Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1747/14.0T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
PROTEÇÃO LEGAL ESPECIAL
DIVÓRCIO
SEPARAÇÃO DE FACTO
ATRIBUIÇÃO JUDICIAL
Data do Acordão: 06/20/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – LEIRIA – JC CÍVEL – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 1672º DO C. CIVIL; ARTº 4º DO DL Nº 7/2001, DE 11/05; ARTº 990º DO NCPC.
Sumário: I. A casa de morada de família é aquela onde de forma permanente, estável e duradoura, se encontra sediado o centro da vida familiar dos cônjuges (ou unidos de facto), conforme resulta do disposto no art.º 1672.º do CC, e mantém a sua relevância mesmo após a dissolução do casamento ou união de facto.

II. A casa de morada de família goza de proteção especial, revelada e suportada em diversos instrumentos legais destinados a preservar os interesses dos ex-cônjuges e filhos consigo conviventes, através da ponderação do destino da casa de morada de família e dos termos da sua atribuição, que poderá inclusivamente passar pela constituição judicial de um arrendamento a favor de um dos ex-cônjuges (ou elemento de união de facto que cessou, por força do disposto no art.º 4.º do DL 7/2001, de 11 de Maio, na redacção introduzida pela Lei 23/2010, de 30 de Agosto), independentemente da natureza de bem comum ou próprio do outro.

III. Na falta de acordo, o meio próprio para ser decidida a questão da atribuição da casa de morada de família e eventual compensação em favor do outro cônjuge quando se trate de bem comum ou próprio deste, é o processo especial previsto no art.º 990.º do CPC, sendo para tanto inadequado o regime da compropriedade, designadamente pela aplicação do art.º 1406.º do CC.

Decisão Texto Integral:




I. Relatório

C..., divorciado, natural de Angola e residente na Avenida ..., instaurou contra F..., divorciada, natural de França e residente na Rua ..., acção declarativa, a seguir a forma única do processo comum, pedindo a final:

a) seja declarado que se encontra privado desde Novembro de 2013 do uso do bem comum – apartamento – a que igualmente tem direito;

b) seja a ré condenada a pagar ao A. a quantia mensal de €250 desde Novembro de 2013, inclusivé, até ao momento em que aquela deixe o bem comum – apartamento – livre e desocupado, para arrendamento a terceiros.

Em fundamento alegou, em síntese, ter vivido em união de facto com a ré, relacionamento de que resultou o nascimento do filho menor do casal D... Em 23/04/2004, o demandante e a ré, sua então companheira, adquiriram em regime de compropriedade a fracção autónoma que identificou, a qual se encontra registralmente inscrita em favor de ambos.

Por sentença proferida nos autos de processo comum singular que correu termos pelo então 2.º juízo ..., foi o Autor condenado à proibição de contactos com a Ré durante dois anos, incluindo o afastamento da residência desta, fixada na fracção autónoma antes identificada. Em razão da referida decisão judicial encontra-se o demandante privado do uso da mesma, vivendo num sótão que lhe foi emprestado e enfrentando dificuldades económicas.

Por carta registada de 20/10/2014 o Autor notificou a Ré da sua pretensão de arrendar o apartamento a terceiros, não tendo recebido desta qualquer resposta. Devendo ter-se como assente que a fracção de que A. e R. são comproprietários tem valor locativo não inferior a €500,00 mensais, é esta devedora da quantia de €250,00 desde a data em que o demandante se viu privado do uso da mesma e até à sua efectiva desocupação nos termos peticionados.

Regularmente citada, a ré apresentou contestação, peça na qual alegou ter mantido com o autor união de facto que perdurou entre os anos de 2003 e 2011, data em que cessou por acordo, mantendo-se ambos a residir na fracção autónoma adquirida em 2004 em regime de compropriedade e que era a casa de morada de família. Só em 2013, e na sequência da decisão judicial pelo próprio demandante referida, é que este deixou de usar a fracção, uso que nunca foi impedido pela contestante, que nela continuou a residir como até então no exercício dos seus poderes de comproprietária, pelo que nenhuma compensação é àquele devida.

Mais alegou que desde Outubro de 2011 vem suportando sozinha as prestações relativas à amortização do empréstimo que por ambos foi contraído para pagamento do preço da fracção, sendo o réu devedor de metade do valor até agora despendido, à semelhança do que ocorre com as quotas de condomínio, que vem satisfazendo em exclusivo desde Setembro de 1010, num total de €630,00. Considerando que tais despesas deveriam ser igualmente suportadas pelo autor na proporção da sua quota, formulou a final pedido reconvencional pedindo a condenação do reconvindo no pagamento da quantia de €5 022,00 e juros vincendos, acrescida de metade dos valores que se forem vencendo após a entrada da contestação e pagas pela ré por conta do mútuo identificado e condomínio da fracção.

O autor respondeu à matéria do pedido reconvencional impugnando os montantes reclamados e reconhecendo ser devedor da quantia de 4.096,22€, concluiu no sentido do pedido reconvencional dever “ser julgado parcialmente provado nos termos acima vertidos”.

Admitido o pedido reconvencional e fixado valor à causa, foi agendada a realização de tentativa de conciliação, tendo a Mm.ª juíza feito consignar no despacho então proferido que “Atendendo ao que é peticionado nestes autos pelo Autor (que me parece consistir numa questão de Direito e tendo presente que, considerando a data do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, o afastamento do Autor da casa de que é proprietário conjuntamente com a Ré terminará em 13.01.2016, cfr. fls. 62), e a confissão de parte significativa do pedido reconvencional (a Ré pede € 5.022,50 e o Autor reconhece dever-lhe € 4.096,22), considero útil a convocação de uma tentativa de conciliação com vista à obtenção de uma solução consensual para o litígio”.

Tentada a conciliação das partes na diligência que para tanto teve lugar e na qual esteve presente o autor, acompanhado do Il. Patrono nomeado, tal como ficou a constar da acta respectiva, frustrou-se a mesma, tendo as partes mantido “as divergências apontadas nos seus doutos articulados”.

Da mesma acta ficou a constar ter a ré declarado que “considerando a confissão parcial vertida na douta réplica, aceita reduzir o pedido reconvencional à quantia de €4.096,22 acrescido de metade das prestações que se tiverem vencido desde março 2015 e as entretanto vincendas, seja a título de prestação de condomínio, seja a título de prestações bancárias”, redução do pedido a que o Ilustre Patrono do autor declarou nada ter a opor.

Foi de seguida proferido douto despacho saneador-sentença que decretou a improcedência da acção, com a consequente absolvição da ré dos pedidos formulados, e a parcial procedência da reconvenção, condenando o autor/reconvindo a pagar à ré/reconvinte a quantia de €4.096,22, acrescida dos juros de mora à taxa legal contados desde a notificação do pedido reconvencional, e metade das despesas resultantes do empréstimo bancário ou despesas de condomínio que a Ré, a partir de 09.03.2015, tenha suportado ou venha a suportar exclusivamente.

Inconformado com a decisão apelou o autor e, tendo desenvolvido nas alegações apresentadas as razões da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões:

...

Contra alegou a ré-reconvinte, defendendo a manutenção do julgado.

A Mm.ª juíza pronunciou-se no sentido da sentença não padecer de quaisquer vícios.

Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões suscitadas no recurso:
i. Das nulidades da sentença;
ii. Do erro de julgamento, nomeadamente por insuficiência da matéria de facto para a decisão e do direito do autor a uma compensação pela privação do uso.

i. das nulidades da sentença

O réu suscitou nas suas alegações a nulidade da sentença, no segmento em que julgou parcialmente procedente o pedido reconvencional e o condenou a pagar à reconvinte o montante de €4.096,22, acrescido dos juros de mora à taxa legal desde a notificação do pedido reconvencional, e metade das despesas resultantes do empréstimo bancário ou despesas de condomínio que a Ré, a partir de 09.03.2015, suporte ou tenha suportado exclusivamente, invocando que tal decisão se baseia “em acordo nulo obtido em sede de tentativa de conciliação”, a qual teve lugar na ausência do autor, que se encontrava “no átrio do tribunal no momento dessa discussão”, a tudo acrescendo que “o Patrono não possuía poderes especiais para transigir”, pelo que o acordo assim obtido “deveria ter sido oficiosamente declarado nulo em abono do disposto no art.º 291.º, n.ºs 1 e 3 do CPC”.

O recorrente invoca assim a nulidade do aludido segmento decisório por ter sido, em seu dizer, omitida a prática de actos prescritos por lei, omissão que, por ter influenciado a decisão, é produtora de nulidade nos termos dos art.ºs 195.º e 291.º do CPC.

Tal arguição assenta, contudo, num equívoco, conforme se procurará demonstrar.

Refira-se, antes de mais, que as nulidades da sentença respeitam ao conteúdo que a lei prescreve para essa peça processual, em estreita conexão com o art.º 608º do CPC, não devendo confundir-se com a nulidade decorrente da prática de um acto indevido ou omissão de um acto processualmente relevante, subsumível ao regime do art.º 195º do CPC.

Com efeito, “A nulidade do ato processual (…) distingue-se das nulidades específicas das sentenças e dos despachos (…), bem como do erro material (…) e do erro de julgamento (de facto e de direito). Enquanto estes casos respeitam a vícios de conteúdo, o vício gerador da nulidade do art.º 195º, (…), respeita à própria existência do ato ou às suas formalidades”[1], seguindo o regime de arguição fixado nos art.ºs 198.º e 149.º, n.º 1 do CPC.

Tendo presente tal distinção, claro se torna que o recorrente imputa à sentença um vício de substância, não integrando a previsão do art.º 615.º nem correspondendo a um vício de procedimento.

De todo o modo, importa precisar que a sentença proferida, no segmento impugnado, não homologou qualquer acordo, por inexistente, antes tendo procedido ao julgamento da causa tendo por base a factualidade apurada nos autos, designadamente o reconhecimento feito pelo reconvindo, no articulado de resposta, de que a ré/reconvinte procedera ao pagamento da quantia global de €8192,45, soma das prestações por si satisfeitas relativas à amortização do empréstimo por ambos contraído para aquisição da habitação e quotas de condomínio.

Cumpre a este propósito esclarecer que o réu, na contestação, para além do reconhecimento dos factos antes referidos, confessou-se igualmente devedor da quantia de €4096,22, correspondente a metade do montante que reconheceu ter sido despendido pela reconvinte. Ora, a confissão do ou de parte do pedido a que se referem os art.ºs 283.º e 284.º do CPC só poderá ser feita validamente por mandatário (ou patrono nomeado), desde que munido de poderes especiais para o efeito (cf. n.º 2 do art.º 45.º do CPC), o que não ocorria. Diversamente, as afirmações e confissões expressas de factos, feitas por mandatário nos articulados, vinculam a parte (salvo se forem rectificadas ou retiradas enquanto a parte contrária as não tiver aceitado especificadamente), conforme consagrado no art.º 46.º do mesmo diploma.

Analisada a decisão apelada, facilmente se conclui que a Mm.ª juíza considerou apenas e só o reconhecimento do facto, desfavorável ao reconvindo, de que a ré havia satisfeito sozinha o montante de €8192,45 referente a prestações para amortização do mútuo bancário e quotas de condomínio. O reconhecimento do aludido facto, com valor de confissão espontânea nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 352.º, 355.º e 356.º do CC (e que não se confunde com a confissão do pedido), alicerçou a condenação do reconvindo com os fundamentos de direito explanados na sentença recorrida. Deste modo, a decisão, no que respeita ao pedido reconvencional, não assentou em transacção ou confissão, sem embargo de ter sido tomada em consideração a redução do pedido operada pela reconvinte, redução que é livre, não dependendo da aceitação da contraparte, conforme resulta claro do disposto no citado art.º 283.º, n.º 1, 1.ª parte do CPC e a Mm.ª juíza fez notar na decisão proferida.

Estando portanto em causa a confissão de factos feita no articulado - porque só esta foi tida em conta - não assume qualquer relevância a ausência de poderes especiais do patrono nomeado (cf. a este propósito, acórdãos do STJ de 17/12/2003, processo 04 B 1849 e de 11/11/2010, processo 1902/06.6 TBVRL.P1.S1, acessíveis em www.dgsi.pt), sendo certo ainda que, não tendo sido suscitada a falsidade da acta, surge como perfeitamente inócua a alegação feita pelo recorrente de que se encontrava no átrio do Tribunal quando é dado como presente na diligência de tentativa de conciliação.

Improcedem, pelo exposto, e sem necessidade de acrescidos considerandos, os fundamentos de recurso explanados nas conclusões 1.ª e 10.ª a 12.ª

*

Não se ficou todavia por aqui o recorrente, que diz ser a mesma sentença nula à luz do disposto na al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC, por ter “deixado de se pronunciar sobre questões que devia apreciar e conhecido de questões de que não podia tomar conhecimento”. O apontado vício resultaria da circunstância da Mm.ª juíza ter deixado de se pronunciar sobre o pedido de condenação da ré no pagamento de rendas, que (só) agora defende serem devidas ao abrigo do disposto no art.º 1793.º do CC (dada a também só agora declarada intenção de que fosse constituída pelo Tribunal uma relação de arrendamento), tendo-se, ao invés, debruçado sobre uma indemnização alegadamente peticionada com fundamento na ilicitude do uso que aquela vinha fazendo da fracção, questão esta nunca suscitada pelo recorrente nos seus articulados, assim tendo a Mm.ª juíza “a quo” feito do articulado inicial deficiente interpretação, sendo certo que, a ter atentado no conteúdo da carta enviada pelo recorrente à ré, teria sido evitado o equívoco.

Cumpre antes de mais precisar que a nulidade prevista na convocada al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC sanciona o incumprimento da imposição constante do n.º 2 do art.º 608.º do mesmo diploma, disposição nos termos da qual “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”. “Questões”, para efeito desta disposição legal, são apenas as que se reconduzem aos pedidos deduzidos, às causas de pedir, às excepções invocadas e àquelas de que oficiosamente cumpra conhecer (não merecendo tal qualificação o que meramente são invocações, considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes e que o Tribunal, embora possa abordar para um melhor esclarecimento das partes, não está obrigado a apreciar).

No caso em apreço o autor alegou ser comproprietário, juntamente com a ré, com quem manteve uma união de facto, da fracção autónoma que identificou; desde 2013, na sequência de decisão judicial condenatória que ditou o seu afastamento da ré e daquela fracção, onde também residia, passou esta a usufruir do imóvel em regime de exclusividade; pretende arrendar a fracção a terceiro, à qual atribui valor locativo não inferior a €500,00 mensais. Tendo alegado tais factos terminou pedindo i. fosse declarado que se encontra privado desde Novembro de 2013 do uso do bem comum – apartamento – a que igualmente tem direito; ii. fosse a ré condenada a pagar ao A. a quantia mensal de €250 desde Novembro de 2013, inclusive, até ao momento em que deixe o bem comum livre e desocupado, para arrendamento a terceiros.

Conforme é sabido, a petição deve apresentar-se sob a forma de um silogismo, no qual interceda um nexo lógico entre as premissas e a conclusão, sendo a premissa maior constituída pelas razões de direito invocadas, a premissa menor preenchida pelas razões de facto, surgindo o pedido como a conclusão[2]. Deve assim o autor, consoante prescreve a al. d) do art.º 552.º do CPC, a par da exposição dos factos que constituem a causa de pedir, expor igualmente as razões de direito que servem de fundamento à acção. Todavia, considerando que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (vide n.º 3 do art.º 5.º do mesmo diploma), a omissão da invocação das normas jurídicas nas quais o autor ancora a sua pretensão não inquinará, em princípio, a petição inicial, sem embargo de se admitir que, em casos extremos, a ausência absoluta da invocação das razões de direito poderá prejudicar a inteligibilidade desta peça.

No caso em apreço, vistos os factos constitutivos da causa de pedir alegados pelo autor, designadamente a invocada privação do uso da coisa comum, e o pedido formulado, face à completa ausência de invocação das normas jurídicas ou razões de direito que suportavam a pretensão formulada, ponderou a Mm.ª juíza “a quo” o seu eventual acolhimento à luz do instituto da responsabilidade civil por acto ilícito, concluindo que não se verificavam os respectivos pressupostos. Mas não deixou de acrescentar inexistir fundamento legal que imponha à ré o pagamento ao autor de qualquer quantia pelo uso exclusivo de um bem pertencente aos dois, atento o preceituado no art.º 1406.º, n.º 1 do CC, que expressamente invocou, tal como considerou inexistir fundamento para que desocupasse o imóvel tendo em vista o seu arrendamento a terceiro, conforme pretendido pelo apelante, considerando naturalmente a factualidade por ele alegada. E não se vê que outra pudesse ser a interpretação dos factos, comungada aliás pela ré, que assentou a sua defesa no afastamento de eventual ilicitude da ocupação exclusiva que vem fazendo da fracção, não procedendo a invocação, feita em sede de recurso pelo apelante, no sentido de que afinal aquilo que pretendia era a constituição pelo tribunal de uma relação arrendatícia, conforme prevê o art.º 1793.º do CC (aplicável às uniões de facto por força do disposto no art.º 4.º do DL 7/2001, de 11 de Maio, na redacção introduzida pela Lei 23/2010, de 30 de Agosto), não só porque nada articulou nesse sentido como o pedido formulado é absolutamente contraditório com tal intenção. Vejamos:

O art.º 3.º do CPC consagra o princípio do pedido, estabelecendo que o Tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes (cf. n.º 1), expressando o art.º 5.º do mesmo diploma que às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas, corolário do princípio do dispositivo vigente no nosso ordenamento processual civil.

No caso em apreço, tendo alegado quanto se deixou acima discriminado, concluiu o autor pela formulação clara da sua pretensão: condenação da ré no pagamento de uma determinada quantia pelo uso exclusivo da coisa comum desde 2013, data em que o demandante deixara de residir na fracção, até à desocupação tendo em vista o seu arrendamento a terceiro, não se vendo modo de interpretar o assim peticionado como pedido de constituição de uma relação de arrendamento tendo a ré como arrendatária, com a consequente obrigação de pagamento de renda. Com efeito, a estabelecer-se por via da decisão a proferir nos autos tal relação contratual, nunca a mesma poderia justificar o pagamento pela ré das quantias peticionadas e relativas a período anterior, tal como não se justificaria que desocupasse a fracção tendo em vista o seu arrendamento a terceiro.

Resulta do que vem de se dizer que o autor deu à acção a conformação que entendeu e formulou a pretensão que quis, tendo a Mm.ª juíza interpretado o pedido, como deveria, tendo em atenção a causa de pedir e a sua função individualizadora daquele, donde ser absolutamente irrelevante quanto vem agora em sede de recurso alegado pelo apelante, que se traduz na invocação de uma outra causa de pedir e formulação de diversa pretensão, que não poderão naturalmente ser atendidas (cf. art.º 265.º do CPC), ao que acresce a impropriedade do meio processual (cf. art.º 990.º do mesmo diploma).

Decorre do que se deixou exposto que nem a sentença conheceu de questão de que não poderia conhecer, uma vez que não exorbitou dos factos constitutivos da causa de pedir invocada pelo recorrente, sendo-lhe lícito fazer deles o enquadramento jurídico que tivesse por correcto, nem tão pouco omitiu pronúncia sobre questão que a parte tivesse suscitado, uma vez que, conforme se crê ter demonstrado, apenas em sede de recurso o autor invocou pretender a constituição de uma relação arrendatícia. A sentença não padece, pois, do vício previsto na al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC.

O apelante invocou ainda como causa da nulidade da decisão a violação do princípio do contraditório, uma vez que, em seu dizer, a sentença fez dos factos um diverso enquadramento jurídico sem ter concedido previamente às partes o direito de se pronunciarem, o que consubstanciaria uma decisão-surpresa.

Não se duvida que, não obstante a concedida liberdade de aplicação das regras de direito e o conhecimento oficioso de determinadas questões, a lei impõe ao juiz que ouça previamente as partes quando pretenda convolar a qualificação jurídica para instituto jurídico por elas não considerado (cf. art.º 3.º, n.º 3 do CPC). Todavia, atendendo à necessidade de conciliar o cumprimento do contraditório com a celeridade que também se impõe como garantia de um processo justo, deverá entender-se que não é qualquer desvio em relação ao alegado que impõe a necessidade de fazer actuar aquele princípio, antes pressupondo que a decisão a proferir ou a respectiva fundamentação se afastem, de forma relevante, do quadro legal dentro do qual as partes delinearam a sua estratégia e configuraram as várias soluções possíveis do litígio. Neste mesmo sentido, entendeu o STJ em aresto de 27/09/2011, proferido no processo 2005/03.0TVLSB.L1.S1 advogar “…a tese de poder vingar a arguição de nulidade de uma decisão quando, e se, a solução opcionada pelo tribunal se desvincule totalmente do alegado pelas partes, na sua substancialidade ou na sua adjectividade. Vale por dizer que as partes terão direito a insurgir-se contra uma decisão se a via nela seguida não se ativer, com um mínimo de arrimo, ao que foi alegado e sufragado pelas partes durante o curso do processo. Assim, se as partes não tiveram hipótese de aportar e debater factos (novos e condizentes com a realidade jurídica prefigurada pelo tribunal antes da decisão “solipsisticamente adoptata”) que poderiam trazer alguma luz sobre a “terza via”, oficiosamente assumida pelo tribunal, então as partes terão o direito de tentar refazer a actividade do tribunal de modo a encarrilar e adequar a estrutura do processo ao resultado decisório (…) se o juiz envereda por uma “terza via” e as partes não alegaram factos ou tomaram posição concreta sobre a solução “solitária”, a decisão pode tornar-se injusta e acarretar um juízo de parcialidade que afecta a estrutura regente de um processo justo e despejado de desvios processuais ou substantivos que desvirtuem a decisão ou o resultado final que se espera venha a ser assumido pelo tribunal”.

Nestes justos termos entendida a necessidade de fazer actuar o princípio do contraditório, logo se conclui que, no caso que concretamente nos ocupa, face à factualidade alegada pelo recorrente, não poderá este afirmar-se surpreendido com o enquadramento jurídico que na sentença dela foi feito, nada impondo a prévia notificação das partes para que sobre ele se pronunciassem.

Acresce que, ainda a entender-se diversamente, estaríamos, em nosso entender, perante uma irregularidade processual, integrante da previsão do art.º 195.º, e não perante uma nulidade da sentença, cujas causas são apenas as taxativamente previstas no n.º 1 do art.º 615.º. A inobservância do contraditório, consubstanciando omissão de acto prescrito na lei, determinará apenas uma irregularidade processual, submetida ao regime de arguição do art.º 199.º, sendo o prazo de arguição o previsto no art.º 149.º, n.º 1. E, conforme resulta do n.º 3 do citado art.º 199.º, a arguição da nulidade apenas poderá ser efectuada perante o tribunal superior se o processo for expedido em recurso antes de findar o prazo para a arguição, o que não se verificou no caso vertente, pelo que sempre seria intempestiva a sua arguição[3].

Improcede, pelo exposto, a invocada nulidade.

*

O recorrente insurgiu-se finalmente contra o facto de ter sido proferida decisão na sequência de frustrada tentativa de conciliação, sem que tivesse sido “produzida qualquer prova ou discutida a matéria de facto nos termos em que legalmente tal deveria ter ocorrido”.

O julgamento no saneador, conforme resulta do disposto no art.º 595.º, n.º 1, al. b) do CPC, impõe-se sempre que, sem necessidade de mais provas, o estado do processo o permitir.

No caso em apreço, face à incontrovérsia sobre a factualidade tida por relevante - sendo certo que parte da matéria agora indicada pelo apelante se encontra incluída na factualidade assente e o conteúdo dos documentos não impugnados poderá ser atendido por este tribunal de recurso nos termos dos art.ºs 607.º, n.º 4 e 666.º, n.º 2 do CPC- proferiu a Mm.ª juíza antecipada decisão de mérito. Eventual insuficiência da matéria de facto para a decisão, considerando as várias soluções plausíveis de direito, conduzindo a eventual erro de julgamento, dará lugar à anulação da decisão nos termos e para os efeitos previstos na al. c) do n.º 2 do art.º 662.º do CPC, pelo que a questão será apreciada aquando do conhecimento do mérito.

II. Fundamentação

De facto

Dos autos resulta assente a seguinte factualidade:

1. Autor e Ré viveram como marido e mulher desde 2003 e pelo menos até ao ano de 2011 (acordo).

2. Em 23.04.2004, Autor e Ré declararam adquirir, através de escritura de compra e venda e empréstimo com hipoteca celebrada no Primeiro Cartório Notarial de ..., a fracção autónoma designada pela letra “A”, destinada a habitação, correspondente ..., aqui se encontrando inscrita a favor de ambos (fls. 7-16).

3. O casal e ainda, pelo menos, o filho menor de ambos fixaram residência na fracção identificada em 2. (acordo).

4. Tendo cessado o relacionamento, autor e ré mantiveram-se a residir na mesma fracção até Novembro de 2013 (acordo).

5. Por sentença de 14.10.2013, transitada em julgado em 13.01.2014, proferida nos Autos de Processo Comum ..., foi o Autor condenado pela prática de um crime de violência doméstica na pessoa da Ré, tendo sido imposta a medida de proibição de contactos com a Ré durante dois anos, incluindo o afastamento da residência desta, sita na Rua ...

6. Por força da decisão referida em 5. o autor deixou de habitar a referida casa em 13.11.2013 (acordo).

7. Com data de 20 de Outubro de 2014 o autor enviou à ré, que a recebeu a 22 desse mesmo mês, carta com o seguinte conteúdo “Excelentíssima Sra. F...:

Venho por este meio informar Vossa excelência de que pretendo colocar a habitação que Vossa Excelência habita (que é co-proprietária comigo), a arrendar. Como sabe, sou legalmente dono de metade e preciso de sobreviver pois só sobrevivo à custa duma pensão por invalidez parcial no valor de 342 euros por mês, a essa subtraindo ainda uma pensão de alimentos de 75 euros que estou a dar. É assim completamente impossível auto sustentar- me.

Nesse sentido, e se eu não posso habitar o dito imóvel sito em ... (até Novembro de 2015), e precisando de dinheiro, uma vez que esta situação se vai arrastando (independentemente de Vossa Excelência estar a pagar agora sozinha o Crédito Habitação vigente relativo ao empréstimo bancário comum para o pagamento do dito imóvel; a quantia irrisória de 275 euros por mês), encontra-se ao lado um apartamento a arrendar, com iguais características, pelo valor de 500 euros mensais (valor referência que será levado em consideração para um pedido de renda). Vossa Excelência terá o direito de receber metade do valor de renda que for conseguido tendo que sair de casa para que isso venha a ocorrer. Tal como Vossa Excelência se encontra a pagar o empréstimo bancário sozinha desde meados de 2012, também eu o paguei sozinho desde meados de 2004 até meados de 2011, e depois a minha metade correspondente até meados de 2012 (data atrás referida). Essa é uma responsabilidade comum que nada tem a ver com um pedido de Renda.

Além desta proposta há uma alternativa que será a preferível para todos dado a existência de menores, entre os quais o meu filho, que seria eu receber directamente de Vossa Excelência uma Renda que deixo à consideração, estando aberto a propostas que sejam razoáveis.

Para tal dou mais 8 dias de prazo para resposta. Sem outro assunto.” (docs. n.ºs 4 e 5 juntos com a p.i., não impugnados).

7. A Ré vem suportando, de forma exclusiva, o pagamento das despesas relativas ao empréstimo bancário contraído para a aquisição da referida casa e o pagamento das respectivas despesas de condomínio, tendo despendido a este título até 9 de Março de 1995 o montante global de €8192,45 (acordo).

De Direito

Do direito do autor a uma compensação pela privação do uso

O autor, comproprietário da fracção autónoma identificada em 2., adquirida na vigência de união de facto que manteve com a ré, e que era a casa de morada de família, tendo deixado de nela residir em 13/11/2013 por força de decisão judicial condenatória que decretou o seu afastamento, dizendo-se privado do seu uso, pretende que a ex-companheira e ora demandada seja condenada a pagar-lhe a quantia de €250,00 mensais, correspondente a metade do valor locatício que atribui à fracção, desde a data em que a usufrui em exclusivo e até que a desocupe tendo em vista o arrendamento da mesma a terceiro.

Nos termos do art.º 3.º, al. a) da Lei n.º 7/2011, as pessoas que vivam em união de facto nas condições ali previstas têm direito a protecção da casa de morada da família e, uma vez dissolvida a união de facto, é aplicável o disposto nos artigos 1105.º e 1793.º do Código Civil[4] (ex vi do art.º 4.º daquele diploma). Decorre do regime estabelecido que, sendo a casa de morada da família pertença, em compropriedade, de ambos os membros da união de facto ou bem próprio de um, podem livremente acordar nessa atribuição a um deles e as respectivas condições, sendo-lhes ainda lícito recorrer ao Tribunal em caso de desacordo, designadamente para os efeitos previstos nas acima citadas disposições legais.

Todavia, como se deixou já referido, o autor não invocou a celebração com a ré de qualquer acordo de atribuição daquela que foi a casa de morada dos unidos de facto nos termos do qual lhe fosse devida uma compensação pelo uso exclusivo que da fracção vem sendo feito pela ex-companheira, nem tão pouco veio requerer que tal regulação fosse feita em juízo nos termos previstos no art.º 990.º do CPC, antes estribando a sua pretensão numa invocada privação do uso da fracção, que passou desde Novembro de 2013 a ser ocupada em exclusivo pela ré -e também, pelo menos, pelo filho menor do casal-, pretendendo ser ressarcido do montante correspondente ao atribuído valor locativo, na proporção da sua quota e enquanto perdurar tal exclusiva ocupação. Tal alegação remete-nos, tal como foi considerado na sentença apelada, para o regime da responsabilidade civil, aqui relevando as normas atinentes ao uso de coisa comum, designadamente o art.º 1406.º, n.º 1 do CC.

A. e Ré são, não há dúvida, comproprietários da fracção, presumindo-se iguais as suas quotas (cf. art.º 1403.º, n.º 2, “in fine”).

Nos termos do artigo 1405.º n.º1, os comproprietários participam separadamente nas vantagens e encargos da coisa, na proporção das suas quotas, e conforme o 1406.º, n.º 1, “na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contanto que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito” (é nosso o destaque).

A faculdade do uso da coisa por cada consorte consentida pela lei refere-se à coisa, na sua totalidade, independentemente da dimensão quantitativa que a quota traduz[5]. Na falta de acordo, e conforme fez notar o STJ, “vigora o princípio do uso integral da coisa, sujeito, porém, a duas limitações: a primeira imposta pelo fim a que a coisa se destina, o comproprietário tem de subordinar o uso da coisa ao fim concreto (que pode resultar da lei, do título ou do acordo das partes) a que ela se destina; a segunda, resultante da concorrência do direito dos demais consortes, a impor que faculte aos outros consortes a possibilidade de igualmente se servirem dela, mas “em relação às utilizações da coisa que os outros comproprietários possam fazer ou tenham necessidade de fazer[6].
No caso em apreço, emerge da factualidade apurada que até Novembro de 2013, a despeito da ruptura do relacionamento, autor e ré terão acordado, ainda que tacitamente, no uso comum e simultâneo da fracção. A partir de então, e na sequência da decisão judicial identificada em 5., o primeiro deixou de residir no imóvel, nele permanecendo a demandada com, pelo menos, o filho menor do casal.
Não existindo nos autos controvérsia quanto à correcção do uso que pela ré vem sendo dado à fracção comum, a ilicitude da ocupação decorreria do facto -cuja prova era inequivocamente ónus do autor, segundo o critério legal de repartição do respectivo ónus consagrado no art.º 342.º do CC- de que se encontrava privado, por força da mesma, de uma concreta utilização por si querida. Com efeito, ainda que não seja possível o uso comum e simultâneo da coisa por todos os consortes, “os mesmos não estão dele privados porque não o pretendem em concreto exercer e enquanto tal se verificar. Caso o pretendam, podem fazer cessar de imediato a utilização exclusiva, pela declaração dessa pretensão; quando a mesma não seja acatada, cessa a licitude da utilização, na medida em que passa a ocorrer privação do gozo pelo consorte em violação do disposto no artigo 1406.º, n.º 1, do CC”[7].
A este respeito argumentou a ré, com razão, que o afastamento da fracção radica em conduta que ao próprio autor é imputável, a quem nunca impediu de nela residir, o que nem sequer foi pelo demandante alegado. É verdade que assim é. Todavia, atendendo às circunstâncias que motivaram a condenação do autor, parece seguro que tal uso comum e simultâneo da fracção para o fim a que se destina, e que é a habitação, resultou inviabilizado a partir de Novembro de 2013, sendo em todo o caso inexigível que após a ruptura do relacionamento um casal se mantenha a viver na mesma casa. Assume assim pertinência quanto a propósito referem os Prof.s Pires de Lima e Antunes Varela, quando mencionam as “dificuldades práticas e teóricas quanto ao uso directo promíscuo de prédios urbanos que não se prestem a divisão”, mais referindo que “o único recurso a adoptar, na falta de acordo, será o do gozo indirecto, que consistirá em regra na locação da coisa, com a consequente repartição dos proventos dela entre os consortes”[8].

No assinalado contexto seria de atribuir relevância à missiva enviada pelo autor à ré em Outubro de 2014, na qual deu a conhecer a sua intenção de arrendar a fracção a terceiro, dada a sua situação económica e habitacional, opondo-se ao seu uso exclusivo e gracioso pela ré, tanto mais que se manteve naturalmente a sua obrigação de pagamento dos encargos relativos à coisa comum, tal como reconheceu e nos termos da sentença impugnada foi condenado a satisfazer. Todavia, é necessário ter presente que está em causa a casa de morada de família, figura que goza de protecção especial, revelada e suportada em diversos instrumentos legais.

A casa de morada de família é aquela onde de forma permanente, estável e duradoura, se encontra sediado o centro da vida familiar dos cônjuges (ou unidos de facto), conforme resulta do disposto no art.º 1672.º do CC, e mantém a sua relevância mesmo após a dissolução do casamento ou união de facto, de modo que “embora perdendo, naturalmente, a vocação de lugar de ‘’habitação da família’’, jamais perderá todo o lastro que sustentou o particular regime a que se encontrava subordinado, por isso que na lei se preservam os interesses dos ex-cônjuges e dos filhos, agora através da ponderação do destino da casa de morada de família e dos termos da sua atribuição a um dos cônjuges”[9].

Conforme se considerou no aresto do STJ de 17/1/2013[10], que versou sobre um caso de permanência do ex-cônjuge e 3 filhos do casal na casa de morada de família, bem comum, na sequência de divórcio, em termos que, todavia, se nos afiguram passíveis de transpor para o caso em apreço, o regime jurídico específico da casa de morada de família (de natureza pessoal) não há-se ser ultrapassado pelas regras da compropriedade, para mais existindo, como é o caso, um filho menor, cujos interesses urge igualmente tutelar. E tanto assim é que, independentemente da questão da propriedade do bem, a decidir em acção de divisão de coisa comum, a destinação da casa de morada de família, “de acordo com a concreta avaliação das circunstâncias consideradas relevantes (…) pode passar pela constituição de um contrato de arrendamento por via de sentença. Nesta eventualidade, de acordo com a concreta situação, o contrato de arrendamento sobrepor-se-á ao que porventura anteriormente tenha sido celebrado com terceiro ou constituirá uma imposição potestativa quando a casa de morada de família esteja instalada em bem imóvel que integre o acervo comum de ambos os cônjuges, que constitua bem exclusivo de algum deles ou que esteja, como no caso, em regime de compropriedade”.

A este propósito importa ainda sublinhar que a relação arrendatícia assim constituída terá o conteúdo que o Tribunal fixar na sentença a proferir no âmbito de processo para tanto instaurado nos termos do art.º 990.º do CPC, designadamente no que concerne à fixação do montante da renda que deve ser paga por aquele que ficar na posição de arrendatário, ainda que, como é o caso, se trate de bem comum -ou mesmo que, na sequência da divisão, passe a ser bem próprio do outro- surgindo deste modo sem apoio legal a pretensão do apelante no sentido de lhe ser devida metade do putativo valor locativo do imóvel com fundamento no regime da compropriedade.

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No que se refere ao pedido reconvencional, julgado parcialmente procedente, parece evidente, face ao que dispõe o art.º 1405.º, n.º 1, 2.ª parte, convocado na sentença apelada, que tendo a reconvinte suportado integralmente despesas com a coisa comum que seriam encargo dos dois, tem direito ao reembolso de metade, conforme foi decidido[11].

Improcedem, pelo exposto, e na íntegra os fundamentos do recurso.

III Decisão

Acordam os juízes da 3.ª secção cível deste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso, confirmando a sentença apelada.

Custas pelo recorrente, sem embargo da isenção que lhe foi oportunamente concedida.

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Sumário:

I. A casa de morada de família é aquela onde de forma permanente, estável e duradoura, se encontra sediado o centro da vida familiar dos cônjuges (ou unidos de facto), conforme resulta do disposto no art.º 1672.º do CC, e mantém a sua relevância mesmo após a dissolução do casamento ou união de facto.

II. A casa de morada de família goza de protecção especial, revelada e suportada em diversos instrumentos legais destinados a preservar os interesses dos ex-cônjuges e filhos consigo conviventes, através da ponderação do destino da casa de morada de família e dos termos da sua atribuição, que poderá inclusivamente passar pela constituição judicial de um arrendamento a favor de um dos ex-cônjuges (ou elemento de união de facto que cessou, por força do disposto no art.º 4.º do DL 7/2001, de 11 de Maio, na redacção introduzida pela Lei 23/2010, de 30 de Agosto), independentemente da natureza de bem comum ou próprio do outro.

III. Na falta de acordo, o meio próprio para ser decidida a questão da atribuição da casa de morada de família e eventual compensação em favor do outro cônjuge quando se trate de bem comum ou próprio deste, é o processo especial previsto no art.º 990.º do CPC, sendo para tanto inadequado o regime da compropriedade, designadamente pela aplicação do art.º 1406.º do CC.


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[1] Cf Prof. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1º, 3ª edição, 2014, Coimbra Editora, pág. 384, anotação 7 ao art.º 195º.
[2] A. Geraldes, in “Temas da reforma do processo Civil”, vol. I, 2.ª Ed., pág. 129.

[3] Não se desconhece que a solução adoptada na decisão não tem merecido o acolhimento unânime da jurisprudência, não faltando quem admita o conhecimento dessa questão em sede de recurso, por se considerar que a nulidade em causa é incorporada pela própria sentença. Todavia, e como se observou no aresto desta mesma Relação proferido no processo 52/2000.C1, relatado pela Ex.mª Sr.ª Des. Catarina Gonçalves, no qual a ora relatora interveio como adjunta, não parece que assim seja. “É certo que como refere Manuel de Andrade[3], “…se a nulidade está coberta por uma decisão judicial (despacho), que ordenou, autorizou ou sancionou o respectivo acto ou omissão em tal caso o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente, a deduzir (interpor) e tramitar como qualquer outro do mesmo tipo. É a doutrina tradicional, condensada na máxima: dos despachos recorre-se; contra as nulidades reclama-se”. E não importa, para o efeito, que o despacho não se tenha pronunciado expressamente sobre essa questão, já que, como refere Alberto dos Reis[3], “…além do julgamento expresso, há o julgamento implícito…; a decisão não vale somente pela vontade declarada que nela se contém, vale também pelos pressupostos tacitamente resolvidos”.

Mas, para que se possa afirmar que a nulidade está coberta, ainda que implicitamente, por uma decisão judicial, é necessário que ela tenha sido ordenada, autorizada ou sancionada pela decisão, de tal forma que esta surja afectada, no seu conteúdo, por erro de julgamento. Tal acontece quando é a própria decisão judicial que admite o acto que a lei não permite ou quando a própria decisão ordena ou autoriza a omissão de acto imposto por lei e, de um modo geral, quando se pode afirmar que aquela decisão, por ter ordenado, autorizado ou sancionado aquele acto ou omissão, está afectada, no seu conteúdo, por um erro de julgamento, ou seja, está errada e em desconformidade com a lei.

Com efeito, além da apreciação das nulidades que enfermam a própria decisão e que como tal estão enunciadas no art. 668º do CPC, os recursos visam apenas, por regra, a reapreciação da decisão e a correcção de eventuais erros de julgamento, de facto ou de direito, que nela tenham sido cometidos; não cabe na função dos recursos a apreciação de eventuais irregularidades que tenham sido praticadas no processo e que, embora inquinem os actos processuais posteriores e afectem o valor formal da decisão, não têm qualquer expressão no conteúdo da decisão sobre a qual incide o recurso de molde a que se possa afirmar que ela está errada por estar em desconformidade com a lei.

Ora, a violação do princípio do contraditório – por ter sido proferida decisão sem que fosse dada às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre determinadas questões que nela são apreciadas – não interfere directamente com o conteúdo da decisão; não se poderá afirmar, por essa razão, que a decisão está errada ou enferma de erro de julgamento (sendo que a decisão poderia ser exactamente a mesma caso tivesse sido observado aquele princípio). A sentença ficará afectada no seu valor formal – como decorrência da violação daquele princípio – e sujeita, por isso, a anulação, mas não fica, por essa razão, afectada no seu conteúdo por erro de julgamento.

Parece-nos, portanto, que a nulidade em causa teria que ser arguida em 1ª instância e dentro do prazo de dez dias, em conformidade com o disposto no art. 205º do CPC, apenas podendo ser arguida, em sede de recurso, se o prazo para a sua arguição terminasse depois de o processo ser expedido em recurso ou, eventualmente, se não fosse exigível à parte o conhecimento da nulidade em momento anterior àquele em que vem apresentar as alegações de recurso”.
[4] Diploma legal a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.
[5] Cf., neste sentido, com detalhe, acórdãos de TRL de 7244/04-4 TBCSC-L1 e de 12/4/2016, processo n.º 1690/12.1 TBMTA.L1.1, e ainda Ac. STJ de 14/1/2014, processo 7244/04.4 TBCSC.L1.S1, todos acessíveis em www.dgsi.pt. No mesmo sentido, Pires de Lima e A. Varela, CC anotado, vol. III., comentário ao artigo 1406.º.
[6] Identificado ac. STJ de 14/1/2014, processo 7244/04.4 TBCSC.L1.S1.
[7] Do acórdão do TRL de 12/4/2016, processo 1690/12.1 TBMTA.L1.S1 citado
[8] Cf. CC Anotado, vol III, comentário ao art.º 1406.º.
[9] Do parecer do Conselho Técnico - Secção do Registo Predial, proferido no processo RP 297/2007 DSJ-CT, citado no Parecer do C.C. 101/2011 SJC-CT, acessível em http://www.irn.mj.pt/sections/irn/doutrina/pareceres/civil/2011/p-c-c-101-2011-sjc-ct/downloadFile/file/CC101-2011.pdf?nocache=1338282092.43
[10] Proferido no processo 2324/07.7TBVCD.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[11] Cf., neste sentido, também quanto às contribuições vincendas, versando sore caso similar, o acórdão do TRL de 24/2/2015, proferido no processo 548/08.0TBCSC.L1-7, acessível em www.dgsi.pt