Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
44/14.5TBVZL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: PROPRIEDADE DE IMÓVEL
LIMITES
SERVIDÃO DE ESCOAMENTO
ESCOAMENTO DE ÁGUAS
Data do Acordão: 10/06/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - VISEU - INST. LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1344.º E 1351.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. A propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície.

2. A delimitação do espaço aéreo é geometricamente determinada pelas perpendiculares elevadas dos limites do solo, sendo relevantes os limites do solo em si mesmo considerado e irrelevante que na parede sul do prédio dos autores estejam colocadas pedras/floreiras, excedendo-o em 25 cm.

3. Não se pode exigir à ré que receba no seu prédio as águas pluviais que caem no telhado da casa dos autores, porque estas só para ali escoam, por acção do homem, porque são reunidas e desviadas do seu curso normal em virtude das casas ali edificadas, cabendo aos autores encaminhar tais águas de forma a não prejudicar a ré.

4. Tal situação não constitui o que a lei designa por escoamento natural das águas, regulado no artigo 1351.º do Código Civil, que obriga o proprietário do prédio inferior a receber as águas que decorram naturalmente e sem obra do homem dos prédios superiores, incluindo os detritos que as mesmas arrastam.

Decisão Texto Integral:

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

 A..., B... e C... instauraram a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra D... , já todos identificados nos autos, pedindo que, na sua procedência, se declare:

a) que o prédio identificado nos artigos 1º e 2º da petição inicial é propriedade dos autores;

b) constituída sobre o prédio da ré e a favor do prédio dos autores uma servidão de vistas, por usucapião;

c) constituída sobre o prédio da ré e a favor do pátio / prédio dos autores, uma servidão de estilicídio, por usucapião.

E ainda que se condene a ré a:

d) eliminar a retenção e acumulação das águas pluviais no pátio (identificado no artigo 35º da petição inicial), mediante a colocação de um sistema de drenagem e escoamento adequado;

e) demolir, em toda a sua altura e comprimento, o muro que construiu junto à parede do lado sul do imóvel dos autores;

f) eliminar a fresta existente entre o patamar (construído junto ao muro) e a parede do lado sul da casa dos autores, em toda a sua extensão e profundidade;

g) eliminar o escoamento das águas pluviais provenientes do telhado do imóvel da ré para o dos autores, mediante a realização de obras adequadas e colocação de um algeroz no telhado da casa da ré;

h) proceder às reparações que se mostrem necessárias efetuar no imóvel dos autores para o repor em bom estado de uso, por causa direta dos danos provocados pelas infiltrações e humidade a que este está sujeito, em virtude da construção do muro e do telhado com ausência de sistema de drenagem das águas pluviais;

i) em alternativa ao requerido em h), a indemnizar os autores na quantia que estes venham a despender para o efeito e cuja liquidação do valor relegaram para liquidação de sentença.

Como fundamento da referida pretensão, alegaram, em síntese, que são donos do prédio urbano, sito no lugar de (...) , freguesia de (...) , concelho de Vouzela, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vouzela sob o n.º 364 e inscrito na matriz predial sob o artigo 330.º, que confronta do lado sul com o prédio pertencente à ré, inscrito na respetiva matriz sob o artigo 47. Alegam ainda que, desde a construção do seu prédio, na parede que confronta com o prédio da ré, existem quatro janelas com vista para o prédio desta, existindo junto à 1.ª e 2.ª janelas quatro peças salientes de pedra trabalhada, conhecidas com a designação de «cachorros». Acrescentam que, em Dezembro de 2012, verificaram que na estrema norte do prédio da ré estava em construção um muro em betão até ao limite inferior da segunda janela do prédio dos autores, que cobria completamente a quarta janela e que, no seguimento da reclamação que apresentaram na Câmara Municipal de Vouzela, a ré alterou a edificação do muro procedendo ao recorte do mesmo para que a linha superior horizontal ficasse em três níveis distintos e mais reduzidos, construiu ainda um patamar, em toda a extensão do muro, situando-se o muro a cerca de 5 centímetros da parede da casa dos autores e sem qualquer orifício que permita o escoamento de águas que se acumulem nesse espaço. Nessa mesma altura verificaram que a ré procedera à alteração na cobertura do seu edifício, tendo prolongado o telhado do mesmo até à parede da casa dos autores, encaixando e prolongando este na parede poente dos autores. Alegam ainda que a poente do prédio dos autores e em toda a sua extensão, a norte do prédio da ré, existe um espaço rodeado de edificações e que por força do declive do terreno, o escoamento das águas pluviais efetuava-se por uma abertura natural existente no lugar onde os prédios dos autores e ré confinam entre si, desaguando no quintal do prédio da ré e que após a edificação do muro pela ré, essa abertura ficou quase completamente tapada, não permitindo o escoamento das águas como anteriormente, passando estas a acumularem-se e a infiltrarem-se na parede poente dos autores e ainda a acumularem-se na fresta existente entre o muro e a parede da casa dos autores, onde também se acumulam as águas provenientes diretamente do escoamento do telhado do imóvel da ré e as demais resultantes da ação natural da chuva, provocando humidades, bolores e deterioração das paredes e pinturas do prédio dos autores. Acrescentam ainda que o muro encontra-se construído a uma distância inferior a 20cm da parede do imóvel dos autores e como tal dentro dos limites indicados pelos «cachorros» existentes na parede. Por último, alegam factos relativos à invocada aquisição por usucapião.

Citada a ré, contestou, referindo que, antes de 2011, existiam apenas duas janelas a deitar diretamente para o pátio ou entrada do prédio da ré e aquelas, apesar de contemporâneas da construção do prédio dos autores, foram alargadas em 2011, o mesmo sucedendo com uma antiga fresta ou seteira que foi convertida numa abertura com maiores dimensões e que correspondia apenas a uma «abertura irregular». Menciona ainda que os alegados «cachorros» que flanqueiam os parapeitos das 1.ª e 2.ª janelas são «pousos» de vasos de flores, floreiras. Acrescentou que falta colocar uma caleira no seu telhado que vai ficar como estava o telhado antigo e que o denominado pátio, corresponde a uma «quelha» para onde gotejam os beirados e que as águas pluviais que nela caíam sumiam-se, infiltrando-se no solo, o que deixou de acontecer pelo facto dos autores aquando da reconstrução do seu prédio terem «selado» a cimento parte dessa «quelha». Conclui pela improcedência da ação, condenação dos autores como litigantes de má-fé em multa e indemnização e que se declare que além da servidão de vistas decorrente das mencionadas 1.ª e 2.ª janelas nenhuma outra existe a onerar o prédio da ré.

Realizou-se audiência prévia e tendo-se frustrado a tentativa de conciliação, foi proferido despacho saneador, foi identificado o objeto do litígio e foram enunciados os temas da prova.

Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, com recurso à gravação da prova nela produzida, finda a foi proferida a sentença de fl.s 165 a 199, na qual se fixou a matéria de facto considerada como provada e não provada e respectiva fundamentação e, a final, se decidiu o seguinte:

“Nestes termos e pelos fundamentos expostos, julgo a presente ação parcialmente procedente, por provada e, em consequência:

1. Declaro que o prédio identificado no artigo primeiro dos factos provados faz parte do acervo da herança aberta por óbito de E..., sendo, por isso, os autores proprietários do mesmo.

2. Declaro que o prédio identificado no artigo terceiro está onerado com uma servidão de vistas a favor do prédio identificado no artigo primeiro, constituída por usucapião, oriunda das janelas mencionadas no artigo décimo quarto, alíneas b) e c), todos dos factos provados.

3. Condeno a ré a demolir, em toda a sua altura e comprimento, o muro mencionado no artigo sétimo e décimo dos factos provados e a deixar o patamar de forma a que não estorve o escoamento das águas que decorrem dos prédios superiores, incluindo dos autores.

4. Condeno a ré a eliminar o escoamento das águas pluviais provenientes do telhado do imóvel referido no artigo terceiro de forma a que o telhado ou cobertura do prédio não goteje sobre o prédio mencionado no artigo primeiro ambos dos factos provados, nos limites que decorrem da parede poente e face exterior das pedras existentes na parede sul, nomeadamente através da colocação de caleira a canalizar a água do telhado para fora destes limites.

5. Absolvo a ré dos demais pedidos formulados pelos autores.

6. Absolvo autores e ré do pedido de condenação como litigantes de má-fé.

7. Condeno os autores e ré nas custas do processo, respetivamente na proporção de 1/3 e 2/3. “.

Inconformada com a mesma, interpôs recurso a ré D... , recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo – (cf. despacho de fl.s 278), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

1ª- A acção não devia ter sido julgada, ainda que parcialmente, procedente, porque nenhuma razão ou direito assiste aos AA.; antes improcedente!

2ª- A declaração, ainda que oficiosa e objecto da sentença (decisão judicial impugnanda), da propriedade dos AA. sobre os prédios identificados nos arts. 1º e 2º da p.i. é uma redundância já que a questão da propriedade e a questão processual (legitimidade activa dos AA.) não foram suscitadas pela ré;

3ª- A declaração da existência de uma servidão de vistas, constituída por usucapião, a favor do prédio dos AA. identificado nos arts. 1º e 2º da p.i. e a onerar o prédio da ré, identificado no artigo 3º do mesmo articulado, afinal reduz-se – cfr. item 2 da d. decisão impugnanda – às duas janelas superiores – 14 b) e 14 c) – perante um pedido genérico – alínea b) – e sem menção do objecto da servidão : o número de aberturas através das quais se exerce;

3.1-O facto é que não se provou que a Ré, vez alguma tenha posto em causa o exercício da servidão de vistas através dessas duas janelas; o que os AA. pretenderam, com o seu pedido e indefinição – alínea b) do pedido – foi tornar extensivo o ónus da servidão de vistas das janelas inferiores – 14 a) e 15 - principalmente daquela nos termos cem que se julgaram afectados com a construção do muro, devendo improceder totalmente o seu (dos AA.) pedido (alínea b)

4ª- Os pedidos de declaração supra improcedem, assim.

5ª- O muro que a ré mandou edificar ao longo do seu pátio após o deferimento do licenciamento administrativo a que foi sujeito e da inerente legitimidade para o (processo de licenciamento) requerer, foi edificado no prédio desta (ré) junto à estrema norte – cfr. art. 22º da petição inicial;

5.1- A condenação da ré na demolição do muro – item 3 - é ilegal e absolutamente injusta; o Tribunal avoca e justifica essa ilegalidade que não desfralda tão só porque ...o muro está (na óptica do Julgador) no terreno dos AA. ...?!?

5.2- Os argumentos da posse, da delimitação pela “cabeça” das pedras e não pela parede sul do prédio dos AA. a fim de criar uma faixa de terreno destes, da presunção legal ,etc... além de não alegados pelos AA. foram “criados” e “sugeridos” pelo Tribunal, de uma forma tal que se não pode considerar de forma alguma constitutiva de um exame crítico das provas;

5.3- O Mmo. Juiz quebrou a identidade entre a causa de pedir e a causa de julgar: os AA. confessaram um facto que o Tribunal nega e altera

6ª- O limite material sul do prédio dos AA. é a face exterior da sua (deles, AA.) parede sul, esta confinante com o prédio (estrema norte do) da ré;

7ª- O prédio da ré não deve ao prédio dos AA., dito, ou a prédios terceiros, uma servidão de escoamento ou sequer uma qualquer “obrigação de abstenção” perante o escoamento natural, dados os factos, a configuração recíproca e localização inferior do prédio daquela (ré), quer porque a lei afasta expressamente a servidão – arts. 1351º,1561º e 1563º,4 todos do CC

7.1- A afastar o escoamento natural o próprio facto, indesmentível, das obras dos AA. em todo o interior do seu prédio, com adaptações e alterações (cimentado, pavimento, reboco, alijamento de paredes e de esquinas, pinturas, canalizações e electrificações, etc...) que retiram o carácter natural em favor do artificial.

7.2- Nem o muro e nem o pátio da ré estão obrigados a recolher as águas que a eles afluem provindas do encaminhamento que os AA. lhe deram e passaram a dar.

8ª- A povoação de (...) tem em curso o saneamento básico e essa situação altera e regulariza os caudais de água pública (das vias) impedindo que elas atinjam o domínio privado, cabendo a estes gerir o uso e destino das águas próprias, particulares.

9º- As águas pluviais que do refuste na parede sul do prédio dos AA. e alguma que ainda cai do telhado, inacabado , caem no interstício entre o muro da ré e aquela parede (do prédio dos AA.) só ali se juntam, em quantidade pouco significativa embora, porque os AA. não aceitam nem aceitaram que a ré tapasse, como quis já, esse interstício; tapado que seja, a água cai directamente no pátio da ré.

9.1- É da exclusiva responsabilidade dos AA. a existência do interstício e o afluxo natural das águas que escorrem da parede.

9.2 - A ré não podia e nem pode “ligar” o muro à parede dos AA. sem o consentimento destes.

10ª- Dado que as obras do prédio da ré estão em curso e não está sequer rematado o telhado e provido com os algerozes que se impõem para conduzir e drenar as águas pluviais que nele caem, facto objecto de inspecção pelo Tribunal e ali confirmado, a condenação da ré nos termos em que é feita no “item 4” da d. decisão, é absolutamente irrealista e inoportuna – a ré não pode enquanto o telhado não estiver concluído colocar os algerozes e recolher a água; fá-lo-á no imediato à conclusão da obra de cobertura, como protestou, por intermédio do seu empreiteiro, em audiência.

11ª- O prédio da ré não deve ao prédio dos AA. qualquer servidão de estilicídio

12ª- O prédio da ré não está obrigado a receber as águas que a eles afluam dos prédios superiores, de terceiros e nem do dos autores.

Normas jurídicas violadas

- arts. 5º,1 , 260º , 609º e 612º CPC

- arts. 350º,1 e 352º CC

- art. 495º,2 CPC

- arts. 202º, 204º, 1251º, 1344º, 1 e 2 ,1356º, 1343º ,1351º, 1362º, 1363º e 1364º CC

TERMOS EM QUE

Na procedência integral do recurso,

a)deve a d. sentença, ora impugnanda, ser revogada e proferida outra que determine a improcedência total da acção,

b) Deve ser feita a censura, com as consequências legais (art. 612º CPC), à conduta dos AA. para, com recurso a provas “adulteradas”, obterem um fim proibido por lei – a violação do direito de propriedade da ré.

com o que V.Exas farão a costumada JUSTIÇA!

Contra-alegando, os autores, pugnam pela manutenção da decisão recorrida, estribando-se nos fundamentos nesta invocados.

Conforme item 17 dos factos provados, foi dado como provado que “a abertura referida no artigo 14.º, al. a) há não mais de seis anos, foi alargada em cerca de 20 cm …”.

Nas suas alegações, a recorrente, põe em causa que a referida abertura tenha sido alargada “apenas em 20 cm”, sendo seu entendimento, com base nos depoimentos testemunhais que ali refere, que o foi numa maior extensão.

Independentemente da veracidade ou não, deste facto, o mesmo não se reveste de qualquer utilidade para o desfecho da presente acção.

Efectivamente, como consta de fl.s 196 e 198, apenas procedeu o pedido dos autores tendente ao reconhecimento de uma servidão de vistas, constituída por usucapião, tão só relativamente às janelas mencionadas no item 14.º, al.s b) e c), dos factos provados, improcedendo tal pedido no que respeita à abertura descrita na sua alínea a).

Assim sendo, seria inútil a análise do recurso no concernente a tal questão, em função do que não se conhece da pretendida alteração da matéria de facto.

            Dispensados os vistos legais, há que decidir.          

            Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do NCPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, são as seguintes as questões a decidir:

A. Definição do limite sul do prédio dos autores;

B. Se se encontra constituída uma servidão de vistas, a favor do prédio dos autores, à custa do prédio da ré;

C. Se o prédio dos autores beneficia de uma servidão legal de escoamento, à custa do prédio da ré;

D. Se a ré não está obrigada a fazer as obras referidas na al. g) do pedido;

E. Se a ré está obrigada a demolir o muro em toda a sua extensão e largura e;

F. Se os autores, com a presente lide, visam a obtenção de um fim proibido por lei e sanção daí decorrente.

É a seguinte a matéria de facto dada por provada na decisão recorrida:

1. O prédio urbano, sito no lugar de (...) , freguesia de (...) , concelho de Vouzela, composto de casa de habitação, a confrontar do norte e nascente com caminho público, do sul com a ré e do poente com (...) r, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 330, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Vouzela sob o n.º 364/19971210 e pela apresentação 10 de 10-12-1997 foi inscrita a aquisição a favor da autora A... e marido E... , por doação de F... .

2. No dia 17 de Janeiro de 2014, a autora A... declarou perante a Conservadora da Conservatória do Registo Civil de Montijo - que consignou a escrito as suas declarações em instrumento de procedimento simplificado de habilitação de herdeiros e verificou, por consulta à base de dados do registo civil SIRIC, o óbito, a qualidade de herdeiros invocada e o parentesco-, que E... , faleceu no dia 28 de junho de 2013, no estado de casado em primeiras e únicas núpcias de ambos com a declarante, sob o regime da comunhão geral de bens, sem testamento ou qualquer disposição de última vontade e que deixou a suceder-lhe o cônjuge sobrevivo, a autora A... , e os filhos B... e C... .

3. O prédio urbano, sito no lugar de (...) , da mencionada freguesia e concelho, composto de casa de habitação de 2 andares, com pátio, a confrontar do norte com (...) , do nascente e sul com o caminho e do poente com herdeiros de (...) , inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 47, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Vouzela sob o n.º 185/19930111 e pela apresentação 12 de 15-11-2007 foi inscrita a aquisição a favor da ré, D... , por aquisição através de compra.

4. O prédio descrito no artigo 1.º confina do lado sul com o prédio descrito no artigo 3.º.

5. Na parede sul do prédio descrito no artigo 1.º, contemporâneas da construção deste prédio, há mais de setenta anos, estão colocadas quatro pedras, salientes da parede em cerca de 25cm, estando cada uma das pedras ao lado das aberturas referidas no artigo 14.º, alíneas b) e c).

6. As pedras referidas no artigo anterior eram utilizadas para a colocação de vasos sobre as mesmas.

7. Em início de Dezembro de 2012, os autores verificaram que junto à parede sul do prédio referido no artigo 1.º estava em construção um muro em blocos de cimento, com a espessura de 10cm e a altura de 2,60 a contar do nível do solo do lado sul do muro, que na parte superior formava uma linha horizontal em todo o seu comprimento e até ao limite da abertura referida no artigo 14.º, alínea c).

8. No local onde se encontra a abertura referida no artigo 14.º, alínea a), este muro situa-se a cerca de 10cm da face exterior da parede sul do prédio mencionado no artigo 1.º, impedindo a iluminação do espaço interior onde se encontra aquela abertura e dificultando a respetiva ventilação.

9. C... apresentou na Câmara Municipal de Vouzela a reclamação cuja cópia se encontra junta a folhas 45, referindo, em síntese, que a ré estava a edificar um muro com a única intenção de tapar uma “janela” com mais de 100 anos de existência, que tinha como função o arejamento da “loja” e que estava encostado à casa do reclamante, referindo que iria causar infiltrações provenientes da água da chuva e humidades, que o muro tinha a altura de 2,60m, e parte dele ficava na via pública. Referiu ainda que o telhado que estava a ser edificado estava encostado à casa do reclamante. Conclui solicitando a remoção do muro.

10. Na sequência da reclamação mencionada no artigo anterior, a ré diminuiu a altura do muro, de forma a que a linha superior horizontal ficasse em três níveis distintos e rebocou o muro.

11. A ré construiu ainda um patamar, em toda a extensão do muro, que eleva e nivela o solo do seu terreno nesta estrema, tendo na sua extremidade sul cerca de três degraus.

12. O espaço existente entre o muro edificado pela ré e a parede sul do prédio mencionado no artigo 1.º, na parte superior do muro, varia entre 8,5cm e 3cm, sem que o muro se encontre encostado àquela parede.

13. O muro está construído dentro da linha reta perpendicular do limite exterior das pedras mencionadas no artigo 5.º.

14. Na parede sul do prédio referido no artigo 1.º, a deitar diretamente para o prédio mencionado no artigo terceiro, existem três aberturas com as seguintes dimensões:

a. No rés-do-chão uma abertura com cerca de 60 centímetros de largura, 60cm de altura a 1,10m do pavimento, com a profundidade de 76cm desde o interior até ao exterior da parede, tapada com uma estrutura gradeada, colocada sensivelmente à face exterior da parede, com barras verticais separadas entre si em cerca de 5cm; abertura essa que no interior é fechada por uma janela de vidro fosco, com 56cm de altura e igual largura.

b. No rés-do-chão, no local correspondente à cozinha, uma abertura com 79cm de largura, 83cm de altura, a 1,70m do pavimento da cozinha, tapada por uma janela de alumínio, de correr, de duas folhas, com vidro transparente;

c. No 1.º andar, uma abertura com 80cm de largura, 1m de altura, a 80cm do pavimento, tapada por uma janela de alumínio, de correr, com vidro transparente.

15. Na parede sul do prédio mencionado no artigo 1.º existe ainda uma abertura que deita diretamente para a via pública.

16. As aberturas referidas nos artigos 14.º, alíneas b), c) e 15.º existem no prédio referido no artigo 1.º desde a sua construção, há mais de setenta anos.

17. A abertura referida no artigo 14.º, alínea a) há não mais de seis anos, foi alargada em cerca de 20cm, sendo que a anterior abertura existia no prédio desde a respetiva construção, há mais de setenta anos, e tinha uma verguinha de ferro sensivelmente ao meio.

18. A abertura referida no artigo 14.º, alínea a) incluindo na data anterior ao alargamento, era utilizada para ventilar e iluminar a parte interior do prédio referido no artigo 1.º.

19. A abertura referida no artigo 14.º, alínea a) não é, nem nunca foi servida de parapeito.

20. A abertura referida no artigo 14.º, alínea a) não permitia a projeção através dela do corpo humano.

21. As aberturas referidas no artigo 14.º, alíneas b) e c), 15.º e a abertura anterior ao alargamento mencionado no artigo 17.º, existem e existia no respetivo prédio há mais de setenta anos, à vista de todos e sem a oposição de ninguém, incluindo da ré.

22. Há cerca de cinco ou seis anos, a ré prolongou o telhado do prédio mencionado no artigo 3.º até à parede do prédio referido no artigo 1.º, encostando a estrutura do telhado no topo poente do prédio referido no artigo primeiro, encontrando-se parte das telhas, numa largura de 6cm, a gotejar diretamente para esta parede.

23. Prolongou ainda a estrutura do telhado na parede sul do prédio referido no artigo 1.º, encostando-o a esta parede, em cerca de 60cm.

24. Em resultado das obras referidas nos artigos 22.º e 23.º as águas provenientes do telhado do prédio mencionado no artigo 3.º gotejam sobre aquelas paredes e muro referido nos artigos 7.º e 10.º.

25. Antes das obras referidas nos artigos 22.º e 23.º o telhado do prédio mencionado no artigo terceiro não encostava às paredes da casa referida no artigo 1.º.

26. Antes das obras referidas nos artigos 22.º e 23.º o prédio referido no artigo 3.º dos factos provados, desde data indeterminada e, pelo menos, há cerca de 10 anos, não estava encimado ou coberto por telha.

27. A cobertura do prédio mencionado no artigo 3.º está num plano inferior em relação à cobertura do prédio descrito no artigo 1.º.

28. Não existe qualquer orifício na parte inferior da construção mencionada nos artigos 7.º, 10.º e 11.º.

29. No lado poente do prédio mencionado no artigo 1.º e lado norte do prédio referido no artigo 3.º existe uma quelha, para onde caem as águas daquele prédio e de outro prédio situado a nascente daquele espaço, a qual tem uma inclinação descendente em relação ao prédio descrito no artigo terceiro, situando-se a respetiva base num nível inferior de cerca de dois metros ao telhado deste prédio.

30. O escoamento das águas pluviais daquela quelha, há mais de vinte anos que, por efeito do declive natural do terreno, se efetua através da infiltração no solo e, bem assim, para o prédio mencionado no artigo terceiro, à vista de todos e sem oposição de ninguém, inclusive da ré.

2. Factos Não Provados:

a. Além dos factos mencionados nos artigos 5.º e 6.º dos factos provados, não se provou a demais matéria de facto alegada nos artigos 50.º da petição inicial, 2.º e 3.º da contestação.

b. O espaço entre o muro e a parede sul do prédio mencionado no artigo 1.º dos factos provados em algumas zonas está obstruído com restos de cimento provenientes da construção e reboco do muro e patamar.

c. As aberturas existentes na parede sul do prédio mencionado no artigo 1.º inicialmente eram apenas duas e todas foram objeto de alteração das respetivas dimensões – alargadas.

d. Os raios solares não logravam penetrar no local onde existe a abertura referida no artigo 14.º, alínea a), a que apenas munidos de luz artificial (candeeiro) se podia aceder.

e. Antes das obras referidas nos artigos 22.º e 23.º o telhado do edifício da ré distava da parede do prédio dos autores a cerca de 60cm, que constituíam apenas muro sem cobertura.

f. Após a edificação do muro pela ré, a abertura natural existente entre os prédios mencionados nos artigos 1.º e 3.º ficou quase totalmente tapada, passando as águas a acumularem-se na parede poente do prédio mencionado no artigo 1.º e na fresta existente entre o muro e a parede sul deste prédio, onde também se acumulam as águas provenientes do escoamento do telhado do prédio referido no artigo 3.º e as restantes águas pluviais resultantes da ação natural da chuva.

g. Não tendo forma de escoamento, as águas mencionadas na alínea anterior acabam por se infiltrar nas paredes, passando para o interior do imóvel mencionado no artigo 1.º, provocando humidades, bolores e deteriorando as paredes e pinturas.

h. O elevado nível de humidade e de falta de ventilação do imóvel referido no artigo 1.º tem como consequência o florescimento de fungos nas mobílias, roupas, utensílios e noutros pertences dos autores, bem como o cheiro a mofo.

i. A humidade, bolores e fungos estão a invadir todo o imóvel e em especial a cave, tornando o ar pouco sadio e o imóvel insalubre.

j. A fim de obstar à propagação de fungos e bolores e minorar os efeitos destas infiltrações, os autores vêem-se obrigados a proceder a limpezas frequentes das paredes com produtos próprios antifúngicos e dos móveis e diversos utensílios, contudo sem grande sucesso, o que até à data da construção pela ré do referido muro e prolongamento do telhado não sucedia.

k. Os autores aquando da reconstrução do prédio mencionado no artigo 1.º “selaram” a cimento parte da quelha o que faz com que as águas não possam sumir-se ou infiltrar-se.

A. Definição do limite sul do prédio dos autores.

Alega a ré que erigiu o “muro da discórdia” dentro dos limites do seu prédio, não invadindo o terreno dos autores, por não se poder considerar que o limite deste prédio possa ser delimitado pelas floreiras cravadas no prédio dos autores, assistindo-lhe o direito de o fazer, em conformidade com o disposto no artigo 1356.º do Código Civil.

Ao invés, na sentença recorrida, condenou-se a ré a demolir, em toda a sua altura e comprimento, o muro erigido a seu mando, não porque as floreiras que se encontram salientes do prédio dos autores possam ser designados como “cachorros”, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 1371.º do CC, mas sim porque o espaço aéreo do prédio dos autores compreende o espaço abrangido pelas ditas floreiras.

Efectivamente, consigna-se na sentença em recurso o seguinte:

“De acordo com o disposto no artigo 1344.º, n.º 1, do Código Civil, a propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície.

Apesar da discussão das partes quanto à qualificação das referidas pedras, certo é que a ré aceita que eram utilizadas pelos habitantes do prédio mencionado no artigo 1.º para a colocação de vasos de flores, facto, aliás, que resulta provado. Por outro lado, a ré não alegou e não provou que a colocação de tais pedras resultou de qualquer ato de tolerância por parte dos seus antecessores.

Daí que, resultando demonstrada a existência daquelas pedras e a sua utilização para a colocação de vasos de flores, resultam demonstrados atos materiais de posse, há mais de setenta anos.

Acresce que, apesar da posse estar integrada por dois elementos estruturais (o corpus e o animus possidendi), de acordo com o n.º 2, do artigo 1252.º, do Código Civil, “em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 1257.º”, como tal, de acordo com o n.º 1, do artigo 350.º, do Código Civil, incumbia à ré provar que os autores não são possuidores, o que não logrou fazer (cfr., Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-05-1996, Processo n.º 085204, que uniformizou a jurisprudência nos seguintes termos: “Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”).

Não tendo a ré ilidido aquela presunção e não tendo a ré alegado e provado factos que pudessem ser enquadrados em qualquer das alíneas do artigo 1253º do Código Civil, há que considerar que o limite sul do prédio mencionado no artigo 1.º dos factos provados corresponde à face exterior das pedras colocadas nessa parede e, como tal, atendendo ao facto referido no artigo 13.º, o muro construído pela ré invadiu os limites daquele prédio e, em consequência, conforme pedido na alínea e), é de determinar a sua demolição, por assistir aos autores o direito à restituição do espaço ocupado pelo muro que lhes pertence, sendo certo que a usucapião considera-se invocada implicitamente (cfr. entre outros, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-02-1999, Processo 98B1043, in www.dgsi.pt), e a ré não cumpriu o ónus da prova de que é titular de um direito que legitima a recusa da restituição.”.

Assim sendo não nos incumbe averiguar da relevância das ditas floreiras enquanto “cachorros”, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 1371.º do CC, por assim não se ter entendido na decisão sob recurso e bem, uma vez que o dissídio entre as partes não versa sobre a propriedade dos muros (que ambas reconhecem pertencerem ao prédio de cada uma delas), mas apreciar a questão da definição dos limites entre os prédios em causa, na confinância definida pelos muros em causa, à luz dos limites materiais dos mesmos, designadamente, se os limites do prédio dos autores são definidos pela sua parede sul ou pelas pedras que dele extravasam 25 cm, cf. item 5.º dos factos provados.

Os limites materiais de um prédio são definidos pelo artigo 1344.º do Código Civil, nos seguintes termos:

“1. A propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico.

2. O proprietário não pode, todavia, proibir os actos de terceiro que, pela altura ou profundidade a que têm lugar, não haja interesse em impedir.”.

Como referem P. de Lima e A. Varela, in Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª Edição Revista E Actualizada (Reimpressão), Coimbra Editora, 1987, a pág.s 172 e 173, o preceito em causa, na senda do que dispunha o artigo 2288.º do Código de 1887, reflecte a velha concepção do direito medieval – qui dominus est soli, dominus est usque ad coelum et usque ad inferus – com a qual se pretendia exprimir a ideia da inexistência de quaisquer limites materiais à propriedade sobre coisas imóveis, que não fossem relativos às suas estremas horizontais.

Como escreveu David Augusto Fernandes, in Lições De Direito Civil (Direitos Reais) 4.ª Edição, Coimbra Editora, 1958, a pág.s 100 a 102, “a delimitação do solo pode ser encarada no sentido horizontal e no sentido vertical. No primeiro sentido a propriedade do solo faz nascer as questões da demarcação e da vedação; e no segundo sentido surgem as questões relativas ao subsolo e ao espaço aéreo.

(…)

Os limites horizontais são dados pelo espaço de solo dentro do qual o proprietário exerce os seus direitos, encontrando-se por isso na linha divisória do seu prédio e do vizinho.

(…)

O espaço aéreo é geometricamente determinado pelas perpendiculares levantadas sobre os limites do solo.”.

Também Rodrigues Bastos, Direito das Coisas, Vol. II, 1975, a pág. 9, refere que a propriedade do espaço aéreo é geometricamente determinada pelas perpendiculares elevadas dos limites do solo.

Ou, como referia Manuel de Andrade, In Teoria Geral …, Vol. I, Almedina, 1983, a pág. 232, deve entender-se por prédio rústico o solo ou terreno, constituído por uma porção delimitada de terreno identificada através das suas confrontações ou estremas por determinadas linhas, real ou idealmente traçadas no terreno.

 Mais recentemente, a mesma ideia é retomada por António Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil, III, Parte Geral Coisas, 3.ª Edição, Almedina, 2013, onde, a pág. 181, refere que, em moldes naturalísticos, o prédio é uma porção delimitada da crosta terrestre que, no plano da superfície, abrange a área comportada pelas sua estremas, isto é, por linhas real ou idealmente traçadas no terreno.

Daqui resulta, pois, que, como decorre do artigo 1344.º, n.º 1, CC, a propriedade privada sobre imóveis se define e é delimitada pelos seus limites superiores, embora, hoje em dia, o conteúdo do direito de propriedade, abrangendo tais limites, sofra restrições, designadamente, por força da definição do espaço/domínio aéreo público estadual e ainda conformada pelo prisma da função social da propriedade privada, em termos de, como se refere no Acórdão do STJ, de 14/02/2013, Processo n.º 806/07.0TBTND.C1.S1, disponível no respectivo sítio do itij se ter avançado “uma intenção funcional aos limites objectivos da propriedade, devendo a coisa ser submetida aos poderes do proprietário (ou do superficiário) unicamente e na exacta medida em que se revele necessária para preservar a utilidade ordinariamente proporcionada pelo bem imóvel em causa.”.

Nesta linha, refere Oliveira Ascensão, ali citado, in Direito Civil, Reais, Coimbra Editora, 5.ª Edição, pág.s 178/179 e 185 que o critério dominante da extensão dos limites em altura dos direitos incidentes sobre imóveis reside no interesse prático influenciado pela consagração do princípio da função social: são inaceitáveis «poderes de expansão» do direito a outras zonas que não correspondam a qualquer interesse efectivo do respectivo titular, não se podendo aceitar poderes de expansão que não correspondam já a nenhum interesse efectivo.

Posto isto e tendo, agora, em atenção a factualidade dada como provada, vejamos, quais os limites a estabelecer como sendo as estremas, os limites, entre os prédios em questão, designadamente, se, como acima referido, se pode entender, como decidido na sentença em análise, se os mesmos se devem estabelecer tendo em vista a linha traçada pelo limite exterior das pedras descritas no item 5.º dos factos provados, as quais estão salientes da parede em cerca de 25 cm.

Com respeito por contrária opinião, pensamos que as pedras em causa não têm virtualidades para definir a estrema do prédio dos autores, sendo que quanto às mesmas apenas se provou que são contemporâneas da construção do prédio e eram utilizadas para a colocação de vasos sobre as mesmas, desconhecendo-se em que moldes.

No entanto, isso é irrelevante para a decisão da questão em apreço, uma vez que não está em causa a propriedade das ditas pedras/floreiras, mas sim determinar os limites do prédio dos autores.

Ora, nesta sede, e tendo em linha de conta o disposto no artigo 1344.º, n.º 1, do CC e que a delimitação do espaço aéreo é geometricamente determinada pelas perpendiculares elevadas dos limites do solo, dúvidas não pode haver que o que releva são os limites do solo em si mesmo considerado, pelo que, neste prisma é irrelevante que na parede sul do prédio dos autores estejam colocadas as ditas pedras, excedendo-o em 25 cm.

De resto, os autores ao proporem a presente acção, alegaram que a empena sul dos seu prédio (onde se encontram implantadas as ditas pedras) é que constitui a “extrema confinante” – cf. artigo 9.º da p.i., do mesmo que, conforme alegam no artigo 22.º da mesma peça, “os AA verificaram que no prédio da Ré, na sua extrema Norte estava em construção um muro em betão”.

Ou seja, daqui resulta, claramente, que os próprios autores não reagiram contra a construção do muro por o mesmo violar a sua propriedade – ter sido construído no seu prédio – mas sim que, cf. resulta dos artigos 22.º e seg.s, tal construção põe em causa o escoamento de águas e servidão de vistas e só nos artigos 48.º a 50.º é que referem que tais pedras, consideradas como “cachorros”, que levam a que se conclua que a parede é de sua pertença e identificam a estrema do imóvel.

Como já acima referido, a pretensão de tais pedras serem vistas como “cachorros”, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 1371.º do CC, foi desconsiderada em 1.ª instância, sem que os autores contra isso tenham reagido, através da interposição do competente recurso, pelo que, nessa parte, a decisão transitou em julgado e, face ao exposto, as mesmas não têm virtualidades para fixar as estremas entre os prédios em causa.

Pelo que, nesta parte, tem de proceder o presente recurso, não podendo proceder a acção, no que respeita à demolição do muro, com o fundamento em o mesmo estar construído no prédio dos autores.

B. Se se encontra constituída uma servidão de vistas a favor do prédio dos autores, à custa do prédio da ré.

Os autores formularam o pedido de que fosse declarado que se encontra constituída sobre o prédio da ré e a favor do seu, uma servidão de vistas, por usucapião, com o fundamento em no seu prédio, desde a respectiva construção, se encontrarem abertas quatro janelas, viradas para o prédio da ré, que sempre usaram para receber luz e ar e para desfrutar de vistas, em moldes (que descrevem), tendentes à aquisição de tal direito, através da usucapião.

A ré, logo ao contestar (cf. al. c) da respectiva conclusão), aceita que se verifica a alegada servidão de vistas relativamente a duas das janelas existentes na casa dos autores.

Reitera tal reconhecimento nas alegações de recurso (cf. fl.s 251, aceitando que se verifica tal servidão de vistas, relativamente às duas janelas superiores (as ornamentadas com os pousos – como ali refere.

Na sentença recorrida, reconheceu-se a existência de tal direito, no respeitante às duas janelas descritas nas al.s b) e c) do item 14.º dos factos provados, improcedendo quanto à abertura ali descrita em a).

 Assim, não constitui dissídio entre as partes que este direito se verifica no que concerne a estas janelas e assim foi reconhecido.

Efectivamente, no que se refere às janelas existentes na casa dos autores e melhor descritas nas alíneas b) e c) do item 14.º dos factos provados, face à factualidade dada como assente (e contra a qual as partes não reagiram), tal como referido na sentença recorrida, verifica-se a invocada servidão de vistas, relativamente a tais janelas, dando-se aqui como reproduzidos os termos para tal expostos na decisão em análise, nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 6, do CPC, não se verificando o mesmo direito no que respeita à janela referida na al. a) do mesmo item, ou seja, a que se localiza no rés do chão da casa dos autores, pelo que, no que a esta problemática respeita, não merece censura a decisão recorrida.

Assim, quanto a esta questão improcede o recurso.

C. Se o prédio dos autores beneficia de uma servidão legal de escoamento, à custa do prédio da ré.

No que a tal concerne, alega a ré que não está obrigada a servidão legal de escoamento, desde logo porque tratando-se, como se trata de prédio urbano, não pode o mesmo ser onerado com tal servidão, conforme artigos 1563.º, n.º 4 e 1561.º do CC.

De igual forma, defende não se subsumir a situação dos autos à hipótese do artigo 1351.º do CC, porquanto as águas que provêm do prédio dos autores (e de um outro situado a nascente) só derivam para o seu prédio por “obra do homem”.

Na sentença recorrida, considerou-se que não se trata de uma servidão legal de escoamento, mas que a factualidade em causa se enquadra na previsão do artigo 1351.º, ora citado.

Incumbe, pois, apreciar se assim é.

Desde já antecipando a solução e com o devido respeito por opinião em contrário, a decisão recorrida não pode subsistir, por desconforme com a lei aplicável.

Estamos perante o que a lei designa por escoamento natural das águas que é regulado no artigo 1351.º do Código Civil, nos seguintes moldes:

1. Os prédios inferiores estão sujeitos a receber as águas que, naturalmente e sem obra do homem, decorrem dos prédios superiores, assim como a terra e entulhos que elas arrastam na sua corrente.

2. Nem o dono do prédio inferior pode fazer obras que estorvem o escoamento, nem o dono do prédio superior obras capazes de o agravar, sem prejuízo da possibilidade de constituição da servidão legal de escoamento, nos casos em que é admitida.

Como refere Manuel Henrique Mesquita, Direitos Reais, Sumários das Lições ao Curso de 1966-1967, edição policopiada, Coimbra, 1967, a pág.s 147/148, trata-se de um ónus ou obrigação imposta ao proprietário inferior, que o obriga a receber as águas que decorram naturalmente e sem obra do homem dos prédios superiores, incluindo os detritos que as mesmas arrastam.

Ensina Guilherme Alves Moreira, in As Águas no Direito Civil Português, Livro II, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1960, a pág. 248 e seg.s “que os prédios inferiores têm o encargo a que a própria natureza os sujeita, de receber as águas que decorram dos prédios superiores, em todas elas (legislações) se limita tal encargo ao que a natureza requer, não podendo ser agravado pelo dono do prédio superior nem realizada qualquer obra pelo dono do prédio inferior tendente a impedir o escoamento natural da água.”.

Ali acrescentando, todavia, que “Em qualquer dos prédios podem ser realizadas apenas as obras tendentes a regular o curso das águas, não se prejudicando por elas nem o prédio inferior nem o prédio superior.

As águas que os prédios inferiores têm de receber são: as águas pluviais que caiam directamente no prédio superior ou que para estes decorram de outros prédios superiores a ele; (…) as que se infiltrem no terreno.

Em relação a qualquer destas águas, só há para os prédios inferiores o ónus de as receberem quando elas sigam o seu curso natural, que é o determinado pelo declive do terreno. Sempre que tais águas sejam desviadas do seu curso natural, cessa a obrigação que aos proprietários dos prédios inferiores é imposta pelo artigo 110.º” (da Lei das Águas, que o artigo 1351.º do CC reproduz).

E finalizando, escreve. “Na expressão da lei naturalmente e sem acção do homem devem considerar-se como proibidas quaisquer modificações no prédio superior de que resulte prejuízo para o prédio inferior, quer por elas se pretenda actuar directamente sobre o decurso da água, quer se tenha apenas em vista o aproveitamento desta.”.

Também João Augusto Simões Veloso de Almeida, in Comentário à Lei de Águas, 2.ª edição actualizada, Livraria Cruz, Braga, 1958, a pág. 369, refere que “Para que se verifique a existência da servidão natural de terem os prédios inferiores de receber as águas e matérias por esta arrastadas, é necessário que não intervenha a acção do homem no sentido de modificar as condições do relevo do terreno de modo a dirigir as águas para esses prédios ou actuando directamente no desvio das águas, dando-lhes direcção diferente da determinada pela acção da gravidade.”.

Concretizando, a fl.s 374, que, designadamente, os donos dos prédios superiores não podem fazer obras que tenham por consequência “juntar as águas no seu prédio e fazê-las convergir para os prédios inferiores, quando estes as recebiam anteriormente espalhadas, nem dar às águas um declive ou inclinação diferente do anterior de modo a prejudicar os prédios inferiores.”.

Por seu turno, Mário Tavarela Lobo, in Manual do Direito de Águas, vol. II, Coimbra Editora, 1990, a pág.s 403 e 405, refere que “A própria natureza impõe que as águas se escoem dos prédios superiores para os inferiores “e que o artigo 1351.º exige a ausência de obra de homem para impor ao prédio inferior o ónus de receber as águas escoadas do prédio superior, seja qual for o objectivo em vista ao proceder-se a tais obras.”.

Sendo vedadas, por não se poderem considerar escoamento natural, nomeadamente (cf. pág. 407) “as práticas de juntar num só volume as águas que naturalmente se escoavam em direcção diferente segundo um curso mais suave e menos impetuoso, nem as alterações do terreno que desviem o curso natural da água e aumentem o seu volume.”.

De considerar, ainda que, cf. Henrique Mesquita, ob. cit., a pág. 157 e P. de Lima e A. Varela, in Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª Edição Revista E Actualizada (Reimpressão) Coimbra Editora, 1987, a pág. 228, “a obrigação legal de suportar o escoamento das águas pluviais só existe quando elas caiam gota a gota nos prédios superiores. Se aqui forem reunidas por acção do homem (através, por ex., de caleiras e tubos de descarga), o seu escoamento para os prédios inferiores depende do consentimento dos respectivos proprietários.”.

Ora, aplicando estes ensinamentos ao caso sub judice, tem de se concluir que a actuação da ré não viola o disposto no citado artigo 1351.º.

Efectivamente, quanto a tal apenas se provou o que consta dos itens 29 e 30, de acordo com os quais se verifica que as águas das chuvas que caem no prédio dos autores e de um outro ali situado a nascente, correm para a quelha ali existente, infiltrando-se no solo e correm para o prédio da ré.

Mas, como é bom de saber estas águas pluviais só correm para a quelha e para o prédio da ré, porque são recolhidas e encaminhadas para a dita quelha, caindo nos telhados da habitação dos autores e de uma outra ali existente.

Ou seja, não se trata de uma situação em que as águas que caem para o prédio da ré sejam fruto da queda “natural” no prédio dos autores, mas sim de águas que para ali correm mercê da intervenção humana, de “obra do homem”, pois que se ali não existissem habitações as águas da chuva infiltrar-se-iam, de forma natural, no solo ou correriam de forma natural e por influência das leis da gravidade, para locais mais baixos.

Assim sendo, não se pode exigir à ré que receba no seu prédio as águas pluviais que caem no telhado da casa dos autores, porque estas só para ali escoam, por acção do homem, porque são reunidas e desviadas do seu curso normal em virtude das casas ali edificadas, cabendo aos autores encaminhar tais águas de forma a não prejudicar a ré, que, reitera-se, face ao exposto, não tem que as receber no seu prédio

  A ré, como resulta da matéria provada, limitou-se a construir o muro de vedação do canteiro, direito que lhe assiste, por força do disposto no artigo 1356.º do CC.

Consequentemente, no que toca a esta questão, tem o presente recurso de proceder.

D. Se a ré não está obrigada a fazer as obras referidas na al. g) do pedido.

Nesta alínea do seu petitório, os autores, pugnam pela condenação da ré a eliminar o escoamento das águas pluviais provenientes do telhado do imóvel da ré para o seu, mediante a realização de obras adequadas e colocação de um algeroz no telhado da casa da ré.

Este pedido foi julgado procedente, cf. item 4.º da parte decisória da sentença recorrida.

De acordo com o disposto no artigo 1365.º, n.º 1, do CC:

“O proprietário deve edificar de modo que a beira do telhado ou outra cobertura não goteje sobre o prédio vizinho, deixando um intervalo mínimo de cinco decímetros entre o prédio e a beira, se de outro modo não puder evitá-lo.”.

Este preceito é consequência do princípio estabelecido no artigo 1351.º, do CC, segundo o qual, os prédios inferiores só estão obrigados a receber as águas que, naturalmente e sem obra do homem, decorrem dos prédios superiores, de forma que a beira do telhado (ou outra cobertura) não pode gotejar sobre o prédio vizinho, por se traduzir numa emissão que a lei não permite, não obstante possa dar azo a que se constitua uma servidão de estilicídio, cf. se prevê no n.º 2 do referido artigo 1365.º.

Mercê do que se acha provado e descrito nos itens 22.º a 26.º dos factos provados é indubitável que a ré, ao proceder como ali relatado, violou o disposto no artigo 1365.º do CC e cf. conclusão 10.ª justifica tal atitude com o facto de as obras que está a levar a cabo no seu prédio ainda não estarem concluídas.

Como é óbvio, esta justificação não colhe, violando o disposto no preceito em referência, tendo, por isso, os autores, direito a que se ponha termo a tal situação, pelo que, nesta sede, é de manter a decisão recorrida.

Assim, igualmente, quanto a esta questão, tem o presente recurso de improceder.

E. Se a ré está obrigada a demolir o muro em toda a sua extensão e altura.

Na sentença recorrida decidiu-se que a ré deveria proceder à demolição do muro que edificou na estrema do seu prédio que confina com o dos autores, com o fundamento em o mesmo ter sido edificado com invasão dos limites do prédio dos autores, ou seja, foi feito já no prédio destes.

Como acima referido aquando da análise e decisão da questão elencada em A), não se pode concluir que o dito muro tenha sido construído no prédio dos autores, pelo que, com este fundamento e como aí decidido, não é de ordenar a demolição do muro.

Mas será que é a mesma de ordenar com o fundamento em o mesmo tapar a abertura situada no rés do chão do prédio dos autores (a descrita na al. a) do item 14.º dos factos provados)?

Como resulta da factualidade descrita nos itens 7.º e seg.s dos factos provados, o muro que a ré edificou “tapa” a referida abertura, que na sentença recorrida (sem recurso das partes e sem que tal seja de censurar) foi classificada como “fresta irregular” e que, por isso não susceptível de, quanto a ela, ser apta/válida a que se constituísse uma servidão de vistas.

As “frestas irregulares”, conforme jurisprudência uniforme (v.g., entre muitos, os Acórdãos do STJ, de 19/09/2002, Processo 02B2406; de 01/04/2008, Processo n.º 07A3114, de 01/04/2008; de 15/05/2008, Processo 08B1368 e de 26/06/2008, Processo 08B1716, todos disponíveis no respectivo sítio do itij e desta Relação de 03/03/2015, Processo 335/13.2TBAGN.C1, disponível no respectivo sítio do itij), apenas concedem ao proprietário do prédio onde se inserem o direito de as manter, desde que decorrido o prazo de tempo necessário para a aquisição da servidão de vistas, mas sem que ao proprietário do prédio vizinho se imponha a obrigação de não construir no seu prédio, ainda que vede ou inutilize tais aberturas/frestas irregulares.

O mesmo defende M. Henrique Mesquita, in RLJ, Ano 128, a pág. 153, ali expendendo que:

“o proprietário que abre frestas em desconformidade com a lei fica, após o decurso do prazo da usucapião, exactamente na mesma situação jurídica que resulta da abertura de frestas regulares: o vizinho não pode reagir contra a violação cometida, exigindo que as frestas sejam tapadas ou modificadas; mas mantém o direito de, a todo o tempo, construir no seu prédio, ainda que vede ou inutilize tais aberturas.”.

Assim, não obstante o muro tapar a abertura referida em 14.º, a), tal não impede que a ré o pudesse edificar.

Por outro lado, como se decidiu no Acórdão do STJ, de 15/05/2008, acima já citado, “a reposição da servidão de vistas, afectado pela construção de um muro no prédio serviente, apenas implica a sua demolição na dimensão do enfiamento da janela, em termos de salvaguarda da função e conteúdo daquele direito.”, uma vez que a servidão de vistas ou de ar e luz natural constitui uma restrição ao conteúdo normal (pleno) do direito de propriedade, prevista, em termos genéricos, na parte final do artigo 1305.º do CC e que, dado o seu carácter de excepcionalidade só é de sancionar na exacta medida do que for necessário para a salvaguarda do direito de servidão de vistas.

Do que decorre que a demolição do muro em causa nunca poderia ser total mas apenas na parte em estivesse no enfiamento das janelas através das quais se concretiza a dita servidão.

No caso em apreço, conforme decorre da alegação constante do artigo 13.º da petição inicial e consta dos itens 7.º e 10.º dos factos provados, o referido muro não ultrapassa o limite inferior das janelas referidas em 14.º b) e c), dos factos provados (a localizada no 1.º andar).

Ou seja, o muro não tapa as janelas a que se reconheceu virtualidades para constituírem o exercício da servidão de vistas, em função do que não é de ordenar a demolição do muro.

Assim, quanto a esta questão, procede o recurso.

F. Se os autores, com a presente lide, visam a obtenção de um fim proibido por lei e sanção daí decorrente.

Limita-se a ré, em termos genéricos, que assim é.

Não o vislumbramos, tendo cada uma das partes, exposto a sua pretensão e fundamentos para tal, o que, já em 1.ª instância, motivou que se decidisse que nenhuma das partes litigou de má fé.

Pelo que, quanto a esta, questão improcede o recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar parcialmente procedente o presente recurso de apelação, em função do que se revoga a decisão recorrida, na parte em que condenou a ré a demolir o muro referido nos itens 7.º e 10.º dos factos provados e a deixar o patamar de forma a que não estorve o escoamento das águas que decorrem dos prédios superiores, incluindo dos autores;

Absolvendo-se a ré destes pedidos e;

Mantendo-a quanto ao mais

Custas por autores e ré, na proporção de metade, em ambas as instâncias.

            Coimbra, 06 de Outubro de 2015.

           

Arlindo Oliveira (Relator)
Emidio Francisco Santos
Catarina Gonçalves