Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
131/16.5T8SAT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO FACULTATIVO
DANOS PRÓPRIOS
VEÍCULO
PERDA TOTAL
PRIVAÇÃO DE USO
Data do Acordão: 11/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - SÁTÃO - JUÍZO C. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS 427 C COMERCIAL, 405, 406 ,CC, DL Nº 214/97 DE 16/8, DL Nº 72/2008 DE 16/4
Sumário: 1.- Da conjugação do disposto nos arts. 3º, 4º e 8º, nº 2, do DL 214/97, de 16.8, retira-se que no âmbito do seguro facultativo de danos próprios em viatura automóvel, enquanto não for actualizado, nos termos legais, o valor do veículo seguro, a considerar para efeitos de indemnização em caso de perda total, nem for comunicada essa actualização ao tomador do seguro, as seguradoras ficam constituídas na obrigação de responder, em caso de sinistro, com base no valor seguro apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro.

2.- Provado que a privação de uso de um veículo - que se perdeu totalmente, até à aquisição de um novo, por não atempado pagamento do valor indemnizatório devido contratualmente por uma seguradora, no âmbito do seguro facultativo, por danos próprios, com a consequente não disponibilidade ao lesado da respectiva quantia para adquirir esse novo veículo – causou uma diminuição ao nível da satisfação das necessidades familiares, profissionais e de lazer do proprietário, deve arbitrar-se o respectivo valor ressarcitório.

3.- Neste caso, a medida da indemnização terá que ser encontrada com recurso à equidade, havendo que encontrar em termos quantitativos um valor que se mostre adequado a indemnizar o lesado pela paralisação diária de um veículo que satisfaça essas suas necessidades diárias

Decisão Texto Integral:







I – Relatório

 

1. R (…), residente em Sátão, intentou acção declarativa contra S (…) S.A., com sede em Lisboa, peticionando a condenação da ré:

a) a pagar-lhe a quantia de 22.000 € a título de indemnização pelo furto do veículo seguro;

b) a pagar-lhe a quantia de 2.400 € em virtude da não disponibilização de veículo de substituição pelo período de 60 dias, nos termos e condições contratadas;

c) a pagar-lhe a quantia de 1.320 € em virtude do dano de privação do uso;

d) a pagar-lhe juros de mora calculados à taxa de 4% e desde a data em que deveria ter ocorrido o pagamento da indemnização (23.5.2016) até efectivo e integral pagamento, quanto ao pedido inserto na alínea a);

e) a pagar-lhe autor juros de mora calculados à taxa de 4% a contar da a citação até efectivo e integral pagamento.

Para tanto, invocou, em curta síntese, ter celebrado um contrato de seguro com a ré que abrangia a cobertura de furto do seu veículo, com o capital seguro de 22.000 €, valor cujo pagamento, na sequência do furto do mesmo, reclama. Que na ré não lhe disponibilizou qualquer veículo de substituição pelo período de 60 dias, a que estava obrigada contratualmente, tendo sofrido danos pela privação do uso da viatura furtada até ao momento em que se viu na contingência de adquirir um novo veículo.

A ré apresentou contestação, defendendo-se por impugnação e excepção, aduzindo quanto a esta que o valor de compra do veículo deixou de valer ao fim de 3 anos de antiguidade, caducando tal cobertura, e que o valor do capital seguro, atenta a antiguidade do veículo, ascende tão-só a 14.344 €, valor esse que disponibilizado ao demandante o mesmo não se mostrou disposto a receber. Que o autor não pediu veículo de substituição e não alegou qualquer prejuízo por não dispor do mesmo, nem apresentou os elementos necessários ao recebimento da quantia ressarcitória da aludida cobertura.  

O autor respondeu.

*

A final foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência:

i. Condenou a R. a pagar ao A. a quantia de 21.638,72 €, a título de indemnização pelo furto do veículo seguro, acrescida do pagamento de juros moratórios, à taxa anual de 4%, desde o dia 25.5.2016 e até integral pagamento;

ii. Condenou a R. a pagar ao A. a quantia de 1.320 €, acrescida do pagamento de juros moratórios, à taxa anual de 4%, desde a data da citação, ocorrida a 19.10.2016, e até integral pagamento em virtude do dano de privação do uso;

iii. Absolveu a ré do restante peticionado.

 

*

2. A R. interpôs recurso, tendo formulado as seguintes conclusões:

(…)

3. O R. contra-alegou, concluindo que:

(…)

 

II - Factos Provados

 

1) O autor era o proprietário possuidor do veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca “Dacia” modelo “SD Lodgy”, matrícula K (...) , tendo-o adquirido em estado de novo.

2) Celebrou com a ré acordo escrito denominado contrato de seguro - cujas condições gerais constam de fls. 23 e seguintes e cujo teor se considera aqui integralmente reproduzido - que, para além do obrigatório, previa coberturas facultativas, relativas a danos próprios do veículo referido em 1., ao qual foi atribuída a apólice nº (...) .

3) Tal acordo teve o seu início em 30 de outubro de 2012, com a periodicidade anual e com pagamento fracionado semestral.

4) O prémio comercial e anual do contrato de seguro celebrado cifrou-se em 442,72€.

5) O acordo identificado abrangia a cobertura de furto ou roubo, com o capital seguro de € 22.000,00.

6) De acordo com tal acordo escrito, “ocorrendo furto, roubo ou furto de uso e querendo o tomador do seguro usar dos direitos que o contrato de seguro lhe confere, deverá apresentar, logo que possível, queixa às autoridades competentes e promover todas as diligências ao seu alcance conducentes à descoberta do veículo e dos autores do crime.”

7) E em caso de desaparecimento do veículo, o autor adquiria o direito à indemnização devida decorridos que fossem 60 dias sobre a data da participação da ocorrência à autoridade competente se, ao fim desse período, não tivesse sido encontrado o veículo seguro.

8) Do mencionado acordo constam, nomeadamente, os seguintes dizeres: “ARTIGO PRELIMINAR - 1 Entre a (…), S.A., adiante designada por segurador, e o tomador do seguro mencionado nas Condições Particulares, estabelece-se um contrato de seguro que se regula pelas presentes Condições Gerais e pelas Condições Particulares, e ainda, se contratadas, pelas Condições Especiais.” (…) 3 - As Condições Especiais preveem a cobertura de outros riscos e ou garantias além dos previstos nas presentes Condições Gerais e carecem de ser especificamente identificadas nas Condições Particulares (…) Artigo 44.º os valores máximos garantidos pelo segurador para cada uma das coberturas contratadas….encontram-se expressos nas condições particulares” in Condições Gerais.”

9) As condições particulares originárias, que foram entregues ao autor aquando da subscrição do acordo, a 30/10/2012, fazem menção à cobertura de “Furto ou Roubo”, atribuindo-lhe um capital seguro de 22.000,00€.

10) Para além dessa cobertura, as Condições Particulares, naquela data, fazem também menção à condição especial 711, referindo que também esta cobertura está “incluída” no contrato.

11) O prémio comercial pago na génese do contrato era de 442,72€.

12) A ré, enquanto seguradora, com data de emissão e “data efeito” de 30/10/2015, que coincide com a data da renovação para nova anuidade, emitiu uma ata adicional, constante de fls. 18 e cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido, na qual vêm plasmadas todas as condições particulares e especiais.

13) Ali referindo: “Condições especiais aplicáveis… 711”.

14) Adiante refere-se à cobertura de “Furto ou Roubo”, atribuindo-lhe um capital seguro de 14.344,00€.

15) Mais adiante faz referência a tal condição especial 711: “Valor de Compra-CC,IRE,FR,FN,AVAND” atribuindo-lhe um capital seguro de 7.656,00€.

16) Acresce a isto que o prémio comercial anual do seguro aumentou para 497,55€.

17) Na mesma ata poderá ler-se: “Pela presente Acta Adicional se declara que a apólice acima referenciada, foi alterada a partir de 30/Out/2015, passando a vigorar de acordo com as condições particulares a seguir discriminadas…”

18) No “aviso (fatura) recibo” emitido em 24/02/2016 para pagamento da 2ª fração relativa à anuidade de 30/10/2015 a 30/10/2016, constante de fls. 18 verso e cujo teor se considera integralmente reproduzido, lê-se: “capital danos próprios…22.000,00€”.

19) Em 22 de março de 2016, pelas 12h15m o autor, que é empresário no ramo dos transportes, deixou o veículo identificado em 1. estacionado no parque de estacionamento do Restaurante (...) , na vila de Trancoso.

20) No desempenho da sua profissão, o autor deslocou-se nesse mesmo dia para o estrangeiro, tendo regressado a Portugal no dia 25 de março de 2016.

21) Chegado ao local onde tinha estacionado o carro, no dia 25 de março de 2016, pelas 15h, o autor constatou que o veículo havia desaparecido daquele local.

22) Chamada a GNR, o autor apresentou queixa contra desconhecidos, por furto do veículo identificado em 1., o qual terá ocorrido, entre as 12h15m do dia 22/3/2016 e as 15h do dia 25/03/2016.

23) Nesse mesmo dia, 25/03/2016, foi participado à ré a ocorrência do furto do veículo em causa.

24) O veículo nunca veio ser encontrado, tendo o inquérito n.º 52/16.1GBTCS, que correu termos Secção de Inquéritos da Procuradoria do Ministério Público da Instância Local de Trancoso, Comarca de Guarda, sido arquivado.

25) Findos os 60 dias previstos para pagamento da indemnização, o autor, em 17 de junho de 2016, remeteu comunicação à ré, reclamando o pagamento do valor indemnizatório previsto nas condições da apólice.

26) A ré em resposta à participação do furto apresentada pelo autor e, apenas após a comunicação por este remetido, em 20/06/2016, comunicou a sua disponibilidade para proceder ao pagamento da indemnização no valor de 14.344,00€, sendo que a este valor seria descontado o valor de “€ 282,72, correspondente ao 2º semestre da anuidade, num total de €14.057,28…”

27) Não compreendendo a posição da ré, o autor endereçou nova reclamação àquela solicitando explicações sobre o facto de apenas assumirem o pagamento da quantia de 14.344,00€ e não do capital seguro de 22.000,00€.

28) Em resposta à comunicação referida no artigo precedente, a ré comunicou ao autor que o valor indemnizatório que pretende pagar se baseia no facto da “Condição especial de reposição em novo (valor em novo): salvo convenção expressa em contrário, constantes das Condições Particulares da apólice, esta cobertura cessará automaticamente a sua vigência no termos da anuidade em que o veículo perfizer três anos de antiguidade…

29) O A. voltou a reclamar, desta vez, junto do seu mediador, tendo este comunicado com a R. ao que responsável pela área de sinistros desta reiterou a posição assumida pela comunicação acima referida, recusando o pagamento de indemnização correspondente ao valor seguro na quantia de 22.000,00€.

30) De acordo com a condição especial 711 constante das condições especiais, “as garantias conferidas pela presente Condição Especial estão sujeitas ao disposto nas Condições Gerais da apólice.”

31) No seu artigo 1.º, n.º2, define capital seguro como “Os valores máximos garantidos pelo segurador por anuidade e/ou período de vigência, indicados nas Condições Particulares.”

32) Já o artigo 2.º, intitulado “GARANTIAS E COBERTURAS” refere: - “1. Por esta Condição Especial, em caso de sinistro coberto pela apólice, o presente contrato garante o pagamento do valor seguro indicado nas Condições Particulares, desde que se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos: - a) Ser accionada uma das seguintes coberturas contratadas na apólice, conforme descritas nas Condições Especiais: 702, 703, 704, 706, 707 ou 708; - b) O sinistro encontrar-se coberto por uma das coberturas referidas na alínea anterior; - c) Tratar-se de uma perda total, conforme definida no número 1.7 do artigo 40.º, das Condições Gerais da apólice. - 2. Em cada anuidade da apólice, a determinação do capital seguro para efeitos da garantia conferida por esta Condição Especial corresponderá à diferença entre o valor em novo do veículo seguro à data da sua primeira matrícula (fixado na data de inclusão na apólice, de acordo com o critério definidos no artigo 40.º, n.º 1.6, das respectivas Condições Gerais) e o valor seguro desse mesmo veículo na anuidade em causa, determinado nos termos do artigo 44º, n.º 2, das Condições Gerais, para efeito das coberturas enumeradas na alínea a) do número 1 deste artigo. - 3. O montante máximo indemnizável ao abrigo da garantia conferida por esta Condição Especial está sempre limitado ao capital seguro fixado nas Condições Particulares para efeitos desta garantia.”

33) A condição especial 711 será acionada mediante o acionamento da condição “704”.

34) De acordo com o estipulado nas Condições Especiais, Condição Especial 704 – Furto ou Roubo, a condição 704 é a de “furto ou roubo”.

35) O acionamento da cláusula especial “Valor de Compra” depende da cobertura facultativa de danos próprios, sendo que ambas foram contratadas. e encontravam-se em vigor na época do furto.

36) O artigo 3.º que regula a condição especial 711 – Valor de Compra refere: “Salvo convenção expressa em contrário, constante das Condições Particulares da apólice, esta cobertura cessará automaticamente a sua vigência no termo da anuidade em que o veículo perfizer três anos de antiguidade, contados da data da primeira matrícula, e ainda que subsistam em vigor quaisquer uma das coberturas enumeradas na alínea a), do artigo anterior.

37) Através do aviso recibo emitido antes à ocorrência do sinistro (24/02/2016) a ré comunicou ao autor que o capital danos próprios era “22.000,00 €” atribuindo um “prémio danos próprios 130,84.”

38) Do “print” constante de fls. 19 verso, emitido do sistema da seguradora ré, não datado, constam, nomeadamente, os seguintes dizeres: “ descrição: furto ou roubo; €14.344,00 (…) valor de compra - CCCIRE, FR, AVAND - €7.656,00.”

39) Entre autor e ré foi acordada a inclusão no acordo denominado contrato de seguro da cobertura de veículo de substituição em caso de acidente, roubo ou avaria, denominada condição especial 744.

40) Refere a condição especial 744, titulada como “veículo de substituição acidente + furto ou roubo + avaria” que

41) Em caso de Furto ou Roubo do veículo seguro, o segurador garante uma viatura de substituição até ao limite máximo de 60 dias por ano. O direito à utilização do veículo de substituição terminará na data de recuperação do veículo furtado ou roubado…

42) De acordo com o n.º 5 do artigo 45.º das Condições Gerais do acordo em apreço, “ocorrendo furto, roubo ou furto de uso que dê origem ao desaparecimento do veículo e que se prolongue por mais de 60 dias contados desde a data de participação dessa ocorrência às autoridades competentes, o segurador, decorrido esse prazo, obriga-se ao pagamento da indemnização devida, nos termos do presente contrato, sendo que, para liquidação da mesma o tomador do seguro e/ou o segurado deverá apresentar os documentos do veículo, chaves, declaração de venda, bem como documentação que comprove não ter o veículo seguro sido localizado pelas autoridades.”

43) Do “print” datado de 20.06.2016, constante de fls. 19, emitido pelo sistema da seguradora ré, constam, nomeadamente, os seguintes dizeres: “Valor atual do veículo: €22.000,00.”

44) A ré não disponibilizou veículo de substituição ao autor.

45) O veículo em causa era utilizado diariamente pelo autor para as suas deslocações, nomeadamente para deslocações em trabalho ou em passeio com a família, bem como para deslocação a consultas médicas, nomeadamente, de obstetrícia.

46) Pelas características e conforto daquele veículo, era este que era utilizado para se fazer deslocar a si e à sua esposa às consultas de obstetrícia, uma vez que esta se encontrava grávida.

47) O autor viu-se privado de se deslocar, nas mesmas condições, em trabalho, bem como se viu privado de, aos fins-de-semana, poder passear com a família.

48) O autor teve que recorrer a veículos de terceiros para se poder deslocar.

49) O autor esteve sem veículo desde o dia 25 de março de 2016 a 27 de junho de 2016.

50) O custo do aluguer para veículo de idênticas características ao segurado ronda a quantia diária de 130,00€.

51) A data de matrícula do veículo seguro é 25.10.2012.

52) A ré procedeu à emissão da ata adicional n.º 5, constante de fls. 79 e cujo teor se considera integralmente reproduzido nesta sede, na qual se pode ler: “prémio comercial: €432,13 (…) furto ou roubo: €14.344,00.

53) O recibo do prémio emitido e liquidado pelo autor contemplava o acréscimo de €74,56 devido pela cobertura do valor de compra.

54) A ré emitiu a 05.08.2016 o recibo de estorno com o n.º 16-86-55224, no montante de €74,56.

55) Tal recibo foi aceite pelo autor, que recebeu tal valor.

56) À data mencionada no ponto 22) encontrava-se por liquidar o prémio referente ao 2.º semestre da anuidade do acordo, no valor de €286,72.

57) O autor não solicitou que lhe fosse facultado um veículo de substituição, não tendo acionado a cobertura facultativa do veículo de substituição.

58) A ré, ao comunicar o valor da indemnização que entendia ser devida, de €14.344,00, solicitou ao autor o envio de todos os elementos necessários para proceder ao pagamento da indemnização.

59) Contudo, o autor não remeteu à ré os elementos necessários para que esta procedesse ao pagamento daquela indemnização.

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Factos não provados:

A. Devido a um erro informático, aquando da impressão da ata adicional n.º 4, a cobertura facultativa do valor de compra não foi atualizada, constando da ata como ainda estando em vigor.

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III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 639º, nº 1, e 635º, nº 4, do NCPC), apenas há que apreciar as questões que ali foram enunciadas.

Nessa conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Alteração da matéria de facto.

- Montante do capital seguro que se encontrava em vigor à data da ocorrência do sinistro.

- Dano de privação do uso de veículo do A. e ressarcimento por parte da R.

2. A R. impugna a matéria de facto, no respeitante ao facto provado 35., pretendendo uma resposta restritiva ao mesmo, amputando-se a sua parte final ao mesmo tempo que propugna o acrescento de um novo facto provado que considere assente que ao tempo do furto do veículo seguro já não se encontrava em vigor a condição especial de “Valor de Compra” (cfr. conclusões de recurso 1. a 8.).

Saber se tal condição especial se encontrava em vigor à época do furto, como vem dado por assente na sentença recorrida, ou não se encontrava em vigor, como pretende a recorrente, é uma manifesta conclusão de facto, que deve ser retirada da análise da restante matéria provada e do convencionado entre as partes.

Ora, a decisão da matéria de facto tomada pelo tribunal, nos termos do art. 607º, nº 3 e 4, do NCPC, só deve discriminar factos concretos e específicos, alegados pelas partes (arts. 552º, nº 1, d) e 572º, c), e 588º, nº 1, do NCPC), e não simples conclusões (de facto ou de direito).

Assim, embora por razão diferente da invocada pela recorrente, deve extirpar-se a parte final do aludido facto provado 35, relativamente a tal condição especial (ficando a mesma em letra minúscula).

3. Na sentença recorrida escreveu-se que:

“Não se encontrando na lei particulares imposições quanto ao seguro relativo a eventos de furto, é no próprio contrato que haveremos de buscar a chave para a verificação essencial que cumpre realizar: qual o capital seguro vigente à data do furto do automóvel propriedade do autor.

Ora, não se apresenta disputado pela ré - e resulta da análise do teor do contrato celebrado - que, à data da ocorrência do sinistro (furto), o capital seguro em vigor correspondesse a €22.000,00. O que afirma a demandada é que tal valor, adveniente de uma cláusula facultativa de cobertura, se encontrava em vigor em virtude de um erro da sua parte ocorrido no momento de impressão de uma ata adicional, uma vez que, tendo em conta a antiguidade do veículo seguro - superior a três anos -, tal cláusula denominada de “valor de compra” deixara automaticamente de vigorar. Pergunta-se: terá a argumentação expendida a virtualidade de eximir a ré ao pagamento da sobredita quantia de €22.000,00?

Manifestamente não.

Analisemos com detalhe.

Há que mobilizar, com relevo para a situação decidenda, a disciplina estatuída no Decreto-lei nº 214/97, de 16 de agosto, que veio instituir regras destinadas a assegurar uma maior transparência em matéria de sobresseguro nos contratos de seguro automóvel facultativo. Atentemos no teor das normas pertinentes: “Artigo 2.º Alteração automática O valor seguro dos veículos deverá ser automaticamente alterado de acordo com a tabela referida no artigo 4.º, sendo o respetivo prémio ajustado à desvalorização do valor seguro. Artigo 3.º Incumprimento A cobrança de prémios por valor que exceda o que resultar da aplicação do disposto no número anterior constitui, salvo o disposto no artigo 5.º, as seguradoras na obrigação de responder, em caso de sinistro, com base no valor seguro apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro, sem direito a qualquer acréscimo de prémio e sem prejuízo de outras sanções previstas na lei.”

Estabelecido no artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 214/97 de 16/12 o princípio da alteração automática do valor seguro, o artigo 4.º daquele diploma veio impor às seguradoras contratantes de seguro facultativo que abarque danos próprios a elaboração de tabelas de desvalorizações periódicas automáticas para determinação da indemnização em caso de perda total.

Como sublinhou o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06.11.2007 9Processo número 356/07.4YCBR, disponível em www.dgsi.pt., “o postulado da desvalorização periódica responde assim à necessidade de atualização progressiva do valor do veículo seguro, não em função do seu uso, mas da idade e da influência depreciativa que esta exerce na valia económica desse bem de consumo.”

Com a epígrafe “deveres de informação contratual”, preceitua o artigo 8.º do diploma em análise que “1 - Sem prejuízo das demais regras sobre informação contratual previstas no Decreto-Lei n.º 176/95, de 26 de Junho, nos contratos a que se refere o artigo 1.º devem constar os seguintes elementos: a) O valor do veículo seguro, a considerar para efeitos de indemnização em caso de perda total, bem como os critérios da sua actualização anual e a respectiva tabela de desvalorização; b) O prémio devido. 2 - A empresa de seguros deve anualmente, até 30 dias antes da data de vencimento do contrato, comunicar por escrito ao tomador os seguintes elementos relativos ao próximo período contratual: a) O valor do veículo seguro, a considerar para efeitos de indemnização em caso de perda total; b) O prémio devido; c) Os agravamentos e bonificações a que o prémio foi sujeito.

Da matéria de facto adquirida, resulta que o contrato celebrado entre as partes se regula “pelas presentes Condições Gerais e pelas Condições Particulares, e ainda, se contratadas, pelas Condições Especiais.” (…) 3 - As Condições Especiais preveem a cobertura de outros riscos e ou garantias além dos previstos nas presentes Condições Gerais e carecem de ser especificamente identificadas nas Condições Particulares (…) Artigo 44.º os valores máximos garantidos pelo segurador para cada uma das coberturas contratadas….encontram-se expressos nas condições particulares” in Condições Gerais”, sendo que as condições particulares originárias que foram entregues ao autor aquando da subscrição do acordo, a 30/10/2012, faziam menção à cobertura de “Furto ou Roubo”, atribuindo-lhe um capital seguro de 22.000,00€ e incluindo a chamada condição particular 711. De acordo com esta, as garantias conferidas pela presente Condição Especial estão sujeitas ao disposto nas Condições Gerais da apólice.”

De acordo com o artigo 2.º intitulado “GARANTIAS E COBERTURAS”:- “1. Por esta Condição Especial, em caso de sinistro coberto pela apólice, o presente contrato garante o pagamento do valor seguro indicado nas Condições Particulares, desde que se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos: - a) Ser accionada uma das seguintes coberturas contratadas na apólice, conforme descritas nas Condições Especiais: 702, 703, 704, 706, 707 ou 708; - b) O sinistro encontrar-se coberto por uma das coberturas referidas na alínea anterior; - c) Tratar-se de uma perda total, conforme definida no número 1.7 do artigo 40.º, das Condições Gerais da apólice. - 2. Em cada anuidade da apólice, a determinação do capital seguro para efeitos da garantia conferida por esta Condição Especial corresponderá à diferença entre o valor em novo do veículo seguro à data da sua primeira matrícula (fixado na data de inclusão na apólice, de acordo com o critério definidos no artigo 40.º, n.º 1.6, das respectivas Condições Gerais) e o valor seguro desse mesmo veículo na anuidade em causa, determinado nos termos do artigo 44º, n.º 2, das Condições Gerais, para efeito das coberturas enumeradas na alínea a) do número 1 deste artigo. - 3. O montante máximo indemnizável ao abrigo da garantia conferida por esta Condição Especial está sempre limitado ao capital seguro fixado nas Condições Particulares para efeitos desta garantia.”

Resulta apodítico, da análise da materialidade fáctica adquirida, que à data da ocorrência do sinistro (furto), o veículo seguro já perfizera três anos de antiguidade, por referência à data da sua primeira matrícula. Todavia, não se presta a particular discussão que a cobertura especial denominada “valor de compra” - que permitia que o capital seguro coincidisse com o valor em novo do veículo seguro à data da sua primeira matrícula - não havia cessado automaticamente a sua vigência em momento anterior. E isto porque o artigo 3.º do contrato que regula a condição especial “711 - valor de compra” exclui da sobredita cessação automática as situações em que exista “convenção expressa constante das condições particulares da apólice.”

Ora, resultou provado que a ré comunicou ao autor, na anuidade no decurso da qual ocorreu o sinistro, que o capital seguro relativo aos danos próprios do seu veículo ascendia aos €22.000,00, situação que, concordantemente, determinou o acréscimo do prémio de seguro no valor de €74,56. Pelo que, por aplicação das normas constantes dos artigos 3º, 4º e 8º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 214/97 de 16/12, dúvidas não subsistem de que o valor do capital seguro devido ao autor corresponde ao apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro, “in casu”, de €22.000,00 - tal como aliás, a própria ré seguradora, em data posterior à ocorrência do sinistro, fez constar das informações veiculadas ao autor.

A argumentação da ré - no sentido de que tal atualização do denominado “valor de compra” se ficou a dever a um erro informático -, para além de não ter ficado demonstrada, avulta, assim, como manifestamente improcedente, sendo, ademais, violadora do princípio da boa-fé que deverá nortear a execução dos contratos (artigo 762.º/2 do Código Civil). Efetivamente, a ré, ainda que o autor, “motu proprio”, não tivesse procedido à atualização do valor de compra, não se coibiu de, unilateralmente, proceder a tal atualização, passando a cobrar o correspetivo prémio. A circunstância de apenas após o surgimento do sinistro ter a ré emitido um recibo de estorno equivalente ao acréscimo do prémio correspondente à cobertura adicional, não poderá deixar de ser interpretada como um expediente, sem qualquer arrimo legal, para a demandada se eximir ao pagamento do capital seguro devido, prevalecendo-se de um suposto lapso da sua parte para obter um benefício económico - resultante da diferença entre o valor do veículo à data da sua primeira matrícula e o valor do mesmo na anuidade em que ocorreu o furto - totalmente injustificado.

Em suma: a ré seguradora, não só não comunicou ao autor, por escrito e em conformidade com o disposto no artigo 8.º/2 do Decreto-Lei n.º 214/97 de 16/12, que o valor do veículo seguro a considerar para efeitos de indemnização em caso de perda total, no ano de 2016, passaria a ser de apenas €14.344,00, como foi a própria que emitiu uma apólice cujo teor apontava de, forma cristalina, para um capital seguro superior.

Na linha do propugnado, considerou o Tribunal da Relação de Guimarães, em acórdão de 18.06.2013 10Processo número 703/10.1TBEPS.G1, acessível em www.dgsi.pt. ….. , que “da conjugação do disposto nos arts 3º, 4º e 8º, n.º 2 do DL nº 214/97, de 16 de Agosto, extrai-se que, no âmbito do seguro facultativo de danos próprios em viatura automóvel, enquanto não for atualizado, nos termos legais, o valor do veículo seguro, a considerar para efeitos de indemnização em caso de perda total, nem for comunicada essa atualização ao tomador de seguro, as seguradoras estão constituídas na obrigação de responder, em caso de sinistro, com base no valor seguro apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro.”

O ponto em análise não poderá, pois, deixar de ser resolvido em favor do autor, sendo que à quantia peticionada de €22.000,00 deverá ser deduzido o valor de €74,56, correspondente à parcela do prémio de seguro entretanto devolvida pela seguradora ao demandante, assim como o montante de €286,72 que se encontrava por liquidar e correspondente ao prémio referente ao 2.º semestre da anuidade do contrato celebrado entre as partes.”.

A fundamentação apresentada, teve em conta a factualidade relevante apurada e as cláusulas contratuais pertinentes advenientes do contrato celebrado entre as partes. Igualmente ponderou as normas legais apropriadas. Por outro lado, a exposição é clara e isenta de dúvidas. Daí que, para nós, inexista qualquer censura a fazer a tal fundamentação, antes se subscrevendo a mesma.

Apenas cabendo sublinhar e fazer recordar à recorrente que a mesma insiste na posição já tomada na sua contestação e continua a olvidar o que consta no contrato de seguro no início do artigo 3º da condição especial “711 - valor de compra” que exclui a aludida cessação automática nas situações em que exista convenção expressa em contrário, constante das condições particulares da apólice.

Tanto mais que poderia e deveria ter-se certificado da justeza daquele valor de 22.000 €, designadamente em função da idade do veículo e da influência depreciativa que esta exerce na valia económica desse bem de consumo, e se não o fez foi porque não o quis ou por negligência dos respectivos serviços, pelo que, nem mesmo o seu alegado erro informático (facto não provado) na aceitação daquele valor, a exonera da obrigação de realizar a prestação convencionada.

Ora, como é sabido, de acordo com o art. 427º do Código Comercial, o tipo de contrato em análise regula-se pelas disposições da respectiva apólice, sendo certo que, a apólice é o documento que titula o contrato celebrado entre o tomador de seguro e a seguradora e é integrada pelas condições gerais, especiais e particulares acordadas (sendo as condições gerais as que se aplicam a todos os contratos de seguro de um mesmo ramo de actividade; as especiais, as que, completando ou especificando as condições gerais, são de aplicação generalizada a determinados contratos de seguro do mesmo tipo e as condições particulares, as que se destinam a responder em cada caso às circunstâncias específicas do risco a cobrir.).

Agora, sim, podendo nós concluir que tal condição especial se encontrava em vigor na época do furto.

Como assim, e tendo em conta que o segurador se obriga a satisfazer a prestação contratual a quem for devida, após a confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências (art. 102º, nº 1, da LCS, regulada no DL 72/2008, de 16.4), que tal obrigação se vencia contratualmente em 60 dias desde a data da participação da ocorrência do furto às autoridades (art. 45º, nº 5, das condições gerais da apólice), a vontade das partes que rege o conteúdo do contrato, vinculando os intervenientes, nos termos gerais dos arts. 405º e 406º do Código Civil e arts 4º e 11º da LCS), tratar-se de um seguro de danos em que se prevê que a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro, (arts. 123º e 128º da LCS), e que o dano a atender para determinar a prestação devida pelo segurador é o do valor do interesse seguro ao tempo do sinistro (art. 130º, nº 1, da LCS), então, a R. teria de ser condenada, como foi, a indemnizar o A. no valor arbitrado (os referidos 22.000 € menos as deduções efectuadas). Assim não procedendo esta parte do recurso.

4. Também se deixou dito na sentença recorrida que:

“Peticiona o demandante a condenação da ré no pagamento de uma quantia correspondente ao dano da privação do uso do veículo desde o dia 22 de março de 2016 a 27 de junho de 2016, considerando a não atribuição de veículo de substituição e, posteriormente, atenta a falta de pagamento da indemnização que permitisse ao autor adquirir carro idêntico ao furtado.

Diferentes posições têm sido assumidas na jurisprudência quanto à natureza do dano da privação do uso do veículo e, principalmente, quanto aos requisitos que é necessário preencher para que aquele seja indemnizável.

Abreviando razões, entende-se, antes de mais, que a mera indisponibilidade de um veículo constitui um dano para o seu proprietário. Há lesão no direito de propriedade enquanto poder de usar, fruir e dispor da coisa de modo exclusivo (artigo 1305.º do Código Civil). Assim entendida a propriedade, há que reconhecer que é diferente, para o dono das coisas, ter a sua disponibilidade ou não a ter, ainda que não lhes dê uso concreto. A possibilidade de uso é já uma faculdade do proprietário. Não está na mesma situação quem não dá uso a um bem porque não quer e aquele que não chega sequer a ter a possibilidade de efetiva a vontade de o usar.

Conclui-se, pois: a mera indisponibilidade do veículo traduz um dano.

É, pois, por nós tido como certo que a simples privação ilegal do uso, nos casos de bens de consumo duradouro - como é o caso de um veículo automóvel - integra já um prejuízo de que o proprietário deve ser compensado 12Na doutrina, sustentam a reparabilidade do dano de privação do uso, ANTÓNIO DOS SANTOS ABRANTES GERALDES, Indemnização do Dano de Privação do Uso, Coimbra, Almedina, 2001, págs. 30 e págs. 316 e 317, LUÍS MANUEL TELES MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, 2ª edição, vol. I, Almedina, Coimbra, págs. 316 e 317 e nota 657 e JÚLIO GOMES, “O dano de privação do uso”, Revista de Direito e Economia, nº 12, 1986, págs. 169 e seguintes. Nas palavras do Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão de 11.03.2003 13Processo número 683/2003-7, acessível em www.dgsi.pt. Na mesma linha, cfr. o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães 06.11.2012, processo número 326/08.5TBPVL.G1, disponível em www.dgsi.pt., com amplas referências jurisprudenciais: “Considerando que o direito de propriedade integra, como um dos seus elementos fundamentais, o poder de exclusiva fruição, e que isso envolve até o direito de não usar, a privação do uso reflete o corte definitivo e irrecuperável de uma “fatia” desses, justificando-se, assim, o ressarcimento que supra a modificação negativa que a privação do uso determina na relação entre o lesado e o seu património (…) Em suma, desde que a violação do direito de propriedade, acompanhada da privação do uso, constituem facto ilícito deve, em regra, conceder-se ao lesado a correspondente indemnização.” E isto até porque o proprietário que se viu privado da sua coisa sempre poderia obter ressarcimento através do instituto – de aplicação subsidiária, sublinhe-se – do enriquecimento sem causa.

De acordo com o mencionado aresto, cuja linha argumentativa se perfilha, “a medida do ressarcimento pode variar de acordo com os reflexos casuisticamente imputáveis ao evento. Mas, salvo situações excecionais resultantes de factos concretamente apurados, àquela situação de carência corresponderá a atribuição de uma compensação monetária.”

É certo que, não obstante o entendimento que se acolhe, se crê que “para o proprietário ter direito a indemnização pela privação do uso do veículo, nos termos do n.º 1 do artigo 483.º e 562.º e seguinte do Código Civil, não basta a verificação em abstrato da privação, sendo ainda necessário que a privação do veículo cause uma diminuição ao nível da satisfação das necessidades do proprietário consideradas na sua globalidade.” 14 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 6.03.2012, processo número 86/10.0T2SVV.C1, disponível em www.dgsi.pt.

Para este propósito basta, pois, que o lesado alegue e demonstre, para além da impossibilidade de utilização do bem, que esta privação gerou perda de utilidades que o mesmo lhe proporcionava, sendo, todavia, de afastar a ressarcibilidade de tal dano “se houver lugar à reconstituição natural, mediante, por exemplo, a colocação à disposição do lesado de um veículo de substituição durante o período de tempo necessário, ou provando-se que a perda da possibilidade de utilizar a viatura sinistrada é imputável ao próprio lesado, designadamente, por inércia ilegítima na sua reparação.” 15Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.07.2015, processo número 13804/12.2T2SNT.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt.

No caso que se analisa, ficou provado que o autor esteve sem veículo desde o dia 25 de março de 2016 a 27 de junho de 2016, tendo ficado assente que aquele o utilizava diariamente para as suas deslocações, nomeadamente para deslocações em trabalho ou em passeio com a família, bem como para deslocação a consultas médicas da sua esposa, que se encontrava grávida, à data. Ficou assente que o autor se viu privado de se deslocar, nas mesmas condições, em trabalho, bem como se viu privado de, aos fins-de-semana, poder passear com a família, tendo que recorrer a veículos de terceiros.

Conclui-se, pois, que o demandante, não apenas provou a impossibilidade de utilização do veículo furtado mas, igualmente, que tal privação gerou perda de utilidades que o mesmo lhe proporcionava. Em suma, o autor logrou provar que utilizava normalmente o veículo.

Há, assim, que afirmar o dano sob escrutínio. Detenhamo-nos, por ora, no “quantum” indemnizatório a atribuir nesta sede.

Em particular, nas hipóteses em que a privação de uso se refere a um veículo, há que distinguir duas situações. Pedindo em comodato as palavras do Tribunal da Relação de Coimbra, em acórdão de 10.09.2013 16 Processo número 438/11.8TBTND.C1, acessível em www.dgsi.pt., temos que: “uma delas em que se apura a concreta existência de despesas feitas pelo lesado em consequência dessa privação, como será por exemplo o caso mais comum em que o lesado se socorre do aluguer de veículo de substituição, contratando esse aluguer junto de empresas do ramo; uma outra situação em que não se apuram gastos alguns mas apenas que o lesado utilizava o veículo nas suas deslocações habituais (para fins profissionais ou de lazer) e que não lhe foi facultada pelo lesante viatura de substituição, tendo o mesmo ficado, por isso, impedido de fazer essas deslocações ou tendo o mesmo continuado a fazê-las socorrendo-se para o efeito de veículos de terceiros familiares e amigos que, a título de favor, lhe cederam por empréstimo tais veículos. Na primeira das apontadas situações, o lesado tem direito à reparação integral dos gastos/custos que teve por via da dita privação. Já na segunda, a medida da indemnização terá que ser encontrada com recurso à equidade, pois que deve concluir-se pela existência de um dano que se traduziu na impossibilidade do lesado o utilizar nas suas deslocações diárias, profissionais e de lazer, havendo que encontrar em termos quantitativos um valor que se mostre adequado a indemnizar o lesado pela paralisação diária de um veículo que satisfaz as suas necessidades básicas diárias.”

“In casu”, o autor foi lapidar ao afirmar não ter procedido ao aluguer de qualquer veículo para suprir as suas necessidades de locomoção.

Há, por outra banda, que fazer notar que, ao contrário do que o autor pretende, o período de 60 dias em que o mesmo se viu privado de veículo não deverá revelar para a atribuição da indemnização em crise, uma vez que, no decurso de tal hiato temporal, o demandante poderia ter usufruído de veículo de substituição, situação que apenas não sucedeu por facto que lhe foi imputável, já que não solicitou tal viatura. Com efeito, se resultou incontroverso que, de acordo com o programa contratual acordado, foi incluída a denominada “cláusula da cobertura de veículo de substituição” em caso de furto, até ao máximo de 60 dias por ano, a verdade é que também ficou provado que o autor não solicitou que lhe fosse facultado um veículo de substituição, não tendo acionado tal cobertura facultativa.

Neste conspecto, o período de privação a considerar para o propósito que nos anima é o de 25 de maio de 2016 a 27 de junho de 2016, correspondente ao hiato temporal decorrido entre a data em que o autor deixou de ter direito à utilização de veículo de substituição e a data em que o demandante passou a usufruir do carro que adquiriu.

….. o facto ilícito da ré consistiu na não disponibilização ao autor da quantia correspondente ao capital seguro, não tendo o autor incorrido em mora (cfr. artigo 830.º do Código Civil) ao não remeter à ré os aludidos documentos, justamente porque o montante cujo pagamento a mesma se propunha efetuar era inferior ao devido.

Considerando o juízo de equidade admitido pelo artigo 566.º/3 do Código Civil (cfr. artigo 4.º/a) do Código Civil) e entrando em linha de conta com as concretas necessidades satisfeitas pelo veículo furtado, com a situação pessoal do autor e respetiva família à data dos factos e, bem assim, com a circunstância de ter resultado provado que o custo do aluguer para veículo de idênticas características ao segurado ronda a quantia diária de 130,00€, entende-se que é ajustado fixar em €40,00 a quantia correspondente à indemnização diária devida pela privação do uso de um veículo que satisfazia as necessidades básicas de deslocação do lesado. Considerando que tal privação ocorreu por 33 dias, julga-se adequado fixar a indemnização a este título em €1.320,00…..”.

Perante este discurso jurídico, a recorrente objecta, no essencial, que no caso em apreço está em causa apenas a sua responsabilidade contratual, pelo que esta apenas poderá ser condenada a cumprir as obrigações resultantes do contrato que celebrou com o recorrido, não se tendo ela obrigado a liquidar qualquer indemnização pela privação do uso do veículo seguro, pelo que nunca poderá ser condenada a cumprir uma obrigação que não existe. Apenas foi contratada na apólice de seguro a cobertura facultativa de veículo de substituição, que o recorrido não accionou, como ficou provado, pelo que não estava a obrigada a disponibilizar ao mesmo um veículo de substituição ou a liquidar qualquer quantia que tenha como objectivo indemnizá-lo pela impossibilidade de utilizar o veículo.

Porém, não tem razão, tendo a argumentação jurídica da decisão apelada respondido a tais objecções da apelante.

Efectivamente, considerou-se nela, e com toda a justeza, que o dano da privação do uso do veículo, vinha invocado pelo A. com base em dois fundamentos: a não atribuição de veículo de substituição; a posterior falta de pagamento da indemnização que permitisse ao autor adquirir carro idêntico ao furtado. Analisaram-se estes dois fundamentos, considerando o tribunal a quo que o primeiro não se verificava, mas quanto ao segundo, ao invés, deu-se por ocorrido, por a R. não ter pago a quantia devida ao A. até ao momento a que estava obrigada e por causa disso o mesmo não ter tido a possibilidade de poder adquirir um veículo substitutivo, tendo ficado privado do respectivo uso até à altura em que o adquiriu, falta de pagamento atempado esse que se considerou, embora com justificação sumária, ser acto ou conduta ilícita da R.

Quanto a este segundo fundamento, assim é, na verdade.

Nos termos contratados, a apelante cobriu a responsabilidade pela indemnização do dano próprio substanciado na perda total do veículo seguro. A assunção de tal responsabilidade acarreta-lhe a obrigação de reconstituir a situação que existiria não fora o evento danoso, ex vi do art. 562º do CC.

Tal reconstituição pode operar-se in natura, pela integral reposição física ou em substância do bem atingido, na sua plena utilidade, ou pela restituição por equivalente, dotando o lesado de meios financeiros que lhe permitam a obtenção de outro bem de conteúdo idêntico ao que foi afectado pelo facto lesivo. Ora, na situação de perda total do bem, não sendo directamente ou indirectamente viável a restauração natural, nem se verificando qualquer das restantes circunstâncias aludidas na 2ª parte do no nº 1 do art. 566º do CC, o responsável só vem a cumprir a sua prestação - de reparação do dano - quando satisfaz inteira e cabalmente o quantitativo financeiro indispensável à aquisição de um bem idêntico. O que a R. não fez no tempo contratualmente devido. Daí ter praticado um facto voluntário ilícito e culposo, para os efeitos do art. 483º, nº 1, do CC.

Mas também danoso e com o respectivo nexo de causalidade entre o facto e o dano (art. 563º do CC). Vejamos, então.

Na aludida fundamentação da sentença recorrida, o tribunal, com o devido respeito, “dá uma no cravo e outra na ferradura”, visto que tanto considera que o dano por privação do uso da coisa se basta com a mera indisponibilidade de um bem como considera que o mesmo carece da prova que o lesado demonstre que tal privação gerou perda de utilidades que tal bem lhe proporcionava.

Não interessa tomar posição nesta querela doutrinal ou jurisprudencial, visto que a situação concreta dos autos, mesmo para a posição mais exigente, está demonstrada. Na realidade apurou-se que o A. esteve sem veículo até 27 de Junho de 2016, que aquele o utilizava diariamente para as suas deslocações, nomeadamente para deslocações em trabalho ou em passeio com a família, bem como para deslocação a consultas médicas da sua esposa, que se encontrava grávida, à data. E, igualmente, que o autor se viu privado de se deslocar, nas mesmas condições, em trabalho, bem como se viu privado de, aos fins-de-semana, poder passear com a família, tendo que recorrer a veículos de terceiros (factos 45. a 49.).

A partir daqui, estabelecido o dano e o respectivo nexo de causalidade, entra-se na operação de calcular o dano. E neste particular aspecto, como se assinala na sentença recorrida, ou se apura a concreta existência de despesas feitas pelo lesado em consequência dessa privação - como será por exemplo o caso mais comum em que o lesado se socorre do aluguer de veículo de substituição, contratando esse aluguer junto de empresas do ramo -, ou não se apuram gastos alguns - mas sim que o lesado utilizava o veículo nas suas deslocações habituais (para fins profissionais, familiares, lazer, etc) – mas em que não lhe foi facultada pelo lesante viatura de substituição, ou quantia indemnizatória apta a adquirir novo veículo semelhante, tendo o mesmo ficado, por isso, impedido de fazer essas deslocações ou que as fez socorrendo-se para o efeito de veículos de terceiros.

Na primeira situação, o lesado terá direito à reparação integral dos gastos/custos que teve por via da dita privação. Já na segunda hipótese, a medida da indemnização terá que ser encontrada com recurso à equidade, pois que deve concluir-se pela existência de um dano que se traduziu na impossibilidade do lesado o utilizar nas suas deslocações diárias, profissionais, familiares, de lazer, havendo que encontrar em termos quantitativos um valor que se mostre adequado a indemnizar o lesado pela paralisação diária de um veículo que satisfaz as suas necessidades básicas diárias.

Foi o que ocorreu no caso dos autos, em que o tribunal a quo calculou, com recurso à equidade, o valor do dano decorrente do termo da data em que a R. devia ter pago a indemnização contratual ao R. e a data em que este adquiriu novo veículo, no total de 33 dias (certo que o valor diário fixado não vem impugnado).   

Não procede, por isso, o recurso, nesta parte.

5. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) Da conjugação do disposto nos arts. 3º, 4º e 8º, nº 2, do DL 214/97, de 16.8, retira-se que no âmbito do seguro facultativo de danos próprios em viatura automóvel, enquanto não for actualizado, nos termos legais, o valor do veículo seguro, a considerar para efeitos de indemnização em caso de perda total, nem for comunicada essa actualização ao tomador do seguro, as seguradoras ficam constituídas na obrigação de responder, em caso de sinistro, com base no valor seguro apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro;

ii) Provado que a privação de uso de um veículo - que se perdeu totalmente, até à aquisição de um novo, por não atempado pagamento do valor indemnizatório devido contratualmente por uma seguradora, no âmbito do seguro facultativo, por danos próprios, com a consequente não disponibilidade ao lesado da respectiva quantia para adquirir esse novo veículo – causou uma diminuição ao nível da satisfação das necessidades familiares, profissionais e de lazer do proprietário, deve arbitrar-se o respectivo valor ressarcitório;    

iii) Neste caso, a medida da indemnização terá que ser encontrada com recurso à equidade, havendo que encontrar em termos quantitativos um valor que se mostre adequado a indemnizar o lesado pela paralisação diária de um veículo que satisfaça essas suas necessidades diárias.

 IV - Decisão

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

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Custas pela R. 

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Coimbra, 7.11.2017

  Moreira do Carmo ( Relator )

Fonte Ramos

Maria João Areias