigação.

Tendo a autora sido obrigada (sob pena de execução do imóvel hipotecado) a proceder ela própria ao pagamento das prestações mensais à instituição bancária, pelo facto de o réu não ter cumprido a obrigação resultante daquele acordo, encontramo-nos perante um pagamento com bens próprios da ora autora de uma dívida da inteira responsabilidade do réu (pelo menos, nas relações internas).

Assim sendo, tal acordo não viola o disposto no nº1 do artigo 1730º do CC, que estipula que os cônjuges participam por metade no ativo e no passivo da comunhão, cominando com a nulidade qualquer estipulação em sentido diverso.

Da referida regra da metade decorre que os nubentes não poderão determinar, em convenção antenupcial, que a divisão do seu património comum se faça de forma diferente, sendo-lhes vedada qualquer possibilidade de uma participação nos bens comuns em partes desiguais[3].

O acordo aqui invocado deixa intocada a regra da participação por metade no ativo e no passivo da comunhão. É um acordo para vigorar após a dissolução do casamento por divórcio e até à partilha, respeitando tão só à atribuição do uso da casa de morada de família, sem qualquer interferência nas operações de partilha.

E tal crédito é desde já exigível, tanto mais que as partes acordaram em que o réu não ficaria com direito a reclamar na partilha os valores que viessem a ser pagos por si ao abrigo de tal acordo.

Com efeito, não lhe será aplicável o disposto no artigo 1697º do CC, relativo às “Compensações devidas pelo pagamento de dívidas do casal”:

“1. Quando por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges tenham respondido bens de um só deles, este torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer; mas este crédito só é exigível no momento da partilha dos bens do casal, a não ser que vigore o regime da separação.
2. Sempre que por dívidas da exclusiva responsabilidade de um só dos cônjuges tenham respondido bens comuns, é a respectiva importância levada a crédito do património comum no momento da partilha.”

Como salienta Cristina M. Araújo Dias, as compensações pelo pagamento de dívidas do casal, reguladas entre nós pelo artigo 1697º, apenas “abordam as compensações devidas por terem sido pagas dívidas comuns por meio de bens próprios ou dívidas próprias com bens comuns[4]”.

Quanto aos créditos e débitos existentes entre os cônjuges ou entre os seus patrimónios próprios, são alheios à liquidação da comunhão, seguindo o regime geral[5].

Segundo Cristina Araújo Dias[6], para haver compensação strito sensu tem de verificar-se um relacionamento entre o património comum e o património comum e o património próprio dos cônjuges. Se existirem apenas transferências de valores entre patrimónios próprios dos cônjuges, teremos créditos entre os cônjuges, que integram o conceito de compensação em sentido estrito, por ausência de relacionamento.

“Por definição, uma compensação presume um movimento de valores entre o património comum e o património próprio dos cônjuges. Se durante o regime matrimonial, a transferência de valores se realizar entre patrimónios próprios, haverá um crédito entre os cônjuges, e não uma compensação. Tais créditos entre cônjuges obedecem a um regime jurídico distinto das compensações. Desde logo, salvo convenção em contrário, tais créditos são exigíveis desde o momento do seu surgimento, por estarem, efetivamente, sujeitos ao regime geral do Direito das Obrigações, não se justificando o seu diferimento para o momento da partilha. O seu pagamento pode ser exigido durante o casamento, sem esperar pela sua dissolução e pela liquidação e partilha do regime matrimonial[7]”.

2. Não se verificando a inexigibilidade, se se verificam os demais pressupostos para a peticionada condenação do réu no pedido.

Inexistindo qualquer facto controvertido a carecer de instrução, os autos contêm desde já, todos os elementos para uma apreciação conscienciosa do pedido formulado pela autora.

A obrigação de restituir/indemnizar fundada no instituto do enriquecimento sem causa pressupõe a verificação cumulativa dos quatro seguintes requisitos:

a) a existência de um enriquecimento;

b) que ele careça de causa justificativa;

c) que o mesmo tenha sido obtido à custa do empobrecimento daquele que pede a restituição;

d) que a lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser restituído/indemnizado.

Segundo o réu, no caso em apreço não se verificaria, desde logo, “o enriquecimento” do réu e o consequente empobrecimento da autora, porquanto, os pagamentos feitos, por um ou por outro, ou por ambos, das prestações relativas a estes empréstimos bancários, por ambos contraídos, só valorizam o património comum na medida em que diminuem o passivo.
A noção de enriquecimento coincide aqui com o conceito de deslocação patrimonial, correspondendo ao ato por virtude do se aumenta o património de uma pessoa à custa de outrem, seja qual for a forma por que o aumento se opera[8].
E a expressão deslocação patrimonial, não significa que o enriquecimento se traduza necessariamente numa deslocação de valores do património do lesado para o património do enriquecido, podendo consistir num pagamento efetuado por terceiro ou na poupança de uma despesa.
No caso do cumprimento efetuado por terceiros, nos termos do artigo 478º, a deslocação patrimonial consiste na liberação do devedor à custa da prestação efetuada pelo solvens[9].
No enriquecimento por despesas efetuadas por outrem (abrangendo o enriquecimento por incremento de valor de coisas alheias e o enriquecimento por dívidas alheias”, como explicita Menezes Leitão[10], o requisito “à custa de outrem”, reconduz-se à averiguação de qual foi o património que suportou economicamente a despesa, uma vez que só o titular deste património tem legitimidade para recorrer à pretensão de enriquecimento.
Tendo a autora procedido ao pagamento das prestações mensais devidas à Caixa (...) entre Outubro de 2011 e Janeiro de 2013, obrigação essa que incumbia ao ex-cônjuge marido, como contrapartida pelo uso da casa de morada de família até à partilha, conforme o acordado entre ambos, encontra-se demonstrado o “enriquecimento” por parte do réu e o consequente empobrecimento da autora: o autor usufruiu da casa de morada de família sem que tenha suportado o respetivo custo acordado entre ambos, tendo sido autora quem veio a suportar as prestações que, segundo o acordado haveriam de ter sido pagas pelo réu. É assim irrelevante para este efeito que, com os pagamentos efetuados pela autora, o património comum venha a ficar valorizado pela correspondente diminuição do passivo – mais uma vez se refere que o que aqui está em causa não é o direito ao reembolso da metade que pagou a mais relativamente a uma dívida da responsabilidade de ambos os cônjuges, mas o direito ao reembolso da totalidade por ter procedido ao pagamento de uma obrigação que, nas relações entre ambos, era da exclusiva responsabilidade do ex-cônjuge marido.
A lei não dá a noção da inexistência de causa do enriquecimento, limitando-se no nº2 do artigo 473º, do Código Civil, a fornecer exemplos dos casos em se verificará – terá por objeto o que for indevidamente recebido ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.
De qualquer modo, desde logo se constata que a inexistência de causa justificativa se reporta ao enriquecimento, e não ao ato que levou ao empobrecimento. No caso em apreço, o enriquecimento do réu carece de causa justificativa uma vez que tem vindo a usufruir em exclusividade de um bem comum, sem pagamento de qualquer contrapartida, violando a acordo entre o casal.

Por fim, inexistirá outra forma de a autora reclamar o seu crédito, porquanto, ao contrário do defendido pelo réu, não tendo por fundamento um pagamento com bens próprios de uma dívida comum, mas o pagamento com meios próprios de uma obrigação assumida pelo réu, a reclamação de tal crédito extravasa as operações de partilha uma vez que, com esta, se pretende um acerto de uma espécie de “conta corrente” existente entre o património comum e os patrimónios próprios (quer porque se utilizam verbas comuns para pagar dívidas próprias, quer porque se utilizam bem próprios para liquidar dividas da responsabilidade de ambos), ficando dela excluída quaisquer outros créditos entre os cônjuges ou os seus patrimónios próprios.

Tendo-se por verificados os requisitos exigidos pelo artigo 463º do Código Civil, para o enriquecimento sem causa, será de condenar o réu no reembolso à autora dos montantes desembolsados por esta.

A apelação será, assim, de proceder.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando-se a sentença recorrida e, julgando-se a ação procedente, condena-se o réu no pagamento da quantia de 6.390, 40 € e ainda das quantias mensais que a tal título a autora vier a satisfazer à Caixa (...) até à partilha, acrescida de juros de mora à taxa legal.

Custas a suportar pelo réu/apelado, na ação e no recurso.                          

                                                                            Coimbra, 07 de Outubro de 2014

Maria João Areias ( Relatora )

Fernando Monteiro

Inês Moura


[1] Tratando-se de decisão proferida após a entrada em vigor do novo código, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, em ação instaurada depois de 1 de Janeiro de 2008, aplicar-se-á o regime de recursos constante do novo código, de acordo com o art. 5º, nº1 do citado diploma – cfr., neste sentido, António Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina 2013, pág. 16.
[2] O nº1 do artigo 1775º, do CC, na redação da Lei nº 61/2008, de 31.10, exige que o requerimento de divórcio seja acompanhado de acordo sobre três matérias: b) Acordo sobre o exercício das responsabilidades parentais quando existam filhos menores e não tenha previamente havido regulação judicial (ou certidão de sentença que tiver regulado tal exercício); c) Acordo sobre a prestação de alimentos ao cônjuge que deles careça; d) Acordo sobre o destino da casa de morada de família. Ou seja, embora a lei não exija que eles se encontram desde logo de acordo quanto à partilha (exigindo, tão só a junção da relação dos bens comuns), podendo fazer a partilha só depois de decretado o divórcio, a lei impõe-lhes o consenso quanto às referidas matérias.
[3] Adriano Miguel Ramos Paiva, “A Comunhão de Adquiridos, das insuficiências do regime no quadro da regulação das relações patrimoniais entre os cônjuges”, pág. 314.
[4] “Compensações Devidas pelo Pagamento de Dívidas do Casal (Da correção do regime atual) ”, Centro de Direito de Família, Coimbra Editora, 2003, pág. 112
[5] Cfr., neste sentido, Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, “Curso de Direito de Família”, Vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora 2008, pág. 432, segundo os quais, os créditos de compensação não se confundem com outros créditos entre os cônjuges por responsabilidade civil ou que nasçam de outros factos jurídicos negociais – mútuos locações, etc. –, seguindo os primeiros o regime geral da responsabilidade civil e os segundos o regime geral dos negócios que lhe dão origem.
[6] Obra citada, pág. 125.
[7] Cristina Araújo Dias, obra citada, pág. 127. Segundo tal autora, o diferimento das compensações para o momento da partilha, para além de encontrar justificação na natureza jurídica dos bens comuns, representa também o respeito pelo princípio da imutabilidade previsto no artigo 1714º, nº1 CC, não podendo proceder-se a qualquer divisão de bens comuns no decurso do casamento, evitando a transferência de bens e valores do património comum para o património de qualquer dos cônjuges, ou vice-versa – “Das Compensações pelo Pagamento das Dívidas do Casal (O caso especial da sua atualização) ”, artigo publicado in “Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977”, Vol. I, Direito da Família e das Sucessões, Coimbra Editora, pág. 324, nota (7).
[8] Cfr., neste sentido, Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, I Vol., 6ª ed., Almedina, pág. 447.
[9] Cfr., Antunes Varela, obra citada, pág. 448.
[10] “Direito das Obrigações”, Vol. I, 8ª ed., Almedina, pág. 457.