Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4915/20.1T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MÁRIO RODRIGUES DA SILVA
Descritores: COMPRA E VENDA
COISA DEFEITUOSA
DESCONFORMIDADE DA ÁREA DO PRÉDIO VENDIDO
CADUCIDADE
Data do Acordão: 04/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 287.º; 309.º; 408.º; 763.º; 837.º; 874.º; 897.º, B) E C); 911.º; 913.º; 914.º; 916.º E 917.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I- No caso de vendedor incorrer em dolo, sob pena de caducidade, a ação tem de ser proposta no prazo de um ano a que alude o artigo 287º, nº 1, do Código Civil.
II- No caso de dolo o prazo começa a contar-se a partir do momento em que o declarante dele se apercebeu.
Decisão Texto Integral:

Tribunal Judicial da Comarca ...

Juízo Central Cível ... - Juiz ...

4915/20....

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

RELATÓRIO

AA intentou a presente ação declarativa com processo comum contra:

1- BB,

2- CC,

3- DD e mulher EE,

4- FF, pedindo que sejam:

I- Os três primeiros réus condenados, solidariamente, a:

a) reconhecer que o prédio vendido ao autor e sua então esposa tinha, então, a área de 742 m2 e não os 1.280 m2 que constam da matriz predial e do respetivo registo predial;

b) que a descrição predial do mesmo prédio tem as seguintes confrontações: norte e nascente com GG; sul com estrada e poente com HH e estrada camarária;

c) a indemnizarem o autor pela diferença do valor do prédio, considerando a redução efetiva de 538 m2 em relação ao prédio que foi vendido, no montante de €18.830,00;

d) a indemnizarem o autor pelos gastos que este já suportou e ainda terá de suportar com vista à regularização das descrições do prédio, valor que se estima em não menos de €5.000,00, a fixar em liquidação de sentença.

II- Os réus BB e CC a indemnizarem o autor pelos custos que este terá de suportar tendo em vista a legalização das construções ilegais dos dois anexos, assim como a legalização das alterações introduzidas na construção em relação ao projeto aprovado e licenciado, cujo valor se estima provisoriamente em €10.000,00, a fixar em liquidação de sentença;

III- Os réus BB e CC e a ré FF, solidariamente, a indemnizarem o autor no montante que, provisoriamente, se fixa em €60.000,00 correspondente aos custos que ele terá de suportar com as obras que terá de realizar para executar o isolamento térmico da cobertura e das paredes exteriores, cujo valor vier a ser fixado em liquidação de sentença;

Alegou para tanto e em síntese:

-Em 18/07/2003 o autor, então casado com II, adquiriu aos réus BB e CC o prédio urbano, descrito como sendo composto de casa de habitação de cave e rés-do-chão, com a superfície coberta de 139 m2 e descoberta de 1.141 m2, sito na Rua ..., lugar do ..., freguesia ..., inscrito na matriz sob o artigo ...39, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...75... ....

-O que significa que o prédio deveria ter a área total de 1.280 m2.

-Na escritura de compra e venda ficou consignado o preço de €100.000,00, valor que foi pago aos vendedores através do mútuo do mesmo montante concedido pelo Banco 1....

-Para além do valor mencionado na escritura os réus receberam do autor, cada um deles, um cheque no valor de €23.572,69 €, cheques estes que foram descontados no dia 22/07/2003.

-O que perfaz o total de €147.145,37, o valor pago pelo autor a estes réus, sendo a diferença para os €150.000,00 o custo da escritura – €2.854,63 - valor pago pelo autor.

-À data da concretização da compra, através da mediação referida, que ocorreu no mês de abril de 2003, o prédio já se encontrava totalmente construído, tendo já construídos dois anexos, sendo um a churrasqueira coberta, e outro o anexo para arrumos junto à via pública.

-Tendo-lhe sido apresentado pelos vendedores ao autor um alvará de licença de utilização emitido pela Câmara Municipal ... em 6-01-1999.

-O que fez crer ao autor que o prédio que estava a comprar tinha as configurações descritas na escritura e constantes tanto da caderneta predial como do registo predial, bem como que todas as construções existentes no prédio estavam devidamente licenciadas.

-Ou seja, o autor estava convicto de que, tanto os anexos estavam devidamente legalizados, como as áreas do prédio que estava a comprar eram as que estavam mencionadas tanto na escritura como na documentação referente ao prédio (caderneta predial e registo predial).

-Posteriormente, o autor mandou realizar um levantamento topográfico do prédio, vindo a verificar que, afinal o prédio adquirido pelo autor tem a área total de 742,00 m2, ou seja menos 538 m2 do que consta da caderneta predial e do registo predial.

-Os três primeiros réus engaram o autor ao apresentar-lhe para venda um prédio com a área total que este não possuía, bem sabendo que dessa área já havia sido extraída a área correspondente ao prédio onde os réus DD e EE construíram a sua casa e respetivo logradouro, bem como a área correspondente à estrada.

-Este engano levou a que o autor pagasse um preço bem superior ao que o prédio efetivamente, considerando a área do terreno efetivamente em falta, ou seja, menos 538 m2.

-Porque todos esses réus estiveram em conluio para enganar as características do prédio vendido ao autor são eles responsáveis por indemnizar este pela diferença de preço cobrado a mais, tendo em consideração a redução da área na quantidade de 538 m2.

-O preço do m2 para área urbana na referida localidade está avaliada em €35,00, pelo que o autor tem direito a ser indemnizado pela diferença de preço correspondente à área em falta no montante de €18.830,00.

-Por sua vez os réus BB e CC venderam o prédio ao autor e sua esposa, com os dois anexos já construídos no respetivo logradouro, sem licenciamento, fazendo crer ao autor que fazia parte do projeto licenciado, tanto mais que já haviam obtido a licença de utilização camarária para esse prédio.

- Porém, não informaram o autor de que tais anexos não estavam contemplados no projeto camarário, pelo que eram obras clandestinas.

-O custo com a propositura desta ação, envolvendo honorários de advogado, custos suportados pelo Autor com a obtenção de documentos e certidões para sustentar este pedido de retificação, não será inferior a €5.000,00.

-O licenciamento de todas estas alterações ao projeto licenciado pela Câmara impõe que o Autor apresente um pedido de licenciamento das alterações junto da Câmara Municipal, para o que terá de recorrer a um Engº. Civil para que elabore as peças necessárias a tal fim.

-Este serviço técnico terá um custo, cujo valor não será inferior a €5.000,00.

- Para além desse custo terá de pagar à Câmara as taxas municipais correspondentes pelo aumento da área edificada do prédio, cujo valor se desconhece neste momento, mas que deve ser superior a €5.000,00.

 - O réu BB contestou por exceção, arguindo o abuso de direito na modalidade de supressio e a caducidade do direito do autor e por impugnação. Pediu ainda a condenação do autor por litigância de má-fé em multa e indemnização.

Os réus CC, DD e EE contestaram por exceção, arguindo a ilegitimidade passiva (quanto aos réus DD e EE), abuso de direito e caducidade do direito de ação do autor e por impugnação. Pediu ainda a condenação do autor por litigância de má-fé em multa e indemnização.

A ré FF contestou por exceção, arguindo a sua ilegitimidade, a prescrição do direito do autor, a caducidade do direito do autor e por impugnação. Pediu ainda a condenação do autor como litigante de má-fé, em indemnização nunca inferior a € 7.500,00.

O autor respondeu às exceções deduzidos pelos réus BB, CC, DD e EE, sustentando a sua improcedência.

O autor desistiu do pedido relativamente à ré FF, a qual foi homologada por sentença.

Foi proferido despacho saneador que julgou procedente a exceção de caducidade da ação, e extinto o direito do autor, pelo decurso do tempo, com a consequente absolvição dos réus BB e CC dos pedidos.

Os demais – DD e mulher EE – foram declarados absolvidos da instância por ilegitimidade.

Inconformado com o decidido, o autor AA interpôs recurso limitado tão só à parte em que julgou procedente a exceção de caducidade da ação, e extinto o direito do Autor pelo decurso do tempo, absolvendo dos pedidos os Réus BB e CC, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
I- As problemáticas que se colocam na petição resumem-se às seguintes questões:

Características do prédio:

-a área do prédio vendido pelos Réus ao Autor;

-as alterações existentes na edificação do prédio que não estavam previstas no projecto e sem licenciamento camarário;

Deficiências construtivas:

- a ausência de isolamento térmico.

II- Quanto a este último trata-se de um vício da coisa vendida, susceptível de causar prejuízo indemnizável e, como tal, deve considerar-se abrangido pelo prazo de caducidade do artigo 917º do Código Civil, tal como se encontra defendido a páginas 17 da douta sentença recorrida.

III-Já quanto às outras duas questões que estão expostas na petição não se trata de vícios que desvalorizem ou impeçam a realização do fim a que é destinado o prédio – nº 1 do artigo 913º do CC;

IV- Estando em causa, antes, a composição do prédio vendido (sua área) e a sua conformidade com a legalidade (obras não licenciadas).

V- Na verdade os Recorridos apresentaram aos compradores como tendo o prédio todas as construções existentes em conformidade com o projecto aprovado e licenciado pela Câmara Municipal.

VI- Não podendo ignorar, por outro lado, que o prédio onde haviam construído a moradia não tinha as dimensões que constavam da escritura.

VII- Donde resulta que estamos em face de um cumprimento defeituoso da obrigação por parte dos Recorridos.

VIII- Estando o Autor a exercer, de forma autónoma, a responsabilidade civil pelo interesse contratual negativo, adveniente do incumprimento do contrato, ou seu cumprimento defeituoso.

IX- Não se aplicando, por isso, os prazos de caducidade previstos nos artigos 916º e 917º do CC, mas antes sujeito ao prazo de prescrição normal de 20 anos – artigo 309º.

Sem prescindir,

X- Os Recorridos, aquando da celebração do contrato de compra e venda do prédio, actuaram com dolo, na medida em que ocultaram que as dimensões do prédio eram bem inferiores àquelas que fizeram constar na escritura, bem como ocultaram a existência de construções não previstas no projecto e não licenciadas pela Câmara.

XI- Trata-se de um dolo negativo na medida em que os vendedores tinham o dever de informar os compradores daquelas situações

XII- Como defende Manuel de Andrade, em Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, Coimbra 1992, a páginas 257 e seguinte:

“Nas vendas o vendedor, em regra, não deve calar-se perante o erro do comprador acerca das qualidades que ordinariamente conhece melhor que o comprador”.

XIII- Para além do mais estamos perante uma situação de dolus malus e não de simples donus bónus, como se defende na douta sentença recorrida.

XIV- Pelo que não tem o comprador a obrigação de denunciar o vício ou a falta de qualidades da coisa vendida – artigo 916º, nº 1.

XV- “Para o exercício dos direitos de reparação … não estabelece a lei, neste caso de dolo, qualquer prazo. Está esse direito, portanto, sujeito às regras gerais de prescrição (artigo 298º, nº 1 do CC).

XVI- Os Recorridos não devem ser absolvidos da instância, devendo prosseguir a acção para julgamento, tendo em vista a apreciação dos pedidos formulados contra eles nos capítulos I e II do petitório inicial.

XVII- A douta sentença, ao absolver estes Recorridos dos pedidos contra eles formulados, violou o disposto nas normas legais acima citadas.

Termos em que, e com o douto suprimento, deve ser julgado procedente o presente recurso, julgando-se improcedente a excepção de caducidade, revogando-se a douta sentença recorrida no que concerne à absolvição dos Recorridos BB e CC dos pedidos contra si formulados, ordenando-se o prosseguimento dos autos para apreciação dos pedidos formulados nos capítulos I e II do petitório inicial.

O recorrido BB apresentou contra-alegações com as seguintes conclusões:

“I. Por escritura pública de compra e venda e de mútuo com hipoteca de 18 de julho 2013, o Recorrido e a sua ex-mulher, venderam ao recorrente e ex-mulher o prédio em causa nos presentes autos que, segundo alega, não teria na realidade as áreas inscritas e descritas nem cumpria com o projeto aprovado pela Câmara Municipal, não obstante ter sido objeto de avaliação por perito, cujo relatório depois elaborado, foi decisivo para que o mútuo fosse concedido

II. O Recorrente, na fase pré-contratual, pode tudo verificar incluindo as aptidões funcionais do prédio para que o mesmo fosse usado como habitação, o que vem sucedendo desde então (2003) até aos dias de hoje, dadas as qualidades intrínsecas do mesmo, que em nada contendem com áreas ou construções anexas ao edifício principal ditas ilegais.

III. Tratou-se de uma venda ad corpus porquanto o objeto do negócio foi vendido /adquirido por um preço genérico, não sendo por isso possível determinar o seu preço por metro quadrado ou outra por qualquer outra unidade de medida, que as partes não quiseram.

IV. A eventual discrepância entre as áreas inscritas e descritas não releva para o caso vertente, pois como decidido pelo Acórdão do STJ de 28-06-2007, em que foi Relator Senhor Juiz Conselheiro Pereira da Silva, as presunções registrais emergentes do artigo 7º do Código do Registo Predial não abrangem fatores descritivos, tais como as áreas, limites e confrontações, do seu âmbito exorbitando tudo o que com os elementos identificadores do prédio se relacione.

V. Se se aceitar, por mera conjetura, que o prédio apresenta defeitos ou discrepâncias construtivas com o projeto aprovado, estão preenchidos os pressupostos do artigo 913º e seguintes do Código Civil – venda de coisas defeituosas -, na esteira do que foi o entendimento a decisão sub iudice, que se aplicam ao presente caso.

VI. Considerando o lapso temporal entre o momento em que o recorrente recebeu o imóvel (18-07-2013) e a data de entrada da presente ação em juízo (19/11/2020), conclui-se que o direito do recorrente peticionar as indemnizações que reclama, já há muito caducou, nos termos dos artigos 916º e 917º do Código Civil.

VII. Também não colhe o argumento segundo o qual o recorrido usou de dolo aquando da conclusão do negócio de alienação do supramencionado prédio, desde logo porque não precisa quais foram os artifícios, sugestões ou embustes usados para o enganar, quando é certo que o prédio lhe foi vendido no estado em que então se encontrava (cfr. artigo 882º do Código Civil), cuja realidade física bem conhecia e que foi objeto de avaliação por perito.

VIII. Por outro lado, o recorrente não só não peticionou a anulação do negócio, como não alegou que a diferença de áreas ou mesmo a existência de construções ilegais no logradouro do prédio, se as tivesse então conhecido, constituiriam necessariamente para si, um impedimento à concretização da compra que realizou.

IX. Ou seja, a forma como configura a ação e não demonstrando se, como e em que medida foi induzido dolosamente em erro pelo vendedor, conduz à conclusão de que não estão verificados os pressupostos do dolo na sua vertente de dolus malus: para que haja dolo (dolus malus) são necessários os seguintes requisitos: a) que o declarante esteja em erro; b) que o erro tenha sido provocado ou dissimulado pelo declaratário ou por terceiro; c) que o declaratário ou terceiro haja recorrido, para o efeito, a qualquer artifício, sugestão ou embuste. Ou, nas palavras de Castro Mendes, Teoria Geral, II, 113, a relevância do dolo depende de uma dupla causalidade: é preciso que o dolo seja determinante do erro e o erro determinante do negócio, como escreve a Meritíssima Juiz de primeira instância (pág. 18).

X. Doutro passo, no caso dos autos e outros do mesmo jaez em que está em causa a denominada garantia edilicia, os interesses da paz social, a necessidade de não prolongar demasiado no tempo a incerteza sobre validade do contrato e as dificuldades da produção de prova com o passar dos anos, não são compagináveis com um prazo de prescrição de 20 anos, como pretende o recorrente, por ser excessivamente longo.

XI. Apesar do Tribunal a quo não se ter pronunciado, entende o recorrido que se verificam in casu os pressupostos de abuso de direito na modalidade de supressio, pelo que também por esta razão a pretensão indemnizatória do recorrente deve improceder in totum.

XII. Porque a sentença prolatada pela Meritíssima Juiz de primeira instância não merece qualquer tipo de censura, deve manter-se nos seus precisos termos,

Assim se fazendo a costumada

JUSTIÇA”

O recurso foi admitido.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

OBJETO DO RECURSO

Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, a única questão a decidir consiste em saber se à data da instauração da presente ação já tinha caducado o direito de ação do autor relativamente aos pedidos formulados em I. e II.

FUNDAMENTOS DE FACTO

Para a decisão da exceção perentória de caducidade, a decisão recorrida considerou assentes os seguintes factos:

“Factos assentes:

A) Por escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca exarada a folhas 99 a folhas 101 do livro de notas para escrituras diversas nº 356-A, do extinto ... Cartório Notarial ..., em 18-07-2003, o autor – com a sua mulher à data- declarou adquirir ao réu e à sua mulher àquela data, a co-ré CC, ora sua ex-mulher, o seguinte imóvel: Prédio urbano, descrito como sendo composto de casa de habitação de cave e rés-do-chão, com a superfície coberta de 139 m2 e descoberta de 1.141 m2, sito na Rua ..., lugar do ..., freguesia ..., inscrito na matriz sob o artigo ...39, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...75... ..., pelo preço de 100.000,00 €.

B) Valor que foi pago aos vendedores através do mútuo do mesmo montante concedido pelo Banco 1..., tendo o autor entregue nesse acto um cheque bancário no valor de 70.437,93 €, à Banco 2... para distrate das hipotecas existentes sobre o prédio; aos Vendedores entregou 2 cheques, no valor de 14.781,03 €cada, a cada um dos vendedores, para perfazer o valor de 100.000,00 € constante da escritura.

C) Para além do valor mencionado na escritura os réus receberam do autor, cada um deles, um cheque no valor de 23.572,69 €, cheques estes que foram descontados no dia 22/07/2003. (doc. 3), o que perfaz o total de 147.145,37 €, o valor pago pelo Autor a estes réus, sendo a diferença para os 150.000,00 o custo da escritura – 2.854,63€ - valor pago pelo Autor.

D) Para assegurar parte do pagamento do valor excedente aos 100.000,00€, no mesmo dia e no mesmo Cartório Notarial, celebraram uma outra escritura de mútuo com Hipoteca, crédito concedido a favor do Autor e sua esposa no montante de 75.000,00€.

E) Recepção a 13 de março de 2020 de carta registada com AR, junta como doc. nº 1 da contestação do co-réu BB com seguinte teor:


F) à qual este respondeu, por carta registada com aviso de recepção datada de 23 de Março, afirmando a sua total estupefação, refutando as imputações que lhe eram dirigidas e propondo-se reunir com o réu para falar do assunto, conforme doc. nº 2 da mesma.
G) O ora autor veio a divorciar-se da sua esposa, tendo sido realizadas as partilhas nos termos das quais passou ele a ser o único proprietário do prédio. (Doc. 2 – certidão predial).
H) Em 19 de Dezembro de 2017, o autor requereu na Câmara Municipal ... “cópias simples dos seguintes documentos: processo nº ...4 – Projeto térmico e Termo de responsabilidade” – cf. doc. nº 30
I) Á data da aquisição pelo autor e então mulher, o prédio já se encontrava totalmente
construído, tendo já construídos dois anexos, sendo um a churrasqueira coberta, e outro o anexo para arrumos junto à via pública.
J) A entrega do imóvel e o recebimento do preço deu-se no dia 18 de Julho de 2003.
K) A presente acção deu entrada em juízo a 19-11-2020.
L) O autor AA, na veste de actual único proprietário- após
partilha sequente a divorcio, de prédio urbano descrito como sendo composto de casa de habitação de cave e rés-do-chão, com a superfície coberta de 139 m2 e descoberta de 1.141 m2, sito na Rua ..., lugar do ..., freguesia ..., inscrito na matriz sob o artigo ...39, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...75... ... demandou BB e CC ( estes na veste de vendedores do mesmo), bem como - já supra declarados parte ilegítima-DD e mulher EE ( antepossuidores justificantes e aqueles doadores) e ainda FF (ré relativamente à qual ocorreu desistência do pedido, em acta de audiência prévia, estando assim extinta a acção no respeitante à mesma), sendo que por via da mesma – face à absolvição de instancia dos demais réus,- se pretende a condenação dos réus BB E CC a:
a- reconhecer que o prédio vendido ao autor e sua então esposa tinha, então, a área de 742 m2 e não os 1.280 m2 que constam da matriz predial e do respectivo registo predial; que a descrição predial do mesmo prédio tem as seguintes confrontações: norte e nascente com GG; sul com estrada e poente com HH e estrada camarária;
b- a indemnizarem o autor pela diferença do valor do prédio, considerando a redução efectiva de 538 m2 em relação ao prédio que foi vendido, no montante de 18.830,00 €; a indemnizarem o autor pelos gastos que este já suportou e ainda terá de suportar com vista à regularização das descrições do prédio, valor estimado em não menos de 5.000,00 €, a fixar em liquidação de sentença;
c- a indemnizarem o autor pelos custos que este terá de suportar tendo em vista a legalização das construções ilegais dos dois anexos, assim como a legalização das alterações introduzidas na construção em relação ao projecto aprovado e licenciado, cujo valor se estima provisoriamente em 10.000,00 €, a fixar em liquidação de sentença;
d- a indemnizarem o Autor no montante que, provisoriamente, se fixa em 60.000,00 € correspondente aos custos que ele terá de suportar com as obras que terá de realizar para executar o isolamento térmico da cobertura e das paredes exteriores, cujo valor vier a ser fixado em liquidação de sentença.
Com base nos documentos juntos a fls. 153 e 154, acrescenta-se à matéria de facto provada os seguintes factos com interesse para a decisão[1]:

M) Com a data de 4/03/2020 foi enviado ao autor um oficio que lhe deu a conhecer que foi detetada a construção de dois anexos, na sua propriedade, um deles confinante com a via pública, sem que para o efeito tenha sido emitido o respetivo alvará de licença de construção (doc. nº 7 junto pelo autor/ora recorrente- fls. 153).

N) O levantamento topográfico ordenado pelo autor tem como data março 2020 (doc. nº 8 junto pelo autor/ora recorrente- fls. 154).

FUNDAMENTOS DE DIREITO

A decisão recorrida apreciou a questão da caducidade do direito de ação do autor, tendo concluído pela caducidade do mesmo.

                  No caso em apreço, apenas se pretende o prosseguimento dos autos para apreciação dos pedidos I e II, relativamente aos recorridos BB e CC.

I- Sejam os estes réus condenados, solidariamente, a:

a) reconhecer que o prédio vendido ao autor e sua então esposa tinha, então, a área de 742 m2 e não os 1.280 m2 que constam da matriz predial e do respetivo registo predial;

b) que a descrição predial do mesmo prédio tem as seguintes confrontações: norte e nascente com GG; sul com estrada e poente com HH e estrada camarária;

c) a indemnizarem o autor pela diferença do valor do prédio, considerando a redução efetiva de 538 m2 em relação ao prédio que foi vendido, no montante de €18.830,00;

d) a indemnizarem o autor pelos gastos que este já suportou e ainda terá de suportar com vista à regularização das descrições do prédio, valor que se estima em não menos de €5.000,00, a fixar em liquidação de sentença.

II- Sejam condenados a indemnizarem o autor pelos custos que este terá de suportar tendo em vista a legalização das construções ilegais dos dois anexos, assim como a legalização das alterações introduzidas na construção em relação ao projeto aprovado e licenciado, cujo valor se estima provisoriamente em €10.000,00, a fixar em liquidação de sentença.

Quanto ao pedido III, os ora recorrentes reconhecem que se encontra abrangido pelo prazo de caducidade do artigo 917º do Código Civil, tal como se encontra defendido a páginas 17 da sentença recorrida (conc. I das alegações de recurso).

Entre as partes foi celebrado um contrato de compra e venda, tendo por objeto o identificado imóvel.

Discute-se se estamos perante uma venda de coisa defeituosa (tese seguida na decisão sob recurso) ou perante o cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda (tese defendida pela apelante).

Lê-se no art.º 874º do CC que compra e venda «é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço»; e lê-se no 879º, als. b) e c), do C.C., que o mesmo tem «como efeitos essenciais a obrigação de entregar a coisa e a obrigação de pagar o preço».

Logo, no contrato de compra e venda, o vendedor cumpre o contrato quando entrega a coisa; e o vendedor fá-lo quando paga o preço devido (previamente acordado) pelos bens que recebeu daquele.

Contudo, se a entrega da coisa é a principal prestação do vendedor, importa que o mesmo entregue a coisa acordada. «Na execução da obrigação, o devedor deve respeitar escrupulosamente o contrato (arts. 408º e 763º), pela entrega da coisa convencionada, não podendo o comprador ser constrangido a receber coisa diversa da devida (art.º 837º)»[2] e isto desde logo mercê do direito comum português, isto é, do princípio da conformidade ou pontualidade do cumprimento dos contratos.

Antunes Varela, em parecer publicado na Colectânea de Jurisprudência, 1987, tomo 4, págs. 22 e segs., abordou esta problemática, concluindo o seguinte:

«Há assim venda de coisa defeituosa sempre que no contrato de compra e venda, tendo por objecto a transmissão da propriedade de uma coisa, a coisa vendida sofrer dos vícios ou carecer das qualidades abrangidas no art.º 913.º do Cód. Civil, quer a coisa entregue corresponda, quer não, à prestação a que o vendedor se encontra vinculado […].

O cumprimento defeituoso da obrigação verifica-se não apenas em relação à obrigação da entrega da coisa proveniente da compra e venda, mas quanto a toda e qualquer outra obrigação, proveniente de contrato ou qualquer outra fonte. E apenas se dá quando a prestação realizada pelo devedor não corresponde, pela falta de qualidades ou requisitos dela, ao objecto da obrigação a que ele estava adstrito.[3]

O regime da compra e venda de coisas defeituosas consta dos artigos 913º e ss. do CC:

Dispõe o artigo 913º – Remissão:

“1 – Se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes.

2 – Quando do contrato não resulte o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma categoria.”

Diz-se defeituosa, para efeito desta secção, a coisa em relação à qual se verifique uma (ou mais) das seguintes circunstâncias:

-Sofrer de vício que a desvalorize;

-Sofrer de vício que impeça a realização do fim a que é destinada (em caso de falta de acordo entre as partes, releva a função normal das coisas da mesma categoria);

-Não ter as qualidades asseguradas pelo vendedor, expressa ou tacitamente, ou

-Não ter as qualidades necessárias para a realização do fim a que é destinada (em caso de falta de acordo entre as partes, releva a função normal das coisas da mesma categoria[4].

Estabelece o artigo 911º – Redução do preço:

“1 – Se as circunstâncias mostrarem que, sem erro ou dolo, o comprador teria igualmente adquirido os bens, mas por preço inferior, apenas lhe caberá o direito à redução do preço, em harmonia com a desvalorização resultante dos ónus ou limitações, além da indemnização que no caso competir.

2 – São aplicáveis à redução do preço os preceitos anteriores, com as necessárias adaptações.”

               Prescreve o artigo 917º que “a ação de anulação por simples erro caduca, findo qualquer dos prazos fixados no artigo anterior sem o comprador ter feito a denúncia, ou decorridos sobre esta seis meses, sem prejuízo, neste último caso, do disposto no nº 2 do artigo 287º.”

A jurisprudência tem vindo a decidir de modo uniforme que este preceito se aplica, por interpretação extensiva, às ações de indemnização que visam obter o pagamento de indemnização por violação contratual ainda que o pedido seja desacompanhado do pedido de reparação ou substituição da coisa ou de redução do preço[5].

A ação de indemnização quando fundada nas pretensões decorrentes da venda de coisa defeituosa é aquela em que o comprador tem o direito de exercer pelos prejuízos que dessa venda decorrem e que, podendo ser exercida autonomamente face a tais pretensões- de reparação ou de substituição ou de redução do preço (artigos 911º e 914º do Código Civil) - não deve ficar de fora dos limites temporais em que pode ser exercida a ação de anulação a que se refere o mencionado artigo 917º do Código Civil.

A questão que se coloca é a de saber se, em alguma medida, a área do imóvel pode ser considerada como qualidade da coisa vendida para efeitos do artigo 913º do CC.

Conforme se refere no Ac. do STJ, de 21-06-2017[6] “Assim, no que concerne ao contrato de compra e venda de coisas, a lei regulou em separado as anomalias relativas à medida das coisas e os vícios das mesmas e o seu défice de qualidades, o que revela intenção de diferenciação de regimes.

Nessa conformidade, os vícios a que a lei se reporta são defeitos intrínsecos das coisas, e a falta de qualidades exprime a ausência de requisitos ou elementos intrínsecos, integrantes da sua essência ou substância, e não os elementos meramente extrínsecos, ou seja, os meramente acessórios ou incidentais.

(…).

A sua área, que é o que está aqui em causa, sendo um elemento delimitador necessário à própria individualização, com reflexo no âmbito da extensão da edificação comportável, não é susceptível, pela sua natureza, de ser qualificada como qualidade intrínseca da realidade que envolve.

O conceito de qualidade a que alude o normativo do nº 1 do artigo 913º do Código Civil é, por isso, insuscetível de englobar o elemento extrínseco do terreno em que se traduz a sua dimensão ou área.”

E o mesmo se diga, relativamente aos anexos que não estavam legalizados.

No caso vertente, estamos diante de uma situação configurável como cumprimento defeituoso da obrigação. Quando assim sucede são aplicáveis “tanto os artigos 798º e 799º, como os artigos 913º e seguintes do Código Civil[7].

Havendo dolo[8], o comprador não tem o ónus de denunciar o vício ou a falta de qualidade da coisa (artigo 916º/1, do Código Civil) e, por conseguinte, o prazo a considerar é o fixado genericamente no artigo 287º do Código Civil, ou seja, o prazo de um ano subsequente à data da cessação do vício que lhe serve de fundamento”.

Não, é portanto, o prazo geral de prescrição do artigo 309º do Código Civil que importa, mas o prazo de um ano que se conta “no caso do erro e do dolo (…) a partir do momento em que o declarante se apercebeu deles”[9]/[10].

Na petição inicial, o autor alega que “desse levantamento veio a verificar-se que, afinal, o prédio adquirido pelo Autor tem a área total de 742,00m2, ou seja, menos 538m2 do que consta da caderneta predial e do registo predial (doc. 8).

Ora, este documento (levantamento topográfico) (fls. 154), tem a data de março de 2020.

Já, o documento nº 7 (junto a fls. 153) tem a data de 4-03-2020 que é o oficio da Câmara através do qual se dá conhecimento ao autor de que foi detetada a existência de dois anexos, na propriedade, um deles confinante com a via pública, sendo que tais obras foram executadas, sem que para o efeito tenha sido emitido o respetivo alvará de licença de construção.

Assim sendo, quando o autor intentou a presente ação em 19-11-2020, ainda não se tinha esgotado o prazo de um ano, sendo certo que os prazos de prescrição e de caducidade estiveram suspensos entre 9-03-2020 e 3-06-2020- artigo 7º, nºs 3 e 4 da Lei nº 1-A/2020, de 19 de março e artigo 10.º da Lei n.º 16/2020 de 29 de maio.

A apelação tem assim de proceder, com a consequente revogação da sentença recorrida no que concerne à absolvição dos recorridos BB e CC dos pedidos I e II; ordenando-se o prosseguimento dos autos para apreciação destes.

                                                                       x

As custas são da responsabilidade dos apelados, atendendo ao seu vencimento- artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6 e 663º, nº 2, todos do CPC.

(…)

DECISÃO

Com fundamento no atrás exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida que julgou procedente a exceção de caducidade da ação, e extinto o direito do autor, pelo decurso do tempo, com a consequente absolvição dos réus BB e CC relativamente aos pedidos I) e II).

Ordena-se assim, o prosseguimento dos autos para apreciação dos pedidos I) e II).

No mais, mantém-se a decisão recorrida.

Custas pelos apelados.

                                                                                                    Coimbra, 12 de abril de 2023

Mário Rodrigues da Silva- relator

Cristina Neves- adjunta

Teresa Albuquerque-adjunta

Texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, respeitando-se, no entanto, em caso de transcrição, a grafia do texto original





([1]) “..A Relação no âmbito da reapreciação da decisão recorrida e naturalmente nos limite objetivo e subjetivo do recurso, deve agir oficiosamente mediante a aplicação das regras vinculativas extraídas do direito probatório material, modificando a decisão da matéria de facto advinda da 1ª instância (art.º 607º, nº 4 e 663º, nº 2). A oficiosidade desta atuação é decorrência da regra geral sobre a aplicação do direito (in casu, das normas de direito probatório material), na medida em que possam interferir no resultado do recurso que foi interposto e, é claro, respeitando o seu objeto global, que, no essencial, é delimitado pela recorrente, nos termos do art.º 635º, e respeitando também o eventual caso julgado parcelar que porventura se tenha formado sobre alguma questão ou segmento decisório” (António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Felipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil notado, Vol. I, p. 858).
([2]) Calvão da Silva, Compra e Venda de Coisas Defeituosas (Conformidade e Segurança), 4ª edição, Almedina, p. 20.
([3]) Cfr. Ac. do TRL, de 20-03-2014, proc. 226/12.4TVLSB.L1-2, relator Tibério Silva, www.dgsi.pt.
([4]) Jorge Morais de Carvalho, Código Civil Anotado, Vol. I, coord. Ana Prata, p. 1165.
([5]) Cf. jurisprudência citada no Ac. do STJ, de STJ, de 13-02-2014, proc. 1115/05.4TCGMR.G1.1, relator Salazar Casanova, www.dgsi.pt.
([6]) Proc. 07B1815, relator Salvador da Costa, www.dgsi.pt.
([7]) Antunes Varela, Cumprimento Imperfeito do Contrato de Compra e Venda, A exceção do Contrato não Cumprido” CJ, 1987, 4, p. 30.
([8]) O conceito de dolo que releva é o que resulta do art.º 253º, nº 1, do Código Civil “– Entende-se por dolo qualquer sugestão ou artifício que alguém empregue com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração, bem como a dissimulação, pelo declaratário ou terceiro, do erro do declarante”.
([9]) Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição, p. 264.
([10]) Cf. Acórdão do STJ, de 13-02-2014, proc. 1115/05.4TCGMR.G1.1, relator Salazar Casanova, www.dgsi.pt.