Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2582/10.0TBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
NULIDADE PROCESSUAL
Data do Acordão: 11/05/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA FIGUEIRA DA FOZ – 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 3º, Nº 3; 201º E 205º DO CPC.
Sumário: I – A questão da ineptidão da petição inicial, por incompatibilidade substancial de pedidos, não tendo sido suscitada, ainda que imperfeitamente, pela contestante, não deve ser conhecida pelo tribunal sem que se dê oportunidade ao Autor de se pronunciar sobre tal matéria, pois não se vislumbra que este procedimento seja de considerar como manifestamente desnecessário.

II - Tendo essa questão sido conhecida oficiosamente no saneador, sem precedência da audição do autor, há omissão de um acto que a lei impõe (artº 3º, nº 3 do CPC).

III - À Relação não compete decidir em 1ª instância de nulidade processual cometida no Tribunal “a quo”, excepto (para além do caso previsto no art.º 205º, nº 3 do CPC) se se tratar de nulidade de conhecimento oficioso que não deva considerar-se sanada.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - A) - 1) – N…, S.A., com sede na Rua …, intentou, em 02/11/2010, no Tribunal Judicial da Comarca da Figueira da Foz, contra “A…, LDA.” e M…, acção declarativa, de condenação, sob a forma ordinária, pedindo a condenação solidária das RR a pagarem-lhe a importância global de € 43.444,72 [€ 37.901,73 de capital), acrescida dos juros de mora vencidos desde 25.01.2009 e até 27.10.2010 (€ 5.542,99)] e dos juros de mora vincendos, respeitando, do capital peticionado:

- € 16.720,00, a indemnização contratualmente estabelecida pelo não cumprimento da obrigação da aquisição de café nos termos acordados (cláusula segunda nº 2 e cláusula quarta nº 3);

- € 11.400,23, (valor este que depois foi rectificado para € 10.600,21), a título de proporcional de comparticipação publicitária a restituir em face da resolução do contrato (cláusula quarta, nºs 1 e 2);

- € 6.297,00, em face da resolução do contrato, a título de valor do equipamento entregue em comodato à Ré A… (cláusula quinta, nºs 1, 2 e 6);

- € 3.483,99, a título de produtos fornecidos à Ré A… e cujo valor esta não liquidou.

Sustentou, em síntese, que as quantias a que ascende o valor global peticionado, emergem de obrigações que a 1ª Ré contraiu em contrato que com ela, Autora, outorgou, advindo a responsabilidade da 2ª Ré da circunstância de, nesse mesmo contrato (em que figurou como 3ª contratante), se ter assumido como fiadora e principal pagadora solidária dos montantes em dívida pela 1ª Ré.

Afirmou que, em face das violações contratuais da 1ª Ré, procedeu à resolução do contrato e exigiu os valores a que, em face dessa violação, tinha direito, segundo os termos acordados nas cláusulas respectivas, nada lhe tendo sido pago por qualquer das RR.

2) - Apenas a Ré M… contestou, afirmando, em síntese:

- Sendo ela sócia da “A…, LDA.”, nunca exerceu, de facto, qualquer cargo de gerente, administração ou direcção desta firma;

- Foi apenas por ter sido “coagida moralmente” pelo outro sócio desta firma, o então seu marido, R…, que assinou o contrato constante dos autos, impondo-se por força do disposto no artigo 256º do C. Civil, a anulação da sua declaração negocial - fiança - inserta em tal contrato;

- Em rigor, nunca soube o que assinou, nem quais as obrigações que assumia ao apor a sua assinatura nos diversos documentos que lhe eram apresentados pelo então marido, o que também ocorreu, em particular, com o presente contrato;

- Só com a sua citação nos presentes Autos e consequente entrega da PI e respectivos documentos, tomou conhecimento do que assinou e das responsabilidades inerentes;

- Não serem exactos os valores referidos pela Autora como devidos;

- A cláusula penal, resultante do constante das cláusulas 4ª, 3º do contrato junto à PI e invocada pela Autora para peticionar a quantia de 16.720,00 €, mostra-se manifestamente excessiva, devendo ser reduzida, nos termos do artº 812º, do CC.

A terminar concluiu como ora se transcreve:

«…deve a declaração negocial da ora Ré M…, a fiança prestada, ser anulada nos termos do disposto no artigo 256º do C. Civil e,

consequentemente, ser absolvida do pedido;

- caso assim se não entenda,

a) deve a resolução contratual invocada pela A, enquanto causa de pedir, ser julgada ineficaz quanto à ora Ré, por nunca dela ter tido conhecimento, ou

b) deve o pedido relativo ao cumprimento das cláusulas 6 e 16, 8,9 e 18 deve ser objecto de apreciação à luz da data da referida resolução e deve a indemnização peticionada à título de cláusula penal ser apreciada nos termos do disposto no artigo 812º do C. Civil e, consequentemente, ser reduzida segundo juízo de equidade.».

3) - A Autora, replicando, para além de impugnar o alegado relativamente à coacção moral, assumiu um errado cálculo da comparticipação publicitária a restituir, no sentido de a mesma, afinal, perfazer o valor de € 10.600,21.

4) - Sem prévia observância do contraditório quanto a essa questão, o Mmo. Juiz do Tribunal “a quo”, no despacho saneador que proferiu em 28/11/2012 (fls. 81 e ss.), julgou a petição inicial inepta, por cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, absolvendo as RR da instância, dizendo, após a exposição que aí fez: «Constatamos, para tal efeito, que a falha da Autora N… incorpora a previsão da alínea c) do n° 2 do artigo 193° do Código de Processo Civil em virtude do pedido implícito de ressarcimento do montante de € 16.720,00 a título de interesse contratual positivo se mostrar substancialmente incompatível com a equivalente pretensão de recebimento dos valores de € 17.697,23 a título de interesse contratual negativo.».

B) - Inconformada com tal decisão, dela veio apelar a Autora, que, a findar a respectiva alegação recursiva, ofereceu as seguintes conclusões:

….

Terminou requerendo que a sentença recorrida fosse anulada e fosse ordenada a prolação de despacho que convidasse as partes a tomarem posição sobre a eventual contradição entre os pedidos formulados pela recorrente, ou, se assim se não entendesse, que a decisão fosse revogada e substituída por outra que condene as recorridas no pedido.

A Apelada M…, respondendo, pugnou pela confirmação da sentença recorrida.

II - Em face do disposto nos art.ºs 684º e 685-Aº, ambos do CPC[1], o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 660º, nº 2, “ex vi” do art.º 713º, nº 2, do mesmo diploma legal.

Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que, podendo, para benefício da decisão a tomar, ser abordados pelo Tribunal, não constituem verdadeiras questões que a este cumpra solucionar (Cfr., entre outros, Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586 [2]).

E a questão a resolver resume-se a saber se os pedidos formulados pela Autora revelam incompatibilidade substancial geradora da ineptidão da petição inicial.

III - A) - O circunstancialismo processual e os factos a considerar na decisão a proferir são os enunciados em I supra.

B) - Violação do contraditório:

Não nos restam dúvidas, atento o que acima foi expendido, de que a questão da ineptidão da petição inicial, por incompatibilidade substancial de pedidos, não tendo sido suscitada, ainda que imperfeitamente, pela contestante, não deveria ter sido conhecida pelo tribunal sem que se desse oportunidade à Autora de se pronunciar sobre tal matéria, pois que não se vislumbra que esse procedimento fosse de considerar manifestamente desnecessário.

Assim, tendo essa questão sido conhecida oficiosamente no saneador, sem precedência da audição da Autora, houve omissão de um acto que a lei impõe (artº 3º, nº 3, do CPC).

Tem razão, pois, a Apelante ao qualificar a decisão em causa como decisão-surpresa. Note-se que não se trata aqui de uma situação em que o Tribunal utiliza uma argumentação jurídica diversa da configurada pelas partes (o que seria lícito fazer), mas sim de caso em que o Tribunal decide com base em questão não suscitada anteriormente no processo, sobre a qual a autora não tivera oportunidade de se pronunciar e com que, razoavelmente, não seria previsível que contasse.

Como refere Lebre de Freitas[3] “...no plano das questões de direito, veio a revisão proibir a decisão-surpresa, isto é, a decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes (...) Antes de decidir com base em questão (de direito material ou de direito processual) de conhecimento oficioso que as partes não tenham considerado, o juiz deve convidá-las a sobre ela se pronunciarem seja qual for a fase do processo em que tal ocorra ”.

Também o STJ[4], pronunciando-se sobre a matéria, decidiu: “Como decorrência do princípio do contraditório, consagrado, entre outros, no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, é proibida a decisão-surpresa, isto é, a decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes”.

A omissão em causa precede o saneador-sentença, não colhendo a tese de que esta decisão a incorpora.[5]

Trata-se, afinal, a mencionada falta de cumprimento do contraditório, de nulidade processual atípica, ou secundária, que se integra na previsão do nº 1 do artigo 201º do CPC.[6]

As nulidades processuais devem, em princípio, ser arguidas perante o tribunal onde se alega terem sido cometidas, só cabendo ao Tribunal de recurso conhecê-las, em regra, no recurso que for interposto do despacho que as aprecie.

À Relação não compete, efectivamente, decidir em 1ª instância de nulidade processual cometida no Tribunal “a quo”, excepto (para além do caso previsto no art.º 205º, nº 3, do CPC)[7] se se tratar de nulidade de conhecimento oficioso que não deva considerar-se sanada.

E assim, não sendo a nulidade que ora está em causa de conhecimento oficioso, deveria ter sido reclamada pela ora Apelante junto do Tribunal “a quo” no prazo de dez dias a contar do conhecimento da mesma, ou seja, pois que nessa data a conheceu – ou pelo menos estava em condições de a conhecer, se usasse a diligência devida -, desde a ocasião em que se presume que a sua ilustre mandatária foi notificada da decisão recorrida, notificação essa que foi levada a efeito por carta enviada em 17/12/2012.

Daqui resulta que, só tendo sido arguida esta nulidade no recurso que a Apelante interpôs para este Tribunal em 25/01/2013, não só não a reclamou do modo adequado, como o fez quando ela já se encontrava sanada - pois que tinha decorrido o decêndio previsto nos artºs 205º, nº 1 e 153º, nº 1, do CPC.

C) - Ineptidão da petição inicial.

Cumpre dizer, preliminarmente, que não se discriminaram, na decisão recorrida, os factos que já se tinham como assentes.

Poder-se-ia pensar que essa discriminação desinteressava “in casu”, uma vez que se julgava apenas a ineptidão da petição, a apreciar, tão-só à luz do alegado nesse articulado.

Contudo, também na apreciação das excepções se deverá discriminar a matéria de facto assente que se apresente como pertinente ao julgamento das mesmas.

No caso, se tal discriminação tivesse sido feita, poderia o Mmo. Juiz “a quo”, apreciando a factualidade pertinente, verificar se a mesma lhe permitia concluir se tinha ocorrido, ou não, a resolução contratual que a Autora invoca, em lugar de, quanto a ela, produzir a seguinte afirmação: «Temos, no entanto, dúvidas que a missiva de fls. 23 possa figurar como interpelação admonitória ou ser tomada como a comunicação exigida naquela primeira cláusula contratual. O que sempre suscitaria a dúvida de saber se a resolução operada pela Autora por intermédio da carta que se encontra a fls. 24 - a qual não carecia, obviamente e por reporte às objecções formuladas pela Ré M…, de ser transmitida à simples fiadora - se apresenta legítima.».

Subsequentemente, porém, entendeu-se na sentença ser de ultrapassar essa dúvida que aí se apontou, admitindo-se, para efeito de se entrar com esse dado no raciocínio que posteriormente se veio a expender, que a invocada resolução era fundada, motivo pelo qual também nós partiremos desse pressuposto.

Começando, assim, a abordagem da problemática atinente à ineptidão da petição inicial, desde já se adianta que, embora muito se o respeite, discorda-se do entendimento que foi expendido na sentença a esse propósito.

Na sentença, afirmando-se “…a regra da impossibilidade de cumulação da resolução do contrato, por equivaler a uma das concretizações do interesse contratual negativo com a indemnização pelo dano positivo”, refere-se, entre outras, a posição assumida pelo Prof. Antunes Varela, transcrevendo-se o seguinte: «…mesmo para a hipótese de o credor optar pela resolução do contrato se prevê o direito a indemnização. Trata-se da indemnização do prejuízo que o credor teve com o facto de se celebrar o contrato - ou, por outras palavras, do prejuízo que ele não sofreria, se o contrato não tivesse sido celebrado, que é a indemnização do chamado interesse contratual negativo ou de confiança. Desde que o credor opte pela resolução do contrato, não faria sentido que pudesse exigir do devedor o ressarcimento do benefício que normalmente lhe traria a execução do negócio. O que ele pretende, com a opção feita, é antes a exoneração da obrigação que, por seu lado, assumiu (ou a sua restituição da prestação que efectuou) e a reposição do património no estado em que se encontraria, se o contrato não tivesse sido celebrado (interesse contratual negativo".

(…)

 “…o interesse contratual positivo, ao representar o contrato como integralmente observado, não é susceptível de compatibilização com o interesse contratual negativo. Isto porquanto este ficciona ou perspectiva o contrato como se não tivesse sido, de todo, ajustado”.

Mais se disse: «O que equivale a dizer que "a violação das previstas no número dois da Cláusula 2.a" - sendo que nesta última se prescreve que a Ré se obriga a adquirir à N… um total de 1.800 kg de café com uma regularidade mensal de 30 kg -, "obrigando o 2.° Contratante a pagar à N…, a título de cláusula penal, o montante de € 10,00 por cada quilograma de café (...) não adquirido", legitima a Autora a peticionar o pagamento da importância de € 16.720,00 (€ 10,00 X 1.672).

O que sucede porquanto a mesma cláusula é compulsória e independente de a Autora ter resolvido o contrato.

f) Mas qualquer que seja a natureza a atribuir a tal cláusula, mostra-se indubitável que a mesma providencia pela satisfação do interesse contratual positivo da Autora N...”

(…)

A pertinência do exposto prende-se com a validade do peticionamento do valor do equipamento cedido - tal como ínsito no ponto 6 do artigo Quinto - e da segunda cláusula penal ajustada, nos termos da qual "resolvido o presente contrato com fundamento em qualquer causa não imputável à N…, e sem prejuízo de quaisquer indemnizações a que haja lugar, o 2.° Contratante obriga-se a restituir à N… a comparticipação publicitária prestada, deduzida do montante proporcional ao período contratual decorrido, contado em meses".

É, na verdade, nesta sede que a Autora funda o remanescente dos seus pedidos pecuniários exclusivamente fundados no contrato e exige, subsequentemente, i) a restituição proporcional da comparticipação publicitária a equivaler a € 11.400,23 e ii) o pagamento do valor do equipamento a cifrar-se em € 6.297,60. Pretensões que entram, todavia, em manifesta contradição com a cláusula penal primária e por intermédio da qual se acautelou o interesse contratual positivo já referido.».

Ora, quanto à actuação da resolução contratual e à possibilidade de cumulação de uma indemnização respeitante ao interesse contratual negativo e ao interesse contratual positivo (focando, a esse propósito, também, a posição adoptada pelo Prof. Varela), perfilhamos o entendimento expendido por esta 3ª secção em Acórdão de 14/07/2010, (Apelação nº 768/08.6TBAVR.C1), relatado pelo Exmo. Sr. Desembargador António Teles Pereira, do qual, com a devida vénia, se transcrevem os trechos que no presente caso mais relevam[8]:
«(…) as dúvidas habitualmente expressas sobre a compatibilidade entre a cumulação de uma indemnização respeitante ao interesse contratual negativo e ao interesse contratual positivo se referem à actuação do regime da resolução do contrato, designadamente na sua projecção retroactiva (artigo 434º, nº 1 do CC)[9]. Esta - a negação da possibilidade dessa cumulação indemnizatória - constitui a chamada “posição tradicional”, que Antunes Varela caracterizou nos seguintes termos, no que poderíamos qualificar como o texto doutrinário básico expressando essa posição[10]:
“[…]
Mesmo para a hipótese de o credor optar pela resolução do contrato se prevê o direito de indemnização. Trata-se da indemnização do prejuízo que o credor teve com o facto de se celebrar o contrato - ou, por outras palavras, do prejuízo que ele não sofreria, se o contrato não tivesse sido celebrado (cfr. a fórmula do artigo 908º [CC]), que é a indemnização do chamado interesse negativo ou de confiança. Desde que o credor opte pela resolução do contrato, não faria sentido que pudesse exigir do devedor o ressarcimento do benefício que normalmente lhe traria a execução do negócio. O que ele pretende, com a opção feita, é antes a exoneração da obrigação que, por seu lado, assumiu (ou a restituição da prestação que efectuou) e a reposição do seu património no estado em que se encontraria, se o contrato não tivesse sido celebrado (interesse contratual negativo).
Este interesse contratual negativo (tal como o interesse contratual positivo) pode compreender tanto o dano emergente como o lucro cessante (o proveito que o credor teria obtido, se não fora o contrato que efectuou) […]”
            Este entendimento foi objecto de crítica por Vaz Serra, desde os trabalhos preparatórios do Código Civil[11], podendo caracterizar-se o ponto de vista deste Autor através do seguinte excerto de uma anotação na Revista de Legislação e de Jurisprudência[12]:
“[…]
Assim, resolvendo o contrato, libera-se o credor do dever de fazer a sua prestação e pode exigir da outra parte, como indemnização, a diferença de valor: com a resolução do contrato, o credor libera-se da obrigação de fazer a sua prestação, e o devedor da de efectuar a respectiva prestação; mas, como àquele cabe também o direito de indemnização, pode exigir do devedor a reparação do dano e, por conseguinte, o valor que, deduzido o da sua prestação, teria entrado no seu património se o contrato houvesse sido cumprido. Resolvido o contrato, desaparecem as obrigações de ambas as partes, e o dano do credor é, portanto, a diferença de valor entre a prestação por ele não obtida do devedor e a contraprestação de que se liberou.
[…]” (sublinhado acrescentado)
            Reconhece-se o eco que a posição de Antunes Varela tem tido na nossa jurisprudência[13]. Com efeito, mesmo nas situações (mais recentes) em que esse entendimento é ultrapassado, a afirmação da cumulabilidade, tende a ser assumida muito cautelosamente[14]. Existe, todavia, uma crescente e maioritária afirmação na doutrina da aceitação da tesa da cumulabilidade, embora, como refere António Menezes Cordeiro, “[…] tais assuntos não se resolv[a]m por «votação» […]”[15].
            Colhem, com efeito, como determinantes de uma solução efectivamente mais justa, os argumentos que não excluem, à partida, a possibilidade de cumulação, no quadro da resolução do contrato, entre uma indemnização que cubra, se autonomizáveis (no sentido de não induzirem a duplicação de indemnizações pelo mesmo dano), danos negativos e danos positivos, num quadro caracterizável como referido ao princípio da integralidade das indemnizações, assim definido por António Menezes Cordeiro:
“[…]
A ideia de que havendo resolução, não faria sentido optar pelo interesse positivo ou do cumprimento … por se ter desistido do contrato é puramente formal e conceitual.
Com efeito, o incumprimento acarreta danos. Perante eles, há que prever uma indemnização integral. A pessoa que resolva o contrato apenas tenciona libertar-se da prestação principal que lhe incumbe: não pretende, minimamente, desistir da indemnização a que tenha direito.
A regra é, pois, sempre a mesma, simples e justa: o incumprimento obriga a indemnizar por todos os danos causados. Ficarão envolvidos danos negativos ou de confiança e danos positivos ou do cumprimento, cabendo, caso a caso, verificar até onde vão uns e outros.
[…]”[16]
            Aliás, colocando as coisas no plano da actuação do efeito retroactivo da resolução, decorrente do artigo 434º, nº 1 do CC, deparamo-nos que o regime legal dessa retroactividade opera algo mitigadamente, sob reserva da destruição retroactiva do negócio resolvido não “contrariar a vontade das partes ou a finalidade da resolução” (trecho final do nº 1).».

Em abono do exposto apenas se nos afigura assinalar, porque expressiva, a afirmação de Pedro Romano Martinez, no sentido de ser possível às partes, por acordo, admitir que a resolução do contrato se cumule com uma indemnização pelo dano positivo, já que “não são duas pretensões estruturalmente incompatíveis”[17].

Não é, assim, exacto, atento o entendimento expendido, o postulado em que assentou a decisão recorrida, da impossibilidade de cumular a indemnização pelo chamado interesse contratual positivo com a indemnização atinente ao interesse contratual negativo.

Mas ainda que se admita que essa cumulação não é possível, ou seja, que a indemnização que se pode cumular com a resolução do contrato não é a indemnização pelo dano "in contractu", mas antes a respeitante ao interesse contratual negativo, a conclusão a extrair perante aquela cumulação não será a da ineptidão da petição inicial por incompatibilidade substancial de pedidos.

Na verdade, como se diz no Acórdão do STJ, de 06 de Maio de 2008 (Processo nº 08A966), relatado pelo Exmo. Sr. Conselheiro Alves Velho: «…a incompatibilidade de pedidos, sendo vício que gera a ineptidão da petição inicial, só justifica colher tal relevância, determinando a anulação de todo o processo, quando coloque o julgador na impossibilidade de decidir, por confrontado com a ininteligibilidade das razões que determinaram a formulação das pretensões em confronto.

Com efeito, uma coisa é a incompatibilidade resultante da invocação de fundamentos não apreensíveis ou inteligíveis, atendendo à posição do autor, outra é as pretensões assentarem em razões inteligíveis e claras mas que no plano legal ou de enquadramento jurídico resultam antagónicos.

Nesta última hipótese, a incompatibilidade, porque existente apenas no plano da lei, não encerra o vício de ineptidão, mas apenas a improcedência do pedido cujo direito o autor não possa ver reconhecido, devendo o julgador admitir aquele que, segundo a lei, apresentando-se como fundado, é admissível e conhecer do respectivo mérito (cfr., neste sentido, o ac. STJ, de 06/4/1983, BMJ 326°-400 e ANSELMO DE CASTRO, "Lições de Processo Civil"; II, 762-769).».

Diga-se, por último, que não se olvida a proibição estatuída no artº 811º, nº 1, do CC.

Afigura-se-nos, todavia, que a previsão deste preceito - que tem sido alvo de laboro exaustivo por parte da doutrina (veja-se, só para dar um exemplo inequívoco, a tese de doutoramento do Prof. António Pinto Monteiro, “Cláusula Penal e Indemnização”, em especial, págs. 424 e ss.) - não encontra respaldo na situação que se analisa, pois que não descortinamos, salvo o devido respeito, que aqui haja efectiva cumulação do pedido de pagamento fundado em cláusula penal indemnizatória, com a exigência do cumprimento da obrigação principal, ou com indemnização pelo não cumprimento do contrato.

De facto, perfilhamos o entendimento que, em caso em idêntico ao que nos ocupa, se expendeu no Acórdão da Relação de Guimarães, de 04/12/2012 (Apelação nº 2245/10.6TBFAF.G1)[18] e cujos trechos mais significativos se passam a transcrever:

«De acordo com a mencionada cláusula, a resolução do contrato com base em incumprimento do comprador, obriga este a indemnizar a vendedora no montante de € 19,00, acrescido de IVA à taxa em vigor, por cada quilo de café que faltar para o cumprimento integral do contrato.

(…)

Escreveu-se na sentença recorrida, (…) o seguinte: ''(…) analisando a várias cláusulas insertas no contrato, conclui-se com meridiana clareza que a cláusula penal é ajustada ao tipo de prestações a que reciprocamente as partes se vincularam; veja-se que a indemnização se limita ao preço da parte do café que não foi adquirida (tendo em conta o montante global estabelecido para o contrato); logo se colhe que se mostra existir proporcionalidade objectiva na estipulação da sanção. Acresce que, como contrapartida da exclusividade durante a vigência do negócio, a autora entregou à ré o montante de € 20.000 (sem retorno directo), bem como lhe cedeu os equipamentos descritos a fls. 10 para utilização também durante a vigência contratual.

(…)

Segundo o artº 811º, nº 1 do CC, o credor não pode exigir cumulativamente, com base no contrato, o cumprimento da obrigação principal e o pagamento da cláusula penal, salvo se esta tiver sido estabelecida para o atraso da prestação; é nula qualquer estipulação em contrário.

Do exposto flui que a lei estabelece aqui uma prestação em alternativa, podendo o credor exigir ou o cumprimento da obrigação ou a pena convencionada - ''o que lhe é vedado (…) é cumular o pedido de cumprimento com o do pagamento da cláusula penal (…).'' [16]

Trata-se de imposição legal destinada a impedir uma duplicação de benefícios do credor face a um incumprimento do devedor.

Será que tal duplicação existe no caso dos autos?

Entendemos que não.

Com efeito, como decorre da leitura da própria cláusula penal, a mesma decorre da resolução do contrato com base no incumprimento do comprador.

Assim, entendemos ser de cindir geneticamente as duas pretensões: a pretensão do pagamento do café fornecido e não pago traduz-se na exigência do cumprimento coercivo da obrigação; a pretensão indemnizatória repousa na resolução do contrato e nos prejuízos diferidos para o credor em consequência dessa resolução e daí a referência (para fixação da indemnização) ao café que ainda não tinha sido adquirido à data da resolução, sem qualquer ligação ao café já adquirido, onde se inclui o café já adquirido e não pago pela R. Assim, as duas pretensões reportam-se a obrigações diversas, temporal e substancialmente distintas, embora emergentes do mesmo contrato. Diferente seria se a (condenação pela) cláusula penal tivesse sido cumulada com a (condenação) exigência do cumprimento coercivo do contrato a partir da resolução, ou seja, a exigência de aquisição do café (com o correspondente pagamento por parte da R) que faltava até atingir o montante total contratado.

Importa não esquecer a violação da obrigação contratual de aquisição de determinadas quantidades de café não traduz para a vendedora apenas o prejuízo decorrente dessa impossibilidade, pois ao comprador foi (para além da entrega de equipamentos, com a inerente deterioração) entregue uma quantia pecuniária, seguramente calculada na fixação da cláusula penal.».

Ao que acima ficou exposto acresce, em nosso entender, que, ainda que se desse como assente que no caso “sub judice” se verificava que o peticionado pela Autora traduzia a cumulação que se veda no artº 811º, nº 1, a mesma não possibilitava a conclusão que o Tribunal “a quo” extraiu, da ineptidão da petição.

Na verdade, a concluir-se pela verificação da cumulação vedada pelo artº 811º, nº 1, como sucedeu no citado Acórdão do STJ, de 06 de Maio de 2008, em que se entendeu que no caso “…a indemnização pelo incumprimento estava previamente fixada a forfait, nos termos pactuados na cláusula penal, vedando a lei a cumulação com a indemnização segundo as regras gerais, e concedendo-lhe apenas o direito àquela (art. 811º-2 cit.)”, haveria que se seguir o remédio que aí se consignou, ou seja: “…desconsiderar a arguida incompatibilidade de pedidos, declarar a improcedência do pedido correspondente à pretensão que a lei não aceita e conhecer da procedência do que tem guarida em termos de enquadramento jurídico.”.

Decorrendo, de tudo o que ficou exposto, que não se verifica, na petição inicial, incompatibilidade substancial de pedidos, geradora da ineptidão daquele articulado, a decisão recorrida tem de ser revogada, devendo os autos prosseguir os seus termos normais - se nada mais se verificar que a isso obsta -, pois que existe matéria controvertida que impede, para já, que esta Relação, em substituição do Tribunal recorrido, proceda à apreciação do mérito da causa.

IV - Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a Apelação procedente e, revogando a decisão recorrida, determinar que os autos prossigam os ulteriores termos, se outra razão não houver que a isso obste.

Custas pela Apelada, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

Coimbra 5/11/2013


(Luís José Falcão de Magalhães - Relator)

(Sílvia Maria Pereira Pires)

(Henrique Ataíde Rosa Antunes)



[1] Os preceitos citados respeitam, salvo indicação em contrário, à versão do CPC que resultou do DL n.º 303/07, de 24/08.
[2] Consultáveis na Internet, através do endereço “http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase”, tal como todos os Acórdãos do STJ que adiante forem citados sem referência de publicação.
[3] Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1.º, pág. 9.
[4] Acórdão de 13/01/2005, proferido nos autos n.ºs 04B4031.
[5] “O incumprimento do contraditório antes da prolação de decisão surpresa não constitui nulidade da própria decisão, pois se situa a montante, integrando as nulidades gerais previstas no art. 201°, n° 1, do CPC.” (sumário do Acórdão do STJ, de 11/10/2011, proferido no incidente suscitado nos autos de recurso n.° 175/2002.P1.S1 – 6, consultável, tal como os sumários de acórdãos do STJ que vierem a ser citados, em “http://www.stj.pt/jurisprudencia/sumarios”).
[6] Cfr. quanto à omissão da observância do princípio do contraditório, ou da cooperação, o Acórdão da Relação de Lisboa, de 12/07/2012 (Apelação nº669/10.8TJLSB-B.L1-2), onde se diz: «O nosso legislador processual, aquando das sucessivas revisões, não inseriu na subsecção da “nulidade dos actos”, a omissão da observância do princípio do contraditório, ou da cooperação, como nulidade principal, de conhecimento oficioso e a todo o tempo (para o que teria de consagrar necessariamente um regime específico que não se coaduna com as da ineptidão de falta de citação ou erro na forma de processo previstas no art.º 202), donde a conclusão, face ao espírito que preside ao regime das nulidades, de que a omissão do acto em questão cai no princípio regra da nulidade secundária ou relativa sujeita a arguição. Tal omissão, tudo indica, cai no art.º 201/1.» (consultável em “http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf?OpenDatabase”).
[7] Conforme se refere no Acórdão do STJ de 6/7/2005 (Revista nº 04B1171) “o n.º 3 do artigo 205 não faculta propriamente à parte tornar a nulidade objecto de recurso, mas tão-só, excepcionalmente, argui-la perante o tribunal ad quem no caso de o processo, antes de findar o prazo de arguição, ter sido expedido em recurso, ou seja, quando já não é possível assegurar o seu conhecimento pelo tribunal mais vocacionado”.
[8] Para não correr o risco de se desvirtuar o entendimento expresso no texto, reproduzem-se, também, as respectivas notas de rodapé, embora que, por razões óbvias, sem a numeração original.
[9] V. Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, cit., pp. 207/208.
[10] Aqui citada através do texto da edição referida na nota 34, supra, p. 104.
[11] V. “Impossibilidade superveniente e cumprimento imperfeito imputáveis ao devedor”, no BMJ (1955), 47, 5/97 (concretamente, pp. 39 e seguintes).
[12] Anotação ao Acórdão do STJ de 30/06/1970, na Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 104º, 01/11/1971, nº 3454, pp. 204/208 (207).
[13] V., seguindo tal posição, o Acórdão da Relação de Coimbra de 08/02/2000 (António Geraldes), proferido no processo nº 2117/99, sumariado na base do ITIJ, no seguinte endereço: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/f591e60cc18080ad802569ca00356453.
Aqui se transcreve o respectivo sumário:
“[…]
I – No âmbito de um contrato de compra e venda cuja resolução tenha sido accionada por uma das partes, na falta de estipulação de cláusula penal que preveja a indemnização pelos lucros cessantes, o recurso à norma supletiva do artigo 801º, nº 2 do CC, apenas confere ao credor o direito a ser ressarcido pelos danos correspondentes ao interesse contratual negativo. II – Conquanto seja inconclusivo o elemento literal extraído desse preceito e se mostre insuficiente o recurso aos elementos histórico e sistemático, a limitação da indemnização pelo interesse contratual negativo é a que melhor se ajusta à figura da resolução contratual e à retroactividade dos efeitos que resultam do artigo 434º do CC.
[…]”.
[14] V. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/02/2009 (João Bernardo), proferido no processo nº 08B4052, disponível na base do ITIJ, nos campos indicados, no seguinte endereço: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/07fb864d462872b1802575600037be44.
Aqui se transcreve, parcialmente, o respectivo sumário:
“[…]
1. Por regra, a resolução contratual abre caminho a indemnização apenas pelos danos negativos.
2. Pode, porém, excepcionalmente, ter lugar indemnização pelos danos positivos.
3. Se a parte que resolveu o contrato pretende indemnização por este tipo de danos, terá de alegar e provar, além do mais, os factos que possam integrar essa situação de excepcionalidade.

[…]”
[15] Tratado de Direito Civil Português, II, cit., p. 162.
[16] Tratado de Direito Civil Português, II, cit., p. 163. No mesmo sentido, cfr. Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, cit., pp. 208/216; Paulo Mota Pinto, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, cit., vol. II, pp. 1639/1655. Note-se que a reforma de 2002 do Código Civil alemão, a denominada “Modernização” (Modernisierung, introduzida pela Lei de 26 de Novembro de 2001, Gezets zur Modernisierung des Schuldrecechts, entrada em vigor em 01/01/2002), passou a dar cobertura expressa à ideia de cumulabilidade, dispondo no novo § 325 (“ressarcimento do dano e resolução”) que “[o] direito a exigir ressarcimento do dano num contrato bilateral não é excluído com a resolução” (“[d]as Recht, bei einem gegenseitigen Vertrag Schadensersatz zu verlangen, wird durch den Rücktritt nicht ausgeschlossen“), v. Reinhard Zimmermann, The New German Law of Obligations, Oxford, Nova York, 2005, pp. 68/69 e nota 166 e Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, cit., pp. 211/213.
[17] Da Cessação do Contrato, cit.,pág. 210.
[18] O Acórdão foi relatado pelo Exmo. Sr. Desembargador Edgar Gouveia Valente e pode ser consultado em “http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf?OpenDatabase”.