Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
183/11.4T2ALB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: NEGÓCIO JURÍDICO
CAPACIDADE
OUTORGANTE
ERRO NA FORMAÇÃO DA VONTADE
Data do Acordão: 04/23/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE MÉDIA E PEQ. INST. CÍVEL DE ALBERGARIA-A-VELHA.
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 247º A 252º DO C. CIVIL.
Sumário: I – O negócio jurídico, como acto de autonomia, supõe e exige da parte dos seus autores liberdade e discernimento. Contudo, na impossibilidade destes serem absolutos e ilimitados, a ordem jurídica contenta-se com a liberdade e discernimento normais, isto é, que são próprios das pessoas comuns ou da normalidade das pessoas e, nessa medida, para celebrar negócios jurídicos não é preciso ser dotado de excepcional inteligência ou ter formação superior.

II - Tal não acontecendo, a nossa ordem jurídica optou pelos mecanismos que estão nas normas dos artigos 247º a 252º do Código Civil interessando, para o caso em apreço, o erro vício na formação da vontade, também chamado, por vezes, erro-vício, ou erro-motivo, para o distinguir do erro na declaração, figura de divergência entre a vontade real e a vontade declarada, prevista no art.º 247º e a que se chama correspondentemente erro obstativo ou erro-obstáculo.

III - Se estivesse esclarecido acerca dessa circunstância - se tivesse exacto conhecimento da realidade - o declarante não teria realizado qualquer negócio ou não teria realizado o negócio nos termos em que o celebrou.

IV - A pessoa foi levada a fazer um contrato, que quis em si e no seu conteúdo, porque tinha uma falsa ideia acerca da existência de certos factos. Essa falsa ideia terá sido decisiva na formação da sua vontade, de tal maneira que, se a pessoa estivesse esclarecida, conhecendo o verdadeiro estado das coisas, não teria querido o negócio, ou, pelo menos, não o teria querido como o fez.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1.Relatório

H… intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário, contra F…, pedindo seja anulado o negócio jurídico celebrado com o réu, por erro, e, consequentemente, este condenado a restituir o montante pago a título de preço pelo equipamento em questão, acrescido do montante de € 700,00 a título de indemnização pela menor produtividade das suas explorações agrícolas e pela indisponibilidade do montante pago a título de preço para outros investimentos.

Alegou, para tanto e em síntese, que é agricultor e tem bastantes terrenos de cultura a seu cargo, sendo o réu vendedor de alfaias agrícolas; que no início do mês de Maio de 2010 recorreu a várias empresas de venda de alfaias agrícolas com vista a adquirir um espalhador de estrume para a sua actividade agrícola; que precisou de uma alfaia mecânica devido ao facto de, tendo tido um problema de saúde no seu braço, não poder fazer manualmente o trabalho de fertilização orgânica dos terrenos de cultivo, como era habitual; que desconhecia a oferta do mercado, pois não conhecia outros agricultores que dispusessem de tal equipamento visto que, pelo seu valor e envergadura, tal investimento apenas se justifica em explorações com algum vulto, razão pela qual sempre explicava a cada vendedor com que se deparava nas empresas especializadas a que recorria, qual o seu intento e as razões da sua necessidade e meios de trabalho, designadamente o tipo e cilindrada do seu tractor agrícola, o tipo e dimensões de terrenos que dispõe para o seu trabalho, o tipo de culturas para as quais pretende utilizar o equipamento, o tipo de gado e o estrume que obtinha habitualmente do mesmo; que verificou que lhe era sugerida frequentemente a marca X..., uma fábrica de alfaias agrícolas altamente conceituada, com sede na cidade próxima de Oliveira de Azeméis e reuniu diversas propostas possíveis de negócio junto das várias empresas abordadas; que apesar de só dispor de gado suíno e bovino, o estrume por ele produzido não chega para todos os terrenos de cultivo, tendo sempre necessidade de comprar mais estrume, fosse de galináceo ou fosse do mesmo género; que na visita que efectuou às instalações do réu, este recomendou-lhe a escolha por um modelo X... que conjugava, segundo afirmava o próprio, as duas funcionalidades, isto é, os dois tipos de fertilizantes numa mesma máquina; que veio a celebrar com o réu um contrato de compra e venda que teve por objecto uma máquina agrícola de espalhamento de estrume para fertilização de terrenos de cultura, sob a forma de atrelado para acoplagem a um tractor agrícola; que tal máquina corresponde ao modelo H2R da marca X..., e tem dois (2) rolos no seu mecanismo, apesar de no contrato e no original da factura surgir, a referência H4R4 – referente a um modelo com 4 rolos; que o preço ascendeu a € 7.200, valor no qual se encontrava incluído, para além do preço do equipamento propriamente dito, a despesa de legalização e a aplicação necessária para adequar o reboque ao seu tractor agrícola; que procedeu ao pagamento do preço; que a máquina que lhe foi vendida dispunha de um reservatório com tapetes que deslocam o material em direcção aos 2 rolos giratórios, com pás metálicas, para que estas pás projectem o material para o terreno lavrado, sendo que os dois rolos apresentam pratos largos em baixo, para susterem o material leve; que o réu lhe assegurou que tal equipamento teria duas funcionalidades: a de possibilitar, com um só equipamento, utilizar estrume leve e estrume mais pesado e denso.

Mais, alegou que essa suposta dupla funcionalidade não era verdadeira e não passava de um engodo, dado que a funcionalidade própria do equipamento com 2 rolos destina-se a apenas ao tipo de estrume mais leve e ligeiro, de origem aviaria, e a funcionalidade do equipamento com 4 rolos destina-se apenas ao tipo de estrume mais pesado e denso, de origem bovina ou suína; que não existe qualquer equipamento da marca X... preparado para dar resposta aos dois tipos de material fertilizante; que explicou ao réu a sua realidade, isto é, as condições de trabalho, com vista a ser bem aconselhado do produto que melhor satisfaria as suas necessidades; que perante a possibilidade apresentada pelo autor pensou que seria um modelo mais complexo, por ter duas funcionalidades num só mecanismo; que cerca de uma semana depois de receber a máquina utilizou-a pela primeira vez; que por sua conveniência e uma vez que havia comprado uma máquina «2 em 1», nas palavras do réu, utilizou, nesse dia, o estrume suíno e bovino, porém, tal equipamento não estava a conseguir produzir o objectivo de espalhamento desejado, porquanto o material de fertilização, ao atingir, através das passadeiras hidráulicas, a zona de rolos, não era espalhado por estes, e aí bloqueava; que tentou retomar algumas vezes o processo, mas apercebeu-se que o equipamento se estava a estragar devido a um fio de óleo que começou por cair do mecanismo; que limpou o equipamento e conduziu-o às instalações do réu onde reclamou da sua inoperância, tendo sido encaminhado para a fábrica X... pelos profissionais aí presentes, dado que a reparação necessária só aí poderia ser efectuada; que à chegada da referida fábrica explicaram-lhe que tal alfaia fazia um excelente trabalho mas com estrume de galináceo, não com o estrume pesado e que a mesma tinha saído de fábrica com um cardan com embraiagem, tendo-lhe sido aplicado um cardan simples; que se sentiu verdadeiramente enganado pelo facto de se achar informado pelo vendedor que comprara uma máquina para uso de ambos os tipos de fertilizante, quando afinal comprara uma máquina igual a tantas outras que já lhe foram recomendadas pelos demais vendedores com quem contactara, adequada apenas para um tipo de fertilizante pecuário, o de galináceos, mas não para o fertilizante que, naquele dia, havia utilizado; que o arranjo do espalhador agrícola se cifrou no valor de € 1.423,63; que não se sente responsável pelo estrago causado pelo uso desadequado do equipamento, pois foi informado de que a máquina seria adequada a ambos os métodos de trabalho, isto é, adequado para utilizar quer com estrume galináceo quer com estrume normal (mais pesado), tendo utilizado estrume pesado de boa-fé; que o réu procedeu ao pagamento à X... do valor do referido arranjo; que o cardan com embraiagem, que era o de origem, teria menos probabilidade de partir, e consequentemente, danificar a máquina, do que o cardan que o réu colocou na alfaia, que é de menor valor e qualidade; que se sente defraudado na compra que fez, uma vez que não compraria tal equipamento se soubesse de todas as informações pertinentes para comprar conscienciosamente; que não o réu não o informou de que o espalhador em questão apenas cumpriria cabalmente a função para a qual é (afinal) indicado – espalhador de galináceo, e não de ambos os tipos de fertilizante orgânico; que se, na situação de pesquisa para compra, tivesse sido informado correctamente das indicações e utilizações recomendadas reais para a máquina agrícola que lhe estava a ser apresentada, não a teria comprado: pelo valor que foi apresentado, porque tomou o valor [bem mais alto do que a concorrência oferecia] como sendo um preço justo por uma máquina com dupla funcionalidade, nem, sabendo que teria que optar por um método ou por outro [isto é, sabendo que a combinação de ambos os métodos seria impossível, e que a sua oferta pelo réu não passou de um engodo], optaria pelo equipamento apropriado para o tipo de estrume de que mais dispõe sem custos – o estrume de origem suína; que, na situação de pesquisa comercial para compra, se tivesse sido informado correctamente das indicações e utilizações recomendadas reais para a máquina agrícola que lhe estava a ser apresentada, e ainda assim a tivesse comprado, não a teria utilizado com estrume denso, como usou, achando que podia e devia fazê-lo; que continua com o seu problema de saúde no braço que o impede de espalhar estrume manualmente, o que implica que todas as culturas decorridas entre o período correspondente à compra do equipamento até à actualidade foram efectuadas sem fertilizantes naturais, o que implicou muito menos rendimento agrícola, o que lhe, aliado à imobilização do activo líquido correspondente ao preço do equipamento, lhe causou um prejuízo não inferior a € 700,00.

O réu F… contestou a acção e, no enfiamento, deduziu pedido reconvencional.

Defendeu para tanto, em síntese, que se dedica à compra, venda e reparação, essencialmente, de alfaias agrícolas, comercializando, em especial, as da marca X...; que o autor o procurou, pretendendo comprar, segundo as suas próprias palavras e intenções, um reboque espalhador de estrumes miúdos, incluindo de galináceos, até 4 toneladas e de porta hidráulica; que o informou que, atentas as características pretendidas, o reboque adequado seria o da marca X... H2R; que informou o autor do custo desse equipamento; que explicou ao autor que o modelo apresentado era o adequado, uma vez que para espalhar estrume de galináceo era necessário a máquina ter dois rolos (em vez de quatro) e traseira espalhadora própria para estrumes miúdos; que informou o autor que o tractor no qual se acoplaria o reboque espalhador de estrumes, deveria ter um distribuidor com três grupos hidráulicos (serviços externos): um para abrir e fechar a porta do espalhador, outro para a linha do tapete de arrasto do estrume até à traseira do espalhador e outro para trabalhar com peça de simples; que como o tractor não tinha essas características, efectuou as alterações necessárias para o efeito; que a aplicação desses distribuidores de serviços externos foi gratuita, pagando o autor apenas o distribuidor e os acessórios, tais como peça, uniões, curvas, manguitos, óleo entre outros; que, para protecção do equipamento, aplicou um cardan de fusível, que dispara e impede a máquina de funcionar sempre que o esforço de trabalho ultrapasse os 30 cavalos, imobilizando os rolos e a máquina; que o autor ficou ciente de todas essas alterações, tendo nelas consentido; que aquando da entrega ao autor do equipamento foi-lhe prestada toda a informação sobre o funcionamento do reboque, teórica e prática, tendo o autor testado a sua habilidade e conhecimentos ministrados, e demonstrado que estava apto a utilizar o reboque; que o reboque ascendeu ao montante de € 6.160,71, acrescido da quantia de € 249,81 relativa às peças e óleos acima referidos e de IVA, tudo no total de € 7.200,00, que o autor pagou; que cerca de um mês após a compra, o autor dirigiu-se ao seu estabelecimento alegando que o reboque teria uma avaria e deixara de funcionar; que constatou que a caixa redutora hidráulica do reboque estava a verter óleo, por se encontrar, literalmente, “partida” ao meio com os carretos abertos, as travessas que puxam o estrume até ao espalhador estavam dobradas, e a traseira do reboque, deformada; que perguntado ao autor o que havia sucedido e que tipo de estrume havia utilizado, este referiu que eram estrumes pesados, provenientes de criação de gado suíno e bovino, composto de materiais grossos tais como palhas-canas, canas, e outros materiais grossos; que o reboque não estava preparado para tais estrumes; que a avaria que o reboque apresentava deveu-se à negligência do autor, e ao indevido manuseamento da máquina, utilizando-a para um fim a que não era destinada, qual seja, a de espalhar estrumes ditos pesados, quando as suas aptidões eram para estrumes miúdos e de galináceos; que não fora tal conduta do autor, não teria o reboque sofrido os danos que apresentou, nem teria necessitado das reparações a que foi, por via desses danos, submetido; que, face aos danos apresentados, informou o autor de que a reparação só seria possível no fabricante, tendo este consentido na reparação; que fez transportar o reboque para a fábrica, onde foi intervencionado, tendo sido reparados o hidráulico, a corrente espalhadora de estrume, a blindagem central, o veio, os carretos, e a cremalheira, entre outros, e, dessa reparação, foi emitida pelo fabricante a factura VAC/30002284, de 22.06.2010, no valor de € 1.423,63; que liquidou tal valor, tendo-o facturado ao autor pela da factura n.º 00367/10, de 30.06.2010; que em 07.07.2010 enviou tal factura ao autor, por carta registada com aviso de recepção, que o autor se recusou a receber, devolvendo-a ao remetente; que pagou à X... o valor da factura acima referida uma vez que foi por seu intermédio que se efectuou a reparação e porque assim costuma ser nas relações comerciais com aquela forma, sem que tal importe reconhecimento da sua parte de qualquer responsabilidade nos danos do reboque; que o autor se nega ao pagamento do valor da reparação.

Concluiu defendendo que a improcedência da presente acção, pugnando, em consequência, pela respectiva absolvição do pedido e, em sede de reconvenção, pede a condenação do réu no pagamento da quantia de € 1.423,63, acrescida de juros de mora vencidos desde 30.06.2010 e vincendos, calculados à taxa supletiva legal, até efectivo e integral pagamento.

Pela Sr.ª Juiz do Tribunal de Albergaria foi proferida a seguinte decisão:

“Pelo exposto:

1. - Julgo a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada, termos em que decido:

a) Declarar a anulação do negócio de compra e venda do reboque espalhador de estrumes celebrado entre H… e F… e, consequentemente, determinar a devolução pelo réu ao autor da quantia de € 6.900,00 e a entrega da máquina ao réu.

b) Absolver o réu do demais peticionado pelo autor.

2.Julgo a reconvenção totalmente improcedente, por não provada, termos em que decido:

a) Absolver o autor H… do pedido deduzido pelo réu F...”.

O réu/reconvinte F…, não se conformando com a Sentença proferida pelo Tribunal da 1.º instância dela vem interpor recurso de Apelação para este Tribunal.

2.O Objecto da instância de recurso;

Nos termos do art. 684° e 685.º-A do CPC, o objecto do recurso - os recursos são um instrumento processual para reapreciar questões concretas, de facto ou de direito, que se consideram mal decididas e não para conhecer questões novas, não apreciadas e discutidas nas instâncias, sem prejuízo das que são de conhecimento oficioso - acha-se delimitado pelas alegações de F…, que assim concluiu:

O autor respondeu e apresentou as suas alegações, concluindo:

...

3. A questão a decidir:

 A factualidade provada não permite enquadrar o presente litígio no âmbito do erro sobre as qualidades do objecto - arts. 247.º e 251.º do Código Civil - por não se verificarem, in casu, os requisitos de que depende a anulação do contrato, por vício da vontade?

A 1.ª instância fixou a seguinte matéria de facto:

...

4.Do Direito

Para defesa da sua tese – que não colheu na decisão da 1.ª instância - , diz o apelante:

“Não nos parece que seja de admitir, sem mais, que o recorrido foi enganado, quando sequer se demonstrou que o estrume proveniente de gado suíno e bovino que utilizou no equipamento pela primeira vez tivesse as características e qualidades expressas pelo recorrente aquando da compra, ou que, de todo, tal equipamento não permitisse o espalhamento de estrumes de gado bovino e/ou suíno também, e nem sequer que as características da alfaia vendida pelo recorrente ao recorrido não coincidissem com as que lhe tivessem sido transmitidas, e só viessem a ser conhecidas posteriormente à concretização do negócio.

Assim, tendo sido o recorrido/autor devidamente informado, pelo recorrente/réu, das precauções a tomar quanto ao tipo de estrumes a utilizar na máquina, esse risco foi por si assumido no momento em que, com total conhecimento dessas condições, procedeu à celebração do contrato de compra e venda.

A factualidade provada não permite enquadrar o presente litígio no âmbito do erro sobre as qualidades do objecto (arts. 247.º e 251.º do Código Civil) por não se verificarem, in casu, os requisitos de que depende a anulação do contrato, por vício da vontade: a vontade do recorrido/autor formou-se esclarecida e livremente, com total conhecimento das qualidades do objecto do negócio, segundo informações que lhe foram previamente prestadas pelo próprio recorrente/réu e que correspondiam às verdadeiras características do equipamento agrícola.

Para fundamentar, a sua decisão, escreve assim, a Sr.ª Juiz da 1.ª instância:

“No caso presente estamos no âmbito de um contrato de compra e venda de um reboque espalhador de estrume celebrado entre o autor, como comprador, e o réu, como vendedor, cujo preço se encontra pago, tal como decorre da definição dada pelo art. 874.º do Código Civil.

Regressando à factualidade que ficou demonstrada, importa reter que resultou provado que o autor, pretendendo adquirir um espalhador de estrume para a sua actividade agrícola, dirigiu-se ao estabelecimento do réu, tendo-se sido recomendada por este a aquisição de um modelo X... H2 que, conforme informação do réu, conjugava duas funcionalidades: permitiria espalhar estrumes provenientes de galináceos e de gado bovino e suíno desde que este não incluísse palhas de milho inteiras e paus… Porém, tal como ficou demonstrado, aquando da primeira utilização da máquina, tendo o autor utilizado estrume proveniente de gado suíno e bovino, o referido equipamento não produziu o objectivo de espalhamento desejado, na medida em que o material de fertilização, ao atingir, através das passadeiras hidráulicas, a zona de rolos, não era espalhado por estes e bloqueava nessa zona – pelo que tendo o autor verificado que o equipamento se estava a danificar, procedeu à sua limpeza e conduziu-o ao estabelecimento do réu onde reclamou da sua inoperância. Depois de o autor ter sido encaminhado pelo réu para a fábrica da H…, S.A., explicaram-lhe que a referida alfaia fazia um excelente trabalho com fertilizante proveniente de galináceos, mas já não com o estrume pesado e, bem assim, que a referida alfaia havia sido vendida ao réu com um cardan com embraiagem, de origem, e não com o cardam de fusível que ostentava. A alfaia apresentava, então, a caixa redutora hidráulica do reboque a verter óleo, por se encontrar “partida” ao meio com os carretos abertos, as travessas que puxam o estrume até ao espalhador dobradas e a traseira deformada, tendo a respectiva reparação ascendido à quantia de € 1.423,63, que o réu liquidou à H…, S.A..

Ficou, ainda, demonstrado que de entre a gama de produtos da marca X... neste segmento, existem os modelos H2R, H4R e H2RS, sendo que cada modelo contempla, na sua designação, o número de rolos de cada um comporta; que os equipamentos H2 possuem 2 rolos mais baixos e largos, acompanhados de pratos largos no fundo, indicados para o espalhamento de estrume galináceo – um fertilizante orgânico leve retirado da pecuária de avicultura, cuja textura é equiparada à da terra solta; e que os equipamentos H4 possuem 4 rolos mais altos e estreitos, sendo indicados para cortar e projectar fertilizante orgânico derivado de pecuária suína e bovina.

Por fim, resultou assente que o autor não compraria o modelo H2 se soubesse que o mesmo era indicado apenas para espalhar fertilizante orgânico de galináceo, cuja textura é equiparada à da terra solta e que se soubesse que teria de optar por um modelo ou por outro teria optado pelo equipamento apropriado para o tipo de estrume de que mais dispõe sem custos – o estrume de origem suína…É, pois, manifesto, por tudo quanto se expôs, que o negócio celebrado entre autor e réu se mostra viciado, por erro sobre o respectivo objecto, vício que, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 247.º e 251.º do Código Civil, o torna anulável.”

Decidiu assim e bem, com todo o respeito pela tese jurídica do recorrente.

Como todos sabemos, o negócio jurídico, como acto de autonomia, supõe e exige da parte dos seus autores liberdade e discernimento.

Contudo, na impossibilidade destes serem absolutos e ilimitados, a ordem jurídica contenta-se com a liberdade e discernimento normais, isto é, que são próprios das pessoas comuns ou da normalidade das pessoas e, nessa medida, para celebrar negócios jurídicos não é preciso ser dotado de excepcional inteligência ou ter formação superior.

Basta ter o discernimento suficiente para se compreender o que se está a fazer e a liberdade suficiente para se poder optar entre celebrar, ou não, o negócio.

A este propósito, diz João de Castro Mendes - Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, AAFDL, 1995, pág. 106 – “a ordem jurídica exige que a vontade se haja formado de um modo julgado normal e são, ou seja, livre, esclarecida e ponderada. Ao esclarecimento opõe-se o erro, um dos principais vícios na formação da vontade, a par do medo ou coacção moral e da incapacidade acidental”.

Por seu turno, Pedro Pais de Vasconcelos - Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, 2010, 6ª edição, págs. 658/659-  escreve que “a vontade negocial pode estar viciada na sua formação, no processo de volição e de decisão, por deficiência de esclarecimento ou de liberdade……e a parte cuja vontade tenha sido perturbada pode, se assim o desejar, libertar-se do negócio viciado, procedendo à sua anulação”.

Ainda sobre a exigência do necessário esclarecimento, Heinrich Ewald Horster refere - A Parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, 6ª reimpressão, Almedina, pág. 567 - que “o negócio jurídico apenas pode desempenhar as suas funções quando a vontade, que se manifesta através da declaração negocial, se formou de uma maneira esclarecida, assente em bases correctas, e livre, sem deformações provindas de influências exteriores. Se a vontade não se formou esclarecida e livremente, ela está viciada. Na sequência do vício, que fere a vontade, também a declaração negocial em que esta se manifesta fica viciada”.

De salientar, desde logo, que nem todo o erro é considerado juridicamente relevante e origina a anulação do negócio realizado.

As necessidades de segurança e estabilidade do tráfico jurídico exigem que a relevância do erro como fundamento da anulação do negócio dependa de determinados pressupostos, ou seja, é necessário que concorram certos requisitos - se não atende ao erro, vale um resultado que o errante não quis, ficando assim violado o seu direito à autodeterminação a realizar por meio do negócio jurídico; se atende ao erro, fica desiludida a expectativa da outra parte que confiou naquilo que entendeu e é perturbada a segurança do comércio jurídico -.

Por isso, a nossa ordem jurídica optou pelos erros que estão nas normas dos artigos 247º a 252º do Código Civil – será o diploma a citar sem menção de origem –, interessando, para o caso em apreço, o erro vício na formação da vontade, também chamado, por vezes, erro-vício, ou erro-motivo, para o distinguir do erro na declaração, figura de divergência entre a vontade real e a vontade declarada, prevista no art.º 247º e a que se chama correspondentemente erro obstativo ou erro-obstáculo.

Este recai apenas sobre o elemento externo da declaração e afecta o comportamento declarativo, isto é, a exteriorização da declaração, produzindo uma divergência entre a vontade, que não está viciada ou deformada, e o que é declarado. Trata-se, portanto, de um erro no processo de formulação ou de manifestação da vontade, enquanto o erro-vício, que, frise-se, é o que está suscitado no caso vertente, incide só sobre a própria vontade - elemento interno - e não gera qualquer divergência entre esta e a declaração, que se apresenta em perfeita conformidade ou consonância com aquela.

 A vontade é que se encontra mal formada ou viciada na sua formação por erro, logo mal esclarecida, mas coincide com a declaração exteriorizada.

De facto, dispõe a norma do artigo 251.º que o erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira à pessoa do declaratário ou ao objecto do negócio, torna este anulável nos termos do artigo 247º.

Por seu turno, prescreve o artigo 247.º que “Quando, em virtude de erro, a vontade declarada não corresponda à vontade real do autor, a declaração negocial é anulável, desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro”.

O erro como vício da vontade, enunciado no artigo 251.º é denominado pela doutrina como “erro-motivo” ou “erro-vício”, distinguindo-se do “erro na declaração”, porquanto, no caso do erro-motivo ou erro-vício há conformidade entre a vontade real e a vontade declarada. Somente, a vontade real formou-se em consequência do erro sofrido pelo declarante. Se não fosse ele, a pessoa não teria pretendido realizar o negócio, pelo menos nos termos em que o efectuou”.

O Professor Mota Pinto – na sua Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição actualizada, página 505 -, ensina que o erro-vício traduz-se numa representação inexacta ou na ignorância de uma qualquer circunstância de facto ou de direito que foi determinante na decisão de efectuar o negócio.

Se estivesse esclarecido acerca dessa circunstância - se tivesse exacto conhecimento da realidade - o declarante não teria realizado qualquer negócio ou não teria realizado o negócio nos termos em que o celebrou.

Trata-se, pois, de um erro nos motivos de terminantes da vontade - daí que a doutrina alemã lhe chame erro-motivo.

No erro na declaração existe uma divergência entre o que a pessoa quer e o que declara, enquanto que, no erro-vício, a pessoa declara o que quer, mas não teria aceite o que, realmente, quis e declarou querer, se não fosse o erro que sofreu  - Antunes Varela, Família, 1980, pág. 313 -.

Inocêncio Galvão Telles - Manual dos Contratos em Geral, Coimbra Editora, 2002, pág. 83 -, refere o conceito de “falsa ideia” determinante da manifestação de vontade do declarante: “A pessoa foi levada a fazer um contrato, que quis em si e no seu conteúdo, porque tinha uma falsa ideia acerca da existência de certos factos ou normas jurídicas. Essa falsa ideia terá sido decisiva na formação da sua vontade, de tal maneira que, se a pessoa estivesse esclarecida, conhecendo o verdadeiro estado das coisas, não teria querido o negócio, ou, pelo menos, não o teria querido como o fez.”

Como se escreve no Acórdão do STJ, de 25.03.2009, retirado do site www.dgsi.pt - “No erro-motivo ou erro-vício há uma situação de conformidade entre a vontade real e a declarada, mas em que esta se formou sob erro do declarante. Ocorre uma falta de representação exacta ou uma representação inexacta do declarante sobre circunstância decisiva na formação da sua vontade, de modo que se conhecesse o verdadeiro estado de coisas não teria querido o negócio, ou, pelo menos, não o teria querido nos precisos termos em que o concluiu.”

Em Acórdão de 19.04.1994 – publicado no site supra referido -, o Supremo Tribunal de Justiça sintetiza os pressupostos da anulabilidade do negócio cuja celebração foi determinada por erro-vício do declarante, nestes termos: “O erro sobre o objecto do negócio nas suas qualidades pressupõe: 1) Que a vontade declarada esteja viciada por erro sobre o objecto do negócio ou as suas qualidades, e, por isso, seja divergente da vontade que o declarante teria tido sem tal erro; 2) Que para o declarante seja essencial o elemento sobre que recaiu o seu erro, de tal modo que ele não teria celebrado o negócio se se tivesse apercebido do erro; e 3) Que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade acima referida.

É relevante saber se o erro foi factor determinante da declaração negocial emitida – essencialidade do elemento sobre que incidiu o erro – e se o destinatário da declaração conhecia ou devia conhecer essa essencialidade, sendo que a demonstração dos factos integradores da essencialidade e respectiva cognoscibilidade, por constituírem requisitos de relevância do erro e fundamento da anulabilidade do negócio constitui ónus de quem invoca o erro - art.º 342.º, n.º 1-.

O que nos dizem os factos em análise nestes autos:

No início do mês de Maio de 2010, o autor – que é agricultor, tendo vários terrenos de cultura a seu cargo - pretendendo adquirir um espalhador de estrume para a sua actividade agrícola, em virtude de ter um problema de saúde no braço, que o impedia de fazer manualmente o trabalho de fertilização orgânica dos terrenos de cultivo, pediu orçamentos a empresas da especialidade, entre os quais o que consta de fls. 17/18, fornecido pela Garagem ….

O autor dispunha, então, apenas de estrume proveniente de gado suíno e bovino, o qual, porém, não chegava para todos os terrenos de cultivo, pelo que, para o efeito, adquiria mais estrume, fosse ele de galináceo ou fosse proveniente daquele outro tipo de gado.

Na visita que efectuou às instalações do réu, este recomendou-lhe a escolha por um modelo X... H2 que, conforme o réu transmitiu ao autor, conjugava duas funcionalidades: permitiria espalhar estrumes provenientes de galináceos e de gado bovino e suíno desde que este não incluísse palhas de milho inteiras e paus – o sublinhado é nosso -.

O autor ficou interessado na alfaia recomendada pelo réu, por permitir, segundo informação por aquele prestada, o espalhamento daqueles dois tipos de estrume – o proveniente de gado bovino e suíno e o proveniente de galináceos – uma vez mais sublinhamos estes factos -.

Porém, tal como ficou demonstrado, aquando da primeira utilização da máquina, tendo o autor utilizado estrume proveniente de gado suíno e bovino, o referido equipamento não produziu o objectivo de espalhamento desejado, na medida em que o material de fertilização, ao atingir, através das passadeiras hidráulicas, a zona de rolos, não era espalhado por estes e bloqueava nessa zona – pelo que tendo o autor verificado que o equipamento se estava a danificar, procedeu à sua limpeza e conduziu-o ao estabelecimento do réu onde reclamou da sua inoperância.

Depois de o autor ter sido encaminhado pelo réu para a fábrica da H…, S.A., explicaram-lhe que a referida alfaia fazia um excelente trabalho com fertilizante proveniente de galináceos, mas já não com o estrume pesado e, bem assim, que a referida alfaia havia sido vendida ao réu com um cardan com embraiagem, de origem, e não com o cardam de fusível que ostentava. A alfaia apresentava, então, a caixa redutora hidráulica do reboque a verter óleo, por se encontrar “partida” ao meio com os carretos abertos, as travessas que puxam o estrume até ao espalhador dobradas e a traseira deformada, tendo a respectiva reparação ascendido à quantia de € 1.423,63, que o réu liquidou à H…, S.A..

Ficou, ainda, demonstrado que de entre a gama de produtos da marca X... neste segmento, existem os modelos H2R, H4R e H2RS, sendo que cada modelo contempla, na sua designação, o número de rolos de cada um comporta; que os equipamentos H2 possuem 2 rolos mais baixos e largos, acompanhados de pratos largos no fundo, indicados para o espalhamento de estrume galináceo – um fertilizante orgânico leve retirado da pecuária de avicultura, cuja textura é equiparada à da terra solta; e que os equipamentos H4 possuem 4 rolos mais altos e estreitos, sendo indicados para cortar e projectar fertilizante orgânico derivado de pecuária suína e bovina.

Por fim, resultou assente que o autor não compraria o modelo H2 se soubesse que o mesmo era indicado apenas para espalhar fertilizante orgânico de galináceo, cuja textura é equiparada à da terra solta e que se soubesse que teria de optar por um modelo ou por outro teria optado pelo equipamento apropriado para o tipo de estrume de que mais dispõe sem custos – o estrume de origem suína.

Por isso, teremos de concordar com a 1.ª instância quando diz que “Resulta de tudo o que ficou exposto que as verdadeiras características/funcionalidades da alfaia vendida pelo réu ao autor, que não coincidiam com as que pelo primeiro foram transmitidas ao segundo, só vieram a ser conhecidas posteriormente à concretização do negócio, sendo, pois, evidente que o autor avançou para a concretização do negócio em erro sobre tais características/funcionalidades.

Esse erro incide sobre o objecto do negócio e o autor logrou demonstrar que se não tivesse ocorrido o erro não teria adquirido aquela máquina, situação que o réu sabia ou não devia desconhecer, tanto mais que apresentou o equipamento ao autor como possuindo duas funcionalidades – a de espalhar estrumes provenientes de galináceos e de gado bovino e suíno desde que este não incluísse palhas de milho inteiras e paus - sendo inequívoco que o autor só ficou interessado na alfaia recomendada pelo réu, por permitir, segundo informação por aquele prestada, o espalhamento daqueles dois tipos de estrume.

É, pois, manifesto, por tudo quanto se expôs, que o negócio celebrado entre autor e réu se mostra viciado, por erro sobre o respectivo objecto, vício que, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 247.º e 251.º do Código Civil, o torna anulável.”, tornando-se incontornável a solução jurídica acolhida na douta sentença proferida em 1.ª instância, que não merece qualquer censura.

Ao apelante caberia o ónus de provar que transmitiu ao autor, que o aparelho conjugava duas funcionalidades: permitiria espalhar estrumes provenientes de galináceos e de gado bovino e suíno, desde que este não incluísse palhas de milho inteiras e paus – o que fez - , mas também, deveria ter alegado e provado que quando este o usou incluiu palhas de milho inteiras e paus, o que não fez.

Porque, de facto, o erro demonstrado nestes autos é o de que, ao contrário daquilo que o apelante transmitiu ao apelado, aquando da primeira utilização da máquina, tendo o autor utilizado estrume proveniente de gado suíno e bovino, o referido equipamento não produziu o objectivo de espalhamento desejado, na medida em que o material de fertilização, ao atingir, através das passadeiras hidráulicas, a zona de rolos, não era espalhado por estes e bloqueava nessa zona.

Improcede, pois, o recurso.

Sumariando esta decisão:

I. O negócio jurídico, como acto de autonomia, supõe e exige da parte dos seus autores liberdade e discernimento. Contudo, na impossibilidade destes serem absolutos e ilimitados, a ordem jurídica contenta-se com a liberdade e discernimento normais, isto é, que são próprios das pessoas comuns ou da normalidade das pessoas e, nessa medida, para celebrar negócios jurídicos não é preciso ser dotado de excepcional inteligência ou ter formação superior.

II. Tal não acontecendo, a nossa ordem jurídica optou pelos mecanismos que estão nas normas dos artigos 247º a 252º do Código Civil interessando, para o caso em apreço, o erro vício na formação da vontade, também chamado, por vezes, erro-vício, ou erro-motivo, para o distinguir do erro na declaração, figura de divergência entre a vontade real e a vontade declarada, prevista no art.º 247º e a que se chama correspondentemente erro obstativo ou erro-obstáculo.

III. Se estivesse esclarecido acerca dessa circunstância - se tivesse exacto conhecimento da realidade - o declarante não teria realizado qualquer negócio ou não teria realizado o negócio nos termos em que o celebrou.

IV. A pessoa foi levada a fazer um contrato, que quis em si e no seu conteúdo, porque tinha uma falsa ideia acerca da existência de certos factos. Essa falsa ideia terá sido decisiva na formação da sua vontade, de tal maneira que, se a pessoa estivesse esclarecida, conhecendo o verdadeiro estado das coisas, não teria querido o negócio, ou, pelo menos, não o teria querido como o fez.

Assim sendo, na improcedência do recurso, mantemos a decisão da 1.ª instância.

Custas a cargo do apelante.

 (José Avelino - Relator)

(Regina Rosa)

(Artur Dias)