Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
709/04.0TMAVR-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GONÇALVES FERREIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE
PATERNIDADE
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
GRAVAÇÃO DA PROVA
NULIDADE
Data do Acordão: 01/19/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 201, 712 CPC, 1906 DO CC
Sumário: I – A deficiência da gravação dos depoimentos prestados configura nulidade, nos termos do art.201 nº1 do CPC, mas só nos casos de impossibilitar a percepção das declarações, inviabilizando a reapreciação da matéria de facto pela segunda instância.

II – Não traduzem nulidade as simples lacunas que, pela diminuta dimensão, não impeçam a apreensão do sentido dos depoimentos.

III – A Relação só pode alterar a decisão de facto se tiver ocorrido erro notório na apreciação da prova.

IV – O progenitor, a cuja guarda o filho menor foi confiado, não está impedido de o levar consigo para o estrangeiro, a menos que se verifiquem circunstâncias ponderosas que o desaconselhem.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. Relatório:

            A (…), residente na Rua (…),  Aveiro, intentou procedimento cautelar inominado contra B (…) residente na Rua (…) , Viseu, alegando, em síntese, que:

            Propôs acção de alteração das responsabilidades parentais, tendente a que o poder paternal do menor C (…) passasse a ser exercido por ambos os pais.

            A mãe, ora requerida, tenciona ausentar-se para o estrangeiro com o menor e não mais regressar a Portugal, o que frustraria o efeito da acção principal, sendo, por outro lado, certo, que ele (requerente) não autoriza o filho a ir para o estrangeiro.

            Pediu, a final, que, sem prévia audição da requerida, se decretasse a inibição de esta levar consigo o menor para o estrangeiro.

            Indeferida a dispensa do contraditório, foi a requerida notificada para deduzir oposição, o que fez deste modo:

            A acção de alteração da regulação do exercício do poder paternal improcedeu, pelo que a sua frustração está fora de causa.

            De qualquer maneira, a ida para o estrangeiro não passa de uma mera possibilidade, ditada, aliás, pelo objectivo de proporcionar melhores condições de vida para si e para o seu filho.

            Ainda que tal se verifique, a ausência não é para sempre, além de que não pretende privar o filho do contacto com o pai, até porque se deslocará a Portugal duas vezes no ano, pelo menos.

            Concluiu pelo indeferimento da solicitada providência.

Realizada a audiência final, foi proferida decisão que julgou improcedente a providência requerida.

O requerente veio arguir a irregularidade ou nulidade do “vício da gravação de produção de prova” e requerer a anulação dos depoimentos das testemunhas por si arroladas, afirmando serem os mesmos inaudíveis.

A requerida pronunciou-se pelo indeferimento da arguição, por entender que a gravação realizada permite captar o essencial dos depoimentos.

Ouvida a secretaria, que informou serem os depoimentos audíveis e perceptíveis, foi proferido despacho a indeferir a nulidade.

Insatisfeito, o requerente interpôs recurso, alegou e apresentou as seguintes conclusões:

1) O procedimento improcedeu, por se não ter provado que a mãe do menor tivesse o propósito sério de emigrar, o que afasta a verificação da ameaça iminente de lesão do direito, que é um dos pressupostos essenciais da procedência do procedimento;

2) Só que, dos depoimentos das testemunhas (…) resulta precisamente o contrário, ou seja, que a mãe pretende ir para França com o menor, por tempo indeterminado;

3) Mas mesmo que assim não fosse, o procedimento cautelar só tem de fundamentar-se em indícios, pelo que sempre deveria proceder;

4) Por outro lado, os depoimentos daquelas testemunhas não se percebem na sua totalidade, razão por que devem voltar a ser inquiridas.

Acabou por formular o pedido de repetição da inquirição das mencionadas testemunhas e, de qualquer modo, o deferimento da providência.

O MP contra-alegou e concluiu assim:

1) Os procedimentos cautelares são providências tendentes a regular a situação de facto que haverá de existir entre as partes até que chegue a final uma acção, que pode não estar, ainda, proposta, em ordem a evitar o “periculum in mora”;

2) No caso concreto, estão em apreço questões eminentemente pessoais, às quais não pode ser atribuído um valor patrimonial, pelo que as normas processuais dos procedimentos cautelares têm de ser apreciadas com as necessárias adaptações;

3) De acordo com a regulação do exercício do poder paternal vigente, o menor ficou confiado à guarda e cuidados da mãe, exercendo esta o poder paternal;

4) A Constituição da República, no n.º 5 do artigo 36.º, consagra o poder paternal como um poder funcional, que deve ser exercido altruisticamente, no interesse do filho, com vista ao seu harmonioso desenvolvimento físico, intelectual e moral;

5) Na hipótese vertente, o exercício do poder paternal pertence à progenitora, o que significa que lhe cabe a ela tomar todas as decisões importantes da vida do filho, não necessitando do acordo do pai, que não pode impedir a ida do menor para o estrangeiro, a não ser que invoque factos graves que desaconselhem, de todo, que ele acompanhe a sua guardiã;

6) Apesar de se tratar de uma questão de particular importância, da qual o pai não pode deixar de ser informado, já que sobre ele impende o dever de vigiar a educação e as condições de vida do filho, a decisão de ir para o estrangeiro insere-se no âmbito do exercício do poder paternal, que ficou a cargo da progenitora;

7) Cumpria ao recorrente provar, o que não logrou, que a ida para o estrangeiro é, de facto, uma intenção real, séria e definida e que isso constitui, só por si, lesão de um direito de difícil reparação;

8) A decisão recorrida deve ser mantida nos seus precisos termos.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

De acordo com as conclusões da alegação do recorrente, são três as questões a requerer resolução:

a) A irregularidade/nulidade da gravação;

b) A alteração da matéria de facto;

c) A verificação dos requisitos da providência solicitada.

II. A matéria de facto:

A. Na decisão recorrida foram dados por provados os seguintes factos:

1. O menor C (…) nasceu no dia 13 de Maio de 2002 e é filho do requerente e da requerida.

2. No âmbito da acção de regulação do poder paternal, foi proferida decisão homologatória do acordo dos progenitores do menor, pelo qual estes acordaram que “O menor fica confiado à guarda e cuidados da mãe B (…), com quem residirá e a qual exercerá o poder paternal”.

3. O pai propôs acção de alteração da regulação do poder paternal (n.º 709/04.0TMAVR), pedindo que o poder paternal do menor passasse a ser exercido em conjunto por ambos os pais. Esta acção foi julgada improcedente, por não existirem factos supervenientes ao acordo que justificassem a alteração do regime fixado.

B. Na mesma decisão foi declarado não provado que:

a) A requerida, mãe do menor, pretende ausentar-se para o estrangeiro até ao final do ano, levando o menor consigo e não tendo data prevista para o seu regresso.

b) Não pretende regressar a Portugal se a vida lhe correr bem profissionalmente.

III. O direito:

a) A irregularidade/nulidade da gravação

            O ora recorrente arguiu a nulidade ou a irregularidade da gravação da prova, nos termos do disposto no artigo 205.º do Código de Processo Civil, alegando que pretendia recorrer da decisão de facto, mas não conseguia ouvir e, muito menos, perceber os depoimentos das testemunhas (…) imprescindíveis, na sua óptica, para o exercício cabal do direito de recorrer.

            A arguição foi indeferida com o argumento de os depoimentos estarem gravados e serem perceptíveis, depois de ouvidas a recorrida, que contrariou a posição do recorrente, e a secretaria, que informou no sentido de só haver dificuldade na percepção de algumas palavras, devido ao facto de o som estar muito baixo.

            Parece não se levantarem dúvidas na jurisprudência de que a falta de gravação dos depoimentos prestados, quando devida, ou a deficiência de gravação que, pela sua gravidade, impeça a percepção das declarações de forma a inviabilizar a sindicância da decisão de facto, primeiro, pelas partes e, depois, pelo tribunal de recurso, constituem nulidade, nos termos configurados no artigo 201.º do Código de Processo Civil, a arguir de acordo com o disposto no artigo 205.º do mesmo diploma (a título de exemplo, o acórdão do STJ, de 09.07.02, CJ/STJ, Ano X, Tomo II, página 153, os acórdãos da Relação de Lisboa, de 03.05.01, CJ, Ano XXVI, Tomo III, páginas 77 e 80, e o acórdão da Relação de Coimbra, de 08.10.02, CJ, Ano XXVII, Tomo IV, página 19).

            Trata-se, na realidade, de omissão imputável ao próprio tribunal (a gravação é efectuada por funcionário de justiça e com equipamento, via de regra, dos serviços, como decorre dos artigos 3.º e 4.º do decreto-lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro), com influência decisiva no exame e na decisão da causa (a imperceptibilidade da gravação obsta ao cabal exercício do direito de recurso quanto à decisão de facto), pelo que não pode deixar de integrar a nulidade a que alude o citado normativo.

            Visando, declaradamente, a gravação da prova a criação de um verdadeiro e efectivo segundo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto (preâmbulo do referido decreto-lei 39/95), afigura-se evidente que só poderá gerar nulidade a omissão ou a deficiência que impeçam a Relação a analisar os concretos pontos de facto sobre os quais incidiu a discordância do recorrente.

            Eventuais falhas que aí se não repercutam são destituídas de relevância.

            Como não relevarão, igualmente, as lacunas que, pela sua diminuta dimensão, não impeçam a apreensão do sentido dos depoimentos. É sabido que o sistema de gravação sonoro adoptado para os tribunais não é inteiramente eficaz – longe disso –, podendo dizer-se mesmo que são muito raros os casos em que se não suscitam dificuldades na audição das gravações realizadas.

            Só com um enorme esforço de concentração e de repetição de determinadas passagens se consegue, muitas vezes (mais do que as desejáveis), chegar à percepção do conteúdo dos depoimentos.

            Não é esse, porém, o caso dos autos. Como se assinala na informação prestada pela secretaria, existem, aqui ou ali, dificuldades na percepção de algumas palavras, devido à baixa intensidade do som, mas não de molde a obstar à integral compreensão dos depoimentos que o recorrente apoda de essenciais para a sua pretensão.

            E a prova acabada disso é que este, nas suas alegações de recurso, transcreveu as passagens que directamente respeitam à matéria de facto em causa e que são, na sua óptica, suficientes para que a decisão seja alterada pelo modo proposto por si.

            Nesta Relação, por outro lado, procedeu-se à audição dos depoimentos prestados (adiante resumidos) e não se encontraram obstáculos à percepção do seu conteúdo, condizente, sem dúvida, com o que consta da transcrição apresentada pelo recorrente.

            O problema não está na perceptibilidade dos depoimentos das testemunhas invocadas pelo recorrente, mas na sua interpretação e valorização, nomeadamente quando conjugados com a restante prova produzida.

            Mas isso é assunto para tratar noutra sede, isto é, na da alteração da matéria de facto, que é objecto da segunda questão a resolver por este tribunal.

            Os depoimentos das testemunhas arroladas pelo requerente, (…)  (mas, também, os das testemunhas indicadas pela recorrida) são perfeitamente audíveis e compreensíveis no seu todo, não havendo a menor razão para que se proceda à sua repetição.

            Nesta parte, improcede, portanto, o recurso.

b) A alteração da matéria de facto

 

            Nos termos do preceituado no n.º 1 do artigo 712.º do Código de Processo Civil (de futuro, CPC), a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação:

            a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685.º-B, a decisão com base neles proferida;

            b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;

            c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.

            Prescreve, por sua vez, o n.º 1 do artigo 685.º-B que, quando se impugne a decisão de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida – alíneas a) e b) –, acrescentando o n.º 2 que, no caso de terem sido invocados como fundamento do erro na apreciação das provas depoimentos gravados, cabe ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicá-los por referência ao assinalado na acta, nos termos do artigo 522.º-C.

            Dispõe, finalmente, este último normativo, no seu n.º 2, que tendo havido registo áudio, devem ser assinalados na acta o início e o termo da gravação de cada depoimento, informação ou esclarecimento, de forma a ser possível uma identificação precisa e separada dos mesmos.

            Tal como a apelante configura a impugnação – errada interpretação da prova testemunhal – a disposição a ter em conta é a da segunda parte da alínea a) do n.º 1 do artigo 712.º, a conjugar com o artigo 685.º-B.

            Importa esclarecer, antes de prosseguir, que o princípio da livre apreciação da prova, afirmado no artigo 655.º do CPC, constrange, e de forma acentuada, as hipóteses de o tribunal de recurso poder modificar a decisão de facto; desde que a matéria assente tenha apoio bastante nos elementos de prova produzidos e a fundamentação seja lógica e consequente, a alteração será uma hipótese muito remota.

            A regra é a inalterabilidade, como observou o nosso mais alto Tribunal, no seu acórdão de 25.06.2002 (CJ/STJ, Ano X, Tomo II, página 128).

            Em boa verdade, só a desconformidade flagrante entre os elementos de prova recolhidos e a decisão de facto permite à Relação alterar o que a 1.ª instância fixou.

            Posto isto, vejamos o que se passa com a situação trazida a recurso.

            Para o que ora interessa, o recorrente alegou, na petição inicial, que a intenção da mãe era ir trabalhar para o estrangeiro até ao final do ano, levando o menor, e, se a vida lhe corresse bem, não mais regressar a Portugal.

            A tese da mãe, expressa no seu articulado de oposição, foi a de que a emigração não passava de uma mera possibilidade, dependente, sempre, de conseguir trabalho e com o objectivo de proporcionar melhores condições de vida ao menor, não tendo, no entanto, a intenção de privar o pai do convívio do filho, até porque pretendia vir de férias a Portugal duas vezes no ano, pelo menos.

            O tribunal, rejeitando, nessa medida, a versão do recorrente, deu por não provado que a requerida pretendesse ausentar-se para o estrangeiro até ao final do ano, levando o menor consigo, que não tivesse data prevista de regresso e que não voltaria ao país se a vida lhe corresse bem profissionalmente.

            A fundamentação foi do seguinte teor: “O tribunal estribou a sua convicção quanto aos factos provados e não provados no depoimento das testemunhas inquiridas, as quais depuseram na generalidade com isenção e objectividade.

            Assim, (…), que é actual companheira do requerente, disse ter presenciado uma conversa pela qual a requerida terá anunciado o propósito de emigrar até ao final do ano. Não obstante o desfasamento das datas em que terá assistido à conversa por referência à propositura do procedimento, não se duvida que tal conversa tenha ocorrido.

            Pensamos, porém, que esta apenas traduziria uma intenção genérica, sem correspondência com concreta possibilidade de tal ocorrer; (…) que é amigo do requerente, transmitiu a preocupação do requerente com a possibilidade da mãe do filho emigrar; (…), pai da requerida, e (…), marido da requerida, disseram que a possibilidade da requerida emigrar juntamente com o marido e filho é remota, não obstante ser abordada em conversa. Disseram que não existe, para esse efeito, qualquer plano”.

No entender do recorrente, os depoimentos das testemunhas (…)  dariam conta segura de que a requerida tem o propósito sério de emigrar por tempo indeterminado, acompanhada do filho, razão por que a matéria em causa deveria ter sido considerada provada.

Não se crê, no entanto, que seja isso o que emerge da prova produzida, quando analisada à luz da experiência e da razoabilidade das coisas.

            Sobre a factualidade alegada pronunciaram-se todas as testemunhas inquiridas, a saber, (…)cujos depoimentos foram, em resumo, do seguinte teor:

            (…)  – foi colega de profissão do recorrente e vive com ele desde há cerca de um mês (a contar do depoimento). Conhece a recorrida, por acompanhar o recorrente a Viseu. Quando este foi buscar o menor, em Julho de 2009, perguntou à recorrida se ela pensava ir para França com o filho, tendo ela respondido que sim, que, até ao fim do ano, ia para lá trabalhar e morar e que levava (…) com ela. Não disse se voltava. A afirmação foi proferida seriamente, com convicção. Desconhece se a recorrida tem familiares em França, mas o companheiro referiu-lhe que estão lá parentes do actual marido. O recorrente comentou consigo que tinha receio de que a recorrida fosse mesmo para França. A partir daí, começou a tomar medicamentos, por ter deixado de dormir.

            A instâncias do ex.mo mandatário da recorrida, que a alertou para o facto de se não ter chegado, ainda, ao mês de Julho (a audiência decorreu em 30.06.09), corrigiu a data da mencionada conversa, esclarecendo que teve lugar em Junho.

            Questionada pelo ex.mo magistrado do MP, disse ignorar se o menor sabia da ida para França e o que pensava disso; informou, ainda, que a recorrida nada referiu a propósito do regime de visitas entre pai e filho, mas que aquele também nada perguntou a esse respeito.

            (…)  – é amigo do recorrente, que conhece desde há cerca de 15 anos. Viu o menor e a recorrida por duas ou três vezes, mas nunca falou com eles. Em Junho, o recorrente, em conversa, disse-lhe que a recorrida ia morar para França e levava o filho com ela e que ele iria ficar muito tempo sem ver o menor. O recorrente mostrava-se preocupado com a situação, tendo passado a tomar comprimidos, segundo referiu a respectiva companheira. 

            Perguntado se o recorrente e a recorrida haviam combinado regime de visitas, retorquiu que não sabia como é que ele ia a França ver o filho.

            (…)  – é pai da recorrida. A filha poderia ir para França, se lá tivesse trabalho, o que não sucede; mas só levaria o filho com autorização do recorrente. Ela não tem familiares em França. Em tempos, esteve lá uma irmã do depoente e respectivo marido, mas já faleceram ambos. O marido de sua filha tem lá familiares, uma irmã, pelo menos, que lhe não conseguem arranjar trabalho, porque aquilo lá também está mau. De qualquer modo, ele não iria, por ter o pai cego e ser o único filho que está em Portugal.

            O depoente, a filha e o genro vivem na mesma casa, mas em andares diferentes. Não estava presente quando o recorrente foi buscar o filho em Junho. Neste momento, sua filha está sem trabalho; antes, fazia serviço de limpezas.

            (…)  – está casado com a recorrida e conhece o recorrente. Já teve possibilidades de emigrar, mas não o fez por causa de seu pai, que é cego. Já se ventilou a hipótese de emigrar, devido à circunstância de se falar na sua dispensa da empresa onde exerce funções, na sequência de um acidente de trabalho que sofreu, mas não o faria sem pedir autorização ao tribunal, por causa do menor.

            Tem uma irmã, o cunhado e sobrinhos em França, que lhe conseguiriam arranjar trabalho, mas, enquanto mantiver o seu emprego em Portugal, não emigra, devido à doença do pai.           Tem, também, família no Canadá.

            Entende ser necessária autorização para levar o menor para o estrangeiro.

            É boa a relação entre o menor e sua mãe e entre ele e os actuais irmãos.

            Analisados todos os depoimentos prestados, concorda-se com a conclusão extraída pelo ex.mo juiz de que a conversa havida entre recorrente e recorrida acerca da emigração para França, presenciada pela testemunha (…), traduz uma simples possibilidade e não uma realidade concreta.

            Apesar de o depoimento daquela testemunha suscitar algumas (fundadas) reservas, sobretudo por causa do desfasamento de datas, como se assinalou na fundamentação da decisão (a depoente aludiu, em primeiro lugar, ao mês de Julho, como data da conversa com a recorrida e, depois, passou para Junho, mas o certo é que nem então poderia ter sido, uma vez que o presente procedimento foi intentado em Maio), não se duvida, como não duvidou a primeira instância, de que o tema da emigração tenha sido abordado entre os interessados.

            O que já não parece, tendo em conta o circunstancialismo que emerge dos depoimentos do pai e do marido da recorrida, é que a ausência para o estrangeiro fosse uma certeza, ainda que a médio ou longo prazo; muito menos, é claro, a curto prazo.

            É notório que a recorrida e o seu actual marido gostariam de rumar a França, onde conseguiriam, pensam eles, melhores condições de vida do que as que têm no momento; só que esse desejo está condicionado por alguns factores, de que se destacam a maleita do sogro da recorrida e a própria necessidade, admitida por eles, de terem de obter autorização para o efeito.

            O tom peremptório assacado à recorrida é manifestamente exagerado e resultará, porventura, de uma tendência da testemunha, ainda que não inteiramente consciente, de favorecer a posição do seu companheiro de vivência recente.

            Repare-se neste interessante pormenor do seu depoimento: quando a recorrida disse que ia para França com o menor, o recorrente não lhe perguntou se vinha de férias a Portugal nem a questionou sobre o modo como poderia ver o filho.

            Será aceitável que um pai que se diz extremoso, a ponto de perder o sono com a eventualidade de o filho ir para o estrangeiro, não tenha colocado logo em cima da mesa a questão das visitas?

            A razão diz que as coisas se deverão ter passado de modo algo diferente do apresentado pela depoente; o tema da procura de trabalho em França terá sido, de facto, avançado, pela recorrida, mas como hipótese a considerar se verificadas determinadas circunstâncias e não como uma meta prestes a ser alcançada.

            E se o depoimento da testemunha (…)  não é de aceitar pelo seu valor facial, o da testemunha (…)  pouco relevo tem, visto se tratar de testemunho de ouvir dizer (ao próprio interessado, para mais).

Em resumo, não há críticas a fazer à decisão de facto, que se mostra, em boa verdade, completamente conforme com a prova produzida, quando apreciada à luz da lógica, do conhecimento da natureza humana e da razoabilidade das coisas.

De toda a sorte, não se verifica desconformidade flagrante entre os elementos probatórios constantes do processo e o julgamento de facto, o que sempre obstaria à alteração da decisão, tendo em conta o falado princípio da livre apreciação da prova.

Por esta via, também o recurso não procede.

            c) A verificação dos requisitos da providência cautelar

            Os procedimentos cautelares são, como se sabe, meios de tutela jurisdicional expeditos, destinados   a contornar a morosidade do processo onde se discute o conflito de interesses, cujo formalismo (complexo, quase sempre), o uso que dele é feito (abusivo, por vezes) e algum excesso de garantismo (aproveitado até à exaustão) tendem a protelar no tempo o momento da decisão.

A demora faz perigar o direito invocado, que pode não alcançar realização efectiva, não obstante a sentença final vir a ser favorável a quem o reclama. Basta pensar, por exemplo, no pouco tempo que é hoje necessário para um qualquer devedor pôr o respectivo património a salvo dos credores. Quando a sentença chegar, já, porventura, pouco ou nada haverá para executar.

            É a situações deste género que se refere o Prof. Alberto dos Reis, quando fala de “sentença justa, mas inútil” (Código de Processo Civil Anotado, volume I, página 675). 

            Os procedimentos cautelares são, digamos assim, o contraponto e um remédio possível para a tão badalada lentidão da justiça, constituindo, como escreve Abrantes Geraldes, “um instrumento processual privilegiado para protecção eficaz de direitos subjectivos e de outros interesses juridicamente relevantes” (Temas da Reforma do Processo Civil, III volume, página 35).

            A sua função é, exactamente, a de acautelar o efeito útil da acção (artigo 2.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, diploma de que serão os demais preceitos a citar sem indicação de origem), apresentando-se, de algum modo, como um factor de equilíbrio entre uma justiça célere, mas pouco ponderada, e uma justiça reflectida, mas, quiçá, ilusória, devido à alteração da situação de facto, “medio tempore”, pelo demandado (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, página 10).

            “As denominadas providências cautelares visam precisamente impedir que, durante a pendência de qualquer acção … a situação de facto se altere de modo a que a sentença nela proferida, sendo favorável, perca toda a sua eficácia ou parte dela. Pretende-se deste modo combater o periculum in mora (o prejuízo da demora inevitável do processo), a fim de que a sentença se não torne numa decisão puramente platónica” (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, página 23).

            “A principal função da tutela cautelar consiste, pois, em neutralizar os prejuízos a suportar pelo interessado que tem razão, derivados da duração do processo declarativo ou executivo” (Abrantes Geraldes, ob. cit., página 41).

            A par da função conservatória (a de assegurar que o direito se manterá até à decisão que o declarar definitivamente), sem dúvida, a mais importante e frequente em termos práticos, podem ter, também, os procedimentos cautelares uma função antecipatória, que, como a designação deixa facilmente perceber, visa antecipar a realização do direito que, provavelmente, virá a ser reconhecido mais tarde.

            Enquadram-se na primeira o arresto, o arrolamento e a apreensão de veículo automóvel, por exemplo, e na segunda a restituição provisória de posse, os alimentos provisórios e o arbitramento de reparação provisória, entre outros.

            Em tese geral, são dois, no essencial, os requisitos dos procedimentos cautelares:

a) A probabilidade séria da existência de um direito;

b) O fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável a esse direito.[1]

            Na apreciação de tais requisitos não é exigível o mesmo grau de segurança que tem de estar presente na prova dos fundamentos da acção; “de contrário, o remédio nenhuma eficácia teria no combate à doença que se propõe debelar” (Antunes Varela e outros, ob. cit., página 25).

            No que toca à existência do direito, basta um juízo de verosimilhança ou probabilidade; o que bem se compreende, já que, a exigir-se o conhecimento exaustivo, “ … o processo seria tão moroso como a acção principal, ficando, assim, frustrados os objectivos prosseguidos através dos procedimentos cautelares” (Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, volume I, página140).

            Já quanto ao perigo de lesão, tende a doutrina a exigir um maior rigor na sua apreciação. Alberto dos Reis fala em “um juízo, senão de certeza e segurança absoluta, ao menos de probabilidade mais forte e convincente (ob. cit. páginas 621 e 683), Anselmo de Castro, na prova total do periculum in mora (obra e local referidos) e Abrantes Geraldes na utilização de um critério mais rigoroso (obra citada, página 88).[2]

            No que tange ao procedimento aqui em discussão, o cautelar comum, três outros requisitos se podem acrescentar: dois privativos desta espécie, que são a adequação da providência à situação de lesão iminente (parte final do n.º 1 do artigo 381.º) e a não existência de providência específica que acautele o direito (artigo 381.º, n.º 3), e outro, comum a alguns dos procedimentos específicos (casos do arresto e do embargo de obra nova), que é a proporcionalidade entre a providência a decretar e o interesse a acautelar; o tribunal deve recusar a providência se o prejuízo que ela acarretar para o requerido exceder consideravelmente o dano que o requerente pretende evitar (artigo 387.º, n.º 2).

            Em qualquer caso, o procedimento cautelar é sempre dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado como preliminar ou como incidente de acção declarativa ou executiva (artigo 383.º, n.º 1).

            São as consabidas características da instrumentalidade e da dependência, que amarram, por assim dizer, a sorte da providência à da acção definitiva; o que ali for conseguido está condicionado ao que vier a ser decidido na acção principal; se esta for procedente, os efeitos da providência consolidam-se; mas se improceder, o requerente perde tudo o que possa ter ganho no procedimento cautelar (excepção feita a algumas providências de natureza antecipatória, onde o respectivo deferimento garante, na prática, o direito de modo definitivo, como sucederá, por exemplo, se for ordenada a realização de determinadas obras ou interditada uma actividade que tivesse lugar em momento certo).

            É que os procedimentos cautelares não definem direitos, mas, apenas, acautelam ou antecipam direitos a definir posteriormente.

            E, porque assim é, tem o requerente da providência de ser titular de direito muito semelhante ao que pretende fazer valer na acção definitiva (cfr., a este respeito, mas para a hipótese do procedimento de apreensão de veículo automóvel, o acórdão do STJ de 12.05.2005, CJ do Supremo, Ano XIII, Tomo II, página 94), o que, não pressupondo, embora, a identidade absoluta, implica, ao menos, que o facto que serve de fundamento ao direito acautelado ou antecipado integre a causa de pedir da acção principal (Abrantes Geraldes, ob. cit., página 121).

            Alinhadas estas considerações, debrucemo-nos, então, sobre o caso dos autos.

            O recorrente e a recorrida são pais do menor C (…), cujo poder paternal é exercido pela mãe, na sequência de sentença homologatória de acordo, proferida em pertinente acção de regulação.

            O recorrente instaurou acção de alteração da decretada regulação, com vista a conseguir que o poder paternal passasse a ser exercido por ambos os pais.

            Na pendência dessa acção, intentou o presente procedimento cautelar, pedindo se proibisse a mãe de ausentar o menor para o estrangeiro, sob a alegação de que ela pretendia emigrar com o filho e permanecer indefinidamente fora do solo pátrio.

            Na sentença considerou-se verificado o primeiro requisito da providência, ou seja, a titularidade de um direito – não o invocado na acção de alteração, dada a improcedência desta, mas o de acompanhar a educação e as condições de vida do filho, conforme o disposto no n.º 4 do artigo 1906.º do Código Civil –, que poderia ficar coarctado com a ida do menor para o estrangeiro (dependendo das circunstâncias, que não da mera distância geográfica), mas não a ameaça de lesão desse direito, por se não ter provado o propósito de emigrar, em razão do que foi negada a providência solicitada.

            Entende o recorrente que a sentença está errada em dois aspectos: em considerar inexistente o direito invocado na acção de alteração de regulação (não seria assim, por ter sido interposto recurso da decisão de indeferimento) e em não dar por verificado o justo receio de lesão, que, na sua óptica, defluiria da prova produzida.

            Independentemente do direito a ter em conta (o exercício conjunto do poder paternal, como foi peticionado na acção de alteração da regulação, ou o poder de vigiar a educação e condições de vida do filho, como decorre do artigo 1906.º, n.º 4, do Código Civil), o certo é que a ameaça de lesão teria de derivar sempre da “tirada” do menor para país estrangeiro, único facto invocado pelo recorrente para fundamentar a providência.

            E a verdade é que, pese, embora, o esforço do recorrente em sustentar o contrário, ficou por provar que a recorrida pretendesse emigrar, a título temporário ou definitivo, pelo que o recorrente não está ameaçado de perder os poderes, simultaneamente deveres, que o estatuto de pai lhe confere.

            Inverificado o pressuposto da ameaça de lesão, é óbvio que o procedimento cautelar tinha de improceder, como improcedeu.

            Duas notas, no entanto, antes de encerrar a discussão:

            O direito que o recorrente invoca na acção de que o procedimento é dependência (exercício conjunto do poder paternal) é manifestamente improcedente, porque o exercício do poder paternal naqueles moldes é de raiz consensual (artigo 1906.º, n.º 1, do Código Civil), não podendo, por conseguinte, ser imposto em acção intentada para esse fim; não interessa aprofundar aqui a questão, porque isso mesmo já foi declarado no recurso interposto da decisão que indeferiu a alteração, em acórdão proferido na mesma data do presente. Deste modo, só o poder de vigilância, conferido pelo n.º 4 do artigo 1906.º do mesmo diploma poderia servir de suporte à providência, como se esclareceu na sentença apelada.

            O poder/dever a que alude aquele normativo não obsta a que o progenitor a quem cabe o exercício do poder paternal se desloque com o filho para outras paragens, mormente para o estrangeiro, em busca de melhores condições de vida. Como lucidamente observa o ex.mo magistrado do Ministério Público, nas suas muito bem elaboradas alegações, ao progenitor que tem o exercício do poder paternal cabe tomar todas as decisões importantes da vida do filho, que só poderão ser contrariadas se se verificarem razões que as desaconselhem.

            O poder paternal é estabelecido no interesse dos filhos, que não no dos pais. Não faria sentido que um progenitor desempregado, como é o caso da recorrida, se visse forçado a desperdiçar uma oportunidade de trabalho, que é uma mais valia, também, para o filho, só porque o outro progenitor não consente na deslocação do menor.

            De resto, estando o menor à guarda da recorrida, não lhe restaria, em princípio, outra alternativa que não fosse a de o levar consigo, caso emigrasse, sob pena de violar os deveres inerentes ao exercício do poder paternal.

            Não deixa, já agora, de se chamar a atenção para a conduta repassada de egoísmo do pai, ora recorrente. Não quer a guarda do filho (só o poder paternal conjunto e a contribuição da mãe para as despesas das viagens com as visitas), que, talvez, lhe complique a sua recente união, mas quer, à custa dele, que a mãe renuncie à melhoria das suas condições de vida, que são, repete-se, também as do próprio filho.

            Como quer que seja, e é isso que aqui releva, o recorrente não logrou provar o fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável do seu direito, o que conduz, inapelavelmente, à improcedência da providência e, consequentemente, à do recurso.

            IV. Sumário:

            1) A deficiência de gravação dos depoimentos prestados configura a nulidade a que se refere o artigo 201.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, mas só no caso de impossibilitar a percepção das declarações e, dessa forma, inviabilizar a reapreciação da matéria de facto pela segunda instância.

            2) Não traduzem nulidade as simples lacunas que, pela sua diminuta dimensão, não impeçam a apreensão do sentido dos depoimentos.

            3) A Relação só pode alterar a decisão de facto se tiver ocorrido erro notório na apreciação da prova.

            4) O progenitor a cuja guarda o filho foi confiado não está impedido de o levar consigo para país estrangeiro, a menos que se verifiquem circunstâncias ponderosas que o desaconselhem.

            V. Decisão:

            Em face de tudo quanto se deixou exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, nessa medida, em confirmar a decisão recorrida.

            Custas pelo recorrente.


[1] Neste sentido, Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, volume I, página 682), Antunes Varela (Manual de Processo Civil, página 24), Anselmo de Castro (Direito Processual Civil Declaratório, I, página 139) e Abrantes Geraldes (ob. cita., página 82).
[2] Menos exigente parece ser Antunes Varela, quando refere bastar que o requerente “mostre ser fundado (compreensível ou justificado) o receio da sua lesão” (ob. cit., página 25).