Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4133/18.9T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: CASO JULGADO
REIVINDICAÇÃO
TRANSACÇÃO
SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA
ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
Data do Acordão: 01/12/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - SOURE - JUÍZO C. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.580, 581 CPC
Sumário: Uma transação homologada por sentença, nos termos da qual foi constituída uma servidão de passagem entre dois prédios, cuja individualidade predial foi invocada como causa de pedir para a reivindicação de uma parcela de terreno que os Autores alegaram ter sido apropriada pela Ré, proprietária do outro prédio, forma caso julgado – n.º 1 do artigo 580.º e 581.º, n.º 1 e 4, do CPC – em relação a uma ação de divisão de coisa comum entre as mesmas partes, alegando agora os mesmos Autores que aqueles mesmos dois prédios são um único prédio em situação de compropriedade.
Decisão Texto Integral:



I. Relatório

a) Os Autores instauraram contra a Ré recorrente a apresente ação especial de divisão de coisa comum com o fim de porem termos à situação de compropriedade no prédio rústico inscrito na matriz predial sob o artigo 4008, descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º 2875/19920825 da freguesia de (…), concelho de (…), que é na proporção de ¾ para  os Autores e ¼ para a Ré, prédio que é insuscetível de divisão material, pelo que o mesmo deve ser adjudicado a um dos consortes ou, se isso não for viável, posto à venda.

A Ré contestou alegando que o prédio não se encontra já em situação de compropriedade, porquanto, no que diz respeito à sua quota parte, adquiriu o respetivo direito de propriedade por usucapião.

No final foi proferida sentença com este dispositivo:

«Em face do exposto, decide-se:

6.1. Julgar a acção procedente e, em consequência:

6.1.1. Declarar que Autores e Ré são comproprietários do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 4008 da freguesia da (…), concelho de (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o n.º 2875, da mesma freguesia e concelho, como a área total de 300 m2, na proporção de ¾ e ¼ respectivamente.

6.1.2. Declarar indivisível o rústico inscrito na matriz sob o artigo 4008 da freguesia da (…), concelho de (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º 2875, da mesma freguesia e concelho, com uma área total de 300 m2.

Custas pela Ré (artigos 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).

b) É desta decisão que vem interposto recurso por parte da Ré, cujas conclusões são as seguintes:

(…)

c) Contra-alegaram os Autores os quais concluíram deste modo:

(…)

II. Objeto do recurso.

De acordo com a sequência lógica das matérias, cumpre começar pelas questões processuais, se as houver, prosseguindo depois com as questões relativas à matéria de facto e eventual repercussão destas na análise de exceções processuais e, por fim, com as atinentes ao mérito da causa.

Tendo em consideração que o âmbito objetivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as questões que este recurso coloca são as seguintes:

1 – A primeira questão colocada pelo recurso respeita à exceção do caso julgado formado nas Ações n.º 1633/09.5TBPBL (ação de reivindicação) e n.º 173/14.5TBSRE (ação de demarcação).

2 – O segundo conjunto de questões colocadas, caso o seu conhecimento não se mostre já prejudicado, incide sobre a impugnação da matéria de facto.

A Ré impugna os factos não provados constantes nos pontos 3.2.4, 3.2.5, 3.2.6 e 3.2.7, que pretende ver declarados provados.

Os factos são estes:

«3.2.4. Aquando da sua aquisição pela Ré, o prédio referido em 3.1.1. já se encontrava delimitado tal como se encontra hoje, sabendo cada um dos seus comproprietários as marcações exactas do seu prédio.

3.2.5. A Ré utilizava a parcela referida em 3.1.5. sem oposição ou violência de quem quer que fosse e desconhecendo lesar quaisquer interesses ou direitos de outrem.

3.2.6. A Ré agiu na convicção de ser proprietária da respectiva parcela de terreno.

3.2.7. Os Autores sempre respeitaram e reconheceram a parcela ocupada pela Ré, bem como os seus limites».

A Ré argumenta que parcela de terreno que A (…) e mulher M (…) venderam à ré M (…) – prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 4008 da freguesia da (…), concelho de (…), descrito na Conservatória do registo Predial de (…) sob o n.º 2875, da mesma freguesia e concelho, com área de 300m2, sempre foi um prédio autónomo e distinto da parcela de terreno no mesmo artigo dos autores, pelo menos desde há 100 anos, estando desde então bem demarcada.

3 – Por fim coloca-se a questão de mérito, pretendendo a que a Ré que se declare que é proprietária da parcela, por a haver adquirido por usucapião, resultando de tal situação a improcedência da ação.

III. Fundamentação

a) Matéria de facto

1. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de (…), sob o n.º 2875, na freguesia de (…), o prédio rústico, situado em (…), composto de terra de semeadura com videiras, a confrontar (…) e inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o n.º 4008.

2. Sobre este prédio encontram-se efetuadas as seguintes descrições:

Pela AP n.º 5 de 25 de agosto de 1992 – aquisição de 1/4 a favor de M (…), solteira, por compra a A (…) e mulher M (…).

Pela AP. n.º 2662 de 26 de fevereiro de 2018/03/1988 – aquisição de 3/4 a favor de M (…), casada no regime de comunhão de adquiridos com C (…)por sucessão hereditária por óbito de M (…)

3. Os ¾ do prédio descrito em 3.1.1. adveio à posse da Autora por óbito da sua mãe, falecida em 03.09.1996.

4. A sul do prédio do prédio descrito em 3.1.1. existe um prédio composto por casa de habitação e terra de semeadura que pertence à Ré.

5. Há mais de 20 anos que a Ré colocou rede e estacas a dividir o prédio referido em 3.1.1. à vista de toda a gente.

6. Há mais de 20 anos que a Ré vem utilizando uma parcela do prédio referido em 1., identificada no levantamento topográfico junto com o relatório pericial, como logradouro da sua casa de habitação, na qual tem árvores de frutos e planta legumes, hortaliças e tem um jardim relvado, o que faz de forma contínua e sem interrupções e à vista da generalidade das pessoas.

Factos Não Provados:

1. A sul e poente do prédio referido em 3.1.4. existem duas construções urbanas, uma de habitação e outra de arrecadação que são propriedade dos Autores.

2. A poente da habitação referida em 3.1.4. tem início e existe, desde tempos imemoriais, uma vala de escoamento das águas pluviais que escorrem dessa referida habitação que delimita o prédio da Ré do prédio dos Autores do lado sul.

3. A colocação de rede e estacas foi feita sem oposição de quem quer que seja, designadamente dos Autores.

4. Aquando da sua aquisição pela Ré, o prédio referido em 3.1.1. já se encontrava delimitado tal como se encontra hoje, sabendo cada um dos seus comproprietários as marcações exatas do seu prédio.

5. A Ré utilizava a parcela referida em 3.1.5. sem oposição ou violência de quem quer que fosse e desconhecendo lesar quaisquer interesses ou direitos de outrem.

6. A Ré agiu na convicção de ser proprietária da respetiva parcela de terreno.

7. Os Autores sempre respeitaram e reconheceram a parcela ocupada pela Ré, bem como os seus limites.

b) Caso julgado

A Ré argumenta que já existe caso julgado entre as partes no sentido da parcela de terreno correspondente fisicamente à primitiva quota parte ideal da Ré no direito de propriedade sobre o prédio ter sido adquirida pela Ré através da usucapião, sendo hoje um prédio autónomo.

Vejamos se é o caso.

No despacho saneador referiu-se que a decisão na ação n.º 1633/09.5TBPBL (ação de reivindicação) não formou caso julgado porque «pese embora se faça referência, na factualidade provada, a uma divisão fáctica do prédio em causa, fá-lo de uma forma genérica, sendo que tal resulta apenas da falta de impugnação dos factos, não se retirando deles qualquer efeito jurídico. Para além disso, esta ação assenta em pressupostos factuais e de direito diversos, não se pronunciando sobre a compropriedade ou divisibilidade do prédio aqui em causa».

E quanto à ação n.º 173/14.5TBSRE (ação de demarcação) argumentou-se que o fundamento para aquela ação ter sido julgada improcedente foi o facto do prédio se encontrar em compropriedade e não existirem dois prédios distintos e confinantes, como é pressuposto da demarcação. Embora reconheça a existência de uma divisão fáctica do prédio em causa, não conhece da aquisição por usucapião dessas parcelas, porquanto tal não foi alegada, e, por isso, não foi apreciada.

Vejamos então.

A sentença proferida na ação n.º 1633/09.5TBPBL (ação de reivindicação) data de 3 de abril de 2012 e transitou em julgado em 14 de maio de 2012; a proferida na ação n.º 173/14.5TBSRE (ação de demarcação) tem a data de 17 de julho de 2017.

Afigura-se que existe efetivamente caso julgado quanto à existência ou não existência de uma situação de compropriedade relativamente ao prédio/prédios aqui identificados, pelas seguintes razões:

(a) Como vem estabelecido no n.º 1 do artigo 580.º e 581.º, n.º 1 e 4, do CPC, a exceção do caso julgado pressupõe a repetição de uma causa já decidida por sentença transitada em julgado, existindo repetição da causa quando a segunda ação é idêntica quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, havendo identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico.

Como refere Lebre de Freitas, cumpre distinguir entre a exceção de caso julgado e a autoridade de caso julgado.

Diz o autor que «…pela exceção, visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito; a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito (…). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida (…). Mas o efeito negativo do caso julgado nem sempre assenta na identidade do objecto da primeira e da segunda acções: se o objecto desta tiver constituído questão prejudicial da primeira (e a decisão sobre ela proferida deva, excepcionalmente, ser invocável) ou se a primeira acção, cujo objecto seja prejudicial em face da segunda, tiver sido julgada improcedente, o caso julgado será feito valer por excepção» - Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2.ª Ed., pág. 354 (nota 6. ao art. 498º do anterior CPC).
Ou, como referiu recentemente Maria José Capelo:
«Recorde-se que a força do caso julgado é suscetível de revelar-se sob a forma de exceção dilatória, enquanto impedimento processual à apreciação de idêntico objeto, ou nas vestes de autoridade positiva, quando o que foi decidido, a título principal, é prejudicial numa segunda ação.
Isto é, se o que foi julgado (e consta do dispositivo) é pressuposto de uma ação consecutiva, o tribunal, nesta segunda causa, não pode ignorar a indiscutibilidade da decisão primitiva. Esta terá uma repercussão positiva ou negativa. Exemplifiquemos: se, após ter sido decretada a improcedência de uma ação de investigação da paternidade, for instaurada uma ação de alimentos, alegando um laço biológico, o tribunal deve "assumir" o caso julgado anterior e considerar improcedente o pedido de condenação no pagamento de alimentos. Já ao invés, se aquele laço foi reconhecido judicialmente, funcionará como pressuposto positivo da sentença que fixar os alimentos. Saliente-se que a complexidade do tema surge, sobretudo, no apuramento da identidade de causas, para efeitos da verificação da exceção dilatória de caso julgado, e não tanto na destrinça das duas vertentes que atrás se distinguiram» - Ónus de reconvir e caso julgado (anotação ao Acórdão do STJ de 5 de setembro de 2017 proferido no processo n.º 6509/16.7T8PRP.P1.S1) – Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 150 (2020), pág. 61.

(b) Verifica-se que na ação n.º 1633/09.5TBPBL (ação de reivindicação), mais antiga, os aí autores C (…) e esposa invocaram o fracionamento e autonomização em duas parcelas do prédio do artigo matricial 4008, bem como o seu direito de propriedade adquirido por via da usucapião relativamente a uma das parcelas, pertencendo a outra à aí ré M (…).

Com base neste pressuposto, pediram o seguinte no confronto com a também aqui Ré:

«A) A reconhecer que os AA. são os legítimos donos e possuidores do prédio identificado no artigo 7º desta Petição;

B) A reconhecer que, com a colocação da rede e estacas ocupa uma faixa de terreno do prédio dos AA. com cerca de 60 m2 e consequentemente a restituir tal faixa aos AA.;

C) A retirar a rede e estacas de modo a permitir o acesso ao prédio dos AA.;

D) A reconhecer que o seu prédio composto por casa e terreno se encontra onerado com o direito de servidão de passagem a pé e com carros de mão, a favor e em proveito do prédio dos AA., e que tal servidão de passagem tem o seu leito com 1,80 metros de largura e segue em linha recta desde a via pública até ao prédio dos AA. passando junto à parede da casa da demandada;

E) A retirar do leito da servidão de passagem todos os restos de materiais e entulho ali colocados, de modo a deixar o leito livre e desimpedido para se poder transitar;

F) A não mais impedir ou estorvar o transitar pelo leito da servidão de passagem;

G) A pagar as custas legais. fls. 4».

A ação terminou em parte por transação, homologada por sentença, e em parte por sentença subsequente ao julgamento da matéria de facto não abrangida pela transação, como resulta do seguinte segmento da sentença:

«Mantendo-se em litígio a questão relacionada com a dimensão das propriedades de ambas as partes, deu-se continuidade ao julgamento e decidiu-se da matéria de facto controvertida, apenas correspondente aos artigos 44.º a 51.º da petição inicial considerando o acordo firmado pelas partes. actas fls. 94 e 99».

Os factos declarados provados na sentença que substanciam a causa de pedir invocada pelos Autores foram estes:

«1. A autora mulher é filha de M (…)

2. M (…) faleceu no dia 3 de Setembro de 1996, no estado de solteira.

3. Não deixou testamento ou qualquer outra disposição de última vontade.

4. Não teve qualquer outro filho além da autora mulher, que é a única e universal herdeira da falecida M (…).

5. A autora é a legítima dona do seguinte prédio: Terra de cultura com fruteiras, sita no (…), freguesia de (…), concelho de (…), com a área aproximadamente de 300 m2, a confrontar (…)  inscrita na matriz sob o artigo 4008 (parte).

6. Tal prédio, hoje autónomo e distinto, corresponde à parte que ficou a caber a M (…), mãe da autora mulher na divisão da totalidade do prédio efectuada por morte de M (…).

7. A falecida M (…), mãe da autora mulher, andou na posse do prédio durante mais de 30 ou 40 anos.

8. Cavou e lavrou o terreno, plantou árvores de fruto, semeou feijão, batatas, couves, ervilhas e favas, adubou e estrumou o terreno, colheu todos os frutos e produtos.

9. Praticou tais actos à vista da generalidade das pessoas do lugar e com possibilidade de tais factos serem vistos por quem quer que seja.

10. Praticou tais actos ano a ano, sempre que o desejou, sem qualquer intervalo no tempo, isto é assídua e repetidamente.

11. Sem oposição de quem quer que fosse.

12. Sem violência de qualquer espécie, quer de início, quer posteriormente.

13. Agindo a falecida M (…) convicta que exercia um direito próprio e que, com os seus actos não lesava direitos de outrem.

14. Após a morte daquela, os autores continuaram a exercer no terreno os mesmos actos de posse e com as características já referidas.

15. O terreno, ora dos autores, bem como o terreno da ré incluindo onde se encontra construída a casa de habitação formaram em tempos um único prédio.

16. Prédio esse que pertenceu a M (…)

17. Em virtude da divisão do prédio, e pelo decurso do prazo, autonomizaram-se os prédios hoje pertencentes aos autores e à ré.

18. Para entrarem e saírem do prédio dos autores, estes bem como a antepossuidora sempre utilizaram uma faixa de terreno que saindo da estrada segue em linha recta até ao prédio dos autores.

19. Faixa essa que faz parte integrante dos prédios da ré, e que resultaram da divisão já referida.

20. Faixa essa que segue em linha recta desde a entrada, até ao prédio dos autores e passa junto à parede da casa da ré.

21. Desde há mais de 20, 30 ou 40 anos que os autores e antepossuidora para entrarem e saírem do seu prédio utilizam tal faixa de terreno.

22. Para transportar matos e estrumes para o terreno, utilizavam um carro de mão, bem como transportar sementes, palhas, adubos, assim como todos os frutos e produtos.

23. Bem como a pé com as alfaias agrícolas, especialmente enxadas, forquilhas e outras.

24. Transitaram por tal faixa de terreno à vista da generalidade das pessoas do lugar e com possibilidade de tal transitar ser visto qualquer pessoa.

25. Transitaram ano a ano, dia a dia, sempre que o desejavam, sem qualquer intervalo no tempo, isto é assídua e repetidamente.

26. Sem oposição de quem quer que fosse.

27. Sem violência de qualquer espécie, quer de início, quer posteriormente.

28. Agindo os autores e antepossuidora convictos que exerciam um direito próprio, o de passagem em proveito do seu prédio onerando o prédio da ré, e que os seus actos não lesavam direitos de outrem.

29. O leito da faixa de terreno por onde transitavam os autores e antepossuidora apresentava-se bem calcado e endurecido, sem qualquer vegetação.

30. O piso calcado e endurecido revelador da passagem a pé e com carros de mão mantinham-se durante todo o ano.

31. Sendo o piso calcado e endurecido visível em qualquer época do ano. 32. No tempo em que os prédios ora de autores e ré pertenciam ao mesmo dono e formavam um único prédio, já a faixa de terreno era utilizada para aceder ao espaço de terreno hoje pertencente aos autores.

33. Aquando da divisão material do prédio não foi elaborado qualquer documento e consequentemente nada foi acordado em contrário à continuação da servidão de passagem.

34. A qual já se revelava pelo piso calcado e endurecido, revelador da passagem de pessoas a pé e com carros de mão, sendo tais sinais já então visíveis e permanentes.

35. Os autores residem habitualmente em França.

36. No topo Norte do prédio da ré há necessidade de recuar as estacas e rede 50 cm para Poente, a fim de permitir o trânsito dos autores».

Face a estes factos, verifica-se que a causa de pedir da ação assenta indiscutivelmente na existência de dois prédios distintos os quais estiveram anteriormente reunidos num único prédio ao qual corresponde ainda o artigo matricial 4008.

A sentença proferida nesta ação foi a seguinte:

«Pelo exposto, decide-se:

Considerando a livre disponibilidade da matéria objecto dos presentes autos, bem como a qualidade das pessoas intervenientes, julgar válida e relevante a transacção apresentada pelas partes - conforme supra descrita no relatório da presente sentença -, e, em consequência, homologar a mesma por sentença, condenando-se as partes nos precisos termos acordados – cfr. artigos 293.º, n.º 2, 294.º e 300.º, todos do Código de Processo Civil.

Custas em partes iguais - cfr. artigo 451.º, n.º 2, do CPC.

No mais, julgar improcedente por não provada a acção e absolver a ré do restante Peticionado».

A transação foi esta:

«1.º Sem se discutir o âmbito dos direitos invocados no petitório, Autores e Ré acordam que os primeiros transitem a pé, com animais, carro de tracção animal e máquinas agrícolas (tractores), pelo limite Norte do prédio rústico pertença desta e que fica situado a Poente do prédio rústico dos Autores que inscrito está na matriz respectiva da freguesia de (…) sob o artigo n.º 4008, para acederem a este último.

2.º Essa passagem será exercitada por uma faixa de terreno com 2,30 metros de largura e em toda a extensão do prédio ora serviente no sentido Poente/Nascente, a qual terá o seu início num ponto situado a 1,50 metros do topo Norte do referido prédio da Ré, com vista ao estabelecimento da indispensável margem de segurança, atento o desnível existente entre o referido prédio da Ré e aquele que o margina pelo Norte.

3.º Para a concretização prática do direito ora estabelecido consensualmente será necessário, além do mais, a retirada de duas árvores (macieiras), bem como as canas existentes no aludido prédio da Ré.

4.º Esses trabalhos serão da responsabilidade dos Autores, os quais devem estar realizados no prazo de seis meses a partir desta data.

5.ª A fim de viabilizar a entrada dos Autores no prédio em causa da Ré e uma vez que aqueles a ele acederão por um outro seu prédio rústico situado a Poente, também ele com um desnível em relação ao prédio da Ré, os Autores poderão colocar neste prédio manilhas, no enfiamento do local ora estabelecido para passagem.

6.º Por sua vez, os Autores, que transitavam pelo prédio urbano da Ré, por uma faixa situada a Nascente daquela, face a tudo quanto acima ficou acordado, comprometem-se a não utilizar mais, seja de que modo for, essa faixa, a partir da esquina Nordeste da sua casa de habitação situada junto à estrada camarária que serve ambas as propriedades (Autores e Ré). acta fls. 89».


*

Verifica-se, face ao texto da transação, que a mesma pressupõe a existência dos dois prédios distintos, autónomos, que não estão em compropriedade, prédios estes que foram justamente invocados como causa de pedir para a reivindicação da parcela de terreno que os Autores alegaram ter sido apropriada pela Ré, prédios esses identificados na matéria de facto que foi julgada provada.

Esses dois prédios são os mesmos dois prédios que a Ré na presente ação diz existirem e são os mesmos dois prédios que juntos formam, em termos matriciais, o prédio do artigo matricial 4008.

 Então, se as partes firmam uma transação na qual declaram que «1. (…) Autores e Ré acordam que os primeiros transitem a pé, com animais, carro de tracção animal e máquinas agrícolas (tractores), pelo limite Norte do prédio rústico pertença desta e que fica situado a Poente do prédio rústico dos Autores que inscrito está na matriz respectiva da freguesia de (…) sob o artigo n.º 4008, para acederem a este último» e que « 2.º Essa passagem será exercitada por uma faixa de terreno com 2,30 metros de largura e em toda a extensão do prédio ora serviente no sentido Poente/Nascente, a qual terá o seu início num ponto situado a 1,50 metros do topo Norte do referido prédio da Ré, (…)» dúvidas não há de que foi constituída uma servidão de passagem entre dois prédios distintos, porquanto não se constituem servidões de passagem sobre o mesmo prédio.

A transação começa por dizer «1.º Sem se discutir o âmbito dos direitos invocados no petitório (…)», o que significou que os direitos invocados na petição se mantiveram e foram objeto de julgamento, ou seja, a questão da reivindicação da faixa de terreno por parte dos autores C (…) e esposa M (…), que alegavam ter sido apropriada pela Ré manteve-se e foi objeto de julgamento de mérito, cuja decisão foi a absolvição quanto a esses pedidos, nestes termos: «No mais, julgar improcedente por não provada a acção e absolver a ré do restante Peticionado».

Afigura-se, por conseguinte, que na ação n.º 1633/09.5TBPBL (ação de reivindicação) a causa de pedir consistiu na existência de dois prédios distintos um do outro, que em tempos formaram um só prédio e ainda o constituem em termos matriciais e que a sentença ao homologar a transação que constituiu uma servidão através do prédio da Ré (serviente) para o prédio dos Autores (prédio dominante) reconheceu, sem qualquer possibilidade de dúvida, que efetivamente existiam dois prédios distintos.

A presente ação instaurada pelos mesmos Autores que o foram na ação n.º 1633/09.5TBPBL, alegando agora que esses dois prédios são um mesmo prédio que está em situação de compropriedade, sendo comproprietários os ora Autores e a Ré, contradiz em termos jurídicos e práticos o que foi alegado de modo consensual pelas mesmas partes e decidido na ação n.º 1633/09.5TBPBL (ação de reivindicação).

E se alguma dúvida subsistir sobre se há ou não há caso julgado, resolve-se lançando mão do critério indicado por Alberto dos Reis:
«…quando surgirem dúvidas sobre se determinada ação é idêntica a outra anterior, o tribunal deve socorre-se deste princípio de orientação: as ações considerar-se-ão idênticas se a decisão da segunda fizer correr ao tribunal o risco de contradizer ou reproduzir a decisão proferida na primeira» - Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. III, Coimbra 1985, pág. 95.
Sem dúvida que decidindo-se como se decidiu na presente ação, ou seja, que os dois prédios não existem jurídica e factualmente, mas que só há um prédio em situação de compropriedade, isso contradiz a decisão tomada na ação n.º 1633/09.5TBPBL (ação de reivindicação) na qual ambas as partes estiveram de acordo quanto à causa de pedir baseada na existência de dois prédios autónomos e constituíram uma servidão e passagem entre os dois prédios que agora se declara, na sentença recorrida, serem um só.
Se a presente decisão pudesse produzir efeitos, isso implicava a extinção dos efeitos produzidos pelo trânsito da outra ação no que respeita à constituição da servidão de passagem aí constituída.

Aliás, a decisão produzida na posterior ação n.º 173/14.5TBSRE (ação de demarcação), julgada improcedente pelo facto do prédio se encontrar em compropriedade, por não existirem dois prédios distintos e confinantes, como é pressuposto da demarcação, contraria também o caso julgado formado na primeira ação, não sendo oponível a essa primeira ação, como resulta do disposto no n.º 1 do artigo 625.º do CPC, onde se determina que «Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar».

Cumpre, pelo exposto, julgar procedente a exceção de caso julgado e absolver a Ré da instância – artigos 278.º, n.º 1, al. e) e 577.º, al. i), ambos do Código de Processo Civil.

c) Impugnação da matéria de facto e reapreciação do mérito da causa.

Estas questões ficaram prejudicadas pela verificação do caso julgado.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso procedente e revoga-se a decisão recorrida porquanto existe caso julgado formado na ação n.º 1633/09.5TBPBL em relação à presente ação, pelo que se absolve a Ré da instância – artigos 278.º, n.º 1, al. e) e 577.º, al. i), ambos do Código de Processo Civil.

Custas pelos Autores.


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Coimbra, 12 de janeiro de 2021

Alberto Ruço ( Relator )

Vítor Amaral

Luís Cravo