Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
399/15.4T8VIS.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO DOMINGOS PIRES ROBALO
Descritores: CUSTAS PROCESSUAIS
TAXA DE JUSTIÇA
CRITÉRIOS
FIXAÇÃO
Data do Acordão: 04/27/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – VISEU – JC CÍVEL – J3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 6º, NºS 1, 5 E 7, E 11º DO RCP; 529º NCPC.
Sumário: I – Em matéria de custas judiciais, a regra geral é a de que a taxa de justiça é fixada «em função do valor e complexidade da causa» (artigos 6.º, n.º 1 e 11º, do RCP e 529º do atual CPC).

II - O valor da ação deixou de ser o único elemento a considerar para efeitos de fixação da taxa de justiça, estabelecendo-se um sistema misto, assente, por um lado, no valor da causa até determinado limite, e, por outro, na sua correção em casos de processos especialmente complexos.

III - Após as alterações introduzidas pela Lei nº 7/12, de 13 de Fevereiro, o RCP passou a permitir que, em ações de valor superior a 275.000,00€, o Juiz possa dispensar o pagamento do remanescente da taxa de justiça, desde que a especificidade da situação o justifique (além de poder também agravar a taxa dos processos que revelem especial complexidade faculdade que já era permitida antes das alterações introduzidas por saquela lei).

IV - Estando plenamente assegurada (perante a inquestionada aplicação do RCP, na versão actual, emergente da Lei 7/2012) a possibilidade de graduação casuística e prudencial do montante da taxa de justiça remanescente e tendo presente no descrito contexto processual, pode afigurar-se desproporcionado o montante da taxa de justiça remanescente, a pagar, por aplicação do critério normativo previsto no art.º 6.º, nº1 e na respectiva Tabela I-A, impondo-se assim o uso do mecanismo previsto no n.º 7 do art.º 6º, com a função de adequar o custo da ação à menor complexidade do processado.

Decisão Texto Integral:








    1. Relatório

1.1.- Transitada em julgado a decisão, vieram a Companhia ..., SA, também denominada R... e Quinta de V..., S.A.  requerer a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, ao abrigo do artigo 6º, n.º 7 do Regulamento das Custas Processuais, alegando como fundamento a violação do principio da proporcionalidade.                       

1.2. - Foi proferido despacho que indeferiu a dispensa de pagamento de taxa de justiça, invocando-se como fundamento que embora, de facto, a causa tenha terminado no despacho saneador, não pode concluir-se que as questões suscitadas e debatidas pelas partes não assumam significativa complexidade. De tal forma que a questão subjacente ao desfecho da causa, atenta a sua complexidade e insusceptibilidade de decisão consensual, determinou a interposição de recurso.

1.3. Inconformada com tal decisão dele recorreu a Companhia ..., SA, também denominada R..., terminando a sua motivação com as seguintes conclusões:

...

            1.4. - Não houve contra alegações.

            1.5. – Colhidos os vistos cabe decidir.

       2. Apreciação

3.1. É, em principio, pelo teor das conclusões do/a recorrente que se delimitam as questões a apreciar no âmbito do recurso (cfr. art.s 608, n.º 2, 635, n.º 4 e 639, todos do C.P.C.).

A questão a decidir consiste apenas em saber se se justifica dispensar o pagamento da taxa de justiça remanescente parcial ou total, como refere a recorrente.

Em matéria de custas judiciais, a regra geral é a de que a taxa de justiça é fixada «em função do valor e complexidade da causa» (artigos 6.º, n.º 1, e 11º do RCP e 529º do atual CPC).

O valor da ação deixou assim de ser o único elemento a considerar para efeitos de fixação da taxa de justiça, estabelecendo-se um «sistema misto, assente, por um lado, no valor da causa até determinado limite, e, por outro, na sua correção em casos de processos especialmente complexos» (Salvador da Costa, Regulamento das Custas Processuais Anotado e Comentado, Almedina, 2009, pág. 181), podendo o juíz determinar, a final, a aplicação de valores agravados de taxa de justiça às ações e recursos que revelem especial complexidade (cf. art. 6.º, n.º 5, do RCP), por «conterem articulados ou alegações prolixas, ou dizerem respeito a questões de elevada especialização jurídica, especificidade técnica ou que importem a análise combinada de questões jurídicas de âmbito muito diverso ou implicarem a audição de um elevado número de testemunhas, a análise de meios de prova extremamente complexos ou a realização de várias diligências de prova morosas (cf. o disposto no art. 530º, nº7, do atual CPC, sobre a densificação do conceito de «especial complexidade» para efeitos de condenação no pagamento de taxa de justiça) – (cfr. neste sentido Ac. S.T.J. de 12 de Dezembro de 2013, processo n.º 1319/12.3TVLSB.B.L1.S1, relatado por Lopes do Rego, Ac. da Rel. do Porto de 11/1/2016, proc n.º 464/09.7TBMDL-C-P1, relatado por Abílio Costa).

Por outro lado, por força do nº 7 do art. 6º do RCP – que preceitua que “nas causas de valor superior a 275.000,00€ o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento” - (aditado pela Lei n.º 7/2012, de 13 de Fevereiro), passou a consagrar-se a possibilidade (já antes prevista no art. 27º, nº3, do CCJ, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 324/2003) de o Juiz, se a especificidade da situação o justificar, dispensar, de forma fundamentada, o pagamento do remanescente, atendendo, designadamente, à complexidade da causa e à conduta processual das partes.

Ou seja: após as alterações introduzidas pela Lei nº 7/12, de 13 de Fevereiro, o RCP passou a permitir que, em ações de valor superior a 275.000,00€, o Juiz possa dispensar o pagamento do remanescente da taxa de justiça, desde que a especificidade da situação o justifique (além de poder também agravar a taxa dos processos que revelem especial complexidade faculdade que já era permitida antes das alterações introduzidas por saquela lei).

É o “desagravamento” que a recorrente, ao abrigo da norma do art. 6º, nº7, do RCP, veio reclamar.

Vejamos.

À ação foi fixado no saneador o valor de EUR 4.078.791.66

Por força do valor da ação, ao caso dos autos se aplica o último escalão de valor das ações (€250.000,00 a €275.000,00), no regime geral (tabela I-A), o que significa que se aplica uma taxa de justiça de valor fixo (16UC) que progressivamente se agrava, sem qualquer limite máximo, na proporção direta do aumento do valor da ação (em acréscimos de 3 UC, a fixar a final, por cada 25.000,00 ou fração).

Acontece que a presente ação, embora de valor muito elevado, se revelou de fácil tramitação e resolução. Isso mesmo parece reconhecer a Sr.ª Juiz que proferiu o saneador, ao escrever: “Consequentemente, em face da simplicidade da causa e dos fins a que se destinaria a audiência prévia, decido dispensá-la”.

 Com efeito:

Foram apresentados três articulados (P.I. com 324 artigos, contestação com 562 artigos, onde foram invocadas excepções, e réplica com 172 artigos) de fácil compreensão. Foi proferida decisão no saneador a julgar procedente a exceção dilatória de preterição de tribunal arbitral deduzida, absolvendo da instância as rés. Inconformada recorreu a A., tendo por acórdão desta Relação, datado de 20 de Abril de 2016, sido julgado improcedente e confirmada a decisão recorrida.

Sobre esta matéria importa salientar que – em acórdão muito recente – O TC (AC. 421/2013, de 15/7/2013, in www.tribunalconstitucional.pt) julgou inconstitucionais, por violação do direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º da Constituição, conjugado com o princípio da proporcionalidade, decorrente dos artigos 2.º e 18.º, n.º 2, segunda parte, da Constituição, as normas contidas nos artigos 6.º e 11.º, conjugadas com a tabela I-A anexa, do Regulamento das Custas Processuais, na redação introduzida pelo DL 52/2011, de 13 de abril, quando interpretadas no sentido de que o montante da taxa de justiça é definido em função do valor da ação sem qualquer limite máximo, não se permitindo ao tribunal que reduza o montante da taxa de justiça devida no caso concreto, tendo em conta, designadamente, a complexidade do processo e o caráter manifestamente desproporcional do montante exigido a esse título.

Nesse acórdão, o TC – após realçar que o regime normativo em confronto com a Constituição era o emergente do citado DL52/11 – começa por definir os contornos da situação concreta em que ocorrera o juízo de desaplicação normativa motivador do recurso de constitucionalidade, afirmando:

Com efeito, a ação que deu origem ao presente recurso, embora com o valor de €10.000.000,00, terminou ainda antes de decorrido o prazo da contestação, com a homologação da desistência do pedido apresentada pelo autor. Comportou, pois, para além dos atos de distribuição e citação, a prolação de uma sentença homologatória. Não obstante, depois de exauridos todos os mecanismos legais aplicáveis que, em razão desse nível concreto de tramitação, comportavam objetivamente uma diminuição do montante devido a título de taxa de justiça (cf. mecanismo de conversão da taxa de justiça paga em encargos consagrado no artigo 22.º do RCP, na redação em causa), apurou-se a final, com base no valor da ação, um montante em dívida, a título de taxa de justiça, de €118.360,80.

E a determinação de um tal montante, no descrito contexto processual, resultou claramente da aplicação, no caso concreto, de um critério normativo que, tendo por fonte legal as normas conjugadas dos artigos 6.º, n.º 1, e 11.º do RCP, e respetiva tabela I-A, na redação aplicável, abstrai da complexidade processual para o efeito de fixação do valor da taxa de justiça, como defende o tribunal recorrido. Mas o problema de inconstitucionalidade apenas decorre da ausência de um limite máximo ao regime de tributação crescente em função do valor da ação, pois que ignora a complexidade dos autos para o efeito de evitar ou corrigir valores de tributação desproporcionados às ações de elevado valor que assumam, como é manifestamente o caso, uma tramitação reduzida. E é precisamente a impossibilidade de redução de valores tributários fixados sem qualquer limite máximo, em função da menor complexidade do processado, que o tribunal recorrido implicitamente censurou quando se referiu à impossibilidade de recorrer à dispensa do pagamento remanescente que a Lei n.º 7/2012, de 13 de fevereiro, veio a consagrar”.

Após, o Tribunal Constitucional passou em revista a sua anterior jurisprudência sobre a questão da adequação e proporcionalidade dos valores de custas devidas, na óptica da sua compatibilização com a garantia fundamental do acesso aos tribunais, fazendo-o nos seguintes termos:

Ora, ainda que no contexto de vigência do CCJ, na sua redação originária, o Tribunal Constitucional, em jurisprudência consolidada, tem censurado normas jurídicas que, sob tal aspeto, são substancialmente idênticas à ora sindicada, à luz de premissas de ordem conceitual e axiológico-normativa claramente pertinentes à apreciação do presente recurso.

Assim, decidiu-se «julgar inconstitucional, por violação do direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º da Constituição, conjugado com o princípio da proporcionalidade, decorrente dos artigos 2.º e 18.º, n.º 2, segunda parte, da mesma Constituição, a norma que resulta dos artigos 13.º, n.º 1, e tabela anexa, 15.º, n.º 1, alínea m), e 18.º, n.º 2, todos do Código das Custas Judiciais, na versão de 1996, na

interpretação segundo a qual o montante da taxa de justiça devida em procedimentos cautelares e recursos neles interpostos, cujo valor excede €49.879,79, é definido em função do valor da ação sem qualquer limite máximo ao montante das custas, e na medida em que se não permite ao tribunal que limite o montante de taxa de justiça devido no caso concreto, tendo em conta, designadamente, a natureza e complexidade do processo e o caráter manifestamente desproporcionado do montante em questão» (Acórdãos nºs. 227/2007 e 116/2008, in www.tribunalconstitucional.pt).

Também se julgou inconstitucional, por violação do direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º da CRP, conjugado com o princípio da proibição de excesso, decorrente do artigo 2.º da CRP, «a norma que se extrai da conjugação do disposto nos artigos 13.º, n.º 1, 15.º, n.º 1, o), 18.º, n.º 2, e tabela anexa do CCJ, na redação do Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de novembro, na parte em que dela resulta que as taxas de justiça devidas por um processo, comportando um incidente de apoio judiciário e um recurso para o tribunal superior, ascendem ao montante global de €123.903,43, determinado exclusivamente em função do valor da ação, sem o estabelecimento de qualquer limite máximo, e na medida em que não se permite que o tribunal reduza o montante da taxa de justiça devida no caso concreto, tendo em conta, designadamente, a natureza e complexidade do processo e o caráter manifestamente desproporcionado desse montante» (Acórdão n.º 471/2007, in www.tribunalconstitucional.pt).

E reafirmou-se um tal juízo de inconstitucionalidade, apreciando esse mesmo conjunto normativo, «na parte em que dela resulta que as taxas de justiça devidas por um recurso de agravo de um despacho interlocutório, interposto por quem não é parte na causa, sendo a questão de manifesta simplicidade e tendo o recurso seguido uma tramitação linear, ascendem ao montante global de €15 204,39, determinado exclusivamente em função do valor da ação, sem o estabelecimento de qualquer limite máximo, e na medida em que não se permite que o tribunal reduza o montante da taxa de justiça devida no caso concreto, tendo em conta, designadamente, a natureza e complexidade do processo e o caráter manifestamente desproporcionado desse montante» (Acórdão n.º 266/2010, in www.tribunalconstitucional.pt).

 O mesmo sucedeu no Acórdão n.º 470/07, que julgou inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos artigos 18.º, n.º 2, e 20.º, n.º 1, da Constituição, «a norma do artigo 66.º, n.º 2, do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, interpretada por forma a permitir que as custas devidas pelo expropriado excedam de forma intolerável o montante da indemnização depositada, como flagrantemente ocorre em caso, como o presente, em que esse excesso é superior a €100.000,00».

Sendo também à luz das mesmas valorações constitucionais que não se censuraram soluções legais de tributação que, embora pautadas por exclusivos critérios de valor (da ação), não conduziram, nos concretos casos em apreciação, à fixação de uma taxa de justiça desproporcionada à complexidade do processo (Acórdãos nºs. 301/2009, 151/2009 e 534/2011).

No caso dos autos, estando plenamente assegurada – (perante a inquestionada aplicação do RCP, na versão actual, emergente da Lei 7/2012) – a possibilidade de graduação casuística e prudencial do montante da taxa de justiça remanescente e tendo presente no descrito contexto processual, afigura-se-nos claramente desproporcionado o montante da taxa de justiça remanescente, a pagar pela ora apelante, por aplicação do critério normativo previsto no art.º 6.º, nº1 e na respectiva Tabela I-A, impondo-se assim o uso do mecanismo previsto no n.º 7 do art.º 6º, com a função de adequar o custo da ação à menor complexidade do processado, pelo que se nos afigura como justo e adequado dispensar a recorrente do pagamento da taxa de justiça remanescente, na proporção de 60%.

4. Decisão

Nestes termos, concedendo provimento ao recurso, acorda-se em dispensar a apelante do pagamento da taxa de justiça remanescente, na proporção de 60% do que for devido.

Sem custas.

Coimbra, 27/4/2017

                          Des. Pires Robalo (relator)

                         Des. Sílvia Pires (adjunta)

                        Des. Maria Domingas (adjunta).