Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
287/14.1GACNF.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA SIMPLES
DISPENSA DE PENA
RETORSÃO
Data do Acordão: 09/14/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (SECÇÃO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA INSTÂNCIA LOCAL DE CINFÃES – J1
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 143.º, N.º 3, DO CP
Sumário: I - Nos termos e para os efeitos previstos no artigo 143.º, n.º 3, do CP, a retorsão pressupõe a conduta de alguém que, estando a ser vítima de agressão contemporânea, se limita a responder, a replicar.

II - Por isso, as agressões perpetradas pelo agente que retorque hão-de ser da mesma natureza e medida daquelas de que está a ser vítima, não podendo excedê-las, de forma a existir, entre umas e outras, um desnível acentuado, em termos de intensidade e gravidade.

Decisão Texto Integral:





ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

            Nos autos de inquérito (actos jurisdicionais) que, sob o nº 287/14.1GACNF, correram termos pela Secção de Competência Genérica da Instância Local de Cinfães, da Comarca de Viseu – J1, em que é arguido A... o MP, a encerrar o inquérito, remeteu o processo à M.ma Juíza, a fim de esta se pronunciar, em termos de concordância ou não, com a aplicação da suspensão provisória do processo.

            Foi então proferido despacho do seguinte teor:

«Os presentes autos de inquérito iniciaram-se com a queixa apresentada por B... contra A... , porquanto, no dia 05.12.2014, cerca das 03:00 horas, quando ambos se encontravam no interior do estabelecimento de café ‘ x... ’, sito em Nespereira, Vila Chã, envolveram-se numa discussão fútil, tendo o arguido agredido fisicamente o ofendido com murros e pontapés. O Ministério Público considerou estar em causa, nos autos ora em análise, a eventual prática do crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal, embora com a particularidade prevista n.º 3, alínea b) daquele preceito legal, ou seja, “o tribunal pode dispensar de pena quando o agente tiver unicamente exercido retorsão sobre o agressor.” Efetivamente entendeu o M.P., com base na prova carreada para os autos, designadamente o teor das declarações prestadas pelas testemunhas, C... e D... , com conhecimento direto dos factos, que resultam indícios suficientes, que, nas circunstâncias de tempo e lugar supra descritas, B... desferiu primeiro um murro na cabeça do arguido, e logo após estes se envolveram em agressões mútuas, tendo-se, assim, logrado provar que existiu unicamente retorsão por parte do arguido. Neste jaez, sempre haveria lugar à dedução de acusação pública pela prática, do arguido, na forma consumada e em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal. No entanto, considerou o Ministério Público estarem verificados os pressupostos da aplicação do instituto da dispensa de pena ao aqui arguido, A... , porquanto se apurou que este unicamente exerceu retorsão sobre o ofendido Laurentino. Nesta senda, concluiu o Ministério Público que atendendo, por um lado, às agressões que são imputadas ao arguido, e, por outro lado, ao facto de se ter apurado que o arguido exerceu retorsão sobre o ofendido Laurentino, pelo que remeteu os presentes autos ao Juiz de Instrução Criminal, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 280.º, n.º 1 do Código de Processo Penal. Cumpre apreciar e decidir da admissibilidade do instituto da dispensa de pena nos autos ora em análise. Assim, dispõe o artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal que “quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”. Neste conspecto, resultam dos elementos que integram os presentes autos indícios suficientes que, nas circunstâncias de tempo e lugar supra descritas, B... desferiu primeiro um murro na cabeça do arguido, e logo após se envolveram em agressões mútuas, com murros e pontapés, não tendo resultado lesões graves no corpo do ofendido. Note-se que na data da elaboração do relatório pericial o ofendido não apresentava quaisquer lesões. Ou seja, resulta suficientemente indiciado que o referido arguido praticou um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal, o que determinaria a dedução de acusação pública contra este. Contudo, foi possível apurar que o arguido exerceu unicamente retorsão sobre o ofendido Laurentino. Ora, nos termos do disposto no artigo 143.º, n.º 3, alínea b) do Código Penal, o Tribunal pode dispensar de pena quando o agente tiver unicamente exercido retorsão sobre o agressor, o que se verifica nos presentes autos. Deste modo, importa analisar o disposto no artigo 280.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, onde se prevê que “se o processo for por crime relativamente ao qual se encontre expressamente prevista na Lei penal a possibilidade da dispensa de pena, o Ministério Público, com a concordância do Juiz de Instrução pode decidir-se pelo arquivamento do processo, se se verificarem os pressupostos daquela dispensa”. Assim, o arquivamento por dispensa de pena impõe que para o crime indiciado se encontre expressamente prevista na Lei penal a possibilidade da dispensa de pena, bem como, por imperativo do disposto no artigo 74.º, n.ºs 1 e 3 do Código Penal, os seguintes requisitos cumulativos:

a) a ilicitude do facto e a culpa do agente sejam diminutas;

b) a reparação do dano; e

c) se à dispensa de pena se não opuserem razões de prevenção.

Neste conspecto, o instituto da dispensa de pena tem como base ‘a declaração de culpa sem declaração de pena’. No crime de ofensa à integridade física simples – como já expresso – a possibilidade de dispensa de pena encontra-se expressamente prevista na Lei Penal, designadamente no disposto no artigo 143.º, n.º 3 do Código Penal. Por outro lado, verifica-se no caso concreto o preenchimento do estabelecido na alínea b) do n.º 3 do artigo 143.º do Código Penal, porquanto nos presentes autos se logrou provar que o arguido exerceu unicamente retorsão sobre o agressor. Importa, ora, analisar a verificação dos requisitos cumulativos previstos no artigo 74.º, n.º 1 do Código Penal. Perante os factos carreados para os presentes autos, verifica-se que está em causa uma contenda física entre o arguido A... l e o ofendido Laurentino donde não resultaram lesões graves à integridade física deste, sendo que na data da elaboração do relatório pericial o ofendido não apresentava quaisquer lesões, cfr. relatório de perícia de avaliação do dano corporal em direito penal junto a fls. 63-65. Assim sendo, as agressões foram perpetradas num ambiente de ação/reação. Assim, e aderindo à posição do Ministério Público manifestada a fls. 74-79, entendemos que a ilicitude e a culpa da conduta do arguido são diminutas, porquanto, este, num clima de exaltação e discussão, agrediu o ofendido, exercendo unicamente retorsão sobre este, não tendo resultado lesões físicas graves para o ofendido. Por outro lado, os danos causados ao ofendido não foram objeto de reparação, contudo resulta dos elementos constantes dos presentes autos que, no âmbito de uma discussão entre o arguido e o ofendido, este desferiu o primeiro murro no arguido, tendo-se ambos envolvido em agressões mútuas, e ofendido sofreu lesões físicas, bem como estas se ficaram a dever ao exercício de retorsão sobre o ofendido. Nesta senda, afigura-se-nos que o ofendido não sofreu lesões graves, até porque na data da elaboração do relatório pericial não apresentava quaisquer lesões, pelo que as lesões sofridas pelo ofendido estarão compensadas pelas agressões perpetradas por este sobre o arguido, uma vez que os presentes autos de inquérito surgiram em virtude duma contenda entre ambos, com agressões recíprocas e idênticas, das quais se apurou a sua sequência temporal, designadamente que foi o ofendido quem desferiu o primeiro murro. Desta forma, como estamos perante uma contenda em que os arguidos se agrediram mutuamente, e tendo-se apurado que foi o ofendido quem agrediu primeiro, pelo que o arguido exerceu unicamente retorsão sobre este, afigura-se-nos que a existir danos suscetíveis de reparação, eles são recíprocos, e, portanto, estão compensados entre si. Em face do exposto, nos termos do disposto no artigo 570.º, n.º 1 do Código Civil, entendemos que, nos presentes autos, deverá ser excluída a indemnização/reparação. Por fim, no que concerne às exigências de prevenção, seja de prevenção geral positiva (entendida como a proteção dos bens jurídicos e a tutela da confiança da comunidade na vigência da norma violada e da ordem jurídico-penal), seja de prevenção especial positiva (entendida como a socialização e a reintegração do agente na sociedade possibilitando-lhe a interiorização dos valores jurídico-penais, por forma a evitar que, no futuro, pratique outros crimes), não resulta dos presentes autos que se verificam razões de prevenção que se opõem à dispensa de pena, uma vez que estamos perante um episódio singular/único/ocasional, em que as ofensas físicas foram fruto do clima de exaltação e discussão surgido entre o arguido e o ofendido, sendo que o sentimento comunitário não aconselha a aplicação de uma pena principal, bastando-se com a declaração de culpa que a dispensa de pena acarreta. Acresce que, resulta do teor do C.R.C. do arguido junto aos presentes autos a fls. 86-91 inscrições de condenações por crimes de condução sem habilitação legal, os quais visam proteger os bens jurídicos distintos dos presentes autos. Assim, entendemos que não se verificam obstáculos à aplicação da dispensa de pena, pelo que subscrevemos as considerações expendidas pelo Ministério Público a fls. 74-79, considerando verificados os requisitos exigidos pelas disposições legais aplicáveis, manifestando, assim, a minha concordância. Em face do supra exposto, nos termos do disposto nos artigos 143.º, n.º 3, alínea b) e 74.º, n.ºs 1 e 3, ambos do Código Penal e artigo 280.º, n.º 1 do Código Processo Penal, exprimo a minha concordância com a dispensa de pena, e consequente arquivamento do processo nos termos decididos.

Notifique.

Devolva os presentes autos ao Ministério Público

            Entretanto, o ofendido B... , requereu e foi admitido a intervir nos presentes autos como assistente.

Inconformado com tal despacho, o assistente interpôs o presente recurso, que motivou, concluindo nos seguintes termos:

1. O despacho de encerramento do inquérito enferma de nulidade, sendo inválido, bem como todos os actos posteriores que dele dependam, nomeadamente a promoção da dispensa de pena, devendo, por isso, ser atendidas as nulidades arguidas.

2. Além disso, não se verifica no caso concreto o preenchimento do estabelecido na al. b) do nº 3 do artº 143 do CP, não se podendo considerar que o arguido se tenha limitado a exercer retorsão sobre o recorrente.

3. Na verdade, o relatório completo de episódio de urgência refere … Rx do nariz com fractura sem desvio: apresenta fractura do peróneo esquerdo… RX-fractura do perónio 1/3 proximal…imobilização gessada.

4. Ou seja, o arguido e o denunciado E... , para além das lesões provocadas na face do recorrente, partiram a perna esquerda ao recorrente, tal como consta do relatório de urgência e do relatório da perícia de avaliação corporal juntos aos autos a fls. 7, 22, 40, 41, 42, 53, 54, 55, 63, 64 e 65.

5. Das agressões, tal como consta do relatório de fls. 65 “terão resultado para o examinado as consequências permanentes descritas, as quais, sob o ponto de vista médico-legal, se traduzem em calo ósseo ao nível do perónio esquerdo…”, verificando-se, assim, danos patrimoniais e não patrimoniais ainda não reparados merecedores de tutela jurídica nos termos do artº 562º do Código Civil.

6. Assim, entendemos que a decisão padece de erro notório na apreciação da prova pelo facto de os fundamentos factuais estarem em desconformidade com a realidade documentada nos próprios autos, sendo notório que esta decisão se baseou em factos que não encontram correspondência nos documentos juntos aos autos, mormente os relatórios médicos.

7. Não pode o tribunal a quo decidir que há danos recíprocos, quando nos autos os únicos danos documentados são os danos do recorrente.

8. Aliás, nem por hipótese académica poderíamos falar de compensação dos danos entre si, primeiro porque dos autos não resulta qualquer dano para o arguido, depois porque mesmo que o recorrente tivesse dado um murro, que não deu, nada justificaria que o arguido em conjugação de esforços com o denunciado Filipe lhe tivesse dado uma ‘malha’ ao ponto de lhe partir a perna (cfr. doc.s de fls. 22, 40, 41, 42, 53, 54, 55, 63, 64 e 65).

9. Consequentemente, não poderia o tribunal a quo ignorar as lesões sofridas pelo recorrente para excluir a indemnização/reparação nos termos do disposto no artº 570º do CC.

10. De igual modo, entendemos, salvo devido respeito, que assume especial relevância a ilicitude da conduta do arguido.

11. Ao dar a sua concordância para a dispensa da pena o despacho em recurso não assegura as razões de prevenção que se exigem.

12. O despacho em recurso deve ser revogado por violação dos artºs 74º, 143º, ambos do CP, artº 280º, 1, CPP, 483º, 562º e 570º, todos do CC.

            Nestes termos e nos demais de direito deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogado o douto despacho recorrido, e em consequência, ser substituído por outro que manifeste a discordância com o arquivamento dos autos.

Respondeu o MP em primeira instância, concluindo nos seguintes termos:

1. No âmbito do instituto processual da dispensa de pena o juiz de instrução não profere decisão.

2. Não havendo decisão, não pode haver recurso.

3. A declaração de concordância ou não concordância do juiz de instrução na dispensa de pena é irrecorrível (nesse sentido Acórdão da Relação de Coimbra de 22/01/2014, proc. n.º 148/13.1GCVIS.C1, relator Vasques Osório; Acórdão da Relação do Porto de 4/11/2015, proc. n.º 658/13.0SLPRT.P1, relatora Airisa Caldinho; Decisão do Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa de 26/05/2000, Proc. n.º 0036953, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

4. E no que concerne ao despacho de arquivamento do inquérito quanto ao denunciado E... , como referimos supra, não cabe recurso dos despachos proferidos pelo Ministério Público.

5. O recurso interposto pelo assistente deve ser rejeitado.
Sem Prescindir,
6. O douto despacho proferido nos autos que manifestou concordância com a dispensa de pena, encontra-se devidamente fundamentada de facto e de direito, não merecendo qualquer censura.
7. Do teor do despacho proferido pelo Tribunal “a quo” não se vislumbra in casu vestígio do vício apontado de erro notório de apreciação da prova, na medida em que nenhum vício de raciocínio aí se evidencia na apreciação dos factos indiciados e respectivas provas juntas aos autos.
8. Decorre das declarações prestadas pelas testemunhas C... e D... que o arguido A... e o assistente, após discutirem, envolveram-se em agressões mútuas, tendo sido o assistente a desferir o primeiro murro, atingindo o arguido na cabeça.
9. O arguido A... agiu em desforço face à agressão de que foi vítima e perpetrada pelo assistente, actuando com a única intenção de retribuir tal agressão, exercendo unicamente retorsão sobre o agressor.
10. E os requisitos previstos no artigo 74.º, n.ºs 1 e 3 do Código Penal também se encontram preenchidos.
10. A ilicitude do facto, bem como a culpa do arguido revelam-se diminutas, considerando as circunstâncias em que os factos ocorreram, num ambiente de acção/reacção.
11. Quanto aos danos causados ao assistente, o mesmo não sofreu lesões graves, ambos agrediram-se mutuamente, e tendo-se apurado que foi o assistente quem agrediu primeiro, tendo o arguido exercido unicamente retorsão sobre este.
12. A existir danos susceptíveis de reparação, eles são recíprocos, e, portanto, estão compensados entre si.
13. Nos termos do disposto no artigo 570.º, n.º 1 do Código Civil, deverá ser excluída a indemnização/reparação.
14. E no que concerne às exigências de prevenção, seja de prevenção geral positiva, seja de prevenção especial positiva, não resulta dos presentes autos que se verificam razões de prevenção que se opõem à dispensa de pena, uma vez que estamos perante um episódio único, em que as ofensas físicas foram fruto do clima de exaltação e discussão surgido entre o arguido e o assistente, sendo que o sentimento comunitário não aconselha a aplicação de uma pena principal, bastando-se com a declaração de culpa que a dispensa de pena acarreta.
15. O arguido não sofreu qualquer condenação anterior por factos de idêntica natureza.
16. Pelo exposto, entendemos não merecer o despacho proferido pelo Tribunal a quo, agora posto em crise, qualquer censura.

            Nesta Relação, a Ex.ma PGA, no douto parecer que elaborou, mostrou concordância com as conclusões formuladas pelo recorrente, pelo que se pronunciou no sentido de ser ponderada a procedência do recurso do assistente.

            Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

DECIDINDO:

            Analisadas as conclusões que o assistente retira da sua motivação, logo se constata que a questão essencial que, através delas, coloca à nossa apreciação, se prende com a bondade do despacho judicial que manifestou concordância com a suspensão provisória do processo, pois que pretende que não se verificam alguns dos respectivos pressupostos.           

Como questão prévia, o MP suscita a questão prévia da inadmissibilidade do recurso interposto. Escora-se na norma do artº 280º, 3, do CPP, nos termos do qual, «a decisão de arquivamento, em conformidade com o disposto nos números anteriores, não é susceptível de impugnação». Conclui pela rejeição do recurso.

A questão, já suscitada pela M.ma Juiza, no seu despacho de fls. 138 e 139, no qual decidiu no sentido da não admissibilidade do recurso, do qual reclamou o assistente B... para o Presidente deste Tribunal da Relação, foi decidida no sentido do deferimento, conforme resulta de fls. 211 a 214. Na sequência viria a ser o recurso admitido.

Porque estamos de acordo com os fundamentos da decisão proferida no incidente de reclamação, para aí remetemos, decidindo, deste modo, pela improcedência da questão prévia suscitada pelo MP.

Começa o recorrente por suscitar a nulidade do inquérito, uma vez que este foi encerrado sem que o denunciado E... fosse constituído arguido. Na sequência, arguiu a nulidade do despacho de encerramento do inquérito, no qual foi proferido o despacho impugnado.

Pronunciando-se sobre o requerimento formulado pelo assistente, o MP conclui pela sua improcedência.

Notificado, o assistente requereu a abertura de instrução, no qual suscita novamente tal questão.

Não existe nos autos notícia de que sobre tal requerimento haja recaído decisão judicial, pois que apenas destas se pode recorrer.

Assim sendo, porque dos despachos do MP não se pode recorrer, e porque sobre a questão decidenda não recaiu ainda qualquer decisão judicial, nessa parte, o recurso é inadmissível, razão pela qual, e nesse pormenor, dele não tomaremos conhecimento (artºs 399º, 414º, 2, 420º, 1, b), todos do CPP).

Assim sendo, e tendo nós concluído pela admissibilidade do recurso, a questão única que cumpre conhecer prende-se com a verificação, ou não, dos pressupostos de que depende a dispensa da pena. Com efeito, e como refere o Prof. Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, III, pag. 120), citado na decisão do incidente de reclamação (v. fls. 214), apenas a decisão judicial está em causa, mormente a «verificação judicial da ocorrência dos pressupostos que permitem legalmente aquela decisão e arquivamento».

Como refere o despacho impugnado, o MP, ao encerrar o inquérito, e face aos elementos indiciários recolhidos entendeu que estava em causa a prática, pelo arguido A... , de um crime de ofensa à integridade física, p.p. pelo artº 143º, 1, do CP.

Tal crime é um daqueles «relativamente ao qual se encontra expressamente prevista na lei a possibilidade de dispensa da pena» (artº 280º, 1, CPP), como resulta do nº 3 daquele artº 143º. Este, todavia, estabelece, como pressupostos da dispensa da pena, de modo alternativo, que:

a)Tenha havido lesões recíprocas e não se tenha provado qual dos contendores agrediu primeiro; ou

b) O agente tenha unicamente exercido retorsão sobre o agressor.

            Por outro lado, resulta do nº 3 do artº 74º do CP, que é aplicável ao caso a previsão do seu nº 1, razão pela qual, a dispensa da pena, mesmo quando a possibilidade é concretamente admitida pela norma, como sucede no nosso caso, só pode ser decretada quando se verifiquem, de forma cumulativa, os seguintes requisitos:
a) A ilicitude do facto e a culpa do agente forem diminutas;
b) O dano tiver sido reparado; e
c) À dispensa da pena se não opuserem razões de prevenção.

            Quer o MP, no despacho final do inquérito, quer a M.ma Juiza, na decisão impugnada, assentaram a aplicação deste mecanismo na al. b) referida. É dito na decisão recorrida que «foi possível apurar que o arguido exerceu unicamente retorsão sobre o ofendido Laurentino», razão pela qual aí se manifesta concordância com o arquivamento do processo.

            A decisão recorrida, aderindo aos fundamentos do despacho do MP, considerou que a ilicitude e a culpa da conduta do arguido são diminutas, porquanto, este, num clima de exaltação e discussão, agrediu o ofendido, exercendo unicamente retorsão sobre este, não tendo resultado lesões físicas graves para o ofendido. Considerou, também, que as exigências de prevenção não se opõem à dispensa da pena.

            Contudo, cremos que outro deveria ter sido o juízo efectuado pela M.maJuiza recorrida, o qual conduziria à manifestação da sua não concordância com a aplicação do instituto aqui em causa.

Por retorsão se há-de entender, no caso, a conduta de alguém que, estando a ser vítima de agressão contemporânea, se limita a responder, a replicar à mesma. Por isso, as agressões perpetradas por aquele que retorque hão-de ser da mesma natureza e medida daquelas de que está a ser vítima, não podendo excedê-las manifestamente, de forma a existir um desnível acentuado, em termos de intensidade e gravidade, entre umas e outras. Esta ideia resulta até da hermenêutica da norma do artº 143º, 3, b), pois que não terá sido inocente a inclusão do advérbio «unicamente» na sua redacção. Tal terá sido determinado, na nossa interpretação, pela necessidade que o legislador sentiu de fazer conter a ‘resposta’ que pode ser considerada retorsão, nos limites da agressão provocatória. Terá pretendido afastar do âmbito de aplicação da norma os casos em que existe um manifesto desequilíbrio entre a agressão inicial e a agressão com que a vítima inicial lhe respondeu. Ou seja, e colocada a questão em termos extremos, mas que ajudam a perceber o alcance da norma, não pode a vítima de um murro responder com agressões que causem a morte do agressor inicial.

No nosso caso, o MP considerou que, em termos indiciários, se mostra assente que «o ofendido no decurso de uma discussão com o arguido, desferiu-lhe um murro na cabeça, tendo posteriormente e em acto contínuo se envolvido em agressões mútuas, desferindo murros e pontapés».

Dos elementos documentais e periciais disponíveis nos autos resulta que, para o assistente resultaram diversas lesões, de que se destaca fractura dos ossos do nariz e do perónio esquerdo, para além de outras (fls. 40 e seg.s, 53 a 55, 63 a 65).

Assim sendo, e à míngua de outros elementos, não se pode afirmar, sem mais, que o arguido se ‘limitou’ a responder à agressão do assistente e, assim, também não se pode afirmar que a culpa do agente e a ilicitude do facto foram diminutas, pois que a actividade do agente foi muito intensa e os resultados da sua actividade se revestiram da gravidade descrita, designadamente com a produção das descritas fracturas e demais lesões, que demandaram 30 dias para consolidação, com afectação da capacidade de trabalho profissional durante todo esse período. A ilicitude do facto mostra-se muito acentuada, situando-se próximo do grau máximo permitido pela norma incriminatória da ofensa à integridade física simples, dada a extensão dos danos pessoais causados.

Por outro lado, e de forma cumulativa, exige a al. b) do artº 74º que, para que se possa arquivar o processo, o dano deve estar reparado.

Considerou o despacho recorrido que «os danos causados ao ofendido não foram objeto de reparação, contudo resulta dos elementos constantes dos presentes autos que, no âmbito de uma discussão entre o arguido e o ofendido, este desferiu o primeiro murro no arguido, tendo-se ambos envolvido em agressões mútuas, e ofendido sofreu lesões físicas, bem como estas se ficaram a dever ao exercício de retorsão sobre o ofendido. Nesta senda, afigura-se-nos que o ofendido não sofreu lesões graves, até porque na data da elaboração do relatório pericial não apresentava quaisquer lesões, pelo que as lesões sofridas pelo ofendido estarão compensadas pelas agressões perpetradas por este sobre o arguido, uma vez que os presentes autos de inquérito surgiram em virtude duma contenda entre ambos, com agressões recíprocas e idênticas, das quais se apurou a sua sequência temporal, designadamente que foi o ofendido quem desferiu o primeiro murro. Desta forma, como estamos perante uma contenda em que os arguidos se agrediram mutuamente, e tendo-se apurado que foi o ofendido quem agrediu primeiro, pelo que o arguido exerceu unicamente retorsão sobre este, afigura-se-nos que a existir danos suscetíveis de reparação, eles são recíprocos, e, portanto, estão compensados entre si. Em face do exposto, nos termos do disposto no artigo 570.º, n.º 1 do Código Civil, entendemos que, nos presentes autos, deverá ser excluída a indemnização/reparação».

De forma avisada, havia o Ex.mo PGA dito, no douto parecer que elaborou, que «nesta matéria e com vista à solução legal proposta à M.ma Juíza de Instrução, aliás por esta aceite, se deveria procurar previamente algum consenso entre os sujeitos envolvidos, exactamente porque estamos num campo em concreto em que se podem colocar dúvidas quanto à efectiva reparação (ou compensação) dos danos causados e sofridos reciprocamente».

Atentas as considerações já atrás expendidas e bem assim a redacção do artº 570º, 1 do CC, cremos que os danos sofridos pelo assistente existem e não se mostram reparados. Com efeito, consideramos já ter sido a resposta do arguido excessiva em relação à agressão do assistente. Por isso não se pode excluir totalmente a indemnização pelos danos, nos termos daquele artº 570º, 1, CC, nem sequer falar em compensação dos danos recíprocos, como faz o MP na sua resposta, pois que, nos termos apurados no inquérito, existe um grande desnível entre uns e outros.

Assim sendo, temos por certo que o dano não se mostra reparado e não são diminutas a culpa do agente nem a ilicitude do facto.

Por isso, não deveria a M.ma Juiza ter manifestado a sua concordância com a dispensa da pena.

Termos em que, no provimento do recurso, se acorda em revogar o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que manifeste a sua discordância relativamente ao arquivamento dos autos.

Recurso sem tributação.

Coimbra, 14 de Setembro de 2016

(Jorge França - relator)

(Elisa Sales - adjunta)